Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4527/14.9T8FNC.L1.S1
Nº Convencional: 6ª. SECÇÃO
Relator: ANA PAULA BOULAROT
Descritores: TRESPASSE
ERRO VICIO
ERRO SOBRE OS MOTIVOS DO NEGÓCIO
ANULABILIDADE
Data do Acordão: 01/17/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / VÍCIOS DA VONTADE - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / CONTRATOS EM ESPECIAL / ARRENDAMENTO URBANO PARA FINS NÃO HABITACIONAIS / TRESPASSE DE ESTABELECIMENTO COMERCIAL.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / ALTERAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO / ÓNUS DO RECORRENTE / RECURSO DE REVISTA / FUNDAMENTOS DA REVISTA.
Doutrina:
- Heinrich Ewald Hörster, A Parte Geral Do Código Civil Português, Teoria Geral do Direito Civil, 1992, 417/422.
- Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II Volume, 122.
- Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª edição, 416.
- Pedro Pais Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 7.ª edição, 567.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 247.º, 251.º, 405.º, N.º1, 1109.º, N.º1, 1112.º, N.º1, ALÍNEA A).
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 5.º, N.º3, 640.º, 662.º, 674.º, N.º1, ALS. A), B) E C).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 16 DE ABRIL DE 2002, 15 DE MAIO DE 2012 E 18 DE JUNHO DE 2013, IN WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I. A declaração de vontade negocial traduz um comportamento que, exteriormente observado, cria a aparência externa de um certo conteúdo da vontade negocial, caracterizando depois essa vontade como a intenção de realizar determinados efeitos práticos, com o objectivo de que os mesmos sejam juridicamente tutelados e vinculantes.

II. A declaração negocial tem, assim, como função primordial, a de exteriorizar a vontade psicológica do declarante, visando, dessa forma e sob a égide do princípio da autonomia privada, realizar a vontade particular através da produção intencional de um efeito e/ou de uma regulamentação jurídico-privada.

III. Contudo, o negócio jurídico só poderá operar de pleno, enquanto manifestação de duas (ou mais) vontades livres e esclarecidas, se as mesmas tiverem sido obtidas dessa forma, sem quaisquer deformações provindas de influências externas. Se a formação da vontade foi abalada por algum vício que a toldou, é óbvio que a expressão da mesma ficou viciada.

IV. Ocorrendo um vício, está em causa o lado interno da declaração, o qual conduziu a uma deformação da vontade durante o seu processo formativo: a vontade viciada diverge da vontade que o declarante teria tido sem a deformação.

V. Entramos assim no âmbito do erro-vício: não existe aqui qualquer divergência entre a vontade e a declaração, pois a declaração está em perfeita sintonia com a vontade, mas é esta que está viciada, porque foi mal esclarecida.

VI. O negócio será então anulável, desde que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre o qual incidiu o erro.

APB

Decisão Texto Integral:

ACORDAM, NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I J, intentou contra N, LDA, ação declarativa pedindo a anulação do contrato de trespasse comercial entre ambos celebrado a 26 de Setembro de 2014, alegando para o efeito que o mesmo foi subscrito com erro essencial ou dolo.

A Ré contestou e reconveio, pedindo a improcedência da acção e a condenação do Autor a pagar-lhe a quantia de € 17.000,00 (dezassete mil euros), acrescida dos juros vencidos e vincendos desde 31 de Janeiro de 2015, e sanção pecuniária compulsória prevista no nº 4 do artigo 829º- A do CCivil e ainda a condenação daquele como litigante de má fé.

A final foi produzida sentença onde foi julgada a ação totalmente improcedente e procedente o pedido reconvencional tendo-se condenando o Autor/reconvindo a pagar à Ré/reconvinte a quantia de € 17.000,00 (dezassete mil euros) acrescida dos juros à taxa de 5% ao ano desde a data do trânsito em julgado da sentença, bem como ainda, acrescida (aquela quantia) dos juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal civil sucessivamente vigente desde 1 de Fevereiro de 2015 até integral e efetivo pagamento, tendo-se absolvido o mesmo do pedido de condenação como litigante de má-fé.

