Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
99A009
Nº Convencional: JSTJ00036086
Relator: MARTINS DA COSTA
Descritores: ABUSO DE DIREITO
SEGURO
ANULABILIDADE
NULIDADE
PROPOSTA DE SEGURO
SEGURADORA
Nº do Documento: SJ199903110000091
Data do Acordão: 03/11/1999
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N485 ANO1999 PAG426
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 8/98
Data: 06/30/1998
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: ORDENADA A BAIXA DO PROCESSO.
Área Temática: DIR CIV - TEORIA GERAL.
DIR ECON - DIR SEG.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 334.
CCOM888 ARTIGO 429.
CPC95 ARTIGO 726 ARTIGO 729 N3.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO RP DE 1988/06/14 IN CJ ANOXII T3 PAG238.
Sumário : I - Embora no artigo 429 do C. Comercial se prescreva que a "declaração inexacta" constante da proposta do segurado, torna o "seguro nulo", do que se trata, em rigor, é de simples anulabilidade.
II - Integra abuso de direito a invocação, pela seguradora, de invalidade prevista nesse artigo 429, por "declaração inexacta" da profissão do segurado, se aquele teve conhecimento desde a data da celebração do contrato, de efectiva actividade profissional exercida pelo segurado e só invocou a invalidade depois de decorridos cerca de 5 anos e da participação do sinistro.
Decisão Texto Integral: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça:
I - A intentou a presente acção de processo comum, na forma ordinária, contra B, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de 2400000 escudos, com juros desde a citação, com base em contrato de seguro do Ramo Vida.
Houve contestação e réplica.
Procedeu-se a julgamento e, pela sentença de fls. 140 e seguintes, julgou-se a acção procedente.
Em recurso de apelação, o acórdão de fls. 168 e seguintes revogou essa sentença e absolveu a ré do pedido.
Neste recurso de revista, o autor pretende a revogação daquele acórdão com base, em resumo, nas seguintes conclusões:
- a matéria de facto provada é suficiente para tipificar o contrato de seguro celebrado entre ele e a ré;
- o capital subscrito foi alterado e aceite pelo autor para 1200000 escudos;
- ficou esclarecido que o autor exercia a profissão de bate-chapas e pintor e que a ré sempre disso teve conhecimento;
- a má fé da ré é evidente e manifesta quer nos preliminares quer na efectivação do contrato;
- não há falsas declarações do autor;
- a declaração do seguro só será equívoca por culpa exclusiva da ré, que manteve o autor na obscuridade, não o esclarecendo ou informando sobre cláusulas primordiais do contrato;
- foi violado o disposto nos artigos 426 e 429 do C. Comercial e 334, 406 e 425 a 428 do C.Civil e nas normas dos Decretos-Lei 446/85, de 25 de Outubro, e 220/95, de 31 de Agosto.
A ré, por sua vez, sustenta a improcedência do recurso.
II - Factos dados como provados:
Em 26 de Agosto de 1983 o Autor - A - subscreveu boletim de adesão n. 966 à apólice n. 72700, para ter efeitos a partir de 1 de Setembro de 1983, tipo ramo vida grupo, com capital base de 1000 contos, tipo 2 OP, classe 5. (alínea a) da especificação).
Em Outubro de 1985, a Ré teria proposto ao Autor que o capital-base passasse para 1200000 escudos (alínea b)).
O Autor não pagou nem devolveu a nova ordem de transferência bancária assinada para o montante do novo prémio, relativa à proposta referida em b) (resposta ao quesito 20).
No documento referido em a) consta carimbo com os dizeres "Auto-Chapa de A".
O Autor exercia a sua profissão de bate-chapas e pintor de automóveis. (alínea f)).
Em 9 de Maio de 1988 o Autor enviou à Ré declaração - participação de sinistro, do qual consta que o segurado sofre de bronquite asmática causada pelo tipo de profissão (pintor de automóveis e chapeiro).
O Autor começou a sentir dificuldades de ordem física, a nível pulmonar, com dificuldades respiratórias e perda de vigor físico, o que o impedia de exercer as funções de mecânico e pintor de automóveis.
Após ter recorrido aos serviços médicos do centro de saúde, que o obrigaram a abandonar o trabalho, mantendo-o de baixa e vigiado pelos serviços médicos durante vários meses, foi reformado e, em consequência da sua doença, ficou com impossibilidade total de exercer funções de bate-chapas e pintor.
No exercício desta actividade aplicava produtos tóxicos contidos nas tintas para automóveis, sofria cheiros e fazia esforços quando reparava as viaturas.
O exercício continuado das funções de pintor e bate-chapas... agravaria, dia a dia, o... estado de saúde do autor (15).
À Ré não era indiferente o exercício da profissão de "gerente" ou de "bate-chapas" e pintor de automovéis (17).
Estes foram os factos considerados no acórdão recorrido como assentes "inquestionavelmente".
