Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4553/21.1T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: MÁRIO BELO MORGADO
Descritores: RESOLUÇÃO PELO TRABALHADOR
NULIDADE DA DECISÃO
EXCESSO DE PRONÚNCIA
CONDENAÇÃO EM OBJECTO DIVERSO DO PEDIDO
LIQUIDAÇÃO ULTERIOR DOS DANOS
EQUIDADE
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 03/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO.
Sumário :

I- As nulidades de sentença apenas sancionam vícios formais, de procedimento, e não patologias que eventualmente possam ocorrer no plano do mérito da causa.


II- Em matéria de pronúncia decisória, o tribunal deve conhecer de todas (e apenas) as questões suscitadas nas conclusões das alegações apresentadas pelo recorrente, excetuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução, entretanto dada a outra(s), questões (a resolver) que não se confundem nem compreendem o dever de responder a todos os invocados argumentos, motivos ou razões jurídicas, sendo certo que o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.


III- A nulidade por excesso de pronúncia apenas se verifica quando o tribunal conheça de matéria situada para além das “questões temáticas centrais”, integrantes do thema decidendum, que é constituído pelo pedido ou pedidos, causa ou causas de pedir e exceções.


IV- A resolução corporiza uma modificação qualitativa (objetiva) do direito do credor, traduzida na conversão do primário dever de prestar em dever de indemnizar.


V- A Relação condenou a R. a ressarcir a A. dos danos correspondentes ao trabalho suplementar não pago, embora, entendendo não dispor dos elementos para isso necessários, tenha relegado o apuramento deste valor para incidente de liquidação.


VI- Pretextando questionar este último segmento decisório, a ora requerente visou reabrir a questão principal (o reconhecimento pelo TRL da existência de um crédito de natureza indemnizatória), que já se encontrava fechada e que não poderia ser reaberta, sob pena de violação do caso julgado que nesse âmbito se formou.


VII- Peticionada uma indemnização e reconhecido o correspondente direito, o tribunal, sem necessidade de qualquer discussão prévia sobre a forma de a quantificar, tem ao seu dispor para este efeito uma de três possibilidades: fixar de imediato o valor, por mero cálculo aritmético; relegar o apuramento para incidente de liquidação; quantificar a indemnização com recurso à equidade.


VIII- Bem pode acontecer que em sede de incidente de liquidação, por falta de elementos bastantes para a quantificação da indemnização, se venha a constatar a necessidade de recorrer à equidade, como derradeiro critério para fazer justiça, por isso que a questão do direito à indemnização abrange e tem implícitas todas as subquestões relativas à quantificação do seu preciso montante: neste último momento apenas se conclui a discussão de uma questão deixada em aberto no momento declarativo essencial, que é o do reconhecimento de um crédito indemnizatório.


IX- O acórdão reclamado limitou-se a abordar as subquestões em que se desdobra o thema decidendum suscitado pela recorrente, sem extravasar os respetivos eixos problemáticos, pelo que não enferma dos vícios de excesso de pronúncia, de condenação em objeto diverso do pedido e de violação dos princípios do contraditório (por alegada prolação de decisão-surpresa) e da proibição da reformatio in pejus, que lhe foram assacados pela requerente.

Decisão Texto Integral:

Revista n.º 4553/21.1T8LSB.L1.S1


MBM/JES/DM


Acordam, em conferência, na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça


I.


1.1. Autora /requerida: AA.


1.2. Ré/requerente: RANDSTAD II - PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS, LDA.


X X X


1. A R. veio arguir a nulidade do acórdão proferido no âmbito do recurso de revista por si interposto nos autos, por excesso de pronúncia e condenação em objeto diverso do pedido, na parte em que determinou a fixação da importância devida pela R., a título de trabalho suplementar, com recurso à equidade, invocando, em síntese:


– Na presente ação, a A. alegou circunstanciadamente as datas e o número exato de minutos em que teria trabalhado para além do seu período normal de trabalho;


– Nunca a A. peticionou qualquer indemnização por não lhe ter sido pago o trabalho suplementar que entendeu prestar por parte da R., nem nunca, em consequência, foi a R. chamada a pronunciar-se sobre tal pedido;


– Não tendo a A. peticionado a condenação da R. numa indemnização em substituição do pagamento do trabalho suplementar, mas antes na concreta remuneração desse mesmo trabalho, nunca poderia o Tribunal, ao arrepio do pedido formulado, condenar a R. no pagamento de tal indemnização;


– Nunca foi permitida à R. a pronúncia sobre a possibilidade de, ao invés da fixação do valor da remuneração de trabalho suplementar em incidente de liquidação de sentença – como veio a decidir o Tribunal da Relação –, ser, em sua substituição, fixada uma indemnização com recurso à equidade, nem tal questão foi suscitada em sede de recurso, por qualquer das partes;


– Foram, assim, violados os princípios do contraditório e da proibição da reformatio in pejus.


