Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2820/15.2T8LRS.L1.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: CHAMBEL MOURISCO
Descritores: RECURSO DE APELAÇÃO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ÓNUS DE CONCLUIR
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 10/31/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA DA 1.ª RÉ. CONCEDIDA EM PARTE A REVISTA DA AUTORA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / ELABORAÇÃO DA SENTENÇA / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA.
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / RESPONSABILIDADE POR FACTOS ILÍCITOS.
Doutrina:
- Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, Almedina, p. 395 e 398.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 607.º, 635.º, N.ºS 3, 4 E 5, 636.º, N.ºS 1 E 2, 639.º, N.ºS 1 E 2, 640.º, N.ºS 1, ALÍNEAS A) E C) E 2, ALÍNEA A) E 671.º, N.º 3.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 494.º, N.º 3 E 496.º, N.º 1.
REGIME DE REPARAÇÃO DE ACIDENTES DE TRABALHO E DE DOENÇAS PROFISSIONAIS, APROVADO PELA LEI N.º 98/2009, DE 4 DE SETEMBRO: - ARTIGO 18.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 29-10-2015, PROCESSO N.º 233/09.4TVNG.G1.S1;
- DE 12-07-2018, PROCESSO N.º 167/11.2TTTVD.L1.S1.
Sumário :

I. Da conjugação do art.º 640.º, n.º 1, alínea a) e c), do Código de Processo Civil, com o disposto no art.º 639.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, resulta que o recorrente que pretenda impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto tem de fazer consignar nas suas conclusões os concretos pontos de facto que pretende impugnar e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida.

II. É ajustado fixar o montante de 40 000 EUR, a título de indemnização por danos não patrimoniais a um menor que tinha três meses de idade quando o pai faleceu vítima de acidente de trabalho que resultou de falta de observação das regras sobre segurança e saúde no trabalho por parte do empregador.

Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

                                                           I

 Relatório:

 1. AA, por si e em representação do seu filho menor, BB, instaurou a presente ação declarativa de condenação, a seguir a forma de processo especial, emergente de acidente de trabalho, pedindo a condenação solidária de: 1. CC, S.A. (1.ª ré), 2. COMPANHIA DE SEGUROS DD, S.A. (2.ª ré), 3. CP – CAMINHOS DE FERRO PORTUGUESES, E.P., 4. EE, (Administrador da CC, S.A.), 5. FF, (Administradora da CC, S.A.), 6. GG, (Administrador da CC, S.A.), e 7. FUNDO DE ACIDENTES DE TRABALHO, a pagar-lhe: 1) A pensão anual e vitalícia de 4 890,16 EUR, com início em 19-02-2015, até perfazer 65 anos de idade, e a partir dessa idade a pensão de 8 150,31 EUR, metade do subsídio por morte e uma indemnização por dano morte no valor de 280 000 EUR, bem como uma indemnização por danos não patrimoniais no valor de 100 000 EUR; 2) Ao menor BB a pensão anual de 3 260,12 EUR até perfazer 18, 22 ou 25 anos, metade do subsídio por morte e uma indemnização por danos não patrimoniais no valor de cento e vinte mil euros.

Para o efeito, alegou em síntese:

- No dia 18-02-2015, HH, com quem vivia como marido e mulher, sofreu um acidente de trabalho, em consequência do qual veio a falecer, deixando-a a si e ao filho menor de ambos, BB;

- O acidente ocorreu quando o referido HH procedia à inspeção de um contentor, tendo sido sugado por uma catenária;

- Em resultado do acidente advieram para o sinistrado lesões corporais que lhe determinaram a morte;

- Este acidente resultou da falta de observação das regras sobre a segurança e saúde no trabalho por parte da 1ª Ré, entidade empregadora;

- Na data do acidente a responsabilidade civil da 1ª Ré encontrava-se transferida para a 2ª Ré;

- A 3ª Ré era proprietária do local onde ocorreu o acidente, tendo celebrado com a  1ª Ré um contrato de concessão;

- Os 4º, 5º e 6º Réus são administradores da 1ª Ré, pelo que são solidariamente responsáveis;

- Desconhecem os Autores qual é a capacidade económico-financeira dos Réus, daí que a ação também tenha sido proposta contra o 7º Réu.

           

2. Foi julgado procedente o incidente de fixação de pensão provisória para ambos os Autores com a inerente condenação da 2ª Ré nesse pagamento.

3. Foi proferido despacho que indeferiu liminarmente a petição inicial quanto aos 3º, 4º, 5º, 6º e 7º réus.

                                  

4. A 1ª Ré contestou, impugnando que o acidente tenha resultado da falta de observância, por si, de regras de segurança, pugnando pela improcedência da ação com a sua absolvição do pedido.

                                                          

5. A 2ª Ré contestou, não aceitando a responsabilidade decorrente do acidente, argumentando que este deveu-se à violação das normas de segurança pela entidade empregadora, concluindo pela sua absolvição do pedido.

                       

6. Realizado julgamento foi proferida sentença que decidiu:

«A) Condenar a Ré Seguradora, sem prejuízo do direito de regresso contra a 1.ª Ré e da dedução dos valores entregues a título de pensão provisória, os quais deverão ser comprovados nos autos,

1) A pagar a AA: a pensão anual e vitalícia, atualizável, desde 19-02-2015, no valor de 2 445,09 EUR até à idade de reforma por velhice e 3 260,12 EUR, a partir daquela idade, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4 % ou a outra que vier a ser legalmente fixada, desde 19-02-2015, até integral e efetivo pagamento e 2 766,85 EUR, a título de subsídio por morte;

2) A pagar ao beneficiário BB: a quantia de 1 630,06 EUR, enquanto este se mantiver na situação descrita no art.º 60.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro e 2 766,85 EUR, a título de subsídio por morte;

B) Condenar a Ré CC:

1) A pagar à Autora AA:

- a pensão anual e vitalícia, atualizável, desde 19-02-2015, no valor de 2 445,09 EUR até à idade de reforma por velhice e a partir daquela idade 3 260,12 EUR, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4 % ou a outra que vier a ser legalmente fixada, desde 19-02-2015, até integral e efetivo pagamento;

- 20 000 EUR, a título de danos não patrimoniais, e

- 30 000 EUR, pelo dano morte.

