Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1853/11.2TBVFR.P2.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: EMISSÕES DE FUMOS E CHEIROS
OFICINA DE PINTURA AUTOMÓVEL
PREJUÍZO SUBSTANCIAL
USO NORMAL DE PRÉDIO URBANO
DIREITOS DE PERSONALIDADE
DIREITO AO AMBIENTE E QUALIDADE DE VIDA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 04/05/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS COISAS / DIREITO DE PROPRIEDADE / PROPRIEDADE DE IMÓVEIS / EMISSÃO DE FUMO, PRODUÇÃO DE RUÍDOS E FACTOS SEMELHANTES.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 1346.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL JUSTIÇA:


- DE 26-04-1995, IN CJ, TOMO I;
- DE 02-06-1998, IN CJ, TOMO II;
- DE 12-10-2000, IN CJ, TOMO III, P. 70;
- DE 21-10-2003, IN CJ, TOMO III, P. 106;
- DE 07-04-2005, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 22-09-2005, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 29-11-2012, PROCESSO N.º 1116/05, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 01-03-2016, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 29-06-2017, PROCESSO N.º 117/13 , IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I. O funcionamento de uma oficina de pintura automóvel é suscetível, em abstrato, de determinar efeitos nocivos no uso dos prédios vizinhos, sujeitos ao regime que consta do art. 1346º do CC, e de conflituar com direitos de natureza pessoal dos que residam nesses prédios.

II. Provando-se que a casa dos AA. é invadida por gases e cheiros a tinta e diluente provenientes das chaminés de uma oficina instalada em prédio vizinho, tal atividade, para além de determinar um prejuízo substancial para o uso do prédio dos AA., interfere no seu direito de natureza pessoal relacionado com a qualidade ambiental.

Decisão Texto Integral:
I - AA e mulher BB, por si e na qualidade de representantes legais dos seus filhos de menoridade, CC e DD, instauraram a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, sob a forma ordinária, contra EE, pedindo que fosse condenado a:

- Cessar imediatamente a actividade de chapeiro e pintura de automóveis que desenvolve nas suas instalações à R. …, em …, retirando as chaminés aí colocadas, de onde, de forma contínua, sistemática e repetida são expelidos gases, vapores e cheiros para a atmosfera, com isso lesando a saúde dos AA. e dos seus filhos, violando os seus direitos de personalidade, designadamente o direito à saúde, à qualidade de vida e a um ambiente ecologicamente equilibrado;

- Abster-se da prática de qualquer ato ou atividade nessas instalações que, pela poluição provocada, ponha em causa o direito à saúde e o direito à qualidade de vida dos AA. e dos seus filhos;

- Indemnizar os AA. pelos danos não patrimoniais sofridos, em montante que se crê seja razoável fixar em € 5,000,00 e € 2.000,00 para cada um dos filhos menores;

- Indemnizar os AA. no valor de € 4.640,01 correspondente a danos patrimoniais sofridos, designadamente os valores pagos pelos AA. a título de honorários a advogado em ordem a encontrar uma solução extrajudicial do litígio.

Invocaram o direito de oposição que se mostra consagrado no art. 1346° do CC, fundado na preocupação de garantia dos seus direitos de personalidade - saúde e repouso - enquanto titulares do direito de propriedade de prédio vizinho.

O R. invocou a ilegitimidade alegando que quem desenvolve a actividade de manutenção e de reparação de automóveis é A. FF, Soc. Unipessoal, Lda. Impugnou ainda parte substancial da factualidade que integra a causa de pedir, nomeadamente a conexa com a imputação de responsabilidade à sua pessoa, a qualquer título, pela ocorrência de qualquer prejuízo na esfera jurídica dos interesses dos AA., concluindo pela total improcedência da acção.

Em sede de réplica, os AA. pugnaram pela improcedência da exceção dilatória.

No seguimento de convite, os AA. vieram deduzir incidente de intervenção principal provocada passiva de A. FF, Soc. Unipessoal, Lda, de modo a assegurar a produção do efeito útil não só contra o R. primitivamente demandado como ainda contra a Interveniente.

No seguimento, a Interveniente veio declarar que se associava ao R. EE, aderindo ao articulado da contestação que aquele apresentara.

Oportunamente foi proferida sentença na qual se decidiu julgar totalmente improcedente a acção e absolver os RR. EE e A. FF, Soc. Unipessoal, Lda, dos pedidos deduzidos pelos AA.

Os AA. apelaram e a Relação revogou parcialmente a sentença e condenou a Interveniente A. FF, Soc. Unipessoal, Lda, a abster-se da prática de qualquer ato ou atividade nessas instalações que, pela poluição provocada, ponha em causa o direito à saúde e o direito à qualidade de vida dos AA. e dos seus filhos. Condenou-a ainda no pagamento de indemnização de € 5.000,00 por danos não patrimoniais.

A Interveniente interpôs recurso de revista e os AA. interpuseram recurso de revista subordinado.

A Interveniente suscitou as seguintes questões essenciais:

- Revogação do acórdão da Relação na parte em que alterou a decisão da matéria de facto, considerando que os documentos em que a Relação se fundou não permitiam a alteração introduzida;

- Inexistência de prejuízo essencial para a utilização do imóvel dos AA. resultante da atividade exercida na oficina da Interveniente, sendo que já foi instalado um sistema de extração de fumos e cheiros com filtros em cumprimento das normas legais;

- Inexistência de perigo especial para a saúde de qualquer dos AA. e falta de conexão entre a doença de que padece um dos AA. e a atividade exercida;

- Falta de fundamento para a condenação da Interveniente em qualquer indemnização

Os AA., no recurso subordinado, invocaram a nulidade do acórdão por omissão de pronúncia quanto à apreciação do pedido de indemnização relacionado com as despesas extrajudiciais.

