Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
01A3852
Nº Convencional: JSTJ00042608
Relator: SILVA SALAZAR
Descritores: CASA DA MORADA DE FAMÍLIA
NECESSIDADE DE CASA PARA HABITAÇÃO
CONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: SJ200112110038526
Data do Acordão: 12/11/2001
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 356/01
Data: 05/21/2001
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR CIV - DIR FAM.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 1793 N1 N2.
CONST76 ARTIGO 65 N1.
Sumário : I. A norma do artº. 1793º do C.Civil - atribuição de casa de morada de família - não viola o artº. 65º da Constituição da República.
II. São critérios essenciais para tal atribuição as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Por apenso à acção de divórcio litigioso que correra entre ambos e que terminara pela dissolução do seu casamento por sentença transitada em julgado, veio A instaurar contra B processo de jurisdição voluntária em que requereu a atribuição da casa de morada de família do seu dissolvido casal, mediante contrato de arrendamento em que ela requerente ocupasse o lugar de arrendatária a troco do pagamento de uma renda de montante não superior a 5.000$00 mensais, para tanto invocando factos que considera fundamentarem tal direito.
Após uma tentativa infrutífera de conciliação, o requerido contestou, impugnando os factos essenciais em que a requerente se baseia e sustentando a improcedência do pedido por ela formulado.
Produzida a prova, foi proferida sentença que julgou procedente a pretensão da requerente, atribuindo-lhe a casa de morada de família do seu dissolvido casal.
Apelou o requerido, tendo a Relação proferido acórdão que, julgando parcialmente procedente a apelação, revogou a sentença apelada apenas na parte em que não fixara uma renda a ser paga pela requerente, como contrapartida da atribuição da casa de morada de família, devendo na 1ª instância ser feita tal fixação após realização das diligências consideradas convenientes.
Deste acórdão interpôs o requerido a presente revista, formulando, em alegações, as seguintes conclusões:
1ª - O acórdão recorrido faz uma errada interpretação da lei, particularmente do artº. 1793º do Cód. Civil e do artº. 65º da C.R.P.;
2ª - Da matéria dada como assente nos autos, os pressupostos a observar na atribuição da casa de morada de família devem considerar apenas e tão só as necessidades do recorrente e da recorrida e a possibilidade de, na casa de morada de família, se constituírem duas unidades habitacionais totalmente autónomas e independentes;
3ª - Na hipótese dos autos não se deve considerar o interesse dos filhos do casal, por serem maiores e economicamente independentes, nem a culpabilidade do recorrente na pronúncia do divórcio;
4ª - Face à situação económica similar dos ex-cônjuges e às correlativas necessidades não deverá ser atribuída em exclusivo a um deles a casa de morada de família;
5ª - Até porque, no que respeita ao recorrente, não dispõe ele de qualquer outra residência alternativa, sendo que a hipótese de arrendamento implicará sempre um encargo adicional economicamente insuportável;
6ª - Por sua vez, a manter-se a decisão impugnada, verificar-se-ia uma ocupação da actual casa de morada de família por parte da recorrida e dos filhos, que, face à actual capacidade, excederia as necessidades dos utilizadores;
7ª - Isto em detrimento da satisfação das efectivas e reais necessidades de habitação do recorrente;
8ª - O que é excessivo, eventualmente abusivo, injusto e nada equitativo;
9ª - Para além do que não se poderá ignorar que a referida casa de habitação resulta essencialmente do trabalho de toda uma vida do recorrente, pelo que seria indigno privá-lo da fruição, pelo menos, de parte da habitação construída com enormes sacrifícios pessoais;
10ª - Não ignorando que aquela privação, perante o estado de saúde precária do recorrente, a sua idade e situação de aposentado, e a inexistência de habitação alternativa, se traduziria numa afronta total ao princípio constitucional que garante a todos os portugueses o direito a uma habitação minimamente condigna, inconstitucionalidade que expressamente se invoca.
Termina pedindo a revogação do acórdão recorrido e que seja determinada a atribuição a ambos os ex-cônjuges da casa de morada de família, atribuindo-se a cada um uma parte da casa que lhes permita viver de forma totalmente autónoma e independente, pondo assim fim à generalidade dos conflitos existentes, ou evitando-os, já que não se verificaria qualquer tipo de convivência entre os dois lados da família.
Em contra alegações, a recorrida pugnou pela confirmação do acórdão impugnado.