2) A pagar ao beneficiário BB:

- A quantia de 1 630,06 EUR, enquanto este se mantiver na situação descrita no art.º 60.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, sendo que quando o filho deixar de receber a pensão deverá a autora passar a receber a mesma por inteiro, nos termos do art.º 18.º, n.º 4 alínea a) e 6 do DL 98/2009, de 4 de setembro;

- 20 000 EUR, a título de danos não patrimoniais; e

- 30 000 EUR, pelo dano morte.

C) No mais, absolvo os RR do peticionado.»

                                                           ***

7. Inconformados, os autores e a 1.ª ré interpuseram recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação decidido:

«1. Não admitir o recurso sobre a matéria de facto interposto pela Ré; CC, S.A.

2. Julgar improcedente o recurso interposto por CC, S.A.

3. Julgar parcialmente procedente o recurso interposto por AA, por si e em representação do seu filho menor BB, revogando parcialmente a sentença, e, em consequência,

4. Condenar a Ré, CC, S.A., a pagar à Autora a quantia de 40 000 EUR, pelo dano morte, e a quantia de 40 000 EUR, a título de danos não patrimoniais próprios.

5. Condenar a Ré, CC, S.A. a pagar ao Autor a quantia de 40 000 EUR, pelo dano morte.»

8. Inconformados com esta decisão, os autores e a 1.ª ré interpuseram recursos de revista, tendo formulado as seguintes conclusões:

a) Os autores apresentaram as seguintes conclusões:

1- O tribunal da Relação decidiu mal - no sentido em que decidiu aquém dos valores que deveria decidir - quando, manteve a condenação da R. CC, S.A. a pagar ao A. BB apenas a quantia de 20 000 EUR, a título de indemnização por danos não patrimoniais. Com efeito,

2- O tribunal "a quo", ao manter o valor suprarreferido, fixando em 20 000 EUR, a indemnização a título de danos não patrimoniais, a conceder ao menor BB; fixou tal indemnização em valores meramente simbólicos e miserabilistas. Isto salvo o devido respeito e melhor opinião. Pois que,

3- Os danos não patrimoniais que a R. CC, S.A. causou ao A. BB - decorrentes do comportamento daquela com culpa grave pelo facto de não ter comprido as obrigações a que estava obrigada para assegurar a segurança no trabalho de que, necessariamente, resultou a morte do sinistrado HH, morte essa que era evitável caso a entidade empregadora tivesse cumprido as suas obrigações relativas a segurança no trabalho -, são danos eternos, insuperáveis e irreversíveis. Com efeito,

4- O relevo da figura paterna - que era no caso "sub judice" o pilar principal e essencial do agregado familiar, quer a nível psicológico, quer a nível financeiro (vide 31. Dos factos provados) -, numa fase precoce do desenvolvimento da criança é imprescindível. Pois que, a figura paterna assume um papel fundamental na atividade exploratória da criança, uma vez que, é ele que, geralmente encoraja a curiosidade estimula a resolução dos problemas quer a nível cognitivo, quer motor...

O pai contribui, assim, para dar segurança no domínio e exploração do meio ambiente. Aliás,

5- In casu está em causa a morte de um pai jovem (24 anos) que deixou um descendente com meses de vida e que este vai enfrentar toda uma vida sem a figura central/âncora/Pilar daquele que, diz a ciência: «organiza as relações triangulares, permite a vivência do complexo de Édipo, introduz a criança no mundo das diferenças (sobretudo sexuais) e alarga o seu espaço do interior para o exterior para o universo social» (Bayle, 2006).

6- Tendo a entidade empregadora, com culpa grave, contribuído, decisivamente, com o seu comportamento (o acima já descrito) para a ocorrência do sinistro de que resultou a morte do pai do ora recorrente BB e que, tal morte, causa no referido BB, danos não patrimoniais que se repercutirão em toda a sua vida, e que, inevitavelmente, têm repercussão na sua formação, nomeadamente na sua personalidade, de forma contínua, marcante, duradoura e até eterna. Tudo decorrente do facto de, com culpa grave, a entidade empregadora não ter cumprido as suas obrigações de garantia segurança no trabalho, a que estava adstrita. Donde,

7- Porque assim é, afigura-se-nos como equitativa a indemnização de 120 000 EUR de que a R. CC, S.A. deverá ser condenada a pagar ao A. BB, a título de indemnização por danos não patrimoniais. Donde e decorrentemente,

8- O Venerando S.T.J. deverá proferir Douto Acórdão que revogue a parte do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, que manteve a condenação da R. CC, S.A. a pagar ao A. BB apenas a quantia de 20 000 EUR, a título de indemnização por danos não patrimoniais e, concomitantemente, condene a R. CC, S.A. a pagar ao A. BB, a quantia de 120 000 EUR, a título de indemnização por danos não patrimoniais.

b) A 1.ª ré apresentou as seguintes conclusões:

1. A ora recorrente cumpriu os ónus a que se referem o art.º 640.° do Código de Processo Civil, isto é,

2. Depois ter especificado os meios probatórios que impunham decisão diversa - indicando igualmente com exatidão as passagens da gravação - concluiu com a indicação da decisão que, no seu entender, devia ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, por outro lado,

3. Quanto às conclusões das alegações, infere-se de forma inequívoca das mesmas o sentido que a recorrente entende dever retirar-se da prova invocada no corpo das alegações.