– Se interpretados no sentido de não se configurar a invocada nulidade, os arts. 3.º, n.º 1, 608.º, n.º 2, 609.º, n.º1, 615.º, n.º 1, d), e 635.º, n.º 5, do CPC, enfermarão de inconstitucionalidade material, por violação dos princípios da segurança jurídica, da igualdade processual entre as partes, do direito à tutela jurisdicional efetiva, do princípio do contraditório e do caso julgado;


– Da arguida nulidade da condenação quanto aos créditos de trabalho suplementar resulta que não se verificam os pressupostos da resolução do contrato pela A., pelo que a nulidade contaminará necessariamente a decisão proferida quanto à justa causa de resolução do contrato de trabalho e consequente fixação da indemnização decorrente da mesma.


2. A autora não respondeu.


Cumpre decidir.


II.


3. Vicissitude processuais com relevo para a decisão:


– Interposto recurso de apelação da sentença que julgou a ação improcedente, o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) decidiu, nomeadamente, condenar a R. a pagar à A. a quantia que se apurar em incidente de liquidação relativa a trabalho suplementar, desde 22.02.2016.


– A R. interpôs recurso de revista, nomeadamente na parte que o acórdão do TRL relegou o apuramento das quantias devidas a título de trabalho suplementar para liquidação de sentença.


– Nesta parte, o acórdão reclamado determinou a devolução do processo à 2.ª Instância, para fixação, com recurso à equidade, da importância devida pela ré à autora a título de trabalho suplementar, com os seguintes fundamentos:


«(…)


8. Na sentença da 1ª instância foram julgados não provados, entre outros, os seguintes factos:


[…]


H. A A. efetivamente prestou a sua atividade das 09:00 h até às 13:00 h e das 14:00 h até às 18:00 h, nos dias abaixo indicado.


I. A A. prestou trabalho para além de 7,30 h/dia:


a) nos seguintes dias de 2004 (30 minutos em cada):


- em Julho - dias 1,2,5, 6,7, 8, 9,12, 13, 14,15,16,19,20,21,22,23,26,27,28, 29 e 30;


- em Agosto - 2,3,4,5,6,9,10,11,12,13,16, 17,18,19,20,23,24,25,26,27,30 e 31;


- em Setembro - 1,2,3,6,7,8,9,10,13,14,15,16,17,20,21,22, 23,24,27,28,29 e 30;


- em Outubro - 1,4,6,7,8,11,12,13,14, 15, 16, 19,20,21,22,23,26,27,28,29 e 30;


- em Novembro - 2,3,4,5,8,9,10,11,12,15, 16,17,18,19,22,23,24,25,26,29 e 30;


- em Dezembro - 2,3,6,7,9,10,13,14,15,16, 17,20,21,22,23,27, 28,29 e 30.


b) No ano de 2005, nos seguintes dias:


[…]


c) No ano de 2006, nos seguintes dias:


[…]


d) No ano de 2007, nos seguintes dias:


[…]


e) No ano de 2008, nos seguintes dias:


[…]


f) No ano de 2009, nos seguintes dias:


[…]


g) No ano de 2010, nos seguintes dias:


[…]


h) No ano de 2011, nos seguintes dias:


[…]


i) No ano de 2012, nos seguintes dias:


[…]


j) No ano de 2013, nos seguintes dias:


[…]


l) No ano de 2014, a A. prestou trabalho suplementar nos seguintes dias:


[…]


m) No ano de 2015, nos seguintes dias:


[…]


n) No ano de 2016, nos seguintes dias:


[…]


o) No ano de 2017, nos seguintes dias:


[…]


p) No ano de 2018, nos seguintes dias:


[…]


r) No ano de 2019, nos seguintes dias:


[…]


s) No ano de 2020, nos seguintes dias:


[…]”