Colhidos os vistos legais, cabe decidir, tendo em conta que se mostram assentes os factos seguintes:
1º - Por sentença já transitada em julgado, proferida em 30/10/97, foi decretado o divórcio litigioso entre os ora requerente e requerido, tendo este sido declarado exclusivo culpado do divórcio;
2º - Desde meados de Julho de 1995 que o requerido não mais contribuiu para as despesas da família;
3º - A requerente recebe o valor equivalente a 5.000$00 mensais de rendimento mínimo garantido;
4º - Mesmo após o divórcio, toda a família se mantém a residir na habitação referida nos autos;
5º - Esta é composta de cave, rés-do-chão e 1º andar, sendo a cave utilizada como garagem e tendo o rés-do-chão apenas uma parede divisória, a meio, sendo espaço amplo;
6º - O 1º andar é a residência da família;
7º - O requerido dorme no antigo quarto do casal;
8º - A requerente dorme num colchão, no quarto dos filhos;
9º - A requerente mantém receio do requerido, saindo de casa quando os filhos saem para trabalhar;
10º - O requerido continua a intentar acções de agressão física e verbal em relação à autora, deixando, ainda, as torneiras abertas e luzes acesas, quando sai de casa, em actos geradores de conflitos;
11º - O requerido não dorme todas as noites em casa, fazendo-o de forma alternada;
12º - A requerente, para além dos 5.000$00 de rendimento mínimo, recebe 20.000$00 mensais de alimentos e entre 20 e 35 contos mensais de contribuição para as despesas domésticas, que lhe são entregues pelos filhos;
13º - O requerido continua a não contribuir para as despesas domésticas;
14º - O requerido tem cerca de 100.000$00 mensais de reforma, e executa outros trabalhos, como distribuição de bolos e de mobílias, no que aufere rendimentos não apurados;
15º - Ambos os filhos de requerente e requerido são maiores.

O âmbito do recurso afere-se pelas conclusões das alegações do recorrente (artºs. 660º, nº. 2, 684º, nº. 3, e 690º, nº. 4, do Cód. Proc. Civil). Assim, só das questões postas nessas conclusões há que conhecer.
Antes de mais, a questão da inconstitucionalidade, que o recorrente não diz de que norma ordinária mas que só poderá ser do artº. 1793º do Cód. Civil, - único que aqui se encontra em causa -, por violação do disposto no artº. 65º da C.R.P., cujo nº. 1 dispõe que todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar. Como é manifesto, este dispositivo estabelece o direito a uma habitação, isto é, a que qualquer cidadão a adquira, em propriedade ou não, ou a constitua, mas não a toda e qualquer habitação, caso contrário qualquer pessoa poderia entrar na casa que entendesse para nela habitar, recusando-se depois, invocando o seu direito constitucional a uma habitação, a dela sair por forma a possibilitar o reingresso, nela, do respectivo proprietário ou arrendatário, ou de quem quer que tivesse o direito ao seu uso ou fruição. A ser assim, ninguém construiria fosse o que fosse, pois arriscar-se-ia a trabalhar ou investir para exclusivo proveito alheio, pelo que não estaria disposto a edificar uma casa com vista a nela habitar para depois a ver inesperadamente ocupada por alguém que pura e simplesmente nela entrou e se recusa a sair por dela precisar para sua própria habitação. Isto é tão óbvio, que nem se entende bem a invocação de inconstitucionalidade feita: o que aquele dispositivo constitucional tem em vista é garantir a todos o direito de constituir a sua própria habitação, e não garantir-lhes o direito a habitar em determinada casa, pois, se todos têm direito a habitação nas condições indicadas no preceito, a interpretação do recorrente conduziria a que todos tivessem direito a habitar na mesma casa recusando-se a dela sair com base no seu direito a habitação, o que é manifestamente impensável. Quer dizer: inconstitucional seria uma norma que impedisse alguma pessoa ou algum grupo de pessoas de constituir habitação nos termos daquele preceito, obrigando-o por exemplo a tornar-se um sem abrigo, mas já não uma norma ordinária que se limita a regulamentar o exercício do direito constitucional à habitação e a decidir os litígios que esse direito origine, quer por oposição entre os interesses dos diversos titulares desse mesmo direito, no tocante à utilização de um único e determinado prédio, quer por conflito entre o exercício desse direito e o de algum outro direito constitucional, como o de propriedade privada ou o de integridade pessoal.