Porém, e além de outros dados como provados na 1. instância, consignou-se ainda naquele acórdão que:
- o autor declarou no documento referido em A, que era de profissão "Gerente-Industrial sec. autom" (alínea D);
- o autor agia como dono da oficina onde trabalhava, o que sempre - e desde que efectuou o contrato de seguro com o A. - foi do conhecimento da ré, a qual "nas visitas que... fez à oficina do A., sempre viu este a trabalhar em fato de macaco, sujo de óleo e tinta" (quesitos 23 a 25).
III - Quanto ao mérito do recurso:
O acórdão recorrido fundamentou a absolvição da ré do seguinte modo: houve falsidade nas declarações do autor, quanto à sua profissão; o seguro enferma, por isso, da invalidade prevista no artigo 429 do C.Comercial; não se provou que "a ré tomasse conhecimento dos riscos profissionais do autor" porque "não se sabe quando visitou ... a oficina ... nem se tal ocorreu antes da declaração da incapacidade do autor".
Salvo o devido respeito, não é de manter essa decisão.
Pelo cit. artigo 429 do C. Comercial, "a declaração inexacta", constante de proposta do segurado, torna "o seguro nulo".
Como se reconhece no acórdão recorrido e não vem questionado, não se trata aqui, em rigor, de verdadeira nulidade mas de simples anulabilidade, uma vez que os interesses em jogo não justificam sanção tão grave como a da nulidade, o uso desta expressão pode atribuir-se a simples lapso ou imperfeição terminológica e, pelo regime geral do C. Civil, o próprio dolo só gera anulabilidade (neste sentido, acórdão da R.P. de 14 de Junho de 1988, na Col. XII, 3., pág 238).
Na proposta de seguro assinada pelo autor, em 26 de Agosto de 1983, consta a profissão de "gerente / industrial Sec. Autom." e, na apólice, de 1 de Setembro de 1983, mencionou-se "industrial do sector automóvel", tendo-se provado que o autor "exercia a sua profissão de bate- -chapas e pintor de automóveis" e "agia como dono da oficina" em que trabalhava.
Sem prejuízo de possível discussão sobre o modo como são, em regra, preenchidas e assinadas as propostas de seguro, e da qualificação profissional que possa ser atribuída a quem trabalha em oficina de que é dono, admite-se que tenha havido "declaração inexacta" do autor sobre a sua profissão.
Provou-se, porém, que a ré tinha conhecimento, desde a celebração do contrato de seguro, da situação de facto correspondente à profissão do autor: sempre, desde então, soube que ele agia como dono da oficina onde trabalhava e, nas visitas que aí fez, sempre o viu a trabalhar "em fato de macaco, sujo de óleo e tinta"; a ré sempre soube, pois, que o autor não era um "gerente/industrial", no sentido comum, mas um simples trabalhador da oficina de automóveis de que seria dono.
Apesar disso, a ré permitiu a subsistência do contrato durante cerca de 5 anos, só o vindo a denunciar, por nulidade, em 29 de Julho de 1988, depois da "participação do sinistro" (docs. de fls. 16 a 19).
Pelo artigo 334 do C.Civil, "é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé...".
Este exercício excessivo de um direito pode revelar-se por diversas formas, a apreciar em cada caso concreto, como o seu não exercício durante longo período de tempo ou a conduta anterior do titular do direito, incompatível com o seu exercício.
No caso presente, o imediato conhecimento que a ré teve da invocada inexactidão sobre a profissão do autor não a impediu de manter o seguro com as cláusulas iniciais nem de receber os respectivos prémios, durante vários anos, e, nestas circunstâncias, considera-se que a sua pretensão de anulação do contrato integra abuso de direito, por ser manifestamente incompatível com a sua conduta anterior.
Deve pois revogar-se o acórdão recorrido, que absolveu a ré com o fundamento de invalidade do contrato de seguro.
O processo, porém, terá de voltar à Relação, uma vez que aí não foram apreciadas questões de que lhe cabe conhecer, alegadas no recurso de apelação, designadamente a respeitante a contradições na decisão de facto (artigos 726 e 729 n. 3 do C.P.Civil).
Em conclusão:
Integra abuso de direito a invocação, pela seguradora, da invalidade prevista no artigo 429 do C.Comercial, por "declaração inexacta" da profissão do segurado, se aquela teve conhecimento, desde a data da celebração do contrato, da efectiva actividade profissional exercida pelo segurado e só invocou a invalidade depois de decorridos cerca de 5 anos e da participação do sinistro (artigo 334 do C.Civil).
Pelo exposto:
Concede-se a revista e revoga-se o acórdão recorrido.
O processo deve voltar à Relação para apreciação das demais questões suscitadas no recurso de apelação.
Custas deste recurso pela ré.
Lisboa, 11 de Março de 1999.
Martins da Costa,
Pais de Sousa,
Afonso de Melo.