Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
995/10.6TVPRT.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: SILVA GONÇALVES
Descritores: ACÇÃO DE REGRESSO
INFLUÊNCIA DE ÁLCOOL
CONDUÇÃO COM ÁLCOOL
ALCOOLEMIA SUPERIOR À LEGALMENTE ADMITIDA
Data do Acordão: 11/28/2013
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - LEIS, SUA INTREPRETAÇÃO E APLICAÇÃO.
DIREITO DOS SEGUROS - SEGURO AUTOMÓVEL.
DIREITO ESTRADAL - TRÂNSITO DE VEÍCULOS / REGRAS ESPECIAIS DE SEGURANÇA.
Doutrina:
- Manuel Domingues Andrade, Interpretação das Leis, pp. 16, 23, 26.
- Oliveira Ascensão, O Direito, Introdução e Teoria Geral, p. 350.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 9.º, N.º3.
CÓDIGO DA ESTRADA (CE): - ARTIGO 81.º.
DECRETO-LEI N.º 291/2007, DE 21 DE AGOSTO: - ARTIGO 27.º, N.º 1, ALÍNEA C).
DECRETO-LEI N.º 522/85, DE 21/12: - ARTIGO 19.º, AL. C).
Legislação Comunitária:
DIRECTIVA N.º 2005/14/CE, DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO, DE 11 DE MAIO, QUE ALTERA AS DIRECTIVAS N.°S 72/166/CEE, 84/5/CEE, 88/357/CEE E 90/232/CEE, DO CONSELHO, E A DIRECTIVA N.º 2000/26/CE, RELATIVAS AO SEGURO DE RESPONSABILIDADE CIVIL RESULTANTE DA CIRCULAÇÃO DE VEÍCULOS AUTOMÓVEIS (“5.ª DIRECTIVA SOBRE O SEGURO AUTOMÓVEL”).
Jurisprudência Nacional:
SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA N.º 6/2002, DATADO DE 28.05 (PROCESSO N.º 3470/2001, 2.ª SECÇÃO), PUBLICADO NO DIÁRIO DA REPÚBLICA, 1.ª SÉRIE-A, N.º 164, DE 18 DE JULHO DE 2002.
Sumário :
O artigo 27.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, atribui à entidade seguradora o direito de regresso contra o condutor do veículo culpado pela eclosão do sinistro, sempre que a condução se tenha operado com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida e sem necessidade de comprovar o nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

     A “Companhia de Seguros AA, SA”, com sede em Lisboa e delegação na Rua …, …, Piso …, no Porto, intentou nas Varas Cíveis do Porto, a presente acção declarativa de condenação com processo ordinário contra BB, pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia de € 92.794,00 acrescida de juros vincendos contados desde a citação até integral pagamento.

     Para tanto alegou, em síntese, que o proprietário do veículo de matrícula 37-AJ-56 transferiu para si a responsabilidade civil por danos decorrentes da circulação deste veículo, o qual foi interveniente em acidente de viação ocorrido em 20.08.2009; na sequência do acidente os ocupantes do veículo sofreram diversos danos, que a autora foi chamada a indemnizar, por força do contrato de seguro celebrado.

     No momento do acidente o AJ era conduzido pelo réu que seguia com excesso de álcool no sangue e por influência desse mesmo álcool, já que aquele condutor veio a acusar uma TAS de 0,76 g/l, não se encontrando por isso em condições de conduzir o veículo com segurança, já que tal situação afectou a sua condução. Conclui assim que tem direito a receber do réu as quantias que despendeu no pagamento das indemnizações.

     O réu foi pessoal e regularmente citado e veio contestar pedindo a improcedência da acção.

 Para tanto afirmou que aceita a ocorrência do acidente em apreço, mas o mesmo não aconteceu em virtude de condução sob influência do álcool. Contudo, não se recorda sequer de ter efectuado qualquer teste ou ter consentido na recolha de sangue.

     Foi dispensada a audiência preliminar, foi proferido despacho saneador com selecção da matéria de facto e elaboração da base instrutória, contra o qual a autora reclamou e foi, oportunamente, decidido.

     Procedeu-se ao julgamento da matéria de facto, com gravação em sistema audio dos depoimentos aí prestados, após o que foi proferida a respectiva decisão sem reclamação.