Inconformado com o assim decidido, o Autor interpôs recurso de Apelação, o qual veio a ser julgado procedente, tendo sido declarada a anulação do contrato celebrado entre as partes em 26 de setembro de 2014 e, em consequência, determinou-se a entrega à Ré/Apelada, do estabelecimento comercial dele objecto, situado no rés-do-chão do prédio urbano, sito na Rua …, ao abrigo do contrato de arrendamento celebrado a 7 de Abril de 2006, com a condenação da Ré/Apelada a entregar ao A./Apelante a quantia de € 3.000,00 que lhe tinha sido entregue por este último na data da assinatura do contrato acima mencionado, tendo sido julgado improcedente o pedido reconvencional deduzido pela Ré/Apelada, absolvendo-se do mesmo o Autor/Apelante.

Irresignada, vem agora a Ré interpor recurso de Revista, apresentando as seguintes conclusões:

- O acórdão de que se recorre considera como provados factos que não foram dados como tal em sede de audiência de julgamento da 1ª Instância, ignorando outros ou não os valorizando devidamente.

 - No contrato celebrado em 26 de Setembro de 2014 as partes declaram expressamente que "O estabelecimento é entregue com todos os bens existentes no seu interior, bens esses próprios da actividade de restauração exercida pela primeira outorgante, conforme lista anexa ao presente contrato que será por todos rubricada e fará parte do presente contrato." ponto 3 da Cláusula Segunda.

 - E ainda na Cláusula Terceira "O segundo outorgante aceita o presente acordo, declarando ter conhecimento das condições em que se encontra o estabelecimento e os bens constantes da lista anexa."

 - A assinatura do contrato foi antecedida dias antes de três visitas realizadas pelo A. e pela filha, pelo que o Autor estava consciente do estado em que se encontrava o estabelecimento.

- A ora apelante nunca garantiu que o estabelecimento poderia ser aberto e funcionar de imediato, nem que os equipamentos existentes no estabelecimento estavam todos eles em óptimo estado e a funcionar plenamente.

- Nem nunca omitiu o estado dos mesmos, muito pelo contrário, solicitou que fosse a própria filha do Autor a deslocar-se ao estabelecimento e a fazer ela própria o inventário dos equipamentos, tomando assim conhecimento direito de que equipamentos existiam no local e em que estado estavam.

 - Ao contrário do que entendeu o tribunal no recurso de apelação, não ouve qualquer comportamento omissivo por parte da Ré. Mesmo antes da assinatura do contrato, o Autor

e filha dirigiram-se ao estabelecimento objecto do contrato mais do que uma vez, tendo visto tudo quanto quiseram ver, nada sendo escondido.

- Tanto o autor como a sua filha, intermediária no processo negocial e pessoa que iria assumir a exploração, viram e verificaram o estado do estabelecimento e recheio, pelo menos três vezes, tendo a própria elaborada uma lista com os bens que existiam no mesmo e chamou os técnicos da empresa "A" para verificarem o estado das instalações, tudo antes da assinatura do contrato.

- Pelo que todos tinham conhecimento das exactas condições do local.

- Por via da assinatura daquele contrato o Autor declarou ter conhecimento das condições em que se encontrava o estabelecimento e os bens constantes da lista anexa ao contrato, conforme cláusula terceira do contrato junto aos autos.

- O Autor nunca demonstrou, quer tácita, quer expressamente, que se o locado não se encontrasse de um determinado modo não celebraria o negócio.

- O tribunal da Relação, ao contrário do decidido em primeira instância, e até em contramão de toda a prova produzida e com a sua própria posição quanto aos factos dados como provados e não provados, veio a considerar, que era exigível à Ré/Apelada, que mostrasse e informasse concretamente o Autor do real estado do estabelecimento objecto do contrato de trespasse.

 - Quando ficou provado em 1ª instância que a Ré mostrou e informou o Autor do estado do estabelecimento, tendo até reduzido o preço do negócio pelo facto do estabelecimento ter estado fechado cerca de um ano e precisar de adaptações ou

reparações, de € 30.000,00, para € 20.000,00.