 4. Sem conceder, a Ré CC, no que respeita à inspeção de contentores, adotou um conjunto de regras internas de organização e segurança dos seus trabalhadores, incluindo o aqui sinistrado HH, e as inspeções deviam ser feitas na zona alcatroada;

5. Não se apurou, por outro lado, pelo que se desconhece como o acidente ocorreu.

6. Desconhecendo-se como o acidente ocorreu, não se pode dar como verificado o nexo de causalidade entre a inobservância de regras legais de segurança e a produção daquele acidente.

7. A douta decisão de que se recorre violou, pois, o disposto no art.º 640° do Código de Processo Civil, pelo que deve ser revogada e substituída por outra que ordene o conhecimento do recurso na parte em que se impugna a matéria de facto, ou caso assim se não entenda, a douta decisão de que se recorre violou o disposto no art.º 18° da Lei n° 98/2009, 04/09, pelo que deverá o presente recurso ser julgado procedente, e bem assim revogada a douta decisão proferida pelo Tribunal a quo, com a consequente absolvição da ora recorrente no pedido.

9. A 2.ª ré contra-alegou, defendendo que o recurso da 1.ª ré deve ser rejeitado, por inadmissibilidade, ou caso assim não se entenda, julgado totalmente improcedente, tendo apresentado as seguintes conclusões:

A. A Recorrente interpõe o presente recurso do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, que, julgando a Apelação improcedente, manteve os termos da sentença do Tribunal de 1.ª instância, concluindo pela demonstração da violação das regras de segurança pela Recorrente. No entanto,

B. O triplo grau de jurisdição não constitui uma garantia generalizada. No que toca à admissão do Recurso de Revista, é necessário que estejam verificados os pressupostos previstos na lei processual.

C. No Recurso em apreço verifica-se claramente esta situação de dupla-conforme. Com efeito, a apelação foi julgada improcedente, utilizando-se a mesma fundamentação da sentença da 1.ª instância sem que tenha havido voto de vencido.

D. Pelo que, o recurso de Revista apresentado viola o disposto do artigo 667.°, n.° 3, do C.P.C., devendo o mesmo ser rejeitado por não cumprimento dos requisitos previstos nos artigo 671.° do C.P.C.

Sem prescindir,

E. Nos termos do n.° 1 do artigo 639.° do C.P.C., o recorrente deve indicar no seu recurso - limitado no seu objeto pelas conclusões - os fundamentos por que pede a  alteração da decisão.

F. Analisando-se as conclusões do recurso de apelação, constata-se que a Recorrente não cumpriu o referido ónus. Por conseguinte, não teve dúvidas o Tribunal a quo, na esteira da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, de que «in casu, a análise das conclusões de recurso da Ré não permite perceber que esta pretende impugnar a matéria e facto e, pretendendo, quais os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados».

G. Por outro lado, no recurso de Apelação apresentado, verifica-se que não são transcritas as passagens do depoimento que, no entender da Recorrente, fundamentam decisão diferente da matéria de facto.

H. Face ao exposto, foi claramente incumprido o ónus do recorrente previsto nas alíneas a), b) e c) do n.°1 do artigo 640.° do C.P.C., devendo tal decisão ser mantida a decisão do Tribunal a quo.

I. Por último, no que toca à questão nexo de causalidade, e por questão de cautela que a patrocínio jurídico aconselha – sendo certo tal questão jurídica foi já duplamente decidida –sempre se dirá que a posição da Recorrente carece de total fundamento.

J. Isto porque os factos provados permitem, sem mais, demonstrar a dinâmica do acidente e concluir que a Recorrente incorreu num conjunto significativo de condutas ilícitas relacionadas com os seus deveres de segurança e saúde no trabalho (vide. factos provados 1 a 6,12 a 14,16 a 18, e 33 a 51).

 K. Face ao exposto, bem andou o Acórdão do Tribunal a quo ao reconhecer a responsabilidade da Recorrente nos termos do n.° 1 do artigo 18.° da L.A.T., devendo tal decisão ser mantida.

10. Neste Supremo Tribunal de Justiça, o Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que deve ser negada a revista da ré CC – S.A, e concedida, pelo menos parcialmente, a revista do autor.

11. Nas conclusões dos recursos de revista interpostos são suscitadas as seguintes questões, que se enumeram pela ordem que devem ser solucionadas:

1. Se a 1.ª ré, no recurso de apelação que interpôs, cumpriu os ónus fixados no artigo 640º, do Código de Processo Civil, quanto à impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto;

2. Averiguar de existe nexo de causalidade entre a inobservância das regras de segurança e a produção do acidente de trabalho;

3. Se deve ser mantida ou aumentada a quantia de 20 000 EUR fixada, a título de danos não patrimoniais, ao autor BB. 

                                                           II

A) Fundamentação de facto:

O Tribunal da Relação fixou a seguinte factualidade:

1. HH nasceu no dia …1990 e faleceu no dia …2015, no estado de solteiro.

2. Foi contratado pela 1ª Ré, CC, S.A., em 01-07-2014, como ajudante de reparação e tinha como local de trabalho a serralharia.

3. No dia 18 de fevereiro de 2015, cerca das 11:00 horas, em ..., ..., o referido HH foi vítima de um acidente quando prestava serviço sob as ordens, direção e fiscalização da 1ª Ré.

