Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
12884/19.4T8PRT-B.P1-A.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: JOÃO CURA MARIANO
Descritores: DESPACHO SOBRE A ADMISSÃO DE RECURSO
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
VALOR DA CAUSA
SUCUMBÊNCIA
REVISTA EXCECIONAL
OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS
AÇÃO EXECUTIVA
AGENTE DE EXECUÇÃO
HONORÁRIOS
ENCARGOS
RECLAMAÇÃO
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 02/25/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO - ARTº 643 CPC
Decisão: RECLAMAÇÃO INDEFERIDA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
Decisão Texto Integral:

I. Relatório

AA, executada no processo em epígrafe, reclamou para o Juiz da notificação da Agente de Execução, solicitando o pagamento de € 324,93, relativos a encargos e honorários.

Foi proferida decisão de indeferimento da reclamação.

Desta decisão recorreu a Executada para o Tribunal da Relação do Porto

O Juiz da 1.ª instância proferiu despacho de não admissão do recurso, com fundamento em que o valor em questão se continha na alçada do tribunal recorrido.

Desta decisão reclamou a Executada para o Tribunal da Relação do Porto, tendo, após distribuição do recurso, sido proferida decisão pela Desembargadora Relatora de indeferimento da reclamação, mantendo-se o despacho reclamado.

Desta decisão reclamou a Executada para a Conferência que, por acórdão, indeferiu a reclamação, mantendo a decisão reclamada.

Deste acórdão interpôs a Executada recurso de revista excecional para o Supremo Tribunal de Justiça, invocando o disposto no artigo 672.º, n.º 1, c), do Código de Processo Civil.

A Desembargadora Relatora proferiu despacho de não admissão do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

A Executada reclamou desta decisão para o Supremo Tribunal de Justiça, alegando, em síntese, o seguinte:

12. Estabelece o art. 643.º, n.º 4 do CPC que A reclamação, logo que distribuída, é apresentada ao relator, que, em 10 dias, profere decisão que admita o recurso ou o mande subir ou mantenha o despacho reclamado, a qual é suscetível de impugnação, nos termos previstos no n.º 3 do artigo 652.º.

13. Já o art. 652.º, n.º 3 do mesmo diploma legal estabelece que Salvo o disposto no n.º 6 do artigo 641.º, quando a parte se considere prejudicada por qualquer despacho do relator, que não seja de mero expediente, pode requerer que sobre a matéria do despacho recaia um acórdão; o relator deve submeter o caso à conferência, depois de ouvida a parte contrária.

14. E o n.º 5 do mesmo art. 652.º fixa que: Do acórdão da conferência pode a parte que se considere prejudicada:

a) Reclamar, com efeito suspensivo, da decisão proferida sobre a competência relativa da Relação para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, o qual decide definitivamente a questão;

b) Recorrer nos termos gerais.

15. Analisando o teor dos artigos mencionados é possível concluir que, face ao acórdão da conferência, com o qual a Reclamante se considera prejudicada, esta podia recorrer nos termos gerais (art. 652.º, n.º 5, al. b) do CPC)

16. E se atentarmos ao estabelecido nos artigos 671.º, n.º 3 e 672.º, n.º 1, al c), ambos do CPC, concluiremos que, ao contrário da decisão singular de que agora se reclama, o recurso de revista é admissível, na medida em que estamos perante um acórdão desfavorável à Reclamante que se encontra em contradição com pelo menos três acórdãos proferidos por tribunais da relação.

17. Não pode ser aceite num estado de direito democrático, assente no pilar da justiça, que se mantenham na ordem jurídica decisões opostas tomadas sobre a mesma matéria.

18. Tal desprestigia a justiça e descredibiliza a sua função basilar de segurança e manutenção da ordem.

19. É, pois, da mais elementar magistratura que o recurso interposto seja admitido, revogando-se o despacho que o não admitiu.

