Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1821/23.1PBLSB-A.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: JOÃO RATO
Descritores: HABEAS CORPUS
PRESSUPOSTOS
PRAZO DA PRISÃO PREVENTIVA
CRIMINALIDADE VIOLENTA
ROUBO
INDEFERIMENTO
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: IMPROCEDÊNCIA / NÃO DECRETAMENTO.
Sumário :

I - Dos factos fortemente indiciados e das demais incidências processuais relevantes documentadas no processo, resulta que a detenção e posterior prisão preventiva do requerente e a sua manutenção teve e tem como motivo determinante a prática pelo mesmo de um crime de roubo, p. e p. pelo artigo 210º, n.º 1, do CP, com pena de prisão de 1 (um) a 8 (oito) anos de prisão, que integra a criminalidade violenta e especialmente violenta.


II - Nessas situações os prazos máximos da medida de coação de prisão preventiva são os previstos nas disposições conjugadas do artigo 215º, n.º s 1, als. a) a d), e 2, do CPP, pelo que, na presente situação, o seu prazo máximo é de 6 (seis) e não de apenas 4 (quatro) meses a contar data da respetiva aplicação.


III - Tendo a detenção do arguido ocorrido no dia 13.09.2023 e a prisão preventiva sido decretada, após interrogatório judicial, no dia 14.09.2023, não se mostra excedido o prazo máximo da prisão preventiva ali estabelecido, a coberto do disposto nos artigos 27º e 28º da CRP, prazo que, se até lá não for deduzida acusação, só se esgotará no dia 14 de março de 2024.


IV - À luz de tais factos e considerações, inevitável se torna concluir que a prisão preventiva do requerente, além de não ter excedido o prazo legal máximo admissível nesta fase processual, foi e continua motivada por facto pelo qual a lei a permite, soçobrando os fundamentos previstos nas als. b) e c) do n.º 2 do artigo 222º do CPP em que o requerente estribou a requerida providência de habeas corpus, cuja concessão deve, por isso, recusar-se, por manifesta falta de fundamento.

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 1821/23.1PBLSB-A.S1


(Habeas corpus)


5ª Secção Criminal


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I. Relatório


I.1. O arguido, AA, natural do ..., onde nasceu em ... de ... de 1991, com os demais sinais dos autos, com o patrocínio da sua defensora, no âmbito do processo de inquérito acima referenciado pendente no DIAP da comarca de Lisboa, atualmente preso preventivamente à ordem daquele processo, nos termos dos artigos 31º da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP) e 222.º n.ºs 1 e 2, als. b) e c), do Código de Processo Penal (doravante CPP), apresentou no Tribunal Central de Instrução Criminal, sedeado em Lisboa (doravante TCIC) – J 9, a seguinte petição de habeas corpus:


«TRIBUNAL CENTRAL DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE... Processo nº1821/23.1PBLSB PRESO PREVENTIVO J... .


EXMO. SENHOR JUIZ CONSELHEIRO PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


AA, arguido ainda (?!...) preso preventivamente à ordem da Autoridade acima indicada, vem mui respeitosamente, nos termos do artº31 da C.R.P., e do artº222 nº2 al.b) e c) do C.P.P., peticionar a V. Exa., a providência excepcional de HABEAS CORPUS EM VIRTUDE DE PRISÃO ILEGAL, pelos fundamentos seguintes:


A - DOS FACTOS:


I - DO CRIME


MOTIVO DA SUA DETENÇÃO, E PRISÃO PREVENTIVA


Ao arguido foi validada a sua detenção e ficou em prisão preventive por douto despacho judicial de 14 de Setembro de 2023, com base, entre outros, nos seguintes factos:


Factos assentes: (relevantes para o presente pedido)


“NUIPC 1821/23.1PBLSB


1. No dia 13.09.2023, pelas 14h23m, o arguido, acompanhado de outro indivíduo, cuja a identidade não foi possível apurar, dirigiu-se ao estabelecimento commercial/tabacaria, denominado “C........”, sito na Rua ...,..., ..., com o propósito de se apoderar e fazer seus os bens e quantias monetárias que aí encontrasse.