É este o caso do apontado artº. 1793º, que dispõe que "pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada da família, quer esta seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal" (nº. 1); "o arrendamento previsto no número anterior fica sujeito às regras do arrendamento para habitação, mas o tribunal pode definir as condições do contrato, ouvidos os cônjuges, e fazer caducar o arrendamento, a requerimento do senhorio, quando circunstâncias supervenientes o justifiquem" (nº. 2). Como se vê, este dispositivo não impede nenhum dos cônjuges ou ex-cônjuges de ter uma habitação, limitando-se a regular a situação em que, desavindos os cônjuges, se torne impossível ou insuportável a estes ou a algum deles continuarem a viver ambos na antiga casa de morada da família; para tanto, fixa os critérios a que se deve atender para determinar qual dos cônjuges poderá continuar a habitar a casa, sem impedir o outro de constituir nova habitação, o que impede que seja considerado inconstitucional.
Há, assim, que averiguar qual a solução que os aludidos critérios legais, ali fixados de forma não taxativa como resulta da utilização da expressão "nomeadamente", apontam. E entende-se que esses critérios ali enumerados de forma expressa são os mais importantes, por isso mesmo sendo expressamente indicados, apenas havendo que recorrer a outros em caso de dúvida ou de situação de igualdade entre ambos os cônjuges com o recurso àqueles.
Os critérios essenciais são dois: as necessidades de cada um dos cônjuges, e o interesse dos filhos do casal. Considerando, porém, que os filhos do casal, na hipótese dos autos, já são maiores, e já trabalham, dispondo de autonomia económica a ponto de poderem contribuir para as despesas domésticas, entende-se que não é o interesse deles que é erigido por lei como critério para atribuição da casa de morada da família, pois é aos filhos menores que a lei dedica a sua protecção. Isto é, o interesse dos filhos, como critério para resolução de uma questão como a dos autos, prende-se com a situação dos filhos menores, confiados à guarda de um dos pais, e que, para não ficarem sujeitos a outro trauma para além do que normalmente lhes resulta do divórcio destes, a lei entende por bem proteger de forma a que possam continuar a viver com estabilidade na habitação a que estavam habituados, sem mais mudanças para além da da própria situação familiar. Não é esta a situação dos autos, precisamente perante a situação de maioridade e independência económica dos filhos do casal, se bem que não deva deixar de se ter em conta o manifesto desejo da ora recorrida de manter os filhos a viver consigo, ou pelo menos a sua necessidade de tal, não só perante o amparo que os factos provados fazem concluir que eles lhe prestam mas também em face do auxílio económico que dos filhos recebe.
Somos assim remetidos para o critério primacial restante: o das necessidades de cada um dos cônjuges. E tal critério aponta para a correcção da solução adoptada no acórdão recorrido. Com efeito, os factos provados conduzem claramente a essa conclusão como a única adequada à situação dos autos, visto ser a requerente quem, nitidamente, em mais difícil situação económica se encontra, e quem, a ter de abandonar a casa, mais dificilmente conseguiria obter outra habitação, pois, enquanto o recorrente, descontados os alimentos que presta àquela, ainda fica com mais de 80.000$00 mensais, a recorrida, se tivesse de deixar a casa, ficaria apenas com 25.000$00 mensais, soma dos 20.000$00 de alimentos com os 5.000$00 de rendimento mínimo, visto não se poder tomar então em conta o contributo dos filhos, que, deixando de viver com ela, certamente também deixariam de contribuir para as despesas domésticas, ainda que seja de admitir como provável que continuassem a prestar-lhe uma ajuda, que, como é óbvio, não poderia ser considerada como rendimento.
Segundo o recorrente, a melhor solução seria a de a casa de morada de família ser atribuída a ambos os cônjuges, ficando cada um com uma parte dela, erigida em unidade habitacional independente. Mas isso seria o mesmo que manter a situação actual, pois a casa é uma unidade, não dividida em partes autónomas, pelo que a sua divisão em duas unidades independentes implicaria forçosamente obras demoradas e dispendiosas. Ora, de forma alguma se pode impor à recorrida que continue a sujeitar-se a viver por mais tempo na situação em que tem vivido, segundo os factos assentes indicam: mesmo abstraindo do facto de o recorrente ter sido declarado único e exclusivo culpado do divórcio, é inadmissível obrigá-la a viver suportando despesas que o recorrente provoca desnecessariamente e sem prestar qualquer contribuição para o respectivo custeio, deixando torneiras abertas e luzes acesas quando sai de casa, e com permanente receio daquele, a ponto de ter de sair de casa quando os filhos saem, para evitar que ele concretize agressões físicas e verbais que continua a intentar contra ela.
Improcedem, assim, todas as conclusões das alegações do recorrente.

Pelo exposto, acorda-se em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.
Custas pelo recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.

Lisboa, 11 de Dezembro de 2001
Silva Salazar
Pais de Sousa
Afonso de Melo