Já neste Supremo foi determinada a remessa dos autos à Relação para apreciação da referida nulidade, o que foi feito, sendo proferido acórdão complementar que reconheceu a existência de nulidade por omissão de pronúncia, na parte referente ao pedido de indemnização por despesas extrajudiciais, condenando adicionalmente a R. Interveniente no pagamento da quantia de € 4.640,01.

Foi interposto novo recurso de revista, mas apenas pelos RR., no qual, para além das questões anteriormente inseridas no recurso de revista, vêm ainda impugnar o acórdão complementar que condenou no pagamento da indemnização por despesas extrajudiciais.

Os AA. contra-alegaram.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


II - Factos provados:

1. Encontra-se descrito na 1ª CRP de …, sob o n° 02…1/19…3, da Freguesia de Stª Maria …. o prédio urbano sito na …, a confrontar a Norte com R. …, a Sul com EE, aqui R., a Nascente e Poente com GG – A);

2. Relativamente ao prédio descrito em 1., encontra-se inscrita, por cota G-1, correspondente à apresentação n° 20, de 19-3-03, a sua aquisição, por doação, a favor de AA e mulher BB, aqui AA. – B);

3. Encontra-se inscrito no Serviço de Finanças de … a favor do A. AA o prédio urbano com o art. 4…3, sito na R. … – C);

4. Os AA. AA e mulher BBs construíram no prédio descrito em 1. a sua casa de habitação a que foi atribuída a licença de habitabilidade n° 5…/05 e vivem nessa habitação desde 2005, juntamente com os seus filhos, os co-AA. – D) e E);

5. O prédio descrito em 1. confronta de Sul com um prédio do R., com entrada pela R. …, onde se encontra implantada uma oficina de automóveis, onde o R. exerce a actividade de reparação, manutenção e pintura de automóveis – F);

6. Em 2006, o R. deu início à construção da nova oficina, mantendo a primitiva oficina, a qual foi entretanto demolida, tendo permanecido apenas um barraco, entretanto mandado demolir pela Câmara Municipal de … – G) e H);

7. O R. construiu uma nova oficina de raiz que nada tem a ver com a primitiva oficina – 2º;

8. O terreno onde está implantada a referida oficina situava-se a uma cota mais elevada e o R. procedeu ao desaterro com o objetivo também de nivelar o solo de modo a permitir a edificação das instalações da oficina – 22º e 23º;

9. A referida oficina de automóveis situa-se na zona central da cidade de … – 1º;

10. Em 2009, ao lado da cobertura branca (oficina atual do R.), foi construída nova instalação (também com cobertura branca) onde o R. realiza trabalhos de pintura – I);

11. A Interveniente A. FF, Soc. Unipessoal, Lda, de que o R. é sócio-gerente, desenvolve a atividade de manutenção e reparação de automóveis, incluindo serviços de chapeiro e pintura, na oficina referida em 6. e 9. – DD);

12. No domínio da referida atividade genérica de reparação de automóveis, a mesma montou o equipamento de pintura em 29-6-09 – art. 51° da contestação.

13. O R. requereu junto da Câmara Municipal de … um “Pedido de Licenciamento ou Comunicação Prévia” datado de 1-7-09 (cfr. doc. 4 a fls. 122) – EE);

14. Com o fim de proceder à exaustão de cheiros e vapores decorrentes da realização de trabalhos de mecânica, chapeiro e pintura foram colocadas 3 chaminés na dita instalação, as quais se encontram abaixo da cota do prédio descrito em 1., e situam-se a cerca de 22,50 m do prédio descrito em 1. – J) e L) e 3º:

15. O sistema de extração e respetivas condutas que vão dar às chaminés estão equipados com filtros habitualmente usados para o efeito – 29º;

16. Os AA., através do seu mandatário, remeteram ao Pres. da Câmara Municipal de …, fax datado de 22-7-09, correspondente ao doc. de fls. 43 e 44 (doc. 14) (“Funcionamento ilegal de oficina de reparação automóvel”) – M);

17. A Câmara Municipal de …, Pelouro do Planeamento e Urbanismo, respondeu nos termos constantes da missiva de fls. 47 (doc. 16) – N);

18. Os AA., através do seu mandatário, remeteram ao Director dos Serviços de Fiscalização da CCDR Norte o fax datado de 28-8-09 constante de fls. 48 e 49 (doc. 17) (“Funcionamento ilegal de oficina de reparação automóvel com estufa de pintura”) – O);

19. Os AA. apresentaram uma “denúncia” junto da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica, tendo esta entidade respondido nos termos que constam de fls. 50 (doc. 18) – P);

20. Os AA. apresentaram “queixa” junto da GNR, tendo esta autoridade policial respondido nos termos que constam de fls. 51 (doc. 19) – Q);

21. Os AA., através do seu mandatário, remeteram ao Pres. da Câmara Municipal de … uma carta datada de 9-12-09 constante de fls. 52 a 54 (doc. 20) – R);

22. O assunto foi levado a reunião de Câmara de 8-3-10 pelo Vereador HH que advertiu a Câmara Municipal nos termos que constam de fls. 55 e 56 (doc. 21) – S);

23. A CCDRN remeteu ao R., na qualidade de representante da Interveniente, a carta com epígrafe “Processo de contraordenação/Notificação da decisão” constante de fls. 126 a 129, de 18-2-10 (sendo a decisão absolutória da prática da contraordenação relacionada com a monitorização) (doc. 7) – II);