- Esta redução do preço do negócio é um dos factos dados como provados e que foi, erroneamente desconsiderado no acórdão da relação.

- Além deste, outros factos importantes como a elaboração do inventário, o conteúdo exacto do relatório técnico junto pelo autor, os depoimentos das partes e das testemunhas e tentativa de renegociação do preço também não foram correctamente analisados.

- Estes são factos importantíssimos para averiguar da existência ou não de erro essencial na elaboração do contrato.

- Ao contrário do entendimento expresso no acórdão, que conclui não se sabe de onde ou com que factos para tal, que a Apelante renegociou o preço e não anulou logo o negócio, porque não queria ir logo litigar para Tribunal (?!), a renegociação do preço, feita após a outorga do contrato, é um facto demostrativo de que o autor queria manter o negócio válido. Caso assim não fosse, quando foi feita ligação eléctrica o autor em vez de proceder a limpeza do espaço e a reciclagem e alguns bens teria desde logo pedido a anulação do contrato, o que não o fez.

- O que só demonstra que o autor não estava em erro sobre o objecto do negócio pois sabia antemão em que estado estava o estabelecimento e os bens.

- Também não resultou provado nos autos que o Autor tinha comunicado à Ré que pretendia abrir de imediato o estabelecimento e que se aquele não estivesse em condições

de o fazer seria motivo para não lhe interessar o negócio em causa.

- Por tudo o acima exposto não se verifica qualquer comportamento doloso da Ré, ou sequer negligente, activo ou omissivo, susceptível de tornar anulável o negócio.

- A ora recorrente nunca induziu o autor em erro, através de conduta artificiosa ou outra que seja.

- Ao abrigo do que dispõe os artigos 247°, 248°, 251°, o erro invocado não procede sendo o negócio celebrado entre as partes válido e eficaz, nos termos dos artigos 405° e 406° do Código Civil.

- Em suma, não havendo qualquer alteração entre as razões que determinaram a sua vontade de contratar - a possibilidade de explorar um estabelecimento comercial - e

aquelas que veio depois a constatar existir, que são precisamente as mesmas, improcede a anulabilidade do contrato por erro sobre o objecto ou sobre os motivos determinantes.

- O Autor conhecia e visitou o espaço, a ora recorrente informando-o que aquele estava fechado há algum tempo, procedeu a redução do preço inicial, precisamente pelo facto do espaço estar fechado e eventualmente precisar de adaptações.

- Não há fundamento para a pretendida anulação do contrato, por alegada violação pela Ré das regras da boa-fé nos preliminares e na formação do contrato, traduzida na pretensa omissão intencional da informação sobre a situação actual do estabelecimento.

- Por tudo isto e em face da factualidade provada, andou mal o tribunal a quo quando considerou que houve erro e que este era essencial, nos termos dos artigos 247° e 289° do código civil.

- Assim, deve a douta decisão recorrida ser revogada e ser o autor condenado a pagar a Ré a quantia de €17.000,00 acrescida dos juros à taxa de 5% ao ano a contar desde a data do trânsito em julgado da sentença, conforme decidido em Ia instância.

- Tendo decidido de forma diversa do decidido em Ia instância o Tribunal a quo violou, entre outros, os arts. 247°, 248°, 251°, 252.°, 405.° e 406.°do Código Civil.

Nas contra alegações o Autor pugnou pela improcedência do recurso.

II Põe-se como único problema a resolver no âmbito do presente recurso o de saber se houve ou não erro vício susceptível de viciar o contrato de trespasse havido entre a Ré/Recorrente e o Auitor/Recorrido.

 As instâncias deram como assente a seguinte materialidade factual:

1. No dia 26 de Setembro de 2014, entre Autor e Ré, foi outorgado um documento particular denominado por “Contrato”.

2. No âmbito do referido escrito, na cláusula primeira, a Ré declarou ser legítima possuidora e detentora do direito de explorar um estabelecimento, localizado no rés-do-chão do prédio urbano, sito na Rua …, ao abrigo do contrato de arrendamento celebrado a 7/04/2006.