9. Diferentemente, o acórdão recorrido, considerando embora que, em face da prova produzida nos autos, “fica inviabilizada a prova da matéria tal qual consta da alínea I, mas nada impede uma resposta restritiva”, julgou, “com referência às alíneas H) e I) do acervo não provado, que, após 22.02.2016 a A. prestou a sua atividade das 09:00h até às 13:00h e das 14:00h até às 18:00h, em dias não concretamente apurados dos anos 2016 e ss., mantendo-se a resposta de não provado relativamente á restante matéria ali contida”. Para além disso, o TRL considerou provado que a “a A. passou a cumprir o novo horário a partir de 01.07.2004” (aditado facto 12-A), ou seja, um novo horário de 40 horas por semana, em vez do anterior, de 37 horas e 30 minutos semanais, distribuídas por 5 dias, com uma carga horária de 7 horas e 30 minutos por dia (cfr. nº 7 dos factos provados).


Consequentemente, como já se referiu, o mesmo aresto condenou a R. a pagar à A. a quantia que se apurar em incidente de liquidação relativa ao trabalho suplementar (correspondente, basicamente, ao excesso de carga horária diária e semanal decorrente do novo horário de trabalho praticado), desde aquela data (22.02.2016).


10. Com razão, alega a recorrente que a fixação da indemnização só pode ter lugar no âmbito deste incidente na falta de elementos que permitam fixar a extensão da condenação e não perante a ausência de prova que poderia e deveria ter sido produzida na ação declarativa.


Na verdade, como refere José Joaquim Ferreira Marques[-]:


«Só nos casos em que, no momento da formulação do pedido ou da prolação da sentença, não haja elementos para fixar o objeto ou a quantidade do pedido, pode aplicar-se a norma do n.º 2 do art. 661º do CPC, ou seja, relegar-se para ulterior liquidação o apuramento do crédito. A remissão para ulterior liquidação não pode fazer-se em razão da falta de prova de factos, mas tão somente por inexistência de factos provados, por estes não serem conhecidos ou por estarem em evolução no momento em que foi instaurada a ação ou na data em que foi proferida a decisão que dirimiu a matéria de facto controvertida.


Repare-se que o referido preceito refere como fundamento para o non liquet quantitativo, apenas a “falta de elementos”, e não a falta de prova de elementos, pelo que só deve relegar-se o apuramento do crédito ou do quantitativo da condenação para liquidação de sentença, quando estivermos perante uma falta de elementos de facto a provar e não quando estivermos perante o fracasso da prova produzida sobre esses factos.


De modo algum se poderá considerar que a ratio legis do art. 661º, n.º 2 do CPC permite defender teleologicamente uma repetição da realização da instância probatória quanto a factos já produzidos e conhecidos à data da propositura da ação. O incidente de liquidação de sentença não admite a renovação da prova que não se logrou produzir naquela sede.


Não é legítimo, por isso, o recurso a tal figura quando o quantum se não determinou devido ao fracasso da prova (Cfr. Ac. da RP de 12/6/00, in www.dgsi.pt.).


Consentir-se o apuramento do crédito em incidente de liquidação de sentença, por fracasso da prova produzida na ação declarativa, quando todos os elementos de facto constitutivos do direito já se tinham verificado e eram conhecidos do autor, no momento da propositura da ação, seria o mesmo que conceder-lhe uma segunda oportunidade para alegar e provar os factos que não conseguiu provar na fase declarativa da ação, com total desrespeito pelos princípios gerais da repartição do ónus da prova, bem como das regras que estabelecem as diferentes fases processuais e os objetivos de cada uma dessas fases (Cfr. Acs. do STJ, de 17/1/95, BMJ 443º, 395; de 13/1/00, Sumários, 37º-34; de 24/2/00, Sumários, 38º-45).»


11. O ónus da prova da prestação de trabalho suplementar impende sobre o trabalhador, por se tratar de facto constitutivo do direito reclamado, conforme prescreve o artigo 342º, nº 1 do CC (neste sentido, v.g. Ac. desta Secção Social do STJ de 03.04.2013, Proc.º 241/08.2TTLSB).


In casu, repete-se, está provado que a autora passou a cumprir o novo horário a partir de 01.07.2004 (ponto 12-A dos factos provados) e (em termos não inteiramente concordantes) que após 22.02.2016 prestou a sua atividade das 09:00h até às 13:00h e das 14:00h até às 18:00h, em dias não concretamente apurados dos anos 2016 e ss. (ponto 35 dos factos provados).