2. Assim, em execução de um plano previamente traçado, o arguido dirigiu-se ao ofendido/empregado BB, que ali se encontrava, dizendo estou aqui para recolher a propina, se o teu patrão é português vai ser mais barato, dá-me já cinquenta euros que eu sou da favela da ....


3. Nesse momento, o ofendido disse que ia ligar ao patrão.


4. De subito, o arguido desferiu uma pancada no balcão onde o ofendido se encontrava dizendo não vais ligar a patrão nenhum abre já a Caixa e dá-me os cinquenta euros.


5. O ofendido retirou da caixa a quantia de cinquenta euros, entregando-a ao arguido.


6. Ato contínuo, o arguido desferindo outra pancada com a mão no balcão e dirigindo-se novamente ao ofendido disse vais ficar pianinho e não vais contar isto ao teu patrão e anota que todas as sextas feiras venho cá recolher a propina.


7. De seguida, o arguido e o indivíduo que o acompanhava dirigiram-se à porta de saída da tabacaria.


8. No trajecto até à saida o arguido retirou do expositor frigorifico, fazendo suas, duas garrafas de cerveja, da marca Superbock, no valor total de €2,20 (dois euros e vinte cêntimos) e uma lata de bebida energética, da marca Red Bull, no valor de 2€ (dois euros), enquanto dirigindo-se ao ofendido disse e vai ser também duas cervejas e um red bull.


9. Na posse do dinheiro e das duas embalagens o arguido abandonou o local, colocando-se em fuga.


10. O arguido veio a ser interceptado na ....


11. O arguido agiu com o propósito alcançado de fazer seus os bens e as quantias monetárias que encontrasse no interior da tabacaria, bem sabendo que os mesmos não lhe pertenciam e que agia contra a vontade e sem consentimento do ofendido, legitimo proprietário dos mesmos.


12. O arguido surpreendeu o ofendido que se encontrava no exercício das suas funções de empregado do estabelecimento, utilizando para o efeito linguagem agressiva e ameaçando-o de que iria regressar, o que fez o ofendido temer pela sua vida e integridade física.


13. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.


Ficou assim em prisão preventiva, medida que se mantêm até à presente data.


II – REQUISITOS DA PROVIDÊNCIA


O arguido encontra-se, atualmente, ainda preventivamente preso, pelo que reveste o requisite da atualidade. (Ac.STJ de 28 de Junho de 1989, proc.18/89/3ª Secção e de 23 de Novembro de 1995, CJ. Tomo III pág.241). O Habeas Corpus constitui um mecanismo expedito, que visa por termo imediato a situações de prisão manifestamente ilegais, sendo a ilegalidade diretamente verificável a partir dos factos documentados.


QUE FACTOS ESTÃO DOCUMENTADOS E QUE MOTIVARAM A SUA PRISÃO VEJAMOS:


RAZÕES DE DIREITO: Da ilegalidade da sua prisão.


Mantem-se motivada e por factos, que a lei não permite.


A presente providencia de Habeas Corpus restring-se a casos particularmente qualificados (como é seguramente o da ultrapassagem do prazo máximo da prisão preventive e da extinção dessa medida arts.215 e 214 do C.P.P.


Assenta esta prespectiva na recondução do âmbito da garantia constitucional do Habeas Corpus à tutela daqueles valores que a Constituição destaca na “dimensão processual da prisão preventive”, contida no artº28 (JJ Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, 2007, p.489), valores esses traduzidos, no que apresenta relevância no âmbito desta providência, na afirmação do carácter temporalmente limitado da prisão preventive, através da obrigação de o legislador a sujeitar a prazos (artº28 nº4 da C.R.P.)


Estes prazos são os do artº215 do C.P.P., e é a sua ultrapassagem que justifica o recurso a uma providência com as particulares caracteristicas do Habeas Corpus.


Assim, o arguido está preso preventivamente para além dos prazos fixados na lei, na medida em que se mantêm preso para além do prazo previsto no artº215 nº1 al.a) do C.P.P., ou seja 14 de Janeiro de 2024, altura em que devia ter sido posto imediatamente em liberdade por extinção da medida de coacção (cf.artº217 nº1 do C.P.P.), pelo que se mantêm de forma manifestamente ilegal.