Foi proferida decisão de indeferimento desta reclamação, pelo relator neste Supremo Tribunal de Justiça, com a seguinte fundamentação:

                                              

A decisão reclamada não admitiu o recurso de revista excecional do acórdão da Conferência que confirmou a decisão da Desembargadora Relatora, a qual, por sua vez, havia indeferido a reclamação do despacho do Juiz da 1.ª Instância que havia rejeitado o recurso para o Tribunal da Relação de um seu despacho.

O artigo 643.º do Código de Processo Civil regula o meio de reação de um recorrente, face a um despacho de não admissão do recurso pelo tribunal recorrido.

Dispõem os n.º 1 e 3, deste artigo, que o recorrente pode reclamar para o tribunal de recurso, onde o relator a quem a reclamação foi distribuída profere decisão de admissão do recurso ou de manutenção do despacho de não admissão, sendo esta decisão passível de reclamação para a Conferência, nos termos do artigo 652.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.

Esta decisão da Conferência do Tribunal da Relação, em regra, já não é passível de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, com as exceções previstas nos artigos 629.º, n.º 2, e 671.º, n.º 2, do Código de Processo Civil [1].

Apesar do artigo 625.º, n.º 5, b), do Código de Processo Civil, prever que os acórdãos proferidos em Conferência, possam ser objeto de recurso, nos termos gerais, o acórdão da Conferência que, especificamente, indeferiu a reclamação do despacho do juiz da 1.ª instância que rejeitou o recurso de apelação não é suscetível de recurso de revista, uma vez que tal possibilidade não se encontra prevista na tramitação especial deste tipo de Reclamação que prevê como última instância a intervenção da Conferência, estando, assim, afastada a possibilidade de recurso de revista, salvo nos casos excecionais acima referidos.

Uma das previsões excecionais de admissibilidade de recurso é a da situação prevista na alínea d), do n.º 2, do artigo 629.º, do Código de Processo Civil – recurso do acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal.

A Executada no recurso de revista interposto, alega que a decisão de não admissão do recurso de apelação da qual pretende recorrer está em contradição com três decisões de Tribunais da Relação: o acórdão da Relação de Guimarães de 17.12.2019, proferido no Proc. 4843/15.2T8GMR, o acórdão da Relação de Lisboa, de 07.02.2019, proferido no Proc. n.º 2702.13.2.YYLSB, e o acórdão da Relação do Porto de 10.02.2002, proferido no Proc. n.º 14416/19.5T8PRT.

Estas três acórdãos conheceram de recursos interpostos de decisões proferidas em processos executivos em tudo semelhantes à decisão da 1.ª instância proferida nos presentes autos, tendo, no entanto, o mérito desses recursos sido apreciado sem que o valor das despesas e honorários do agente de execução em causa tenha obstado a esse conhecimento.

Contudo, em nenhum desses processos se suscitou a questão da admissibilidade do recurso, com fundamento naquele valor se encontrar contido na alçada do tribunal da 1.ª instância, pelo que tal questão não foi expressamente tratada nos processos invocados pela Executada, sendo a admissibilidade do recurso uma posição meramente implícita ao seu conhecimento.

Ora, para que se verifique a contradição exigida pelo artigo 629.º, n.º 2, d), do Código de Processo Civil, é necessário que ela seja frontal, isto é, que resulte de posições expressamente assumidas pelos acórdãos em confronto, em resultado de uma perceção e análise de uma questão comum, com a adoção de diferentes soluções [2].

Não se mostrando preenchida, pela razão exposta, a hipótese excecional prevista na alínea d), do n.º 2, do artigo 629.º, do Código de Processo Civil, não é admissível o recurso de revista interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, devendo, por isso, ser indeferida a reclamação.

A Executada reclamou desta decisão para a Conferência, alegando:

... Ora, a Recorrente não se pode conformar com tal posição, uma vez que, nos três acórdãos indicados, é frontal a contradição existente, razão pela qual pretende a intervenção desta Conferência.