Para além da matéria assim fixada, a autora alegou circunstanciadamente – ano a ano, mês a mês, dia a dia – o número exato de minutos em que teria trabalhado para além do período normal de trabalho, mas não logrou fazer prova de tais factos.


Nestas circunstâncias, pelas razões expostas em supra nº 10, é certo que a exata quantificação das vantagens de que a autora tem estado privada [ou, dito de outra forma, a quantificação da parcela da indemnização correspondente à contraprestação do trabalho suplementar que se encontra em falta(-)] não pode ser relegada para incidente de liquidação: isso traduzir-se-ia numa “repetição da realização da instância probatória quanto a factos já produzidos e conhecidos à data da propositura da ação”, o que não legalmente permitido.


Todavia, daqui não decorre, sem mais, que se decrete a absolvição da recorrente quanto a este ponto do peticionado pela autora.


Com efeito, em face dos descritos factos 12-A e 35, e sendo certo que nada na factualidade provada sugere que o novo horário não tenha sido efetivamente cumprido pela trabalhadora (aliás, nos termos do art. 204º, nº 1, do CT/2003, e do art. 231º, nº 1, do CT/2009, o empregador deve ter um registo de trabalho suplementar, pelo que eventuais desvios ao horário fixado deveriam estar certificados), impõe-se, antes, a fixação da contrapartida devida com recurso à equidade, nos termos do art. 566.º/3 do C. Civil, segundo o qual, “se não puder ser averiguado o valor exato dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados”.


Dano entendido como supressão ou diminuição de uma situação favorável, reconhecida ou protegida pelo Direito, na formulação de Menezes Cordeiro,[-] e “normalmente (…) aferido à lesão de interesses juridicamente tutelados pelo Direito ou, se se quiser, à perturbação de bens juridicamente protegidos”, o que se reconduz, no fundo, “à chamada ilicitude objetiva”, isto é, às soluções abstratamente preconizadas pelo Direito[-].


Na verdade, “sabendo-se que há/houve dano, tem que ser concedida uma indemnização – e passa ou pela fixação da indemnização com recurso à equidade (…) ou pela prolação duma condenação genérica, tendo em vista a sua posterior liquidação (…)”, nas palavras do Ac. do STJ de 15.02.2023, Proc. nº 10376/18.8T8SNT.L1.S1, 6ª Secção.


12. O art. 679.º, do CPC, exclui do julgamento da revista a “regra da substituição do tribunal recorrido”, consagrada no art. 665.º, do mesmo diploma, relativamente ao julgamento da apelação, pelo que o processo terá de ser remetido ao TRL para fixação deste valor com recurso à equidade.


(…


III.


4. Entre as causas de nulidades da sentença, enumeradas taxativamente no artigo 615.º, n.º 1, do CPC1, não se incluem o “chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário” (Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2ª Edição Revista e Atualizada, Coimbra Editora, 1985, pág. 686).


Na verdade, como se sabe, as nulidades de sentença apenas sancionam vícios formais, de procedimento, e não patologias que eventualmente possam ocorrer no plano do mérito da causa, como este Supremo Tribunal tem reiteradamente declarado (v.g. Ac. do STJ de 10.12.2020, proc. n.º 12131/18.6T8LSB.L1.S1, 7.ª Secção).


5. Em matéria de pronúncia decisória, o tribunal deve conhecer de todas (e apenas) as questões suscitadas nas conclusões das alegações apresentadas pelo recorrente, excetuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução, entretanto dada a outra(s) [cfr. arts. 608.º, 663.º, n.º 2, e 679º], questões (a resolver) que não se confundem nem compreendem o dever de responder a todos os invocados argumentos, motivos ou razões jurídicas, até porque, como é sabido, “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito” (art. 5.º, n.º 3).


O tribunal não tem, pois, o dever de responder a todos os argumentos, tal como não se encontra inibido de usar argumentação diversa da utilizada pelas partes.


Assim, a nulidade por excesso de pronúncia [art. 615.º, n.º l, d)], sancionando a violação do estatuído na 2ª parte do nº 2 do art. 608.º, apenas se verifica quando o tribunal conheça de matéria situada para além das questões temáticas centrais2, integrantes do thema decidendum, que é constituído pelo pedido ou pedidos, causa ou causas de pedir e exceções.