24. De novo, em reunião camarária de 6-4-10, o Vereador HH advertiu a Câmara Municipal nos termos que constam de fls. 57 e 58 (doc. 22) – T);

25. A CCDRN remeteu ao R. a carta datada de 15-4-10 constante de fls. 123 (doc. 5) – GG);

26. Em reunião camarária de 31-5-10, o Vereador HH advertiu a Câmara Municipal nos termos que constam de fls. 60 – U);

27. De novo, em reunião camarária de 28-6-10, foi abordado pelo Vereador HH o processo camarário em questão nos termos que constam de fls. 61 e 62 (doc. 24) – V);

28. A CCDRN remeteu ao R. a carta datada de 13-7-10, constante de fls. 63 e 64 (doc. 25) (“Resposta ao pedido de parecer de chaminés”) – X);

29. A CCDRN remeteu ao R. a carta datada de 20-7-10 constante de fls. 124 e 125 (doc. 6) – HH);

30. Os AA. remeteram à CCDR-N a missiva datada de 27-7-10, constante de fls. 67 a 69 (doc. 28) – Z);

31. Os AA. remeteram à CCDR-N a missiva datada de 17-10-10 constante de fls. 70 a 73 (doc. 29) – AA);

32. A Interveniente remeteu à CCDR-N uma carta datada de 19-10-10 com a epígrafe “Pedido de isenção de monitorizações” (fls. 135) – LL);

33. Os AA. remeteram à CCDR-N a missiva datada de 25-11-10 constante de fls. 74 e 75 (docs. 30, 31 e 32) – BB);

34. Em virtude das reclamações dos AA. e da posição entretanto assumida pela CCDR-N, o R. mandou altear as chaminés em cerca de 3 a 4 m, levando a que:

a) A altura da chaminé do queimador passasse a ser de 9,82 m acima da cobertura onde se insere e de 14,02 m relativamente à cota do pavimento;

b) A altura da chaminé da estufa de pintura passasse a ser de 9,20 m acima da cobertura onde se insere e de 13,40 m relativamente à cota do pavimento;

c) A altura da chaminé da área de preparação passasse a ser de 3,65 m acima da cobertura onde se insere e de 13,90 m relativamente à cota do pavimento – art. 32° da contestação;

35. Até 24-5-11 a estufa de pintura funcionou 688 horas, sendo que no dia 1-7-13 o contador da mesma estufa marcava 1346 horas de funcionamento – 30º;

36. Desde que o R. começou a trabalhar com a secção de pintura a casa dos AA. (prédio descrito 1.) começou a ser invadida por gases e cheiros a tinta e diluente provenientes das referidas chaminés – 4º;

37. Os cheiros e os gases poluentes, atenta a altura a que se encontram as fontes emissoras (as chaminés), disseminam-se rapidamente pelas redondezas e invadem o interior das habitações vizinhas – 5º;

38. As substâncias utilizadas na oficina em causa, mais concretamente na pintura de veículos, contêm “C.O.V.” (composto orgânico volátil), sendo que “composto orgânico” corresponde a qualquer composto que contenha, pelo menos, o elemento carbono e um ou mais dos seguintes elementos, hidrogénio, halogéneos, oxigénio, enxofre, fósforo, silício ou azoto, à excepção dos óxidos de carbono e dos carbonatos e bicarbonatos inorgânicos, e que “C.O.V.” corresponde a composto orgânico com uma pressão de vapor igual ou superior a 0,01 KPaa293,15 K - 6º;

39. Em razão do supra descrito, os AA. AA e mulher, BB, têm a preocupação de manter as janelas fechadas do prédio descrito em 1., mormente quando se apercebem de que na dita oficina estão a ser executados serviços de pintura – 7º;

40. A A. é Revisora Oficial de Contas e, no exercício das suas funções, presta serviços de auditoria às empresas cujo trabalho de estudo e análise desenvolve no interior da sua habitação (prédio descrito em 1.) – CC);

41. A manutenção da situação descrita em 36. a 39. é geradora de forte preocupação para os AA., especialmente para a A. que desenvolve parte da sua atividade profissional no interior da sua habitação – 13º;

42. O A. CC (filho) sofre de rinite alérgica, encontrando-se a ser seguido em consulta de alergologia, no âmbito da qual lhe foi determinada a realização de tratamento de dessensibilização/vacinação – 10º;

43. Os AA. AA e BB receiam que o quadro clínico referido em 42. se agrave se o seu filho, CC, continuar exposto aos gases expelidos pelas chaminés da oficina de pintura de veículos em causa – 11º e 12º;

44. Por vezes os AA. secam a roupa na cozinha, onde colocam um estendal móvel – 16º;

45. Os AA. chegaram a colocar à venda a sua habitação, correspondente ao prédio descrito em 1. – 19º;

46. As reclamações que os AA. têm apresentado junto das entidades públicas têm-lhes causado desgaste e transtornos – 20º;

47. Os AA. constituíram advogado para fazer as exposições referidas, em cujos honorários despenderam o montante de € 4.640,01 – 21º;

48. Em 17-6-13, a Câmara Municipal de … emitiu o “ALVARÁ DE UTILIZAÇÃO n° 2…/2013/AUT”, correspondente ao documento de fls. 859, autorizando o R. EE a utilizar o edifício aí identificado como “oficina de reparação e manutenção automóvel”, oficina que é objecto de discussão nestes autos - (doc. fls. 859).

49. Tendo por objeto o comércio, compra, venda e troca de automóveis, comércio de peças de automóvel e reparação de automóveis, a Interveniente A. FF, Soc. Unipessoal, Lda, leva a cabo sobretudo a atividade de manutenção e reparação de automóveis – art. 50° da contestação.