3. No âmbito do referido escrito – cfr. cláusula quarta - foi acordado a cedência do local e dos objetos identificados no mesmo, pelo valor de € 20.000,00 (vinte mil euros), após redução do preço inicial fixado em € 30.000,00 (trinta mil euros), sendo 3.000,00 € (três mil euros) pagos pelo Autor na data da assinatura do contrato e os restantes 17.000,00 € (dezassete mil euros) a serem pagos pelo Autor à Ré até 31/01/2015.

4. Z, filha do A., após contato telefónico combinou com os sócios gerentes da Ré no sentido de ser agendada uma visita ao estabelecimento referido em 2) com seu pai ora Autor.

5. No dia 21 de Setembro de 2014, o Autor e a sua filha deslocaram-se ao estabelecimento referido em 2) para ver as condições do mesmo, o qual se encontrava encerrado e sem eletricidade.

6. Pelos sócios gerentes da Ré foi dito que não tinham eletricidade pelo facto de não estarem a laborar, estando o estabelecimento fechado há cerca de um ano, e esta ser uma forma de poupar nas despesas, o que não impediu a vistoria ao local pelos quatro intervenientes.

7. A parte frontal do estabelecimento comercial é em vidros, e tinha boa visibilidade através da luz natural, e encontrava-se em condições razoáveis.

8. A parte de trás do estabelecimento comercial, composta por três casas de banho, uma cozinha, arrecadação e cave/escritório, não tem janelas, sendo que não existia luz elétrica aquando da visita ao local, pelo que a visita a essa parte do estabelecimento foi feita à luz de velas e com o auxílio de uma lanterna.

9. Simultaneamente com a outorga do escrito referido em 1), o Autor também outorgou um escrito denominado “contrato promessa de arrendamento” com os senhorios do imóvel referido em 2), e com base nesses documentos dirigiu-se à EEM para efeitos de restabelecer a ligação elétrica para o Estabelecimento em causa, tendo celebrado contrato de fornecimento de energia elétrica.

10. No dia 29 de Setembro de 2014 a ligação elétrica foi ativada.

11. O A. outorgou o escrito referido em 1) para que a sua filha, Z, tivesse um trabalho, a qual se encontrava desempregada, e deste modo ficasse a gerir o estabelecimento.

12. Pelo que, aquando da ligação elétrica a filha do Autor, Z, acendeu as luzes de todo o estabelecimento e aí é que começou a constatar o estado físico e material do mesmo.

13. Atento ao facto do estabelecimento não se encontrar limpo, a filha do Autor contratou uma empresa de limpeza para se deslocar ao estabelecimento para efeitos de proceder à higienização do estabelecimento a qual não foi possível realizar por falta de energia elétrica.

14. Foi também aí que tomou conhecimento do estado real dos eletrodomésticos que se encontravam em mau estado de conservação, nomeadamente, os quatro frigoríficos existentes no estabelecimento, estavam com ferrugem e sem funcionar, em que os motores estavam avariados.

15. Esses frigoríficos foram entregues na empresa B, Lda. por se encontrarem em estado de sucata.

16. O fogão, o exaustor e o esquentador encontravam-se cheios de gordura, sendo que as bocas do fogão nem acendiam, e o exaustor bem como o esquentador não ligavam devido ao excesso de gordura.

17. Aquando da verificação do andar inferior, constatou que a fossa do estabelecimento que fica na arrecadação/armazenamento de stock, encontrava-se em mau estado de conservação, as placas de proteção estavam danificadas, sendo que os frigoríficos, câmaras de refrigeração ou congelação e arcas, o fogão e grill e ainda o exaustor apresentavam desconformidades.

18. No local onde se encontra instalada a fossa, a mesma tinha por cima placares de gelados, baldes do lixo e grades de cerveja, não sendo assim visível o estado da mesma.

19. Sendo que só ao retirar os placares de gelados, baldes do lixo e as grades de cerveja, é que o Autor, por intermédio da sua filha, tomou conhecimento do estado da fossa a qual se encontrava desativada.

20. Igualmente em mau estado de conservação se encontravam as paredes em que ao desmontar as prateleiras da arrecadação/escritório, para proceder à limpeza e arrumação do espaço, os azulejos da parede começaram todos a cair, a descolarem-se da parede.