Especificamente em sede de recurso, o tribunal deve conhecer de todas e apenas as questões suscitadas nas conclusões das alegações apresentadas pelo(s) recorrente(s) – arts. 663.º, n.º 2, e 679º.


6. Posto isto, desde já se adianta que o acórdão reclamado se circunscreveu, estritamente, ao objeto do processo, não tendo conhecido de qualquer matéria não alegada pelas partes, ou procedido a condenação em objeto diverso do pedido, pelas razões que se passam a expor.


7. Antes do mais, esclareça-se que – tendo a autora resolvido licitamente o contrato de trabalho (como decidiu a Relação e este Supremo Tribunal confirmou) – todas as quantias que lhe foram arbitradas nos autos (incluindo, naturalmente, as atinentes a trabalho suplementar não pago) revestem natureza indemnizatória, ao contrário do pressuposto em que assenta o requerimento agora em apreço.


Com efeito, a resolução implica a destruição (retroativa) de uma relação contratual “truncada no seu desenvolvimento”3 e a inerente extinção do direito a exigir o cumprimento das obrigações originariamente emergentes do contrato, surgindo, em seu lugar, uma “relação de liquidação” 4 e um dever de indemnizar o contraente lesado, enquanto forma sucedânea (secundária) de satisfazer o interesse do credor na prestação (cfr. arts. 396º, nºs 1 e 3, do C.T., e 801º, nº 2, e 802º, nº 1, do C.C.).


Vale por dizer que a resolução corporiza uma modificação qualitativa (objetiva) do direito do credor, traduzida na conversão do primário dever de prestar em dever de indemnizar”.5


É certo, como diz a reclamante, que a A., ao peticionar o pagamento do trabalho suplementar em dívida, não enquadrou explicitamente esta problemática no plano da indemnização.


Todavia, tendo a mesma resolvido validamente o contrato de trabalho, todas as quantias reclamadas revestem, inexoravelmente, natureza ressarcitória, não se encontrando este Supremo Tribunal inibido de o afirmar, uma vez que, como se sabe, “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito” (art. 5º, nº 3, do CPC).


Acresce que uma interpretação sistemática do art. 566º, nº 3, do C.C., devidamente articulada com o preceituado no art. 609º, nº 2, do CPC, impõe concluir que a esfera de proteção daquela norma abrange todas as situações em que de outra forma não seja possível proceder à liquidação do “objeto ou quantidade” da condenação (e não apenas quando esteja em causa a fixação do estrito valor de danos), pelo que o enquadramento jurídico efetuado em nada de determinante interferiu com a solução dada ao litígio.


8. O TRL condenou a R. a ressarcir a A. dos danos correspondentes ao trabalho suplementar não pago. Todavia, entendendo não dispor dos elementos para isso necessários, relegou o apuramento deste valor para incidente de liquidação.


Ora, pretextando questionar este último segmento decisório, a ora requerente mais não pretendeu que reabrir a questão principal (o reconhecimento pelo TRL da existência de um crédito de natureza indemnizatória), que já se encontrava fechada e que não poderia ser reaberta, sob pena de violação do caso julgado que nesse âmbito se formou.


Por outro lado, este Supremo Tribunal também não poderia deixar de reconhecer razão à recorrente quanto à questão que a mesma decidiu suscitar, admitindo que a quantificação da indemnização correspondente à contraprestação do trabalho suplementar em falta não podia ser relegada para incidente de liquidação, embora extraindo daí as consequências jurídicas que no caso se impunham, pelas razões bastamente explicadas no acórdão reclamado e sem incorrer em qualquer excesso de pronúncia.


Na verdade:


Em qualquer processo judicial, peticionada uma indemnização e reconhecido o correspondente direito, o tribunal, sem necessidade de qualquer discussão prévia sobre a forma de a quantificar, tem ao seu dispor, para este efeito, uma de três possibilidades: fixar de imediato o valor, por mero cálculo aritmético; relegar o apuramento para incidente de liquidação; quantificar a indemnização com recurso à equidade.


E bem pode acontecer que em sede de incidente de liquidação, por falta de elementos bastantes para a quantificação da indemnização, se venha a constatar a necessidade de recorrer à equidade, como derradeiro critério para fazer justiça, por isso que a questão do direito à indemnização abrange e tem implícitas todas as subquestões relativas à quantificação do seu preciso montante: neste último momento apenas se conclui a discussão de uma questão deixada em aberto no momento declarativo essencial, que é o do reconhecimento de um crédito indemnizatório.