4. No momento do acidente o sinistrado HH estava a trabalhar na ..., Parque da CP, ... ..., com a categoria profissional de outros trabalhadores polivalentes – 9622.2 (Inspetor de Contentores), mediante a retribuição mensal de 505,00 EUR x14 meses + 98,21 EUR x 11 meses, o que corresponde à remuneração anual de 8 150,31 EUR.

5. Tal acidente consistiu no facto do sinistrado, HH, ao proceder à inspeção de um contentor de 30 pés, tipo “Bulk”, no topo do contentor, ter sido sugado por uma catenária.

6. Em resultado do acidente, advieram para o sinistrado, necessária e diretamente as seguintes lesões corporais, que causaram a sua morte imediata:

– A morte de HH foi devida à eletrocussão por eletricidade industrial – descarga de catenária, com ponto de entrada na região parietal direita e de saída na planta do pé esquerdo e com consequentes queimaduras de 1º - 2º grau de cerca de 54 % de superfície corporal (de couro cabeludo, pescoço, tórax, região lombar e dos membros inferiores), as quais lhe determinaram a morte.

 7. A 1ª Ré tem como objeto social o parqueamento, movimentação, reparação e transporte de contentores.

8. Desenvolve a sua atividade no terminal de mercadorias da ....

9. Para a concretização e desenvolvimento da sua atividade a 1ª Ré CC, S.A. celebrou com a CP – Caminhos de Ferro Portugueses, E.P. (aqui 3ª Ré) um contrato de concessão com o nº 31/2005.

10. O terminal de mercadorias da ... (onde a 1ª Ré desenvolve a sua atividade) é constituído por 3 linhas férreas: «linha da rede»; «linha do meio» e «linha mar».

11. O acidente ocorreu na epitetada «linha mar», especificamente na linha norte, 57-A, na proximidade do poste de catenária B2, 26 D do terminal de mercadorias da ....

12. A 1ª Ré CC, S.A., à data do acidente, não tinha, nem apresentou, qualquer documento comprovativo da realização de uma avaliação de riscos profissionais para a atividade que desenvolve, consubstanciada num relatório de avaliação de riscos profissionais.

13. A 1ª Ré não promoveu a realização de exames de saúde de admissão ou outros ao trabalhador sinistrado, admitido em 01/07/2014.

14. Decorrente do acidente foram, pela ACT, levantados 3 autos de notícia, contra a 1ª Ré, devido a falta de avaliação de riscos profissionais, falta de formação, falta de realização de exames de saúde.

15. No momento do acidente o trabalhador sinistrado encontrava-se a usar colete e botas de biqueira de aço.

16. A inspeção de contentores é uma tarefa que consiste em verificar o estado geral de conservação, limpeza e funcionamento dos contentores.

17. A referida função é exercida na empresa Ré CC por funcionários com a categoria de Inspetor de Contentores.

18. Na data do acidente a responsabilidade civil da entidade empregadora, emergente de acidentes de trabalho, encontrava-se transferida para a entidade seguradora: “DD, Companhia de Seguros, S.A.”, mediante contrato de seguro titulado pela Apólice nº ..., abrangendo integralmente a remuneração do mesmo acidentado no montante de 505 EUR x14 meses + 98,21 EUR x11 meses, o que corresponde à remuneração anual de 8.150,31 EUR.

19. BB nascido em … 2014 é filho do sinistrado HH e de AA.

20. AA, viveu em união de facto, como se de marido e mulher se tratassem, com o sinistrado HH desde novembro de 2012, até à data da morte deste.

21. A Autora nasceu no dia …1991.

22. O sinistrado era beneficiário da segurança social n.º ….

23. O sinistrado era um homem jovem saudável, apto para o trabalho, feliz, alegre, comunicativo, com grande apego ao seu núcleo familiar, mormente ao seu filho BB e à sua companheira AA.

24. À data do acidente AA não trabalhava fora de casa, pois tinha (tem) um filho bebé para cuidar (o BB).

25. Era com o salário do sinistrado que o agregado familiar se sustentava, fazendo face a todas as despesas, como alimentação, vestuário, água e luz.

26. O 1º Autor tinha grande afeto por seu pai (o sinistrado), sendo que quando este chegava a casa vindo do trabalho ficava eufórico de ver o pai, o que acontecia diariamente.

27. A 2ª Autora tinha grande amor e afeto pelo sinistrado, com quem vivia maritalmente desde novembro 2012 e estavam a criar o filho de ambos, BB.

28. Devido à morte do sinistrado a 2ª Autora «mergulhou» numa profunda tristeza, dor, angústia e depressão traumática.

29. Com a morte do sinistrado a 2ª Autora teve que começar a trabalhar fora de casa para suportar sozinha todos os encargos familiares consigo e com o seu filho.

30. Solicitando à sua mãe e «sogra» que lhe cuidem do bebé (aqui 1º Autor) enquanto ela está no trabalho.

31. O sinistrado era para o seu filho e sua «mulher» / companheira AA uma referência e o pilar principal e essencial do agregado familiar, quer a nível psicológico, quer a nível financeiro.

32. Após a morte do sinistrado a Autora AA ficou com dificuldade em falar sem quebras, verificando-se «gaguejar» amiúdes vezes quando fala, decorrente da «tensão nervosa» e depressão que se «apoderou de si» após o acidente.

33. O sinistrado iniciou funções como inspetor de contentores em outubro de 2014.

34. O acidente ocorreu quando o sinistrado se encontrava sozinho a inspecionar contentores, que tinham dado entrada no parque de mercadorias da ....

35. A inspeção dos contentores deveria ser efetuada na zona de descargas, local pavimentado e fora da zona de perigo de tensão.