21. No dia 7 de novembro de 2014 o A. outorgou com o proprietário do imóvel referido em 1) escrito particular denominado “Acordo de Revogação do contrato promessa de arrendamento outorgado em 26 de Setembro de 2014” referente ao mesmo imóvel.

22. Após a outorga do escrito referido em 1) e antes da data referida em 21) o A. procurou renegociar os termos do mesmo, designadamente, quanto ao preço referido na cláusula quarta.

23. O imóvel referido em 2) possui saneamento básico.

24. Se o Autor estivesse esclarecido acerca do estado de conservação do estabelecimento e caso se tivesse exato conhecimento da realidade, nomeadamente dos equipamentos não estarem a funcionar e em muito mau estado de conservação, dos azulejos das paredes estarem a cair, e em especial do mau estado da fossa do estabelecimento, em que as placas de proteção estavam danificadas, jamais teria realizado o negócio referido em 1) a 3) ou pelo menos não o teria realizado nos termos em que o celebrou.

25. A R. é uma sociedade comercial, que se dedica à exploração de restaurantes, estabelecimentos de bebidas e similares de hotelaria e ao comércio de tabaco.

26. O A. não efetuou o pagamento da quantia de € 17.000,00 (dezassete mil euros) referente a parte do preço referido no escrito particular descrito em 1) a 3).

27. Factos não provados

a) Que o facto descrito em 11) resultasse da avançada idade do Autor que é de 80 anos, e aos seus diversos problemas de saúde, nomeadamente, stress pós guerra, diabetes, reumatismo e coração.

b) Que a Ré tenha dado a garantia de que o objeto do contrato estava pronto a funcionar e apto para desenvolver a atividade de Bar/Restaurante.

c) Que a Ré, tendo conhecimento do mau estado de conservação do estabelecimento comercial nunca alertou o Autor para a referida situação, pelo contrário, declarou que o local estava em boas condições e apto a funcionar, aproveitando ainda o facto de aquando da visita ao local o mesmo se encontrar sem eletricidade, ocultando os defeitos mais graves do estabelecimento.

Vejamos então.

1.Da imputação feita ao Acórdão recorrido de ter considerado como provados factos que não foram dados como tal em sede de audiência de julgamento da 1ª Instância, ignorando outros ou não os valorizando devidamente.

Alega a Recorrente em abono da sua tese, que o segundo grau teve em atenção, no Aresto produzido, determinada materialidade que não foi dada como provada em primeira instância, sem qualquer razão, contudo.

Como decorre dos autos, o Autor, aqui Recorrido, interpôs recurso de Apelação da sentença de primeiro grau, tendo ensaiado no mesmo uma impugnação da matéria de facto.

Tal ensaio, mereceu no Acórdão agora objecto de impugnação, a seguinte reflexão «sic»:

«(…) Ora, o questionar da matéria de facto dada como provada e não provada inscreve-se como uma prorrogativa de que as partes gozam, nos termos do artigo 662.º do Código de Processo Civil Revisto, devendo a sua impugnação obedecer ao cumprimento de determinadas regras processuais.

Como é pacífico, nestas situações estamos perante uma reapreciação da prova que tem por escopo permitir que o Tribunal de recurso emita um juízo crítico sobre a adequação entre a prova realizada em 1.ª Instância e a matéria de facto dada como provada ou não provada, cumprindo à parte reclamante expor a sua discordância por referência aos termos daquela decisão e fundamentação nos temos do disposto nos artigos 640.º e 662.º do Código de Processo Civil Revisto.

Como podemos verificar da leitura de todas as conclusões apresentadas pelo Apelante, não se indica, em quaisquer delas, qualquer matéria de facto a reconsiderar ou os respetivos meios de facto que impusessem, de forma plausível, uma apreciação e conclusão em sentido distinto daquele que foi o decidido pelo Tribunal de 1.ª Instância.

Com o que na verdade nos defrontamos é com depoimentos diferentes entre si e que, tal como é objeto da fundamentação apresentada pelo senhor Juiz de 1.ª Instância, não permitem um entendimento distinto daquele que foi levado a cabo pelo Tribunal segundo as regras do ónus da prova e da experiência comum em face de um qualquer cidadão normal.

