Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05B437
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FERREIRA DE ALMEIDA
Descritores: CASO JULGADO
IDENTIDADE DE ACÇÃO
Nº do Documento: SJ200504070004372
Data do Acordão: 04/07/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL ÉVORA
Processo no Tribunal Recurso: 1102/04
Data: 07/14/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Sumário : 1. O caso julgado pressupõe a repetição de uma causa , verificando-se depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admita recurso ordinário, sendo a "ratio essendi" da excepção a de evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior.
II. Exige a lei para a verificação da excepção dilatória de caso julgado a chamada "tríplice identidade", ou seja a identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir (art. 498 do CPC).
III. No âmbito das acções para efectivação de responsabilidade civil por acidente de viação , uma vez que a vertente dos prejuízos - a par do evento e da culpa/risco - faz parte integrante da causa de pedir (complexa) - «origo petitionis» - , não ocorre identidade da causa de pedir (e do pedido) entre duas acções sobre o mesmo acidente - ressarcimento dos danos directamente emergentes do acidente versus a exercitação do direito de regresso (reembolso de quantias pagas ao lesado) - se os montantes indemnizatórios parcelares alegados (e reclamados) não forem coincidentes
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. No Tribunal Judicial de Santarém foi proposta por A contra B - Agência Geral em Portugal SA e Companhia de Seguros C, com data de 24-6-03, uma acção que foi distribuída ao 2° Juízo - e aí correu sob o n° 452/01 - na qual se peticionava a indemnização pelos danos patrimoniais não cobertos pelo contrato de seguro celebrado com D - Companhia de Seguros SA suportados pela aí autora (o valor da franquia de 200.000$00 e o valor do aluguer de viatura de substituição no montante de 550.000$00) e pelos danos não patrimoniais emergentes de um acidente de viação ocorrido em 30-6-00.
Tal acção terminou com a absolvição da "B", Agência Geral em Portugal SA" e a condenação parcial da "Companhia de Seguros C." no pedido.

2. No mesmo Tribunal foi posteriormente proposta por "D - Companhia de Seguros SA" contra "B - Agência Geral em Portugal SA" uma acção com vista ao reembolso de € 11.289,47, quantia que, ao abrigo do contrato de seguro, pagou à sua segurada "A", invocando a sub-rogação legal decorrente de tal pagamento e a imputação da responsabilidade civil pela eclosão do acidente - o mesmo que fora objecto de apreciação na acção n° 452/01 - ao segurado da demandada "B - Agência Geral em Portugal SA".

3. A demandada "B - Agência Geral em Portugal SA", invocou, com êxito, a excepção de caso julgado pelo que foi por esse facto absolvida da instância no despacho saneador datado de 8-12-03.

4. Inconformada, agravou a "D - Companhia de Seguros SA", mas o Tribunal da Relação de Évora , por acórdão de 14-7-04, negou provimento ao recurso.

5. De novo irresignada , desta feita com tal aresto , dele veio a mesma A. recorrer de agravo para este Supremo tribunal , em cuja alegação formulou as seguintes conclusões:

1ª- O artigo 498 do C.P.C. enumera os requisitos cumulativos do caso julgado:a) a identidade dos sujeitos; b) a identidade do pedido; c) a identidade da causa de pedir;

2ª- A ora agravante entende não existir identidade no que concerne ao pedido e à causa de pedir dos processos em questão.
Em relação à causa de pedir:

3ª- Nas acções de responsabilidade civil por factos ilícitos, a causa de pedir configura-se como complexa, envolvendo todos os pressupostos deste instituto jurídico, nomeadamente os danos (cfr. do Ac. do STJ de 15-10-71, BMJ 210 pág. 116; Ac. STJ, de 27-10-1969, BMJ, 19V- 285);
4ª- A verdade é que os danos alegados nas duas acções são distintos;
5ª- No que concerne à primeira acção - Proc. N° 542/01 - estavam em causa:
- danos patrimoniais não cobertos pelo contrato de seguro suportados pelo o segurado;
- danos não patrimoniais;
6ª- Na presente acção - Proc. 1801/03.3TBSTR - os danos (meramente patrimoniais) aduzidos em juízo são aqueles decorrentes do acidente de viação dos autos, cobertos pelo contrato de seguro e já liquidados ao segurado;
7ª- Segundo a douta jurisprudência versada no acórdão do S.T.J. de 13¬05-2004: "não há identidade da causa de pedir (e, consequentemente, do pedido) entre duas acções sobre o mesmo acidente, mas em que os prejuízos alegados (e pedidos) não coincidem.";
8ª- Logo, não está preenchido o critério da identidade da causa de pedir no âmbito do instituto do caso julgado ,
No que respeita ao pedido:
9ª- Em virtude de os danos alegados nas duas acções se distinguirem qualitativamente e quantitativamente, hão de corresponder-lhes, necessariamente, pedidos diversos nos respectivos processos;
10ª- Consequentemente, não se verifica a identidade de pedidos exigida para a existência de caso julgado.
6. Contra-alegou a agravada "B" sustentando a correcção do julgado, formulando, por seu turno, as seguintes conclusões:

1ª- O acidente de viação de 30/06/2000, deu origem a dois processos: aquele a que corresponde a presente acção, em que são partes, como A. , a Axa, ora agravante e como Ré, a "B" , ora agravada e aquele a que corresponde a acção ordinária n.° 452/01, que correu termos pelo 2° Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, em que foram partes, como A., "A", Lda. - segurado da ora Autora/Agravante - e RR a ora Ré/agravada e a "Companhia de Seguros C";

2. A acção ordinária n° 452/01 terminou por sentença que absolveu a ora agravada, por se ter concluído que o condutor do veículo da sua segurada não teve culpa na produção do acidente;

3ª- Relativamente a ambas as acções , verifica-se a tríplice identidade prevista no artigo 498° do Código de Processo Civil, ou seja, identidade de sujeitos, identidade de pedido e identidade de causa de pedir tendo sentença proferida no âmbito do processo n.° 452/01 relativamente à presente acção, o efeito de caso julgado previsto no n.° 1 do artigo 671.° do Código de Processo Civil;

4ª- Conforme jurisprudência pacífica, a causa de pedir nas acções para efectivação de responsabilidade civil emergente de acidente de viação é complexa, sendo constituída pelo conjunto de factos exigidos pela lei para que surja esse direito, e
5ª- Os factos que integram a causa de pedir de ambas as acções são os mesmos: ambas as acções emergem do acidente de viação de 30 de Junho de 2000, na Rua Reitor Pedro Calmon, em Santarém, em ambas são alegados factos tendentes à imputação da culpa na produção do acidente ao condutor do veículo da segurada da Ré (a título exclusivo nesta acção e a título parcial na acção n.° 452/01 e em ambas são alegados os factos consubstanciadores dos danos - patrimoniais - sofridos por ambos os AA (Aqui a ora A e na acção n.° 452/01 a sua segurada);

6ª- São idênticos os pedidos formulados nas duas acções: na acção n.° 452/01 a aí A. formulava pedido de indemnização pelos danos por si sofridos no acidente dos autos; na presente acção a ora agravante formula o pedido de indemnização para reembolso das quantias que pagou à sua segurada, em virtude dos danos por esta sofridos no acidente de viação dos autos, ao abrigo do contrato de seguro celebrado entre ambas;

7ª- Como bem reconheceu o tribunal recorrido , "estão em causa nesta acção danos que já foram objecto de apreciação naquela - os danos na viatura pertencente à segurada da D e que esta indemnizou, depois de deduzido o valor da franquia - muito embora a expressão pecuniária dos pedidos formulados não coincida em ambas as acções";

8ª- Na verdade, o peticionamento de quantias, quantitativamente diferentes, não coloca só por si em causa a identidade de pedidos, pois de acordo com o artigo 498° n° 3 do Código de Processo Civil, "há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico", efeito esse, que, no caso vertente, será o ressarcimento dos danos causados em consequência do acidente de viação, ou, nas próprias palavras do acórdão recorrido, "a responsabilizacão do segurado da B pelas consequências do acidente de viação invocado";

9ª- Reconhecendo a própria agravante que há identidade de sujeitos , por maioria de razão, se deve concluir pela identidade de pedidos pois o pedido é o mesmo, num caso e noutro - indemnização por danos emergentes de acidente de viação - apenas ocorrendo divergência quanto ao montante , a qual apenas resulta, praticamente na sua totalidade, da circunstância do contrato de seguro celebrado não cobrir os danos em toda a sua extensão;