III – Decidindo:

1. Impugna a R. Interveniente o acórdão da Relação na parte em que modificou a redação do ponto 12., alegando que, com base na documentação que foi apresentada, não era legítimo à Relação modificar o que fora considerado provado pelo tribunal de 1ª instância.

Trata-se de pretensão que não pode ser acolhida, na medida em que coloca a este Supremo Tribunal de Justiça um desafio no campo da enunciação dos factos provados e não provados que não encontra sustentação nas regras que delimitam a sua esfera de competência em sede de matéria de facto e que conta basicamente com o que se dispõe nos arts. 674º, nº 3, e 682º, nº 2, do CPC.

Tendo as instância e designadamente a Relação formado a sua livre convicção relativamente a tal facto a partir de prova documental sem força probatória plena, revela-se definitiva a decisão, nos termos do art. 662º, nº 4, do CPC, resultado que é insusceptível de ser modificado por este Supremo Tribunal que apenas interviria se acaso houvesse violação expressa de lei que exigisse uma certa espécie de prova ou que fixasse a força de determinado meio de prova, o que não ocorre no caso em que a Relação se limitou a apreciar o valor probatório de documentos que não traduzem a prova plena de qualquer facto.


2. Considera a R. Interveniente que, para além de não existir fundamento para o encerramento da oficina que os AA. pretendiam, também não existe para a sua condenação na prestação de facto negativo que foi fixada pela Relação, uma vez que tudo fez para minimizar os prejuízos que a instalação da sua oficina com pintura de automóveis é susceptível de determinar para terceiros.

Assenta a sua oposição na inaplicabilidade ao caso do art. 1346º do CC, dado que a referida oficina se encontra licenciada e está dotada de chaminés que cumprem os requisitos regulamentares. E considera ainda que nenhuma pretensão deve ser admitida ao abrigo da violação de direitos de personalidade, na vertente do direito à saúde e ao bem-estar, considerando a situação reflectida pela matéria de facto apurada.


2.1. Pretensões como a dos AA. que assentam em conflitos de vizinhança emergentes de actividades industriais ou de qualquer outra natureza podem encontrar tutela jurisdicional cumulativa ou alternativa em dois segmentos normativos diversos:

- No art. 1346º do CC que atenta fundamentalmente nos reflexos de ordem negativa que para o direito de propriedade incidente sobre um determinado prédio emergem do uso que seja dado a outro imóvel vizinho:

- Em preceitos, como o do art. 70º do CC, que tutelam direitos de personalidade dos indivíduos ou outros direitos de natureza pessoal ou mesmo interesses difusos conexos com a saúde, o bem-estar ou a qualidade de vida.

São múltiplas as situações de conflito que podem ocorrer. A vida em meios urbanos, especialmente em zonas em que se interpenetra o uso habitacional com o uso comercial ou industrial de edifícios, implica uma natural interferência destas actividades no gozo dos direitos reais ou relativamente a direitos de natureza pessoal ligados à qualidade de vida dos indivíduos ou aos direitos de personalidade.

Tratando-se de interesses conflituantes, o ordenamento jurídico determina que sejam ponderados, de um lado, os direitos de natureza pessoal invocados por indivíduos e, do outro, interesses conexos com o exercício de actividade de natureza comercial ou industrial, procurando-se a concordância prática dos interesses conflituantes.

Seguro é que em situações de colisão de direitos desiguais ou de espécie diferente prevalece o que deva considerar-se superior (art. 335º do CC).


2.3. A apreciação do presente litígio não dispensa duas operações preliminares: por um lado, o confronto entre a matéria de facto que foi alegada pelos AA. e a que foi provada, uma vez que foi naquela que os AA. sustentaram as suas pretensões; por outro lado, a apreciação objectiva da matéria de facto considerada provada, uma vez que é a partir desta que deve verificar-se se existe ou não alguma violação de direito subjectivo dos AA. e aferir qual a resposta do ordenamento jurídico.

Está provado que:

“Desde que o R. começou a trabalhar com a secção de pintura, a casa dos AA. (prédio descrito 1.) começou a ser invadida por gases e cheiros a tinta e diluente provenientes das referidas chaminés”

e que:

“Os cheiros e os gases poluentes, atenta a altura a que se encontram as fontes emissoras (as chaminés), disseminam-se rapidamente pelas redondezas e invadem o interior das habitações vizinhas” (pontos 4º e 5º).

Perguntava-se nos pontos 6º e 7º se:

“As substâncias gasosas provenientes da pintura de veículos são tóxicas” e

Se era “por isso que os AA. têm permanentemente as janelas fechadas do prédio descrito em 1. para evitar a entrada do cheiro a tinta”.

Em resposta provou-se que:

“As substâncias utilizadas na oficina em causa, mais concretamente na pintura de veículos, contêm COV (composto orgânico volátil), sendo que composto orgânico corresponde a qualquer composto que contenha pelo menos o elemento carbono e um ou mais dos seguintes elementos, hidrogénio, halogéneos, oxigénio, enxofre, fósforo, silício ou azoto, à excepção dos óxidos de carbono e dos carbonatos e bicarbonatos inorgânicos, e que COV corresponde a composto orgânico com uma pressão de vapor igual ou superior a 0,01 KPaa293,15 K” (6º)

e que:

“Em razão do referido nas respostas aos pontos 4º a 6º, os AA. têm a preocupação de manter as janelas fechadas do prédio, mormente quando se apercebem de que na dita oficina estão a ser executados serviços de pintura” (7º).