36. No dia do acidente, o comboio que transportava os contentores não coube no limite da zona alcatroada do parque, tendo sido colocadas algumas carruagens (com contentores) na zona das catenárias.

37. Devido a esta circunstância, o sinistrado, para realizar a inspeção dos referidos contentores, foi para onde estes se encontravam, isto é, fora da zona de descargas, numa zona de tensão.

38. Os contentores em causa, do tipo “Bulk” eram dotados de escotilha no teto, pelo que o sinistrado a fim de proceder à verificação do estado das escotilhas subiu ao topo do contentor.

39. A catenária encontrava-se a uma altura padronizada de 4.75 metros do solo.

40. O trabalhador encontrava-se em cima do contentor que tem uma altura de 2.75 m.

41. O contentor encontrava-se em cima do vagão com 1,19 m.

42. Entre o topo do contentor e a catenária distavam apenas 81 cm.

43. O risco de contacto e eletrocussão era previsível e detetável pela entidade empregadora.

44. O sinistrado não tinha conhecimento dos procedimentos, medidas de prevenção a tomar, locais ou zonas proibidos ou perigosas, ou quaisquer outras instruções de saúde e segurança específicas para o exercício da atividade de inspetor.

45. Por não lhe ter sido ministrada formação em segurança e saúde no trabalho pela 1.ª Ré.

46. E por no local do acidente não existir qualquer sinalética de aviso ou interdição de passagem.

47. Nem sinalética de proibição de efetuar inspeções aos contentores.

48. A formação referida em 14 teria possibilitado ao sinistrado:

a) Ter conhecimento da zona de descargas e os seus limites, ou seja, o conhecimento do local onde deveria prestar a sua função;

b) Ter conhecimento do perigo de eletrocussão existente na zona das catenárias.

49. O sinistrado procedeu à inspeção do contentor naquele lugar - zona das catenárias – porque desconhecia que estava a correr risco de vida.

50. Ao não avaliar os riscos da função e do local em causa, ao não proibir o acesso à zona de tensão e ao não adotar qualquer medida preventiva (tanto a nível de sinalização como equipamento adequado), a entidade empregadora permitiu que o sinistrado acedesse à zona onde existem catenárias e que ocorresse o acidente.

51. O conhecimento dos perigos e adoção de medidas preventivas teriam permitido ao sinistrado evitar o acidente.

52. O parque de contentores tem o solo todo pavimentado com alcatrão e está vedado em praticamente todo o seu perímetro por uma vedação de ferro, com exceção da parte onde se encontram as linhas férreas, que não está vedada nem alcatroada.

53. No parque, onde se iniciam as linhas férreas estão colocados há muitos anos, entre o espaço das linhas, uns contentores.

54. A zona do parque para efetuar as descargas dos contentores dos comboios e se proceder à inspeção dos mesmos está alcatroada e a zona onde se inicia a linha do comboio com catenárias tem um solo constituído por brita, pelo que é visível e percetível a delimitação entre aquelas duas zonas.

55. Das normas internas de inspeção de contentores elaboradas pela Ré CC – está determinado que:

- Na inspeção de contentores no comboio, o inspetor deve garantir que os mesmos se encontram parados, e que a locomotiva já não se encontra nas instalações.

- O inspetor nunca deverá passar os limites do parque para inspecionar os contentores que sejam transportados no comboio, apenas poderão ser inspecionados os comboios que se encontrem dentro da área reservada do parque, nomeadamente até ao limite da zona alcatroada.

- Caso seja necessário inspecionar o teto de qualquer contentor, o inspetor deve dar indicações ao painel, para que posicione os contentores no chão para mais tarde serem inspecionados nas devidas condições.

56. Ao começar a exercer as funções de inspetor de contentores HH estagiou durante cerca uma semana com o Chefe dos Inspetores, II.

57. O sinistrado seguia um regime de trabalho de segunda a sexta-feira, das 08:00 às 13:00 horas e das 14:00 às 17:00 horas.

58. Nos termos do contrato de trabalho, celebrado entre a Ré, CC, e o sinistrado: «4.º  (Local de Trabalho) O local da prestação de trabalho do segundo contraente será na ... da CP ... – Parque Norte».

                                              

B – Matéria de Facto Não Provada

São os seguintes os factos considerados não provados pela primeira instância:

1. O sinistrado apenas tenha iniciado funções de inspetor de contentores no início de fevereiro de 2015.

2. Não existem catenárias na parcela de terreno concessionada, referida em 9, designada por «parque dos contentores».

3. Os contentores referidos em 54.º servem de barreira e impedem a passagem de máquinas ou viaturas para a linha férrea.

4. Os vagões que não cabem no parque são separados dos restantes e aguardam fora do parque e só depois dos contentores que ficam dentro do parque serem descarregados do comboio e dos respetivos vagões serem retirados do parque é que avançam para dentro do parque os vagões com contentores que ficaram fora dele para serem também descarregados e inspecionados.

5. Os contentores «bulk» são sempre inspecionados no solo, pela sua porta do lado da frente, e nunca através das suas escotilhas, embora o bom funcionamento destas deva também ser verificado pelos inspetores.

6. A inspeção dos contentores que chegam nos comboios é sempre feita dentro do parque, numa zona alcatroada, local onde não existe qualquer catenária.

7. O poste com a primeira catenária onde está aposto e é visível um sinal a alertar para o perigo de eletrocussão, está a mais de trinta metros da zona onde se inicia a linha de comboio com catenárias (da linha onde termina igualmente a zona onde se procede à inspeção dos contentores.