Por outro lado, pretender que os fatos que foram objeto de resposta negativa passem a positivos pela interpretação do seu contrário é, salvo o devido respeito, um desvirtuar do estabelecido pelo artigo 5.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil Revisto. Com efeito, o contrário de um facto negativo não é, necessariamente, um facto positivo.

Assim, sendo o pedido de alteração da materialidade constante dos Pontos 22 e parte final do 19 dos Factos Provados assim como os Pontos 2 e 3 dos factos Não Provados devem manter-se inalterados.

Distinta é, porém, a apreciação a ser realizada em face da materialidade dada como provada – e mantida por este Tribunal de recurso – quanto à essencialidade do erro na formação e conclusão do negócio celebrado entre as partes.(…)»

Daqui decorre, com mediana clareza, que o Acórdão em tela não procedeu a qualquer alteração da materialidade apurada e questionada pelo Recorrente porque aquele não havia cumprido os ónus de impugnação decorrentes dos normativos insertos nos artigos 640º e 662º do CPCivil, tendo deixado a mesma inalterada, sem prejuízo de a ter em conta para uma outra subsunção jurídica, que era possível efectuar, no seu entendimento, como deixou logo expresso.

O Tribunal da Relação, por um lado, não alterou os factos dados como provados em sede de audiência de discussão e julgamento em primeira instância.

De outra banda, ao efectuar a sua subsunção jurídica, chamou à colação a materialidade que entendeu ser a pertinente, uma vez que sobre o Tribunal impera a liberdade de julgamento, de harmonia com o disposto no artigo 5º, nº3 do CPCivil.

Questão outra, é a de saber se a aludida subsunção enferma de algum erro de julgamento, aqui entrando as regras atinentes aos fundamentos do recurso de Revista, constantes do nº1, alíneas a), b) e c) do artigo 674º do CPCivil, maxime, a prevenida na alínea a) «A violação de lei substantiva(…)», de que iremos curar infra.

2.Da errada interpretação do iter negocial.

Defende a Ré/Recorrente, na sua tese, o mal fundado do Aresto impugnado, porquanto ao contrário do que aí se explana, todos tinham conhecimento das exactas condições do local e por via da assinatura daquele contrato o Autor declarou delas saber bem como dos bens constantes da lista anexa ao mesmo, conforme a sua cláusula terceira. Por outro lado nunca o Autor demonstrou, quer tácita, quer expressamente, que se o locado não se encontrasse de um determinado modo não celebraria o negócio, sendo que o Tribunal da Relação, ao contrário do decidido em primeira instância, e até em contramão de toda a prova produzida e com a sua própria posição quanto aos factos dados como provados e não provados, veio a considerar, que era exigível à Ré/Apelada, que mostrasse e informasse concretamente o Autor do real estado do estabelecimento objecto do contrato de trespasse.

Analisemos.

Poderá ensaiar-se uma definição de declaração de vontade negocial como aquela que traduz um comportamento que, exteriormente observado, cria a aparência externa de um certo conteúdo da vontade negocial, caracterizando depois essa vontade como a intenção de realizar determinados efeitos práticos, com o objectivo de que os mesmos sejam juridicamente tutelados e vinculantes: o comportamento externo em que se traduz a declaração manifesta, normalmente, uma vontade, formada sem anomalias e coincidente com o sentido exteriormente captado daquele comportamento, cfr Mota Pinto, Teoria Greral do Direito Civil, 3ª edição, 416; Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II Volume, 122; Heinrich Ewald Hörster, A Parte Geral Do Código Civil Português, Teoria Geral do Direito Civil, 1992, 417/422.

A declaração negocial tem, assim, como função primordial, a de exteriorizar a vontade psicológica do declarante, visando, dessa forma e sob a égide do princípio da autonomia privada, realizar a vontade particular através da produção intencional de um efeito e/ou de uma regulamentação jurídico-privada, Heinrich Ewald Hörste, ibidem.