Aliás, não só a medida de coacção se extinguiu como os motivos de facto e de direito que motivaram a sua prisão se extinguiram, e consequentemente, o douto despacho a determinou, sem prejuízo da aplicação de outras medidas não detentivas da liberdade (cf.artº217 nº2 do C.P.P.)


Nesta medida e mesmo admitindo que se fosse deduzida agora a acusação muito para além do prazo legal previsto no artº215 nº1 al.a) do C.P.P., já fosse possível aplicação “novamente” da prisão preventiva, o certo é que sempre haveria que dar cumprimento ao disposto no artº194 do C.P.P., pelo que a manutenção da sua prisão é grosseira e manifestamente ilegal.


CONCLUINDO:


1. O Habeas Corpus “é uma providência de caracter excepcional destinada a proteger a liberdade individual nos casos em que não haja outro meio legal de fazer cessar a ofensa ilegítima dessa liberdade” cf.Ac. do TC Nº423/03.


2. O Habeas Corpus constitui um mecanismo expedito, que visa por termo imediato a situações de prisão manifestamente ilegais, sendo a ilegalidade diretamente verificável a partir dos factos provados e documentados.


3. O requerente – facto irremediavelmente provado e documentado – foi detido no dia 13-09-2023 e ficou preso preventivamente no dia 14 de Setembro 2023, não tendo sido deduzida a acusação até 14 de Janeiro de 2024, estando desde essa data preso ilegalmente, porquanto a sua medida coactive se extinguiu, e, consequentemente os motivos de facto e de direito que a determinaram.


4. A sua prisão é motivada por facto que a lei não permite, sendo “grave e evidente a violação da liberdade individual”, posto que documentada e assente em factos facilmente verificáveis.


5. Assim, também não é possível manter o peticionante na condição em que se encontra de preso preventivamente, posto que tal medida coativa se extinguiu em 14 de Janeiro de 2024, por não ter sido deduzida a acusação dentro desse prazo.


6. Entendemos que continua preso preventivamente por “violação grosseira da Lei”.


7. A sua prisão é ilegal, e mantida por violação e grave interpretação do direito, nomeadamente dos arts.194 nº4 do C.P.P., 204 e 225 do C.P., 27 Nº1 e 32 nº8 da Lei Fundamental e, artº3 e 5 e 12 da DUDH e artº5 e 7 da CEDH.


Pelo exposto e noutros que vierem a ser doutamente supridos por V.Exa., deve a presente providência excecional de HABEAS CORPUS EM VIRTUDE DE PRISÃO ILEGAL, ser considerada procedente por provada e, por via dela ordenar-se a sua imediata restituição à liberdade, expedindo-se os competentes mandatos de soltura.


A presente petição deve ir instruída com:


1-Despacho de apresentação do MP, de arguido detido;


2-Despacho que ordenou a sua prisão preventiva;


3-A certidão que não foi deduzida a acusação até 14 de Janeiro de 2024. E outras que se tenha ainda por pertinentes à Boa Decisão.


E.D A Advogada


(…)»


I. 2. Aquele J... .. com funções de juiz de instrução no processo, por despacho de 1 de fevereiro de 2024, mandou remeter a petição ao Supremo Tribunal de Justiça (doravante STJ), instruída com certidão de tal despacho e da informação prevista no artigo 223º, n.º 1, do CPP, nele contida, da apresentação do arguido a primeiro interrogatório, do auto de primeiro interrogatório do arguido, do despacho de fls.131 a 132 verso e do despacho de reexame da prisão preventiva ao abrigo do artigo 213º, nº 1, al. a), do CPP e com aposição de informação certificada que não foi nos autos deduzido despacho de acusação.


A informação prestada é do seguinte teor:


«(…)


O arguido AA veio suscitar habeas corpus com base no art. 222.º nº2 als.b) e c) do Código de Processo Penal e do artigo 31º da Constituição da República Portuguesa.