            

Por fim proferiu-se sentença que julgou improcedente a acção, absolvendo o réu do pedido.

            

Inconformada com tal decisão, dela recorreu a autora para a Relação do Porto que, por acórdão de 2013.01.15 (cfr. fls. 267 a 275), julgando a apelação totalmente improcedente, confirmou a sentença recorrida.

    

Irresignada, recorre agora para este Supremo Tribunal a autora “Companhia de Seguros AA, SA”, revista excepcional admitida ao abrigo do estatuído nos artigos 721.º, n.º 1 e 3 e 721.º -A, n.º 1, alínea c), do C.P. Civil (cfr. fls. 365 a 369), apresentando as seguintes conclusões:

1. O Douto Acórdão da Veneranda Relação do Porto, de que ora se recorre, está em contradição com outros, já transitados em julgado, proferidos, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, tanto pela Veneranda Relação de Coimbra, como pela de Lisboa, como ainda pelo próprio Venerando Supremo Tribunal de Justiça, não tendo sido proferido qualquer Acórdão de Uniformização de Jurisprudência com ele conforme.

2. O Acórdão recorrido, debruçando-se sobre a questão atinente ao direito de regresso da seguradora, nos casos de condução com taxa de álcool no sangue superior à legalmente permitida e no âmbito da aplicação do Decreto-Lei n.° 291/2007 de 21.08, considera que, na esteira da Decisão da 1.ª Instância, não basta o condutor etilizado ter dado causa ao acidente, sendo necessário que esta causa tenha emergido da própria etilização, aplicando consequentemente a posição do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 6/2002 de 28.05.

3. Em sentido diametralmente oposto, o Acórdão proferido em 31.05.2012 pelo Tribunal da Relação de Coimbra, no processo n.º 273/10.OT2AVR, já transitado em julgado, decidiu que, essa mesma questão de direito concernente ao direito de regresso da seguradora, nos casos de condução com taxa de álcool no sangue superior à legalmente permitida e no âmbito da aplicação do Decreto Lei n.º 291/2007, de 21.08, "Dever-se-á, assim, entender, e à laia de remate, que por força da previsão especial do artigo 27°, n.º 1 alínea c), do decreto lei n.º 291/2007 (...), ser ” (…) de concluir, numa interpretação centrada nos elementos literal e histórico (...), que a doutrina do acórdão de uniformização de jurisprudência n°6/2002, caducou".

4. Perante a oposição de sentido e contradição manifesta entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento referido, na apreciação jurídica da mesma questão e matéria, no domínio da mesma legislação, como é a subjacente aos presentes autos, atinente ao direito de regresso da seguradora nos casos de condução sob o efeito do álcool e a aplicação e interpretação do art. 27°, n.º l do DL 291/2007 de 21.08 - designadamente quanto a saber se é ou não necessária a verificação e prova do nexo de causalidade entre a verificação do acidente e a condução com taxa de álcool no sangue superior à legalmente permitida - irrefragável se torna harmonizar e uniformizar a jurisprudência, obviando a que sobre matérias semelhantes sejam proferidas, pelas Relações e pelo próprio Supremo Tribunal de Justiça, decisões tão díspares que consubstanciam, na prática, uma aplicação contraditória do direito, visando, antes, trazer certeza ao direito aplicado e afastar a nefasta dispersão jurisprudencial.

5. Nesse sentido, encontram-se, in casu, verificados os pressupostos, previstos no art. 721°-A, n.º l alínea c) do C.P.C., para a admissibilidade do presente recurso de revista excepcional.

6. E que, salvo melhor opinião, sempre se verificariam também, nos termos da alínea a) do n.º l do citado normativo, atenta ainda a relevância jurídica da questão subjacente em apreciação, e a necessidade de um melhor aplicação do direito.

7. O Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21.08 veio entretanto revogar o DL 522/85 de 31.l 2.

8. Cumpre analisar a questão fulcral que se coloca decorrente da alteração legislativa: saber se o DL 291/2007, tal como o seu antecessor DL 522/85, exige, para o exercício do direito de regresso da seguradora (que pagou a indemnização), a verificação de nexo de causalidade adequada entre a ocorrência do acidente e a alcoolemia, ou se inversamente é suficiente a demonstração da culpa do segurado e a constatação de que este conduzia com uma TAS superior à legalmente permitida, sem exigência do nexo.