8. É, assim, nulo, o risco de eletrocussão na área onde se fazem as descargas e as inspeções dos contentores, como aliás também o é em toda a área do parque de contentores.

9. Que tenha sido entregue à Sra. Inspetora do Trabalho, no dia do acidente, cópia do doc. 6 (fls. 51 e 52) com as «normas internas de inspeção» referidas em 57.

10. As referidas normas estão afixadas há anos na sala dos inspetores local onde estes se reúnem para tratarem das questões e dos assuntos relacionados com a organização e funcionamento do respetivo serviço.

11. HH frequentava diariamente a referida sala e tinha conhecimento das referidas normas internas de inspeção.

12. HH tinha conhecimento que a passagem para fora dos limites do parque, além de ser proibida, acarretava problemas de segurança ao nível de atropelamento pelos comboios e sobretudo de eletrocussão.

13. Que o referido II e outros com quem o sinistrado estagiou o tenham ensinado as referidas normas internas que devia seguir na inspeção de contentores e ainda a absoluta proibição de sair dos limites do parque devido aos riscos de atropelamento e eletrocussão.

14. O HH entre Setembro e a data do acidente:

- Efetuou sempre as inspeções dentro da área reservada do parque;

- Nunca ultrapassou os limites do parque para inspecionar os contentores;

- Solicitou sempre ao painel que posicionasse contentores no chão para inspecionar sempre que necessário o teto dos mesmos;

- Inspecionou os contentores «bulk», sempre no chão, depois de retirado o saco de plástico do seu interior.

B) Fundamentação de Direito:

B1) Os presentes autos respeitam a uma ação especial emergente de acidente de trabalho participado em 27 de fevereiro de 2015, tendo o acórdão recorrido sido proferido em 26/4/2018.

Assim sendo, o regime processual aplicável é o seguinte:

- O Código de Processo do Trabalho, na versão operada pela Lei n.º 63/2013, de 27 de agosto;

- O Código de Processo Civil, na versão conferida pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho.

B2) Em sede de recurso de revista, a 1.ª ré questiona a decisão do Tribunal da Relação que rejeitou o recurso de apelação na parte em que impugnou a decisão proferida sobre a matéria de facto, com o fundamento no incumprimento dos ónus fixados no artigo 640º, do Código de Processo Civil.

O art.º 640º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe, (Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto) estatui:

1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

3. O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.

Por seu turno, o artigo 639º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe, (Ónus de alegar e formular conclusões) refere:

1. O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.

2. Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar:

a) As normas jurídicas violadas;

b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas;

c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada.

3. Quando as conclusões sejam deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não tenha procedido às especificações a que alude o número anterior, o relator deve convidar o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, no prazo de cinco dias, sob pena de se não conhecer do recurso, na parte afetada.

4. O recorrido pode responder ao aditamento ou esclarecimento no prazo de cinco dias.

5. O disposto nos números anteriores não é aplicável aos recursos interpostos pelo Ministério Público, quando recorra por imposição da lei.

Muito recentemente, em 12-07-2018, o Supremo Tribunal de Justiça, no processo n.º 167/11.2TTTVD.L1.S1, 4ª Secção, pronunciou-se sobre a questão nos seguintes termos:

«A exigência que o legislador consagrou no artigo 607º, n.º 4, do CPC, quanto à decisão da matéria de facto, impondo ao Tribunal o dever de fundamentação e de análise crítica da prova, tem como contraponto a exigência imposta às partes, que pretendam impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto, de cumprirem os ónus estabelecidos nos artigos 639º e 640º, ambos do CPC.

Com efeito, de acordo com o disposto no artigo 639º, n.º 1, do CPC, interposto um recurso em processo civil e, consequentemente, em processo do trabalho, “ex vi” do artigo 81, n.º 5, do CPT, impõe-se ao recorrente, desde logo, o ónus de alegar e de concluir, devendo indicar, nas conclusões, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.

Exige-se que a alegação contenha conclusões para, através delas, se delimitar o objeto do recurso [artigos 635º, n.ºs 3 a 5, e 639º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC], fazendo-se o levantamento das questões controversas, assim se evitando, uma impugnação geral, vaga, indefinida e abstrata da decisão.

Por outro lado, as conclusões têm, também, como objetivo facilitar o exercício do contraditório, de modo a não criar dificuldades acrescidas para a outra parte, privando-a de elementos importantes para organizar a sua defesa, em sede de contra-alegações.

Ora, a este ónus, de alegar e formular conclusões nos termos impostos pelo artigo 639º do CPC, acrescem os ónus previstos no artigo 640º, que foram estabelecidos especificamente para os casos em que seja impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto.

De acordo com o disposto no artigo 640º, do CPC, a parte, que impugne a matéria de facto, tem que dar cumprimento a um triplo ónus, consistindo no dever de obrigatoriamente:

1. Circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso, indicando claramente os segmentos da decisão que considera viciados por erro de julgamento;

2. Fundamentar, em termos concludentes, as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, impliquem uma decisão diversa,

3. Enunciar qual a decisão que, em seu entender, deve ter lugar relativamente às questões de facto impugnadas.

Há, pois, que fazer uma interpretação desta norma mais consentânea com as exigências dos princípios da proporcionalidade e da adequação.

Sobre estes ónus e sobre as consequências do seu não cumprimento, total ou parcial, têm vindo a consolidar-se no Supremo Tribunal de Justiça, as linhas jurisprudenciais, espelhadas, entre outros, no seguinte acórdão:

- Acórdão proferido em 29.10.2015, no Processo n.º 233/09.4TVNG.G1.S1[7]’[8]:

Face aos regimes processuais que têm vigorado quanto aos pressupostos do exercício do duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto, é possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objeto e de fundamentação concludente da impugnação - que tem subsistido sem alterações relevantes e consta atualmente do n.º 1, do artigo 640º do CPC; e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado, no seu conteúdo prático, ao longo dos anos e das várias reformas – indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exata das passagens da gravação relevantes (e que consta atualmente do artigo 640º, n.º 2, alínea a), do CPC).