Para tanto invoca em síntese que estão sujeitos à medida de coação de prisão preventiva desde 14/09/2023 e se encontra em prisão ilegal uma vez que mostra-se decorrido o prazo máximo de duração da prisão preventiva de quatro meses previsto no artigo 215º nº1 al. a) do Código de Processo Penal sem que tenha sido deduzido nos autos despacho de acusação.


Importa prestar a informação necessária sobre a prisão e sua manutenção nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 223.º, n.º 1, do Código de Processo Penal:


Ao arguido foi aplicada em 14/09/2023, em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, a medida de coação de prisão preventiva a ser substituída por obrigação de permanência na habitação sujeita a vigilância eletrónica se reunidos os requisitos a tanto necessários (cfr. auto de interrogatório de fls.54 e segs), tendo por base, no essencial, os seguintes fundamentos:


1 – A constatação de fortes indícios da prática pelo arguido de um crime de roubo previsto e punido pelo artigo 210º nº1 do Código Penal.


2 – A verificação da concreta existência dos perigos de fuga, e de em razão da natureza e das circunstâncias do crime bem como da personalidade do arguido nos factos revelada de continuação da atividade criminosa e de perturbação da ordem e tranquilidades pública estando cabalmente explicados os motivos que levaram a concluir pela existência concreta dos aludidos perigos e pela necessidade de aplicação da medida de coação privativa da liberdade.


3 – Por despacho de fls. 131 a 132 verso proferido em 23 de outubro de 2023 e na sequência de informação da DGRSP e de requerimento do arguido considerou-se que não estavam reunidos os pressupostos para a substituição da medida de coação de prisão preventiva pela obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica nem para autorizar o arguido a trabalhar.


4- Por despacho de fls. 160 a 161 dos autos proferido em 7 de dezembro de 2023 foi reexaminada a medida de coação e determinada a manutenção da medida de coação de prisão preventiva.


Face ao exposto, é de concluir que a medida de coação de prisão preventiva aplicada em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido:


- Foi aplicada por entidade competente;


- Foi motivada por facto que a lei permite e prevê;


- Não se encontram excedidos os prazos fixados por lei ou decisão judicial. Relativamente a este último aspeto, é de salientar que não se encontra esgotado o prazo máximo de duração da prisão preventiva, pois, atento o crime indiciado nos autos- crime de roubo previsto e punido pelo artigo 210º nº1 do Código Penal e que consubstancia criminalidade violenta e/ou especialmente violenta nos termos do disposto nos artigos 1º al. v) e l) do Código de Processo Penal o prazo máximo de duração da prisão preventiva é de seis meses em conformidade com o disposto nos artigos 215.º, n.º 1, al. a), e n.º 2, e 1.º, als. v) e l), do Código de Processo Penal, prazo esse que não se encontra, ainda, ultrapassado, pese embora, não tenha ainda sido deduzida acusação nos autos.


Em face do exposto, entendemos que o arguido AA está legalmente sujeito a prisão preventiva e, por isso, a mesma deverá ser mantida ao abrigo do disposto nos artigos 191.º, 192.º, 193.º, n.º 1 e 2, 196.º, 202.º, n.º 1, alíneas a) e b), 204.º, nº1 alíneas a) e c), e 215.º, n.º 1, als. a) e n.º 2, do Código de Processo Penal, não estando, de todo, preenchido o requisito previsto no artigo 222.º, n.º 2, alíneas b) e c) do Código de Processo Penal.


Destarte considera-se que carece de fundamento o requerimento de habeas corpus para o Colendo Supremo Tribunal de Justiça, não estando, de todo em todo, preenchido o requisito previsto no art. 222.º, n.º 2, alíneas b) e c) do Código de Processo Penal.


No entanto, Vossas Excelências, Colendos Senhores Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça, melhor decidirão.


(…)»


***


Convocada a secção criminal, notificados o Ministério Público e o defensor, realizou-se audiência, tudo em conformidade com o disposto nos n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 223.º do CPP.


Terminada a audiência, a secção reuniu para deliberar (artigo 223.º, n.º 3, 2.ª parte, do CPP), fazendo-o nos termos que se seguem.


II. Fundamentação


II. 1. Os factos relevantes e necessários para apreciação e decisão da providência sub judice mostram-se enunciados na própria petição e na informação judicial antes transcritas, suportados e em conformidade com o teor da certidão junta.