10ª- Existe ainda identidade de sujeitos quer do ponto de vista passivo, pois se na acção n° 452/01 a C também era Ré, a ora agravada reveste a qualidade de Ré na presente acção e também naquela primeira;

11ª- Do ponto de vista activo, igualmente são as mesmas as partes pois a empresa "A", Lda., autora na acção n.° 452/01, reclamava o pagamento de danos materiais por si sofridos no acidente dos autos, na parte não coberta pelo contrato de seguro do ramo de colisão choque e capotamento celebrado com a seguradora D, ora agravante,
12ª- A ora agravante, em virtude do contrato de seguro titulado pela apólice n.° 4565433-80 alega que pagou à sua segurada uma indemnização pelos danos sofridos no referido acidente e que, por isso, ficou expressa e legalmente sub- rogada nos direitos acções e recursos de que a sua segurada era titular relativamente aos responsáveis;

13ª- Na sub-rogação, o sub-rogado adquire os precisos direitos que existiam na esfera do sub-rogante, tudo se passando, na ulterior efectivação desses direitos, designadamente em juízo, como se do próprio sub-rogante se tratasse;
14ª- A decisão proferida no âmbito da acção n° 452/01 produziu, assim, o efeito de caso julgado relativamente aos presente autos;
15ª- A excepção de caso julgado impede não apenas que o tribunal decida sobre o mesmo objecto, duas vezes, de maneira diferente, mas também que decida sobre o mesmo objecto, duas vezes, de maneira idêntica;
16ª- "Quando surgirem dúvidas sobre se determinada acção é idêntica a outra anterior, o tribunal deve socorrer-se do seguinte princípio orientador: as acções considerar-se-ão idênticas se a decisão da segunda fizer correr o tribunal o risco de contradizer ou reproduzir a decisão proferida na primeira" (cfr. Acórdão Tribunal Relação de Coimbra de 25.5.00 que pode ser consultado in http: // www.trc.pt/trc09015.html), o que na verdade aconteceria na presente acção caso o tribunal tiver que decidir sobre a relação controvertida;

17ª- Constituindo o caso julgado excepção dilatória de conhecimento oficioso, nos termos dos artº 494.° e 495.° do C.P.C., bem andou o Meritíssimo Juiz "a quo" ao ter dela conhecido, absolvendo a Agravada B da instância;

18ª- Mesmo que se considerasse a inexistência da tríplice identidade, o Tribunal sempre terá que ter em conta a decisão proferida na anterior acção (452/01) visto que aí se decidiu a questão essencial, que mais não é condição para a apreciação do objecto processual da presente acção - a imputação da responsabilidade ao condutor do veículo propriedade da recorrida;

19ª- Nesta perspectiva vigora o caso julgado material como autoridade de caso julgado material, o que impede a repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão antecedente.

Colhidos os vistos legais , cumpre decidir.
7. A Relação começou por balizar o "thema decidendum" que centrou e bem na questão de saber se numa acção para efectivação de responsabilidade civil para ressarcimento de certos danos patrimonais e não patrimoniais decorrentes de um acidente de viação, proposta contra duas seguradoras, uma das quais foi absolvida do pedido , a sentença absolutória nela proferida constitui ou não caso julgado em outra acção esta intentada com base no mesmo acidente de viação pela seguradora da autora da primitiva acção - para o efeito sub-rogada nos seus direitos por via da indemnização de danos materiais (diversos dos invocados naquela acção) e que lhe satisfez - para ser reembolsada dessas quantias, contra a seguradora que naquela primeira acção fora absolvida.

Ambas as instâncias coincidiram na existência de caso julgado.
Quid juris ?
O caso julgado, tal como a litispendência, pressupõe a repetição de uma causa; mas, no caso julgado, a repetição verifica-se depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário , sendo que a "ratio essendi" da excepção é a de evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior (artº 497° CPC).