Por seu lado, não se provou o ponto 8º no qual se perguntava se:

O anteriormente referido “impedia os AA. de desfrutar do exterior/pátio da sua habitação”.

No ponto 9º perguntava-se se:

“Os AA. estão expostos diariamente a esta fonte de poluição, com consequências ao nível da saúde e qualidade de vida”,

mas a resposta foi a de que:

“Estava provado apenas o referido nas respostas aos pontos 5º a 7º”.

Provou-se que:

O “A. CC (filho) sofre de rinite alérgica, encontrando-se a ser seguido em consulta de alergologia, no âmbito da qual lhe foi determinada a realização de tratamento de dessensibilização/vacinação” (ponto 10º).

A respeito do referido quadro de alergia de um dos AA. perguntava-se nos pontos 11º e 12º se:

“O seu quadro cínico agravar-se-á se continuar a ser submetido a um ambiente de poluição com gases de natureza tóxica como são os gases expelidos pelas chaminés da oficina de pintura de veículos”, “o que é fonte de preocupação dos AA”.

A resposta a tais factos controvertidos foi simplesmente a de que:

“Os AA. AA e BB receiam que o quadro clínico referido na resposta ao ponto 10º se agrave se o seu filho, co-A. CC continuar exposto aos gases expelidos pelas chaminés da oficina de pintura de veículos em causa”.

A um outro nível, perguntava-se no ponto 13º se:

“A manutenção da situação descrita nos pontos 4º a 12º tem esgotado os AA., especialmente a A. mulher que no desenvolvimento do seu trabalho passa muitas horas dentro da sua habitação”

e a resposta foi a de que:

“A manutenção da situação descrita nas respostas aos pontos 5º a 7º é geradora de forte preocupação para os AA., especialmente para a A. BB que desenvolve parte da sua actividade profissional no interior da sua habitação”.

Por fim, está provado que:

(Em consequência do funcionamento da oficina de pintura) “por vezes os AA. secam a roupa na cozinha, onde colocam um estendal móvel” (16º) e que “chegaram a colocar à venda a sua habitação” (19º).

Mas já não se provou o que constava no ponto 14º, ou seja, que:

“Por isso os AA. consideram a possibilidade de se mudarem para um hotel enquanto a situação relatada nos pontos 4º a 9º não estiver resolvida”.

Não se provaram alguns factos alegados pela Interveniente, em concreto, que:

“Na pintura de veículos automóveis são utilizadas tintas de água, as quais não produzem quaisquer cheiros” (ponto 27º)

e que:

“quando é ligada a estufa emite fumo, mas menor do que o que resulta de qualquer chaminé doméstica, mas que cessa logo depois” (ponto 28º).

E perguntando-se se:

“As chaminés estão equipadas com filtros recomendados para o efeito”,

foi dada a resposta de que:

“O sistema de extração e respetivas condutas que vão dar às chaminés estão equipados com filtros habitualmente usados para o efeito” (ponto 29º).

Quid juris?


2.4. Os AA. formularam o pedido de cessação imediata da actividade de chapeiro e pintura de automóveis que desenvolve nas suas instalações, retirando as chaminés aí colocadas, de onde, de forma contínua, sistemática e repetida seriam expelidos gases, vapores e cheiros para a atmosfera, com isso lesando a saúde dos AA. e dos seus filhos, violando os seus direitos de personalidade, designadamente o direito à saúde, à qualidade de vida e a um ambiente ecologicamente equilibrado. Mais pediram a condenação do R. a abster-se da prática de qualquer acto ou actividade nessas instalações que, pela poluição provocada, ponha em causa o direito à saúde e o direito à qualidade de vida dos AA. e dos seus filhos.

A 1ª instância que julgou a ação totalmente improcedente.

Em recurso de apelação, a Relação alterou o resultado, mas moderou os efeitos pretendidos pelos AA., limitando-se a condenar a R. Interveniente a abster-se da prática de qualquer ato ou atividade nessas instalações que, pela poluição provocada, ponha em causa o direito à saúde e o direito à qualidade de vida dos AA. e dos seus filhos.

Uma tal condenação encontra sustentação tanto na norma do art. 1346º do CC que se destina a tutelar o direito de propriedade na vertente do uso que pode ser dado a um imóvel e que seja substancialmente condicionado por actividades exercidas noutro imóvel, como nas normas, como a do art. 70º do CC, que tutelam direitos de natureza pessoal ligados à saúde, à qualidade de vida em espaço habitacional e ao ambiente despoluído.


2.5. No caso concreto, as queixas dos AA. iniciaram-se quando, em 2009, entrou em funcionamento uma estufa de pintura instalada numa oficina de reparação automóvel. A referida oficina de reparação automóvel já existia anteriormente, tendo sido renovada em 2006, mas os efeitos nocivos na esfera jurídica dos AA. apenas foram percepcionados a partir de 2009 quando foi instalada na oficina uma estufa para pintura de automóveis.

Tal atividade foi iniciada sem que tivesse havido prévio licenciamento, e foram as insistentes participações que os AA., a partir de 2009, dirigiram a diversas entidades (Câmara Municipal, ASAE e CCDR-N) que levaram a que os RR. introduzissem algumas modificações, as quais se traduziram designadamente no alteamento das 3 chaminés de extração de fumos e cheiros, designadamente os derivados da secção de pintura.

Pelos dados fornecidos, verifica-se que as entidades competentes consideraram regularizada a situação em termos de direito administrativo, tanto assim que foi concedido o licenciamento para o funcionamento da oficina, incluindo a estufa de pintura.