Neste sentido se pronunciaram v.g. os seguintes Acórdãos dos Tribunais Superiores:


– Ac. STJ de 09.01.2019, desta Secção Social, Proc. 1691/07.7TTLSB.1.L1.S1:


«(…) [A] jurisprudência deste Tribunal vem afirmando, conforme decorre do acórdão de 29 de maio de 2014, proferido no processo n.º 130/09.3TBCBC.G1.S1 que «III - No incidente de liquidação, para lá de não haver qualquer ónus da prova por parte do exequente, a improcedência da liquidação, com o fundamento de que o exequente não fez prova, equivaleria, a um non liquet e violaria o caso julgado formado com a decisão definitiva (exequenda), que reconheceu ao credor um crédito que, afinal, contraditoriamente, lhe seria negado».


É também a dimensão da necessidade de concretização de um direito cuja existência decorre de uma decisão transitada que leva ao recurso à equidade como forma de realização daquele objetivo, sendo assumido pela jurisprudência deste Tribunal, nomeadamente no acórdão acima citado, que «II - Na quantificação dos danos, sendo insuficientes as provas oferecidas pelos litigantes, incumbe ao juiz, oficiosamente, completá-las (art. 380.º, n.º 4, do CPC), não devendo ainda descartar-se o recurso à equidade.»


Na mesma linha de orientação caminha a Doutrina, referindo LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE que «Sendo a prova produzida pelas partes insuficiente para a fixação da quantia devida, deve o Juiz completá-la oficiosamente, nos termos do art. 411º, ordenando designadamente a produção de prova pericial, nos termos do art. 477º. Como último recurso, o juiz fixa equitativamente o montante da indemnização, nos termos do art. 566-3 CC)».


O apelo à equidade como forma de concretização de um direito judicialmente declarado, cujo conteúdo efetivo não resulta dessa declaração, impõe-se como recurso de última instância de forma a dar conteúdo útil à decisão judicial que declarou, mas não precisou, a dimensão efetiva do direito em causa.»


– Ac. do STJ de 04.07.2019, Proc. 5071/12.4TBVNG.1.P1.S1, 2ª Secção:


Mesmo nos casos em que, no incidente de liquidação, não foi possível fazer a prova do valor exato dos créditos em causa, tal falta de prova não pode conduzir à improcedência da liquidação, pois, como afirma o Acórdão do STJ de 14.07.2009 (processo nº 630-A/1996.S1), isso equivaleria a um “non liquet” e violaria o caso julgado formado com a decisão definitiva que reconheceu a existência de um direito de crédito (apenas não quantificado), que, afinal, contraditoriamente, lhe seria negado, pelo que, para evitar uma tal injustiça e contradição, deve o julgador recorrer à equidade, nos termos do disposto no art. 566º, nº3 do C. Civil.


– Ac. do STJ de 03.02.2009, Proc. 08A3942:


Do Sumário: Nada obsta que a equidade funcione como último critério no incidente de liquidação se nem nessa fase foi possível determinar a quantificação do dano concreto.


Deste aresto, consta a dado passo:


“Houve quem aventasse que o art. 661.º-2 do CPC “ao relegar para liquidação em execução de sentença o apuramento de indemnização” estava a abrir uma nova oportunidade de prova sobre factos já encerrados com a sentença, perante os quais as provas apresentadas pelo autor não tinham obtido sucesso, o que iria contra o caso julgado por permitir que fosse discutida de novo uma questão que se mostrava já encerrada.


Esta expressão “relegar para liquidação em execução de sentença” perdeu hoje algum sentido, pois que o art. 47.º-5 do CPC assumiu expressamente que “tendo havido condenação genérica e não dependendo a obrigação de simples cálculo aritmético, a sentença só constitui título executivo após liquidação no processo declarativo (sem prejuízo da imediata exequibilidade da parte líquida), tudo se processando mediante a reabertura da instância declarativa, em incidente de liquidação. (art. 378.º-2 do CPC),


Pois bem:


Não temos dúvidas em afirmar que seria inconstitucional se fosse interpretado no sentido de que era permitido voltar a discutir a existência de danos quando antes se havia provado que não existiam (prova fracassada)


Mas não pode considerar-se inconstitucional, e hoje podemos afirmá-lo de forma mais aberta e categórica do que antes, quando interpretado que o que vai continuar a discutir-se é uma questão que a própria sentença aceita como não estando encerrada, correspondendo apenas ao reconhecimento por parte do Juiz de que carece de mais meios probatórios para poder quantificá-los, mas dá-os logo por existentes.