Daqui não decorre que cada um possa regulamentar as suas relações jurídicas como entender, mas significa que dentro dos limites estatuídos pela ordem jurídica, cada um poderá conformar a sua actuação, veja-se o disposto no artigo 405º nº1 do CCivil «Dentro dos limites da lei, as partes têm a faculadade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir as cláusulas que lhes aprouver.», o qual consagra o princípio da liberdade contratual.

Contudo, o negócio jurídico só poderá operar de pleno, enquanto manifestação de duas (ou mais) vontades livres e esclarecidas, se as mesmas tiverem sido obtidas dessa forma, sem quaisquer deformações provindas de influências externas. Se a formação da vontade foi abalada por algum vício que a toldou, é óbvio que a expressão da mesma ficou viciada.

Ocorrendo um vício, está em causa o lado interno da declaração o qual conduziu a uma deformação da vontade durante o seu processo formativo: a vontade viciada diverge da vontade que o declarante teria tido sem a deformação (vontade conjectural ou hipotética), sendo que o vício, nestas circunstâncias, afectou a génese da vontade e repercutiu-se numa declaração negocial coincidente com ela, cfr Heinrich Ewald Hörste, ibidem.

Estamos no âmbito do erro-vício: não existe aqui qualquer divergência entre a vontade e a declaração, pois a declaração está em perfeita sintonia com a vontade, mas é esta que está viciada, porque foi mal esclarecida.

Trata-se de um erro sobre os motivos, ainda que designado por erro-vício: o erro sobre os motivos é, por conseguinte, uma ideia inexacta, uma representação inexacta, sobre a existência, subsistência ou verificação de uma circunstância presente ou actual que era determinante para a declaração negocial, ideia inexacta essa sem a qual a declaração negocial não teria sido emitida ou não teria sido emitida nos precisos moldes em que o foi.

Preceitua o normativo inserto no artigo 251º do CCivil que «O erro que atinge os motivos determinantes da vontade, quando se refira á pessoa do declaratário ou ao objecto do negócio, torna este anulável nos termos do artigo 247º.».

Por seu turno, decorre do artigo 247º daquele mesmo diploma que «Quando em virtude de erro, a vontade declarada não corresponda à vontade real do autor, a declaração negocial é anulável, desde que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro.».

Conforme resulta da factualidade provada, nos pontos 1. a 3., em 26 de Setembro de 2014 entre o Autor e a Ré foi celebrado um acordo, segundo o qual esta se obrigou a transferir para aquele o gozo do estabelecimento, localizado no rés-do-chão do prédio urbano, sito na Rua …, tendo sido acordado ainda a cedência dos objetos nele identificados (recheio), pelo valor de € 20.000,00 (vinte mil euros), sendo 3.000,00 € (três mil euros) pagos pelo Autor na data da assinatura do contrato e os restantes 17.000,00 € (dezassete mil euros) a serem pagos pelo Autor à Ré até 31 de Janeiro de 2015.

Tal acordo, assim gizado e delineado pelas partes, consubstancia um contrato de trespasse, tal como o mesmo nos é definido pelos artigos 1109º, nº1 e 1112º, nº1, alínea a) do CCivil.

Concomitantemente a tal acordo, o Autor outorgou um escrito denominado “contrato promessa de arrendamento” com os senhorios do imóvel.

Provou-se ainda, que no âmbito das negociações preliminares, o Autor e a sua filha deslocaram-se ao estabelecimento para ver as condições do mesmo, o qual se encontrava encerrado e sem eletricidade, sendo que o mesmo se encontrava sem laborar há cerca de um ano, o que não impediu a vistoria ao local pelos quatro intervenientes; a parte frontal do estabelecimento comercial é em vidros, e tinha boa visibilidade através da luz natural, e encontrava-se em condições razoáveis; a parte de trás do estabelecimento comercial, composta por três casas de banho, uma cozinha, arrecadação e cave/escritório, não tem janelas, sendo que não existia luz elétrica aquando da visita ao local, pelo que a visita a essa parte do estabelecimento foi feita à luz de velas e com o auxílio de uma lanterna, pontos 5. a 8. da factualidade apurada.