Se é verdade que, após múltiplas queixas dos AA. perante diversas entidades, a R. introduziu alterações nas chaminés, procedendo ao seu alteamento, tal não se mostrou suficiente para debelar o problema que afecta os AA., cuja residência dista 22,5 metros das chaminés, as quais, além disso, se situam num plano inferior, em consequência da opção do R. de proceder ao desaterro na ocasião em que implantou no terreno a nova oficina de reparação automóvel, a que a seguir acoplou uma secção de pintura.

Não interessa para o caso o número de horas em que a estufa de pintura está em funcionamento, sendo certo que os dados apurados revelam que, embora a sua utilização não seja contínua, é regular, daí derivando a libertação de gases e cheiros que, como fatores poluentes, acabam por atingir a casa dos AA. e ser sentidos por estes.

Os motivos que levaram a que, apesar das consequências externas que ainda se verificam, fosse licenciado o funcionamento da oficina não têm que ser sindicados neste processo de natureza civil. Em contrapartida, pode afirmar-se com total segurança que, como é jurisprudência corrente, o facto de uma determinada atividade se encontrar licenciada em termos administrativos e de porventura corresponder aos parâmetros impostos por normas de interesse público não prejudica a aplicabilidade de preceitos que se destinam a tutelar interesses particulares, designadamente aqueles que atinam com direitos de propriedade e de personalidade.

Em termos administrativos, o uso legítimo que possa eventualmente ser dado a imóveis depende do que derivar das normas aplicáveis, designadamente daquelas que regulam a gestão do território ou a elaboração dos planos diretores municipais que, além do mais, definem as áreas afetas ao uso habitacional e as áreas conexas com o exercício de outras atividades, sejam estas de natureza puramente comercial, sejam de cariz industrial e até áreas de utilização mista.

Nesta medida, a altura das chaminés pode efetivamente respeitar os parâmetros legais, se considerarmos, como decorre do art. 31º, nº 2, do DL nº 78/04, de 3-4 (e da Portaria nº 263/95, de 17-3, sobre as chaminés), que “a altura de uma chaminé cujos caudais mássicos de todos os seus poluentes atmosféricos sejam inferiores aos respetivos limiares mássicos mínimos pode ser inferior a 10 m, desde que a sua cota máxima seja superior, em 3 m, à cota máxima do obstáculo próximo mais desfavorável”.

Contudo, ainda que para o funcionamento da oficina ou, mais especificamente, da estufa de pintura, inexista obstáculo algum decorrente de tais instrumentos de gestão territorial ou urbanística ou quaisquer condicionantes de natureza administrativa, a que estão subjacentes, no essencial, interesses de ordem pública, tal não prejudica a aplicação de outros preceitos que visam a tutela específica de direitos ou de interesses particulares.

Pode, aliás, afirmar-se, com toda a legitimidade, que o facto de num imóvel estar licenciada determinada atividade não é absolutamente oponível aos particulares que sejam afetados na sua esfera de interesses, designadamente quando estejam reunidas as condições previstas no art. 1346º do CC ou quando exista violação de direitos de personalidade.

A verdade é que, apesar das modificações operadas pela R. Interveniente (que, no entanto, foram impulsionadas pelas iniciativas dos AA.), ainda não resolveram totalmente o problema que existia e que decorre também do facto estrutural de a nova oficina ter sido implantada em terreno que foi rebaixado. Mesmo depois do alteamento das chaminés, as emissões de fumos e cheiros continuaram a penetrar nas habitações vizinhas, designadamente na casa dos AA. que se encontra a cerca de 22,5 metros de distância.

Tal situação enquadra-se, desde logo, no art. 1346º do CC, norma que visa impedir ou limitar o exercício de determinadas atividades num prédio na medida em que delas resulte um prejuízo substancial para o uso de outro imóvel.


2.6. Para o efeito não podemos deixar de considerar que estamos perante dois imóveis situados na “parte central da cidade de …”, circunstância que, numa situação conflitual, leva necessariamente a que se privilegie o uso normal que é dado por uma família a um prédio habitacional, em detrimento do uso, menos comum, de natureza industrial, a que o outro está afecto e que interfere naquele uso.

Com efeito, não pode ser encarado com normalidade o facto de o uso de edifícios para habitação ser prejudicado por atividades de natureza industrial conexas com a utilização de produtos poluentes, isto é, de produtos que, pelas suas características, ainda que não tóxicas, ponham em causa o direito à saúde ou o direito à qualidade de vida ambiental das pessoas que habitam edifícios vizinhos.

É verdade que não se provaram todos os factos que os AA. alegaram a respeito da repercussão da atividade da estufa de pintura automóvel no seu prédio habitacional, mas o que se apurou já permite afirmar que o uso normal do prédio habitacional dos AA. se encontra substancialmente afetado pela atividade exercida na oficina em causa.

Da oficina exalam cheiros e gases que invadem a habitação dos AA. e que obrigam a que sejam fechadas as janelas ou implicam com a secagem da roupa, efeitos que se mostram mais salientes em face das circunstâncias subjetivas dos AA., sendo de realçar o facto de a A. exercer a sua actividade profissional nesse local e de um dos seus filhos sofrer de rinite alérgica que torna mais compreensível o nível de preocupação que sentem quando são confrontados quotidianamente com aquelas emissões poluentes.

Ora, não é exigível que os proprietários de um prédio com uso habitacional tenham de suportar, com forte influência no uso normal desse prédio, emissões, como as dos autos, de gases e cheiros a tinta e diluentes ou, com mais expressividade, tenham de conviver com cheiros e gases poluentes provenientes de uma atividade industrial que é exercida num outro prédio e que se introduzem no seu prédio habitacional, obrigando a que tenham de manter fechadas as janelas ou a adoptar outras medidas que visam evitar tais efeitos nocivos.