9. Importa saber se permanece válida a orientação que decorria do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência.

10. Com a entrada em vigor da nova lei, fica prejudicada a orientação do supra referido aresto, pois se tivesse sido intenção do Legislador manter o princípio subjacente à lei anterior, não o teria explicitamente alterado.

11. O Legislador sabendo da controvérsia interpretativa da Lei anterior e da sua pacificação com o dito aresto, se quisesse manter essa linha de orientação sob o ponto de vista legislativo, tê-lo-ia naturalmente, feito. E sanava, a priori, a questão. Mas não o fez.

12. Na redacção da presente lei, o Legislador abandonou o elemento subjectivo e substituiu-o por um elemento objectivo.

13. A expressão "tiver agido sob a influência do álcool" (do anterior diploma), deu lugar à expressão "conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida". Passou-se do elemento subjectivo, para o elemento objectivo e passível de concreta objectividade.

14. Esta mudança legislativa revela que o legislador sabe, porque tal é do conhecimento público, que com uma taxa de álcool no sangue superior à legalmente permitida, se está sob influência do álcool.

15. O Legislador tem conhecimento da evidência da relação entre o álcool no sangue e o comportamento do agente.

16. Sabe-se que, no condutor com TAS superior à legalmente permitida, a demora na reacção aos estímulos é o suficiente para, ao entrar numa curva, seguir em frente e sair da sua faixa de rodagem, (como ocorreu no caso dos autos), antes de ele ter iniciado a acção apropriada, que consistia em rodar o volante e reduzir a velocidade.

17. Toda esta argumentação é do conhecimento do Legislador. E tanto assim é que ao legislar sobre a matéria, pretendeu o Legislador substituir o elemento subjectivo pelo objectivo, pois tem perfeito conhecimento e noção que este encerra em si mesmo, aquele.

18. E esta consciente, deliberada e intencional alteração legislativa só pode ser entendida no sentido de actualmente ser inexigível o nexo de causalidade adequada entre o estado de alcoolemia e o acidente.

19. Contrariamente à lei anterior, agora, não se exige essa relação causa/efeito, sendo suficiente a constatação objectiva e concreta que o condutor causador e culpado no acidente, seja, no momento da sua eclosão, portador de taxa de álcool no sangue superior à legalmente permitida.

20. E não se pense que o Legislador ao determinar assim, pretendeu beneficiar as seguradoras, ou (con)ceder-lhes algum privilégio.

21. As seguradoras têm sempre que demonstrar a culpa do condutor.

22. E o condutor pode sempre demonstrar a irrelevância da alcoolemia para a causa do acidente.

23. O Decreto-Lei n.º 291/2007 de 21.08, revogando o DL 522/85 de 31.12, veio, no que à matéria do direito de regresso da seguradora relativamente ao condutor etilizado concerne, postergar a orientação que decorria do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 6/2002.

24. Ter-se-á de considerar ainda o elemento temporal, pois que o referido Acórdão Uniformizador nunca poderia ser "chamado à colação", porque inaplicável em consequência de ter sido proferido no domínio de diferente legislação, entretanto revogada.

25. Nesta conformidade, tendo o acidente dos autos ocorrido já em plena vigência do Dec. Lei 291/07, nunca poderia ser aplicado o Acórdão uniformizador prolatado, para a redacção do art. 19.º do DL 522/85 que não tem correspondência ao art. 27° do diploma actual, pelas razões supra invocadas.

26. É com propósito uniformizador que a Recorrente interpõe a presente Revista, pugnando pela prolação de Acórdão que, revogando o recorrido, decida no sentido do Acórdão fundamento, harmonizando, dessa forma a jurisprudência ao considerar que" Dever-se-á, assim, entender, e à laia de remate, que por força da previsão especial do artigo 27°, n.º l alínea c), do decreto-lei n.º 291/2007 (...), ser (...) de concluir, numa interpretação centrada nos elementos literal e histórico (...), que a doutrina do acórdão de uniformização de jurisprudência n°6/2002, caducou".