Exige a lei para a verificação da excepção dilatória de caso julgado a chamada "tríplice identidade" , ou seja a identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir (artº 498º do CPC).
A identidade de sujeitos consiste em as partes serem as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica (artº 498, n. 2, do CPC).
A identidade de pedidos verifica-se quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico (artº 498, n. 3, do CPC).
A identidade de causa de pedir consiste em a pretensão deduzida em ambas as causas proceder do mesmo facto jurídico (art. 498, nº 4 , do CPC).
Ora o que nos mostram os autos?
No que tange à identidade de partes ou sujeitos de direito dúvidas não restam que ela ocorre pelo lado activo, porquanto, tratando-se da efectivação da responsabilidade civil, a primeira das acções foi proposta pelo lesado e a segunda por quem satisfez o pagamento ao lesado e, por via disso, adquiriu o respectivo crédito indemnizatório. Ou seja: uma das acções foi proposta por quem sofreu directamente danos na sua esfera jurídico-patrimonial sendo , por isso, credora do respectivo direito a indemnização e a restante pela entidade credora sub-rogada.
Em ambas as acções há identidade de partes pelo lado passivo, se bem que numa das acções tivesse sido demandada outra Ré.
Quanto à identidade da causa de pedir e do pedido?

- na acção intentada por A contra B - Agência Geral em Portugal SA e contra a C, - Proc 542/01 - solicitava-se a indemnização pelos danos patrimoniais decorrentes do acidente de viação não cobertos pelo contrato de seguro e suportados pela aí A. , a saber: os custos de reparação excluídos por força da franquia de 200.000$00 e o montante de 550.000$00, despendido com o aluguer de uma viatura de substituição e ainda a indemnização pelos danos não patrimoniais;
- na presente acção - Proc 1801/03.3TBSTR - a "D - Companhia de Seguros SA" solicita o reembolso da importância com que indemnizou a sua segurada "A", a coberto do contrato de seguro, no montante de € 11.289,47 pelos danos também decorrentes do mesmo acidente de viação sofridos pela viatura desta, interveniente no acidente , ou seja a exercitação do direito de regresso reclamado pela A..

Não há pois uma coincidência absoluta quantitativa e qualitativa entre os danos invocados para ressarcimento nas duas acções em confronto, sendo que o dano é pressuposto essencial para a efectivação de qualquer tipo de responsabilidade civil.

Com efeito, na acção 452/01 o pedido traduzia-se na indemnização de 850.000$00 desdobrada em danos não patrimoniais e patrimoniais, estes últimos atinentes aos custos de reparação do automóvel não suportados pela ora agravante a título de franquia (200.000$00) e ao custo do aluguer de uma viatura entre o dia 10-8-00 e 7-7-00 (550.000$00) , enquanto que na subjacente acção o pedido se cifra no montante de 2.263.336$00 (11.289,47 €) respeitante aos prejuízos de índole meramente patrimonial cobertos pelo contrato de seguro (a reparação do automóvel sinistrado).

A causa de pedir («origo petitionis») - ressarcimento dos danos directamente emergentes do acidente versus a exercitação do direito de regresso (reembolso de quantias pagas ao lesado) - e o pedido - montantes indemnizatórios parcelares não são pois em tudo coincidentes e idênticos.

Vem aqui a propósito à colação o recente Ac deste Supremo Tribunal datado de 13-5-04, in Proc 948/04 - 2ª SEC, citado pela própria agravante - para cuja fundamentação se remete - , o qual a respeito da causa de pedir neste tipo de acções considerou: " uma vez que a vertente dos prejuízos - a par do acidente e da culpa/risco - faz parte integrante da causa de pedir (complexa) das acções indemnizatórias por acidente de viação, não há identidade da causa de pedir (e consequentemente do pedido) entre duas acções sobre o mesmo acidente, mas em que os prejuízos alegados (e pedidos) não coincidem " (sic).

Jurisprudência que é de acolher, tendo em atenção a necessidade de adregar uma interpretação tanto quanto possível uniforme das normas aplicáveis - conf. artº 8º, nº 3 , do C. Civil, e ainda o princípio "pro actione" tradutor da garantia constitucional de acesso aos tribunais com consagração infra-constitucional no artº 2º do CPC que , na dúvida , sempre será de seguir.

8. Decisão:
Em face do exposto, decidem:
- conceder provimento ao agravo;
- revogar o acórdão recorrido;
- ordenar a substituição do despacho saneador por outro que não seja de absolvição da instância pelo motivo invocado pelo primitivo despacho.
Custas pela recorrida.


Lisboa, 7 de Abril de 2005
Ferreira de Almeida,
Abílio Vasconcelos,
Duarte Soares.