Podemos retirar destes elementos que o contrato foi assinado depois desta visita efectuada em circunstâncias precárias, com poucas condições de visibilidade, nomeadamente na zona da cozinha e da arrecadação, porquanto não havia luz eléctrica ligada à rede.

O Autor, depois de celebrar a promessa de arrendamento com os senhorios, pode finalmente celebrar o seu contrato de energia eléctrica e aí ter noção da situação em que se encontrava o estabelecimento, maxime:

Foi também aí [depois de ser ligada a energia eléctrica] que tomou conhecimento do estado real dos eletrodomésticos que se encontravam em mau estado de conservação, nomeadamente, os quatro frigoríficos existentes no estabelecimento, estavam com ferrugem e sem funcionar, em que os motores estavam avariados.

Esses frigoríficos foram entregues na empresa B, Lda. por se encontrarem em estado de sucata.

O fogão, o exaustor e o esquentador encontravam-se cheios de gordura, sendo que as bocas do fogão nem acendiam, e o exaustor bem como o esquentador não ligavam devido ao excesso de gordura.

Aquando da verificação do andar inferior, constatou que a fossa do estabelecimento que fica na arrecadação/armazenamento de stock, encontrava-se em mau estado de conservação, as placas de proteção estavam danificadas, sendo que os frigoríficos, câmaras de refrigeração ou congelação e arcas, o fogão e grill e ainda o exaustor apresentavam desconformidades.

No local onde se encontra instalada a fossa, a mesma tinha por cima placares de gelados, baldes do lixo e grades de cerveja, não sendo assim visível o estado da mesma.

Sendo que só ao retirar os placares de gelados, baldes do lixo e as grades de cerveja, é que o Autor, por intermédio da sua filha, tomou conhecimento do estado da fossa a qual se encontrava desativada.

Igualmente em mau estado de conservação se encontravam as paredes em que ao desmontar as prateleiras da arrecadação/escritório, para proceder à limpeza e arrumação do espaço, os azulejos da parede começaram todos a cair, a descolarem-se da parede”, factos 12. a 20..

O que levou à constatação de que, se o Autor estivesse esclarecido acerca do estado de conservação do estabelecimento e caso se tivesse exato conhecimento da realidade, nomeadamente dos equipamentos não estarem a funcionar e em muito mau estado de conservação, dos azulejos das paredes estarem a cair, e em especial do mau estado da fossa do estabelecimento, em que as placas de proteção estavam danificadas, jamais teria realizado o negócio referido em 1) a 3) ou pelo menos não o teria realizado nos termos em que o celebrou, materialidade dada como assente no ponto 24., «(…) algo de exterior ao negócio que constitui o seu ambiente circunstancial envolvente, a realidade em que se insere, o status quo existente ao tempo da sua celebração, cuja existência ou subsistência tenha influência determinante na decisão negocial ou seja necessário para o seu equilíbrio económico e a prossecução do seu fim, isto é, para a sua justiça interna. (…), apud Pedro Pais Vasconcelos , Teoria Geral do Direito Civil, 7ª edição, 567.

A apontada má configuração da realidade sobre o verdadeiro estado do estabelecimento comercial objecto do negócio, constituiu fundamento bastante para a anulação pretendida, já que a mesma era essencial para o declarante e a Recorrente não poderia desconhecer a sua essencialidade: ninguém adquire um trespasse de um estabelecimento comercial de restauração, com os respectivos electrodomésticos sem funcionar, com uma fossa séptica em más condições e em mau estado de conservação, ou pelo menos, nunca seria de adquirir sem negociação do preço proposto, aliás como foi avançado, mas sem qualquer resultado prático, ponto 21. da matéria dada como provada, cfr inter alia os Ac STJ de 16 de Abril de 2002 (Relator Garcia Marques), 15 de Maio de 2012 (Relator António Joaquim Piçarra) e 18 de Junho de 2013 (Relator Moreira Alves), in www.dgsi.pt.

Soçobram, assim, todas as conclusões de recurso.

III Destarte, nega-se a Revista, mantendo-se a decisão ínsita no Aresto impugnado.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 17 de Janeiro de 2017

Ana Paula Boularot - Relator

Pinto de Almeida

Júlio Gomes