No que respeita aos ónus constantes nas alíneas do n.º 1, do artigo 640º, do CPC, ou seja, quando não for cumprido o ónus “primário” ou “fundamental” de delimitação do objeto e de fundamentação concludente da impugnação há lugar à rejeição total ou parcial do recurso.

Todavia, para que a impugnação da decisão sobre a matéria de facto seja admitida, não é necessário que todos os ónus estabelecidos no artigo 640º, do CPC, constem obrigatoriamente da síntese conclusiva.

Nesta conformidade, enquanto a especificação dos concretos pontos de facto considerados incorretamente julgados deve constar obrigatoriamente da alegação e das conclusões recursivas, já não se torna forçoso que constem da síntese conclusiva a especificação dos meios de prova, e muito menos, a indicação das passagens das gravações.

Quanto a elas, basta que figurem no corpo da alegação, desde que nas conclusões se identifique, com clareza, os concretos pontos de facto que se impugnam e a decisão que sobre eles se pretende que recaia.»

No caso concreto a 1.ª ré, no recurso de apelação, formulou as seguintes conclusões:

1. O acidente ocorreu fora do parque de contentores concessionado à Ré CC e numa zona pertencente à CP, atual REFER;

2. Não existem catenárias na parcela de terreno concessionada à Ré CC, designada por «parque de contentores»;

3. É assim nulo o risco de eletrocussão na zona onde se fazem as descargas e as inspeções dos contentores, como aliás também o é em toda a área do parque de contentores;

4. A Ré CC, no que respeita à inspeção de contentores, adotou um conjunto de regras internas de organização e segurança dos seus trabalhadores, incluindo o aqui sinistrado HH;

5. Aquelas regras internas de inspeção de contentores determinavam que:

- Na inspeção de contentores no comboio, o inspetor deve garantir que os mesmos se encontram parados, e que a locomotiva já não se encontra nas instalações.

- O inspetor nunca deverá passar os limites do parque para inspecionar os contentores que sejam transportados no comboio, apenas poderão ser inspecionados os comboios que se encontrem dentro da área reservada do parque até ao limite da zona alcatroada.

- Caso seja necessário inspecionar o teto de qualquer contentor, o inspetor deve dar indicações ao painel, para que posicione os contentores no chão para mais tarde serem inspecionados nas devidas condições.

6. Tais regras de inspeção de contentores destinavam-se, além do mais, a evitar o risco do trabalhador ser atingido por eletrocussão, pois na inspeção dos contentores era vedado ao inspetor passar os limites do parque para inspecionar comboios, e que apenas poderiam ser inspecionados os comboios que se encontrassem dentro da área reservada do parque até ao limite da zona alcatroada;

7. Aquelas normas determinavam igualmente que sempre que fosse necessário inspecionar o teto de qualquer contentor este devia ser posicionado no chão;

8. Os contentores Bulk, onde o sinistrado morreu, tem escotilhas no teto pelo que para as mesmas serem inspecionadas o contentor deve ser colocado no chão;

9. Quando os vagões não cabem todos no parque, o comboio é fisicamente dividido e ficam do lado de fora do parque, devidamente separados, os vagões que não couberam no parque;

10. Só depois de terem sido inspecionados os contentores dos vagões que ficaram dentro do parque, e depois de retirados estes vagões para fora do parque, é que entram neste, para serem inspecionados, os contentores dos vagões que ficaram de fora do parque;

11. No dia do acidente o comboio estava fisicamente dividido, com as carruagens que ficaram de fora do parque separadas dos restantes que ficaram dentro do parque;

 12. O sinistrado HH tinha conhecimento daquelas normas e procedimentos a observar na inspeção de contentores e praticou-as sempre na inspeção de contentores;

13. O sinistrado HH tinha igualmente conhecimento do perigo de eletrocussão existente na zona das catenárias e que por isso aí não podia proceder à inspeção de contentores;

14. Não se fez qualquer prova, pelo que se desconhece como o acidente ocorreu;

15. Não se encontra verificado o nexo de causalidade entre a inobservância de regras legais de segurança e a produção do acidente;

16. A Ré CC não deu qualquer ordem ao sinistrado HH para inspecionar o contentor no local onde ocorreu o acidente;

17. É de concluir, pois, que se tais regras e procedimentos que disciplinam a atividade de inspeção de contentores tivessem sido observadas, seguramente o sinistrado HH não teria sofrido qualquer lesão;

Analisadas estas conclusões facilmente se conclui que a 1.ª ré não cumpriu, perante o Tribunal da Relação, os ónus impostos pelo art.º 640.º, n.º 1, alínea a) e c), do Código de Processo Civil, conjugado com o disposto no art.º 639.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, uma vez que nas suas conclusões não identificou os concretos pontos de facto que pretendia impugnar e a decisão que, no seu entender, devia ser proferida.

Assim, neste ponto, nada há a apontar ao acórdão recorrido, pelo se mantém o mesmo na parte em que rejeitou o recurso quanto à impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.

 

B3) A 1. ª ré, no recurso de revista, suscita também a questão de saber se existe nexo de causalidade entre a inobservância das regras de segurança e a produção do acidente de trabalho.