Isto porque, ao contrário do decidido, os três acórdãos referidos, já transitados em julgado, tratam de questão exatamente igual à que está em causa neste processo:

1.º nos três processos estamos perante execução cujo valor é superior à alçada do Tribunal da Relação do Porto (€5.000,01);

2.º nas três situações, os Executados recorreram de despachos proferidos por Juízes de 1.ª Instância que indeferiram reclamações de notas discriminativas de honorários de Agentes de Execução, quando, por beneficiarem de proteção jurídica, os Executados não estavam sujeitos a tal pagamento;

3.º nos três litígios em análise, os honorários do Agente de Execução eram inferiores a €2.500,01;

4.º nos três casos exemplificativos, os Tribunais de 1.ª Instância admitiram os recursos;

5.º e os Tribunais da Relação apreciaram os recursos e julgaram os mesmos procedentes.

De facto, nos três acórdãos foram admitidos e apreciados os recursos apresentados das decisões que julgaram improcedentes as reclamações das notas discriminativas e justificativas de honorários no que ao pagamento dos honorários de AE e encargos com o processo concerne quando o executado beneficiava de apoio judiciário nas modalidades de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo.

Na verdade, nos três acórdãos o que determinou a admissibilidade e apreciação do recurso foi o valor da execução.

Assim, atento o valor da causa e a natureza do despacho proferido, sempre deverá julgar-se o recurso admissível revogando-se o despacho que o não admitiu.

Efetivamente, na humilde opinião da Recorrente, o que deverá determinar a admissibilidade do recurso no que à matéria de direito concerne, especificamente saber se um executado que goza do benefício do apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo está também dispensado de suportar o pagamento dos honorários do Agente de Execução, é o valor da execução e não o valor dos honorários do Agente de Execução.

Neste sentido, porque a decisão proferida pelos Venerandos Desembargadores da … Secção do Tribunal da Relação do Porto contraria decisão anterior proferida em fevereiro de 2020, pela … secção do mesmo Tribunal da Relação do Porto, bem como decisões proferidas pelos Tribunais da Relação de Guimarães e de Lisboa, deverá, ao abrigo do disposto no art. 672.º, n.º 1, al. c) do CPC, ser admitido o recurso de revista excecional.

                                               *

II – O direito aplicável

O recurso de revista excecional previsto no artigo 672.º do Código de Processo Civil pressupõe que se encontram preenchidos os pressupostos gerais de acesso ao terceiro grau de jurisdição, facultando-se apenas o acesso excecional a este último patamar nas situações em que apenas a existência de uma dupla conformidade verificada nas decisões das duas primeiras instâncias impede o recurso ao Supremo Tribunal de Justiça (n.º 1 do artigo 672.º do Código de Processo Civil).

Ora, pelas razões explicadas no despacho reclamado, um acórdão da Conferência do Tribunal da Relação que, especificamente, indeferiu a reclamação do despacho do juiz da 1.ª instância que rejeitou o recurso de apelação, não é suscetível de recurso de revista, salvo se se verificarem as exceções previstas nos artigos 629.º, n.º 2, e 671.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.

A Executada defende que neste caso se verifica a situação excecional prevista na alínea d), do n.º 2, do artigo 629.º, do Código de Processo Civil – recurso do acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal.

A decisão reclamada não reconheceu que se verificava essa situação porque as três decisões apresentadas pela Executada não tinham apreciado especificamente a questão da recorribilidade das decisões em causa, tendo-se limitado a conhecer de recursos interpostos para o Tribunal da Relação de despachos idênticos ao proferido pela 1.ª instância neste processo executivo, sem questionar a sua admissibilidade, admitindo-os, implicitamente.

A Executada defende, na reclamação para esta Conferência, que esse conhecimento é suficiente para preencher a previsão da alínea d), do n.º 2, do artigo 629.º, do Código de Processo Civil.