A discussão sobre a extensão deles continua a ser a discussão sobre a mesma questão de facto, que ainda não foi fechada, como judiciosamente o referiu o Ac da Relação do Porto de 2004.05.17, citando Acórdão do Tribunal Constitucional de 1996.10.08, no processo 880/93, quando referiu que “não se trata de ser proferido um novo julgamento sobre uma questão de facto já decidida, mas antes o prolongar da discussão sobre uma questão deixada em aberto”.


– Ac. Rel. Lisboa de 01.10.2014, Proc. 2656/04.6TVLSB-A.L2-6:


Ao relegar para ulterior fase de liquidação de sentença o apuramento do valor que o credor tem a receber, o tribunal da condenação já reconheceu a existência de um direito de crédito, que apenas não foi quantificado, devendo sê-lo na posterior liquidação. Nada obsta a que a equidade funcione como último critério na fase de liquidação, se também em tal fase se mostrou impossível proceder à quantificação do dano concreto.


9. In casu, tendo sido reconhecido o direito a uma indemnização (por decisão nessa parte transitada em julgado), o respetivo valor tinha de ser incontornavelmente fixado por uma das formas legalmente previstas. Consequentemente, tendo a R. questionado na revista apenas o critério de quantificação eleito pela Relação, o Supremo, ao admitir o acerto da sua posição quanto a este ponto, não podia deixar de determinar que a indemnização fosse fixada nos termos legalmente prescritos, tanto mais que, repete-se, o reconhecimento de um crédito indemnizatório abrange todas as subquestões atinentes à respetiva quantificação.


Em suma, o acórdão reclamado limitou-se a abordar as subquestões em que se desdobra o thema decidendum suscitado pela recorrente, sem extravasar os respetivos eixos problemáticos, pelo que não enferma dos vícios de excesso de pronúncia, de condenação em objeto diverso do pedido e de violação dos princípios do contraditório (por alegada prolação de decisão surpresa) e da proibição da reformatio in pejus, que lhe foram assacados pela requerente.


Quanto a esta última questão, uma nota complementar.


Como se referiu, e de acordo com a vasta jurisprudência supra citada, pode acontecer que em sede de incidente de liquidação, por falta de elementos bastantes para a quantificação da indemnização, se venha a constatar a necessidade de recorrer à equidade. Assim sendo, na medida em que a solução alternativa se revelou impossível, é apodítico que o recurso à equidade não envolve uma reformatio in pejus.


Refira-se ainda que não se vislumbra que as normas aplicadas enfermem de qualquer inconstitucionalidade material, mormente, por violação dos princípios da segurança jurídica, da igualdade processual entre as partes, do direito à tutela jurisdicional efetiva, do princípio do contraditório e do caso julgado.


Por último:


Em termos que não primam pela inteligibilidade, sustenta a recorrente que da arguida nulidade da condenação quanto aos créditos de trabalho suplementar resulta que não se verificam os pressupostos da resolução do contrato pela A., pelo que a nulidade contaminará necessariamente a decisão proferida quanto à justa causa de resolução do contrato de trabalho e consequente fixação da indemnização decorrente da mesma. Todavia, improcedendo todas as arguidas nulidades, fica naturalmente prejudicada a apreciação desta questão.


10. Sem necessidade de mais considerações, improcede, pois, totalmente, o requerido.


IV.


11. Em face do exposto, acorda-se em julgar improcedentes as arguidas nulidades.


Custas pela requerente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC’s.


Lisboa, 6 de março de 2024


Mário Belo Morgado (Relator)


José Eduardo Sapateiro


Domingos Morais





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1. Como todas as demais disposições legais citadas sem menção em contrário↩︎

2. Nas palavras de Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, II, 2015, p. 371.↩︎

3. Na expressão de Brandão Proença, A resolução do contrato no direito civil, Coimbra, 1982, p. 31.↩︎

4. Sobre o conceito, ibidem, pp. 20 e 173.↩︎

5. Cfr. João Calvão da Silva, Cumprimento e sanção pecuniária compulsória, Coimbra, 1987, pp. 70 – 71 e 144 – 146.↩︎