Como resulta do ponto anterior a matéria de facto a considerar é a que se encontra fixada, tendo sido com base na mesma que o Tribunal da Relação apreciou a existência nexo de causalidade entre a inobservância das regras de segurança e a produção do acidente de trabalho. Fê-lo em conformidade com a decisão da 1ª instância, sem fundamentação essencialmente diferente, e sem voto de vencido.

Assim, nos termos do art.º 671.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, não é admissível, nesta parte, a revista do acórdão do Tribunal da Relação.

B4) A autora, em representação do seu filho menor, BB, no recurso de revista que interpôs, suscita a questão do montante que foi fixado a título de danos não patrimoniais, defendendo que a mesma deve ser elevada para 120 000 EUR.

O acórdão recorrido, com um voto de vencido do 1.º adjunto, manteve nesta parte a sentença da 1.ª instância, que tinha fixado a indemnização por danos não patrimoniais ao menor em 20 000 EUR.

Nos termos do art.º 18.º, n.º 1, da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, Regulamentação do regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais, quando o acidente tiver sido provocado pelo empregador, seu representante ou entidade por aquele contratada e por empresa utilizadora de mão de obra, ou resultar de falta de observação, por aqueles, das regras sobre segurança e saúde no trabalho, a responsabilidade individual ou solidária pela indemnização abrange a totalidade dos prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo trabalhador e seus familiares, nos termos gerais.

O art.º 496.º, n.º 1, do Código Civil, sob a epígrafe (Danos não patrimoniais), estatui que na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.

O n.º 3, da referida disposição legal, refere que o montante da indemnização será fixado, equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer dos casos, as circunstâncias referidas no artigo 494.º.

Por seu turno, o art.º 494.º, do mesmo diploma legal, intitulado «Limitação da indemnização no caso de mera culpa», estabelece que quando a responsabilidade se fundar na mera culpa, poderá a indemnização ser fixada, equitativamente, em montante inferior ao que corresponderá aos danos causados, desde que o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem.

Como sublinha Mário Júlio de Almeida Costa (Direito das Obrigações, Almedina, pág. 398) «Admite-se, em suma, a plena consagração, tanto do princípio da ressarcibilidade dos danos não patrimoniais (art.º 496.º, n.º 1), como do critério de fixação equitativa da indemnização correspondente (art.º 496.º, n.º 3). Parece manifesto que o funcionamento do aludido critério independe de haver ou não motivo para atenuação da responsabilidade, nos termos do art.º 494.º».

Segundo o mesmo Autor (Cfr. Obra citada, pág. 395), «Entende-se que os danos não patrimoniais, embora insuscetíveis de uma verdadeira e própria reparação ou indemnização, porque inavaliáveis pecuniariamente, podem ser, em todo o caso, de algum modo compensados. E mais vale proporcionar à vítima essa satisfação imperfeita do que deixá-la sem qualquer tutela».

O acórdão recorrido, como já se referiu, fixou no montante de 20 000 EUR, a indemnização por danos patrimoniais, tendo aduzido a seguinte fundamentação:

«Relativamente ao segundo Autor, o mesmo tinha apenas 3 meses à data do falecimento do sinistrado. É certo que tinha afeto pelo pai. Mas sendo tão jovem, não tem, naturalmente noção da extensão do drama que o atingiu: a “falta do pai”, que resulta da morte, e é inultrapassável. Dimensionará essa perda, quando começar a sentir a sua falta, a comparar a sua situação à de outras crianças que têm pai e de quem podia esperar afeto, carinho e apoio.

Considerando todos estes fatores – idade da vítima e do filho, e de ser esta uma circunstância que o acompanhará para o resto da vida, entendemos que não merece censura a indemnização de 20 000 EUR por danos não patrimoniais fixada pelo tribunal relativamente ao 2º Autor, mantendo a sentença nesta parte».

Relativamente a esta questão o 1.º adjunto, do coletivo de Juízes Desembargadores, votou vencido com a seguinte fundamentação: «Relativamente ao montante da indemnização fixado ao 2.º autor, filho do sinistrado, pelos danos não patrimoniais, fixaria o montante de 40 000 EUR, pelas razões invocadas no acórdão mas também porque tais danos se repercutirão na formação da sua personalidade de modo contínuo, marcante e inevitável e sempre associados a uma culpa grave da entidade empregadora».

Colocada a questão nestes termos há que reponderar o montante da indemnização pelo danos não patrimoniais a fixar ao menor, filho da vítima.

No ponto 26 dos factos provados refere-se que o autor, filho do sinistrado tinha grande afeto pelo seu pai, sendo que quando este chegava a casa vindo do trabalho ficava eufórico de o ver, o que acontecia diariamente.

Esta experiência vivenciada por uma criança de três meses não se repetirá, podendo apenas ser recordada pelo que lhe for dito ou pelo que ficar escrito.

Neste contexto entendemos ajustado fixar ao menor a indemnização por danos não patrimoniais no montante de 40 000 EUR.

                                               III

Decisão:

Face ao exposto acorda-se:

1. Negar a revista da 1.ª ré, confirmando, nessa parte, o acórdão recorrido;

2. Conceder parcialmente revista ao recurso interposto pela autora em representação do seu filho menor e, consequentemente:

a) Revogar o acórdão recorrido na parte em que manteve a decisão da 1.ª instância que fixou a indemnização de 20 000 EUR ao 2.º autor, por danos não patrimoniais;

b) Condenar a ré CC, S.A. a pagar ao autor BB o montante de 40 000 EUR, a título de indemnização por danos não patrimoniais.

Custas a cargo dos recorrentes na proporção do decaimento.   

Anexa-se sumário do acórdão.

Lisboa, 31/10/2018

Chambel Mourisco (Relator)

Pinto Hespanhol

Gonçalves Rocha