A prevalência quer do direito de propriedade que seja afetado pelo uso anormal de um outro prédio, quer dos direitos de personalidade dos indivíduos com quem entre em conflito alguma atividade exercida num prédio tem sido a solução projetada por numerosos arestos deste Supremo, constituindo exemplos os seguintes arestos:

- Ac. do STJ de 12-10-00, CJ, t. III, p. 70:

Pode, por isso, a emissão de fumos ou de ruídos não ser classificável como dano ao ambiente, mas sim como violação das relações de vizinhança.

- Ac. do STJ de 21-10-03, CJ, t. III, p. 106 (funcionamento de talho):

A habitação é o espaço, com as condições de higiene e conforto, destinado a preservar a intimidade pessoal e a privacidade familiar, bem como o local privilegiado para o repouso, sossego e tranquilidade necessários à preservação da saúde e, assim, da integridade material e espiritual.

- Nessa perspetiva, todas emissões de prédios vizinhos ao de habitação transcendem as meras relações reais de vizinhança, envolvendo a tutela dos direitos de personalidade.

- No caso de colisão de direitos, o direito ao repouso é superior ao direito de propriedade e ao direito de exercício de atividade comercial.

- Justifica-se, assim, a proibição de emissão de ruídos, cheiros e vibrações provenientes da exploração de um estabelecimento de talho e que prejudicam o uso adequado de um imóvel de habitação.

Ac. do STJ de 26-4-95, CJ, t. I (emissão de cheiros):

Num conflito de valores e interesses entre a laboração de uma instalação fabril e um ambiente de vida humana, sadio e equilibrado, deve dar-se prevalência a este.

Ac. do STJ de 2-6-98, CJ, t. II (exploração de estábulos de animais):

Sendo a casa de residência dos AA. invadida por enxames de insetos proveniente dos estábulos dos RR., onde albergam um número razoável de cabeças de gado, o lesado tem não só o direito ao fim da atividade poluidora, como a uma indemnização pelos danos, no âmbito da responsabilidade extracontratual.


2.7. Não é, porém, este o único motivo pelo qual os AA. podem opor-se à situação existente. A integração na norma do art. 1346º do CC não obsta à aplicabilidade de outros preceitos em que se valorizam direitos de natureza pessoal, como o direito à saúde ou o direito à qualidade de vida ou a um ambiente sadio, como já foi também decidido pelos Acs. deste Supremo de 12-10-00, CJ, t. III, p. 70, e de 21-10-03, CJ, t. III, p. 106. Cf. ainda o Ac. de 7-4-05 (www.dgsi.pt), sobre a implantação de um estábulo de gado caprino numa zona habitacional, amaçando simultaneamente a qualidade de vida dos habitantes e prejudicando substancialmente o uso de residências.

Semelhante solução foi adotada no Ac. do STJ de 29-11-12, 1116/05 (www.dgsi.pt), relatado pelo ora relator, em cujo sumário se sintetizou que:

“O facto de um estabelecimento de diversão noturna (discoteca) se encontrar licenciado não dispensa o cumprimento de deveres relacionados com o ruído que do mesmo irradia para o exterior, com reflexos negativos no direito ao descanso e ao sossego de quem habita nas proximidades”.

Mais recentemente isso mesmo foi reafirmado no Ac. do STJ, de 29-6-17, 117/13 (www.dgsi.pt), nos termos seguintes:

“O facto de um estabelecimento de diversão noturna se encontrar licenciado não dispensa o cumprimento pelos respetivos administradores /gerentes de deveres relacionados com o ruído que do mesmo irradia para o exterior, com reflexos negativos no direito ao descanso e ao sossego de quem habita nas proximidades”.

Também assim no Ac. do STJ, de 1-3-16 (www.dgsi.pt):

“O direito ao repouso, descanso e saúde dos M. (enquanto direito de personalidade), têm um valor superior ao direito de propriedade da ré e ao direito (económico) de exercer e explorar uma atividade e dever, por isso, prevalecer sobres estes últimos. Tal não significa que não se deva procurar uma solução de compromisso e consequentemente, sempre que possível, se deva tentar conciliar esses direitos”.

Ou bem assim no Ac. do STJ de 22-9-05 (www.dgsi.pt), com o seguinte sumário bem elucidativo:

“Face à lei civil, acontecida emissão de cheiros e ruídos, mesmo que o nível sonoro destes seja inferior ao legal (não podendo, por via de tal, ser considerada agressão ambiental) e a atividade daqueles geradora tenha sido autorizada, pela competente autoridade administrativa, ocorre direito de oposição, sempre que tais emissões impliquem ofensa de direitos de personalidade e (ou) violação das relações de vizinhança”.


2.8. No caso concreto foram invocados efeitos nocivos na saúde dos AA. e especialmente num dos filhos. Não se comprovou nem que as emissões sejam tóxicas, nem que o quadro de alergia de um dos filhos seja agravado pela sua sujeição a tais emissões, ainda que possa entender-se, de acordo com as regras da experiência, que, relativamente a uma patologia de natureza alérgica, não seja indiferente um ambiente totalmente isento dessas emissões (gases, fumos e cheiros poluentes) ou um outro, como o que agora existe, em que tais emissões estão presentes.

Seja como for, a tutela que os AA. buscam não se traduz apenas na protecção do seu direito à saúde que adviria do eventual agravamento da rinite alérgica de que sofre um dos filhos, mas também na defesa dos seus direitos de natureza pessoal em que se integra também o direito a um ambiente sadio e que lhes proporcione qualidade de vida, o qual se encontra manifestamente posto em causa quando têm de conviver diariamente com os fumos e cheiros emanados de uma oficina de reparação automóvel.