27. Considerando, igualmente que o legislador clarificou de forma cristalina a questão, ao plasmar que, se o condutor der causa ao acidente do qual decorram danos que a seguradora irá indemnizar e, simultaneamente apresentar uma TAS superior à legalmente permitida, é sobre ele que impende o direito de regresso da seguradora.

28. Devendo considerar-se ainda que o Acórdão Uniformizador 6/2002 nunca poderia ser tido em consideração porque inaplicável em consequência de ter sido proferido no domínio de diferente legislação, entretanto revogada.

    

     Contra-alegou a recorrida pedindo a manutenção do julgado.

                 

                   Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

    As instâncias consideraram provados os factos seguintes:

1. A Companhia de seguros “AA, S.A.” é uma sociedade constituída sob a forma comercial que tem por objecto a actividade seguradora;

2. No exercício da sua actividade e por força do contrato de seguro celebrado com CC, aceitou a transferência da responsabilidade civil por danos decorrentes da circulação do veículo ligeiro de passageiros com matrícula -AJ-, dentro dos limites legais, pela apólice n.º … (doc. n.º 10 que aqui se dá por integralmente reproduzido);

3. Tal contrato de seguro encontrava-se em vigor á data do acidente, em 20.08.2009;

4. No dia 20.08.2009, pelas 6.20 horas, na Avenida …, vulgarmente conhecida por Marginal do Douro, verificou-se um acidente de viação, no qual foi interveniente o veículo seguro pela A. (AJ), conduzido pelo R. BB, transportando consigo DD, EE e FF;

5. Naquele dia e hora e nos momentos que precederam o acidente, circulava o veículo AJ na Avenida …, no sentido Oeste/Este, ou seja, Ribeira/Ponte do Freixo;

6. Como consequência do embate os ocupantes do AJ sofreram diversas, e graves lesões físicas, vindo a falecer DD:

7. A referida artéria, no local, descreve uma curva para a esquerda, atento o sentido de marcha do veículo AJ;

8. O R. seguia a velocidade não inferior a 80 km/h e por causa da velocidade imprimida, ao descrever a curva supra referida entrou em despiste e perdeu o controlo da viatura que conduzia;

9. No momento do acidente o AJ era conduzido pelo R., que seguia com uma taxa de álcool no sangue de pelo menos 0,76 g/litro e sob influência desse álcool;

10. O facto de serem 6.20 h e o réu ter estado acordado toda a noite e ter ingerido bebidas alcoólicas, apresentando uma TAS de pelo menos 0,76g/litro afectou a sua condução

11. Transpôs o eixo da via, invadiu a hemifaixa de rodagem esquerda, atento o seu sentido de marcha, galgou o passeio do lado esquerdo daquela artéria, e só se imobilizou de encontro a uma árvore implantada no passeio, das muitas que no passeio existem;

12.  Tendo a A. suportado a quantia de € 294,00 euros que liquidou ao Centro Hospitalar do Porto - Hospital Geral de Santo António - pelos episódios de urgência dos ocupantes EE e FF;

13. Igualmente foi liquidada a quantia de € 92.000,00 euros relativo a indemnização devida aos herdeiros de DD.


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     A questão posta no recurso é a de saber se, para a efectivação do direito da seguradora/autora que exerce o direito de regresso, se torna necessária a alegação e prova do nexo de causalidade entre o estado de etilização e o acidente de que resultaram os danos de terceiro indemnizados por ela, isto é, que o álcool foi causa real, efectiva e adequada do desencadear do acidente.

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I. Desde há muito tempo que se vem registando no nosso País uma elevada taxa de sinistralidade, estatisticamente uma das maiores da Europa. Não podendo ficar indiferente a esta ocorrência logo o legislador, preocupando-se com esta circunstancial conjuntura, ensaiou um modo de lhe pôr cobro, designadamente penalizando a condução de veículos automóveis sob o efeito de álcool, a principal das razões, segundo se crê, da maior parte dos acidentes ocorridos nas nossas estradas, tendo em consideração que a excessiva ingerência de bebidas alcoólicas faz perder os reflexos de movimentos, tão necessários na destreza que o condutor terá de fazer valer em muitas das situações que terá de enfrentar no exercício da condução.