A razão de ser desta abertura excecional das portas do Supremo Tribunal de Justiça, é explicada pelo Tribunal Constitucional no seu acórdão n.º 253/2018, de 17.05.2018 [3], do seguinte modo: o recurso previsto na alínea d) do n.º 2 do artigo 629.º do Código de Processo Civil não se destina a salvaguardar qualquer direito subjetivo do recorrente, o que é evidente se considerarmos que, nos casos em que se não verifica contradição de julgados, a decisão da Relação é irrecorrível. O interesse promovido por esta disposição é de natureza objetiva, qual seja o de evitar a propagação do erro judiciário e eliminar a insegurança jurídica gerada por jurisprudência contraditória; o interesse do recorrente na reapreciação da questão de direito é, bem vistas as coisas, apenas o pretexto para desencadear um mecanismo de superação de contradições jurisprudenciais cuja função é a de tutelar aqueles interesses objetivos.

Ora, essa insegurança jurídica só ocorre quando existem decisões de tribunais superiores que, encarando uma determinada questão, expressamente apontam soluções diferentes para a sua resolução.

É necessário que se verifique uma explícita consciência da problemática sobre a qual são proferidas decisões que perfilham soluções contraditórias para que se sinta a necessidade de clarificar o entendimento jurisprudencial sobre a matéria, por um tribunal superior.

Daí que o simples facto de algumas decisões de Tribunais da Relação terem conhecido recursos de determinados despachos proferidos na 1.ª instância, sem terem questionado e tomado posição expressa sobre a admissibilidade de tais recursos, sendo essa admissibilidade apenas um pressuposto implícito daquele conhecimento, não é suficiente para que se sinalize a existência de uma posição jurisprudencial assumida contraditória com a decisão proferida nestes autos que, encarando a questão, mediante a invocação de fundamentos, se pronunciou expressamente pela inadmissibilidade do recurso, rejeitando-o.

Por esta razão não se verifica a situação excecional de contradição jurisprudencial prevista na alínea d), do n.º 2, do artigo 629.º, do Código de Processo Civil, que facultaria o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça.

Acresce que o valor da sucumbência do Recorrente, na questão que motiva o seu recurso, é muito inferior a metade da alçada do tribunal do qual recorre, pelo que, também por esse motivo, não se encontra preenchida a situação excecional prevista na alínea d), do n.º 2, do artigo 629.º, do Código de Processo Civil,  uma vez que a verificação da mesma exige que a razão impeditiva da admissibilidade do recurso seja estranha à alçada do Tribunal, conforme consta do texto deste preceito e tem sido entendimento generalizado do Supremo Tribunal de Justiça [4].

Por estas razões não está preenchida a situação excecional prevista na alínea d), do n.º 2, do artigo 629.º, do Código de Processo Civil, pelo que não estão reunidos os pressupostos gerais para que o recurso de revista seja admissível.

                                               *

Decisão

Pelo exposto, indefere-se a reclamação deduzida pela Executada, confirmando-se a decisão reclamada.

                                               *

Custas pela Reclamante.

                                               *

Notifique.

                                               *

Nos termos do artigo 15º-A do Decreto-Lei n.º 10-A, de 13 de março, aditado pelo Decreto-Lei nº 20/20, de 1 de maio, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade dos restantes juízes que compõem este coletivo.

                                               *

Lisboa, 25 de fevereiro de 2021

João Cura Mariano (relator)

Abrantes Geraldes

Tomé Gomes


_______

[1] Neste sentido, ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e LUÍS FILIPE DE SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, pág. 774, Almedina, 2018, ABRANTES GERALDES, Recursos em Processo Civil, 6.ª ed., Almedina, 2020, pág. 227-229, e os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.04.2018, Proc. 3429/16 (Rel. Ana Paula Boularot), de 21.02.2019, Proc. 27417/16 (Rel. Rosa Ribeiro Coelho), de 29.10.2019, Proc. 563/13 (Rel. Graça Amaral), e de 05.02.2020, Proc. 17/18 (Rel. Nuno Pinto Oliveira).
   No sentido oposto, RUI PINTO, Repensando os requisitos da dupla conforme, Julgar Online, novembro de 2019, pág. 7, nota 11.
[2] ABRANTES GERALDES, ob. cit., pág. 74.
[3] Acessível em www.tribunalconstitucional.pt.
[4] Neste sentido, ABRANTES GERALDES, ob. cit., pág. 69-71, e jurisprudência, exemplificativamente citada na nota 96.