II. 2. Como a generalidade da doutrina e da jurisprudência vêm repetidamente afirmando, o habeas corpus, segundo o seu atual desenho constitucional e legal estabelecido nos artigos 31º da CRP e 220º a 224º do CPP, consubstancia uma providência fundamentalmente destinada a garantir o direito à liberdade consagrado no artigo 27º da CRP.


Não se confunde com os meios ordinários de reação e de impugnação das decisões judiciais, nomeadamente com o recurso, mas pode com eles coexistir, destinando-se unicamente a resolver e reverter as situações de detenção ou prisão grosseiramente ilegais, ostensivas, evidentes e atuais, ou seja, que traduzam um abuso de poder por detenção ou prisão ilegal.


No que à prisão ilegal concerne, as situações cabíveis na providência são as que se encontram taxativamente elencadas nas três alíneas do n.º 2 do artigo 222º do CPP, cuja apreciação e conhecimento é da competência das secções criminais do STJ, mediante requerimento da própria pessoa privada da liberdade ou de qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, em procedimento caraterizado pela simplicidade e celeridade do qual estão excluídas as questões de natureza processual e material que extravasem daquele circunscrito objeto.


Tudo como melhor pode ver-se, v. g., nos acórdãos do STJ, de 20.10.2022, proferido no processo n.º 801/10.1JDLSB-G.S1, relatado pelo Conselheiro António Gama, e de 22.03.2023, proferido no processo n.º 22/08.3JALRA-I.S1, relatado pela Conselheira Ana Barata Brito1.


Em suma, trata-se de uma providência de natureza excecional e não recursiva, reservada para situações de flagrante, ostensiva e inequívoca ilegalidade da prisão, passíveis de apreciação e decisão céleres - 8 dias, nos termos do artigo 31º, n.º 3, da C.R.P. -, por isso incompatíveis com o escrutínio do mérito da ou das decisões judiciais subjacentes e das questões de facto e jurídicas que não se mostrem incontroversas, é dizer que não estejam estabilizadas e não sejam consensuais, outrossim dos eventuais vícios geradores de irregularidades ou nulidades do processo ou de algum dos seus atos, aspetos, em princípio, reservados para os meios ordinários de impugnação das decisões judiciais, como são os recursos, as reclamações e a simples arguição, como se observou no acórdão do STJ, de 01.02.2007, proferido no processo 353/07, citado por Maia Costa, in ob. e loc. referenciados em rodapé 2 3.


II. 3. Vejamos então se, no caso em apreço, estão verificados os pressupostos necessários à concessão do habeas corpus peticionado pelo arguido.


Não restam dúvidas quanto à tempestividade da petição, considerando que o arguido e requerente se encontra preso à ordem do inquérito no qual lhe foi aplicada a medida de coação de prisão preventiva nela reputada de ilegal, nem quanto à sua legitimidade para requerer a providência, considerando o teor literal dos artigos 31º, n.º 2, da CRP e 222º, n.ºs 1 e 2, do CPP.


*


II. 3. 1. Decorre da petição apresentada que a ilegalidade da prisão em que o requerente funda o pedido de concessão da providência abrange as situações previstas nas alíneas b) e c) do n.º 2 do citado artigo 222º do CPP, excluindo-se, por conseguinte, a da correspondente alínea a) respeitante à incompetência da entidade que a efetuou ou ordenou.


Circunstância cuja não verificação no caso em apreço se afigura indiscutível, na medida em que a prisão preventiva do arguido foi ordenada por um juiz titular do processo e do tribunal material e territorialmente competente para nele a decretar e executada pelas competentes autoridades policiais e prisionais em cumprimento da ordem/mandado judicial baseado naquela decisão [artigos 202º a 205º, 210º e 211º da CRP., 1º, als. a ), b) e c), 8º a 18º, 194º e 268º do CPP, 2º, 23º, 24º, 43º, 79º,e ss., 116º, 117º, e 119º a 121º da Lei n.º 62/2013, de 26.08 (LOSJ)];


Assim sendo e considerando a natureza taxativa da previsão legal quanto às situações que admitem o habeas corpus por prisão ilegal, importa apreciar o pedido à luz das alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo 222º do CPP, cuja redação é a seguinte:


Artigo 222.º


Habeas corpus em virtude de prisão ilegal


1 – (…)


2 - A petição é formulada (…) ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos (…) e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:


a) (…);


b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou


c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.