Não pode olvidar-se que a mesma quantidade de álcool pode afectar, de modo desigual, pessoas diferentes e, por isso, se torna necessário encontrar o limite a partir do qual o álcool faz sentir os seus malfazejos efeitos a todo e qualquer condutor.

É à ciência que se vai buscar o quantitativo desses valores; e neste enquadramento dispõe o art.81ºdo CE:

     1 - É proibido conduzir sob influência de álcool ou de substâncias psicotrópicas.

     2 - Considera-se sob influência de álcool o condutor que apresente uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,5 g/l ou que, após exame realizado nos termos previstos no presente Código e legislação complementar, seja como tal considerado em relatório médico.

     Tomando em atenção este detetado dado da experiência da condução automóvel, o art.19.º, al. c), do Dec. Lei n.º 522/85, de 21/12 - diploma legal que se destinou a abranger o regime jurídico estabelecido para o seguro obrigatório da responsabilidade civil automóvel, uma medida legislativa de alcance social indiscutível destinada a procurar dar uma acabada solução aos verdadeiros interesses dos lesados em acidentes de viação - acabou por dispor que, “satisfeita a indemnização, o segurador tem direito de regresso e/ou reembolso, conforme os casos, nos termos da lei geral e ainda contra o condutor se este tiver agido sob a influência do álcool”.

    

     Face à disciplina emanada do disposto no art. 81.º do C.E. tínhamos como certo que a condução sob influência do álcool só havia de se conferir a quem acusasse uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,5 g/l.

Apesar disso, embora houvesse quem entendesse que, tomando aquele preceito do art.19.º, al. c), do Dec. Lei n.º 522/85, de 21/12, estava excluída a responsabilidade da seguradora, isto é, que havia direito de regresso, sempre que o grau de alcoolemia apresentado pelo segurado fosse igual ou superior a 0,50 g/l, - quem conduz alcoolizado não é merecedor da protecção, ao mesmo tempo que é difícil a prova do nexo de causalidade entre o acidente e o seu estado de alcoolemia - também havia quem sustentasse que não podia deixar de se dispensar a prova do nexo de causalidade entre o excesso de álcool ingerido e a produção do acidente, tudo porque era isso o que impunha o princípio geral do nosso direito, orientado no sentido de que só existe responsabilidade civil se houver culpa do agente, que se não presume.

     Entendendo-se que a ratio legis daquele normativo - art.19.º, al. c), do Dec. Lei n.º 522/85, de 21/12 - era no sentido de se não penalizar o segurado só porque ingeriu álcool em quantidade superior ao legalmente permitido, em consequência desta pressagiada acepção desenharam-se três essenciais correntes jurisprudenciais assim esquematizadas no acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 6/2002, datado de 28.05:

     a) O reembolso pela seguradora é sempre devido porque representa o desvalor da acção, uma vez que o risco contratualmente assumido não se compadece com condutores que agem sob o efeito do álcool e que preconiza o efeito automático da existência do direito de regresso;

     b) A seguradora só tem direito de regresso se provar que o sinistro foi causado pela taxa de alcoolemia de que o condutor era portador; e

     c) O direito de regresso só existe se a situação de alcoolemia for causa do acidente, embora tal relação seja de presumir nos termos do n.º 2 do artigo 1.º da Lei n.º 3/82, do artigo 350.º do Código Civil e do artigo 81.º do C. E.

    

     Chamado a pôr cobro à incerteza resultante desta diferenciada prática jurisprudencial o Supremo Tribunal de Justiça, reunido em plenário das suas secções cíveis (processo n.º 3470/2001/2.ª secção), uniformizou jurisprudência nos seguintes termos: - a alínea c) do artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool o ónus da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente.

     Deste modo, a partir da publicação deste aresto, jurisprudencialmente passou a recair sobre a seguradora o ónus da prova quanto aos factos constitutivos do direito de regresso que acciona, demonstrando que o grau de alcoolemia registado ao condutor do veículo responsável pelo acidente, actuou como causa real e ajustada da ocorrência do sinistro.