Nesta medida, deve ser-lhes garantida também por esta via suplementar a possibilidade de viveram num espaço que não sofra tais efeitos que são nocivos para o seu bem-estar, como se prescreve actualmente na Lei de Bases da Política do Ambiente (Lei nº 19/14, de 14-4), diploma que deve ainda ser conjugado quer com a Directiva 2008/50/CE, quer com a Directiva 2204/107/C, quer ainda com o Dec. Lei nº 47/17, de 105, que alterou e republicou o Dec. Lei nº 102/10, de 23-9, sobre a qualidade do ar para efeitos de protecção da saúde e do ambiente, em cujo art. 2º se define “poluente” como sendo “qualquer substância presente no ar ambiente que possa ter efeitos nocivos na saúde humana ou no ambiente”.


2.9. Independentemente do uso maior ou menor que seja dada a tal estufa e que os AA. não controlam nem podem controlar, importa que sejam impostas obrigações e restrições à Interveniente que permitam defender os AA. das emissões que advêm dessa estufa de pintura, atentos os materiais utilizados, como as tintas e os diluentes.

Da matéria de facto não é possível concluir que a única fonte de poluição ambiental seja constituída pela estufa de pintura, ainda que naturalmente, tendo em conta a natureza das emissões, seja essa a fonte principal.

A Relação, perante a matéria de facto apurada, condenou a R. a “abster-se da prática de qualquer acto ou atividade nessas instalações que, pela poluição provocada, ponha em causa o direito à saúde e o direito à qualidade de vida dos AA. e dos seus filhos”. Anteriormente, na motivação deste segmento decisório, acrescentou que para o efeito a Interveniente deveria agir “utilizando filtros, estufas ou mesmo alteando as chaminés, em suma, encontrar soluções para a fuga de gases e cheiros tóxicos, como restrição ao seu direito de propriedade” (fls. 1371).

As queixas dos AA. já deram origem a que fossem introduzidas alterações que se traduziram no alteamento das chaminés, as quais, contudo, se revelaram insuficientes para debelar a poluição.

Não tendo os AA. domínio sobre a actividade que é exercida na oficina nem sobre as modificações que devem ser introduzidas para que cesse a fonte poluidora, é à R. Interveniente que cumpre proceder aos ajustamentos adequados ao nível da extracção de fumos e de cheiros ou, se necessário, cessar até essa atividade de pintura automóvel, de forma a que deixe de perturbar o uso normal do prédio dos AA. e deixe de interferir na respetiva qualidade de vida.

A Relação apontou para a utilização de filtros, estufas ou mesmo alteamento das chaminés ou quaisquer outras soluções para a fuga de gases e cheiros tóxicos, como restrição ao seu direito de propriedade.

Não cumpre a este Supremo, até porque não detém competências nessa matéria, descrever o tipo de intervenção que deve existir. É sobre a Interveniente que recai a obrigação de ajustar o exercício da sua atividade ao objetivo que foi fixado pela Relação e que se mantém, na certeza, porém, de que não será legítima a emissão de cheiros e de gases que sejam sentidos na casa dos AA. designadamente quando esta tem as janelas abertas e que provenham das instalações da Interveniente.


2.10. Quanto à condenação em indemnização igualmente se verifica a falta de fundamento para a impugnação feita pela R. Interveniente.

Na verdade, verificam-se a esse respeito todos os pressupostos da responsabilidade civil, não constituindo justificação para a negação de indemnização o facto de a R. Interveniente ter introduzido alterações nas chaminés, as quais, contudo, não resolveram o problema de raiz ligado às emissões de elementos poluentes e que perturbam o uso da habitação e a vida dos AA.

Para além de a atuação da R. ter sido posterior às participações que os AA. fizeram a diversas entidades, tendo em conta a falta de licenciamento da secção de pintura, e embora tenham sido alteadas as chaminés de extração de fumos, gases e cheiros, o certo é que se mantém uma atividade que é causadora de danos na esfera jurídica dos AA. e relativamente aos quais não foram ainda praticados todos os atos destinados a evitá-los.


2.11. Quanto à indemnização referente a despesas extrajudiciais que a Relação acabou por reconhecer no acórdão complementar, provou-se que com as diligências extrajudiciais que realizaram os AA. (marido e mulher) realizaram despesas com honorários do advogado que os AA, mandataram para realizar diligências junto de diversas entidades.

Existe um nexo de causalidade adequada entre essas despesas e a conduta da R., na medida em que todas foram provocadas, primeiro, pela falta de licenciamento e, depois, pela ineficiência do sistema de extracção de fumos e de cheiros.

Acresce, pois à indemnização que foi fixada pela Relação a condenação ainda no pagamento da quantia de € 4.640,01


IV – Face ao exposto, acorda-se em:

a) Julgar improcedente a revista deduzida pela R. Interveniente, confirmando o acórdão recorrido não apenas na parte em que dele resulta para a mesma a obrigação de se abster da prática de atos ou atividades nas suas instalações de oficina de que resulte a emissão de cheiros e gases poluentes que penetrem na casa dos AA. e que afetam a sua qualidade de vida ambiental, como ainda na parte em que foi condenada no pagamento da indemnização de € 5.000,00 por danos morais e no pagamento da quantia de € 4640,01 por despesas extrajudiciais realizadas.

Custa da revista a cargo da R. Interveniente.

os RR.

Notifique.

Lisboa, 5-4-18


Abrantes Geraldes (Relator)

Tomé Gomes

Maria da Graça Trigo.