(…)”.


II. 3. 2. Apreciemos, pois, os factos acima considerados apurados e estabilizados em resultado dos fundamentos da petição e da informação e certidão com que foi instruído o processo.


O requerente funda a sua pretensão na circunstância de o prazo legal da medida de coação de prisão preventiva cabível neste caso se ter esgotado no dia 14 de janeiro de 2024, data em que se completaram os 4 (quatro) meses da duração máxima consentida pelo artigo 215º, n.º 1, al. a), do CPP, por ainda não ter sido contra si deduzida qualquer acusação no processo.


Por outro lado, do decurso de tal prazo, conclui, decorre também a extinção da medida e do motivo que a fundamentou, implicando a sua imediata libertação, nos termos do artigo 217º, n.º 1, do CPP, sob pena de flagrante ilegalidade da prisão e abuso de poder na sua manutenção, tanto mais que, mesmo que pudesse voltar a ser equacionada e aplicada, sempre obrigaria à respetiva justificação, em conformidade com o disposto no artigo 194º do mesmo diploma legal.


Será que lhe assiste razão?


Vejamos.


O requerente não discute a qualificação jurídico-penal dos factos que lhe foram imputados e judicialmente considerados fortemente indiciados como crime de roubo p. e p. pelo artigo 210º, n.º 1, do Código Penal (CP), a que corresponde, em abstrato, uma pena de prisão de 1 (um) a 8 (oito) anos, a qual, na verdade, não merece censura.


Sendo assim, a sua conduta fortemente indiciada integra-se nas categorias/conceitos de criminalidade violenta e especialmente violenta previstos no artigo 1º, als. j) e l), do CPP, respetivamente.


Ora, nessas situações os prazos máximos da medida de coação de prisão preventiva são os previstos nas disposições conjugadas do artigo 215º, n.º s 1, als. a) a d), e 2, do CPP, pelo que, na presente situação, o seu prazo máximo é de 6 (seis) e não de apenas 4 (quatro) meses a contar data da respetiva aplicação, como se refere na informação prestada pelo juiz a quo e é jurisprudência pacífica do STJ4.


Logo, tendo a detenção do arguido ocorrido no dia 13.09.2023 e a prisão preventiva sido decretada, após interrogatório judicial, no dia 14.09.2023, não se mostra excedido o prazo máximo da prisão preventiva ali estabelecido, a coberto do disposto nos artigos 27º e 28º da CRP.


Tal prazo, se até lá não for deduzida acusação, só se esgotará, portanto, no dia 14 de março de 2024.


Tanto bastaria para conduzir à improcedência da alegação do requerente no sentido da extinção da medida de coação de prisão preventiva que lhe foi aplicada e dos factos que a motivaram, argumento, aliás, só compreensível em função de um manifesto lapso interpretativo do disposto na al. b) do n.º 2 do artigo 222º do CPP.


Efetivamente, o requerente, ao invocar também esta norma como fundamento da ilegalidade da privação da liberdade em que se encontra, confunde “a inadmissibilidade legal da prisão” com a “prisão injustificada, que caracterizará as situações em que a prisão preventiva é legalmente admissível, mas em que é aplicada com errada fundamentação de facto ou de direito. Nesse caso, o meio de impugnação não poderá ser o habeas corpus, mas sim o recurso previsto no artigo 219º”5.


Mas nem essa fundamentação de facto ou de direito é questionada pelo requerente, por referência ao momento da aplicação da prisão preventiva ou da revisão dos respetivos pressupostos e da sua manutenção, a que o tribunal a quo procedeu oficiosamente, em cumprimento do artigo 213º do CPP.