     II. O Dec. Lei n.º 522/85, de 21/12, foi entretanto revogado pelo Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto que, como consta do seu preâmbulo, entrou em vigor em virtude da “transposição da Directiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio, que altera as Directivas n.°s 72/166/CEE, 84/5/CEE, 88/357/CEE e 90/232/CEE, do Conselho, e a Directiva n.º 2000/26/CE, relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis (“5.ª Directiva sobre o Seguro Automóvel”), constitui ensejo para proceder à actualização e substituição codificadora do diploma relativo ao sistema de protecção dos lesados por acidentes de viação baseado nesse seguro, que se justifica desde há muito”.

    

     Tipificando este último diploma legislativo um já experimentado, mas agora diversificado, regime jurídico devotado ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis, refazendo de modo dissemelhante e com sobriedade as directrizes referentes ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis anteriormente consagradas no Dec. Lei n.º 522/85, de 21/12,havemos de depreender destes explícitos passos dados pelo legislador que o arrumo, concertado no acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 6/2002, datado de 28.05, deixou de ter a força vinculadora que dele advinha precedentemente.

    A descrição legal agora a ter em consideração é aquela que está proclamada no artigo 27.º do Decreto-Lei n.º 291/2007 e assim descrita:

  - Satisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida (…).[1]

     III. Vejamos, então, como havemos de perscrutar o sentido deste historiado texto legal, o único que há-de ser objecto de interpretação depois da sua entrada em vigor e, nesta circunstância, a que se acomoda ao caso “sub judice”.

     Interpretar a lei é tarefa que tem por objectivo a descoberta do seu exacto e preciso sentido, partindo-se do elemento literal para se ajuizar mais da “voluntas legis” do que da "mens legislatoris"[2] e tendo-se sempre em conta que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (art.º 9.º n.º 3 do C.C.): - a letra não é só o ponto de partida, é também um elemento irremovível de toda a interpretação; o texto funciona também como limite de busca do espírito.[3]

Pode, porém, acontecer que o intérprete se aperceba de que o legislador foi infeliz no modo como se exprimiu, que o seu pensamento foi atraiçoado pelos termos utilizados na redacção da lei. Quando tal ocorrência acontecer ter-se-á de ir na busca do conteúdo que o legislador desejava ter querido dizer, para tanto fazendo recurso ao elemento racional ou lógico (argumento a maiori, ad minus; a fortiori; a simili) e teleológico (ratio legis - a razão de ser da norma).

     Interpretar, em matéria de leis, quer dizer não só descobrir o sentido que está por detrás da expressão, como também, dentre as várias significações que estão cobertas pela expressão, eleger a verdadeira e decisiva.[4]

     O elemento filológico de exegese tirado do teor das locuções que integram o texto do preceituado no artigo 27.º do Decreto-Lei n.º 291/2007 - apenas tem direito de regresso contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de superior à legalmente admitida (…) - cinge o intérprete a discorrer que, no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil, o direito de regresso conferido à seguradora ser-lhe-á irrestritamente concedido sempre que o condutor, julgado culpado pela eclosão do acidente, conduza a viatura com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida.

Igualmente, da "ratio" que superintendeu à redação desta mesma regra, se infere que ela aponta para o mesmo desígnio que atrás acabámos de consignar, qual seja o de que, mesmo pequenas concentrações de álcool no sangue provocam alterações no comportamento, percepção e reacção dos condutores e que, como informa a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, o risco de envolvimento em acidente mortal aumenta duas vezes a partir da taxa de 0,5 gramas por litro de sangue e, a partir da taxa de 1,2/g/l, o risco é amplificado para 16 vezes.

    Relembremos o que a este propósito acautelou o predito acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 6/2002: “estamos assim com a corrente jurisprudência (v. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Janeiro de 1997, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 463, p. 206, e de 19 de Julho de 1997, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 468, p. 376) que entende que o legislador se quisesse dispensar a prova do nexo de causalidade diria simplesmente que o direito de regresso existia se o condutor conduzisse com álcool”.

      Foi esta aproximada e delineada enunciação, aquela de que o legislador se fez ajudar para a concretização da redação do artigo 27.º do Decreto-Lei n.º 291/2007 - a condução do veículo com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida.