Seja como for, como antes se concluiu e resulta cristalino dos factos fortemente indiciados e das demais incidências processuais relevantes documentadas no processo, a detenção e posterior prisão preventiva do requerente e a sua manutenção teve e tem como motivo determinante a prática pelo mesmo de um crime de roubo, p. e p. pelo artigo 210º, n.º 1, do CP, com pena de prisão de 1 (um) a 8 (oito) anos de prisão, que integra a criminalidade violenta e especialmente violenta.


Crime que, indiscutivelmente admite a prisão preventiva, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 1º, als. j) e l), e 202º, n.º 1, als. a) e b), do CPP, facto que, mesmo apos o eventual decurso dos prazos legais da prisão preventiva, perdurará em termos indiciários até decisão de arquivamento do inquérito, de não pronúncia ou de absolvição, e se confirmará definitivamente se o processo terminar com a sua condenação por decisão transitada em julgado.


*


À luz de tais factos e considerações, inevitável se torna concluir que a prisão preventiva do requerente, além de não ter excedido o prazo legal máximo admissível nesta fase processual, foi e continua motivada por facto pelo qual a lei a permite, soçobrando os fundamentos previstos nas als. b) e c) do n.º 2 do artigo 222º do CPP em que o requerente estribou a requerida providência de habeas corpus.


Nenhuma ilegalidade da prisão enquadrável nas situações taxativamente previstas nas alíneas a), b) e c) do n.º 2 do artigo 222º do CPP se verifica, portanto, no presente caso, devendo, por isso, recusar-se a concessão da providência requerida, por manifesta falta de fundamento.


III. Decisão


Em face do exposto, acorda-se em:


a) Indeferir, por manifesta falta de fundamento, a providência de habeas corpus requerida pelo arguido AA (artigo 223.º, n.ºs 4, al. a), e 6, do CPP);


b) condenar o requerente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC (artigos 1º, 2º, 6º e 8º, n.º 9, do RCP, aprovado pelo DL n.º 34/2008, de 26.02, e Tabela III ao mesmo anexa), a que acrescerá o pagamento de uma soma de 10 UC, nos termos do artigo 223º, n.º 6, do CPP.


Lisboa, d. s. certificada


(Processado e revisto pelo relator)


João Rato (Relator)


Agostinho Torres (1º Adjunto)


Jorge Gonçalves (2º Adjunto)


Helena Moniz (Presidente da Secção)





________________________________________-

1. Ambos disponíveis no sítio https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/.↩︎

2. No mesmo sentido, vide acórdão do STJ, de 26.06.2003, proferido no processo n.º 03P2629, relatado por Simas Santos, também disponível no sítio https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/. .↩︎

3. Para maiores desenvolvimentos sobre a origem, natureza, pressupostos, fins e âmbito de aplicação do habeas corpus, podem ver-se, em acréscimo aos acórdãos antes mencionados e à doutrina e jurisprudência neles referenciada, Maia Costa, Habeas corpus: passado, presente, futuro, Revista Julgar n.º 29, Maio-Agosto de 2016, pg. 219 e ss., e comentários aos artigos 219º a 224º no Código de Processo Penal Comentado, de Henriques Gaspar et al., 3ª Edição Revista, 2021 Almedina, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 1993, pg. 260 e ss., Pedro Branquinho Ferreira Dias, Comentário a um acórdão, Revista do Ministério Público, Ano 28, n.º 110, pg. 216 e ss., Tiago Caiado Milheiro, anotações aos artigos 220º a 224º, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, António Gama... [et al.]. —2º ed. — v. 3: Almedina, 2022, e Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª edição revista, Coimbra Editora, 2007, em anotações aos artigos 31º e 27º, e os acórdãos do TC e do STJ neles resenhados, assim como nos referidos comentários de Maia Costa.↩︎

4. Cfr. por todos, acórdão de 9.6.2022, proferido no processo n.º 41/21.4PDSXL-D.S1, relatado pelo Conselheiro Orlando Gonçalves, e a resenha jurisprudencial e doutrinal no mesmo sentido dele constante, acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/7969170ca31b0a7680258861007369ba?OpenDocument&Highlight=0,41%2F21.4PDSXL-D.S1.↩︎

5. Palavras de Maia Costa no comentário 2 ao artigo 222º no acima referenciado Código de Processo Penal Comentado.↩︎