   

     Porque o sentido da lei a apreender pelo seu leitor deverá ser aquele que melhor se aproxime da sua razão ou fim que lhe parecer mais razoável em face do diferente condicionalismo do seu tempo,[5] tomando a sugestão que o acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 6/2002 faz à sua própria decisão,[6] tal observação permite-nos confiar que, do emprego daquela expressão - “com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida” - o que se há-de completar é o de que o sentido da lei a ter em atenção é o de que, circulando o condutor com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida e tiver dado causa ao acidente, a seguradora tem o direito de regresso contra o seu segurado.    

     Dito de outro modo, o direito de regresso da seguradora está dependente, destes dois pormenorizados pressupostos, cumulativamente enunciados:

     1. Ser o condutor o culpado pela eclosão do acidente (tenha dado causa ao acidente); e

     2. Estar o condutor do veículo etilizado em medida superior ao legalmente permitido (conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida).

    Com esta proposição queremos revelar que ao condutor envolvido em acidente sempre lhe será dada a possibilidade de comprovar que, não obstante ser portador de uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, apesar disso nenhuma responsabilidade lhe pode ser imputada na produção do acidente, deste modo ficando o condutor garantido contra a acção da seguradora no caso de estar já demonstrado que nenhuma culpa teve na sua materialização.

    

     Como comprovado ficou, o réu seguia a velocidade não inferior a 80 km/h e por causa da velocidade imprimida, ao descrever a curva supra referida entrou em despiste e perdeu o controlo da viatura que conduzia; no momento do acidente o AJ era conduzido pelo réu, que seguia com uma taxa de álcool no sangue de pelo menos 0,76 g/litro e sob influência desse álcool; e o facto de serem 6.20 h e o réu ter estado acordado toda a noite e ter ingerido bebidas alcoólicas, apresentando uma TAS de pelo menos 0,76g/litro afectou a sua condução.

   Desta factual descrição dúvidas não poderemos ter de que, sendo o condutor/réu o responsável pelo acidente e, simultaneamente, portador de uma taxa de alcoolemia superior ao mínimo legalmente autorizado (pelo menos 0,76g/litro), assiste à seguradora autora/recorrente o direito de regresso referentemente ao montante indemnizatório que satisfez aos lesados, ocupantes do veículo interveniente no acidente por força do contrato de seguro celebrado.

         Concluindo:

     O artigo 27.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, atribui à entidade seguradora o direito de regresso contra o condutor do veículo culpado pela eclosão do sinistro, sempre que a condução se tenha operado com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida e sem necessidade de comprovar o nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente.

                

     Pelo exposto, concede-se a revista e, em consequência, revogando-se o acórdão recorrido, condena-se o réu BB a pagar à autora “Companhia de Seguros AA, SA” a quantia de € 92.794,00, acrescida de juros vincendos contados desde a citação até integral pagamento.

              Custas pelo recorrido.         

  

      Supremo Tribunal de Justiça, 28 de novembro de 2013.

Silva Gonçalves (RELATOR)

Pires da Rosa

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Vencida, confirmaria o acórdão recorrido, pelos fundamentos dele constantes.)

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     [1] Artigo 27.º (direito de regresso da empresa de seguros).

            1 - Satisfeita a indemnização, a empresa de seguro apenas tem direito de regresso:

                 a) Contra o causador do acidente que o tenha provocado dolosamente;

                 c) Contra o condutor, quando este tenha dado causa a acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior legalmente admitida, ou acusar consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos.
     [2] A interpretação procura a “voluntas legis”, não a “voluntas legislatoris” - escreve Ferrara; não se trata, pois, vontade do passado, mas de uma vontade sempre presente enquanto a lei não cessa de vigorar (Manuel Domingues Andrade; Interpretação das Leis; pág.16).

     [3] Oliveira Ascensão; O Direito, Introdução e Teoria Geral; pág. 350.
    [4] Manuel Domingues Andrade; Interpretação das Leis; pág. 26.

[5] Manuel Domingues Andrade; Interpretação das Leis; pág. 23.

[6] - A inversão do ónus da prova, obrigando o segurado a provar que não teve culpa, apresenta-se como aquela que de jure constituendo se poderia, numa primeira aproximação, considerar mais justa na medida em que ficaria ao condutor que circula naquelas condições, ou seja, em situações de mais facilmente provocar acidentes, o ónus de provar que, apesar de circular em condições irregulares, não contribuiu para o acidente.