Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
030836
Nº Convencional: JSTJ00004107
Relator: TOSCANO PESSOA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANO CULPOSO
CRIME QUASE PUBLICO
ACÇÃO PENAL
FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Nº do Documento: SJ196302200308363
Data do Acordão: 02/20/1963
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: DR IªS 20-03-1963 ; BMJ 124 , 407
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PARA O PLENO
Decisão: FIXADA JURISPRUDÊNCIA
Indicações Eventuais: ASSENTO 4/1963
Área Temática: DIR CRIM - CRIM C/PATRIMONIO.
Legislação Nacional: CE54 ARTIGO 58 N8 N9.
CP886 ARTIGO 481 PARUNICO ARTIGO 482 PAR1 PAR2.
CPP29 ARTIGO 5 ARTIGO 6 ARTIGO 7 ARTIGO 646 N4 ARTIGO 668 PARUNICO ARTIGO 669.
CPC61 ARTIGO 763 ARTIGO 766 N3.
DL 40275 DE 1955/08/08 ARTIGO 2.
DL 41074 DE 1957/04/17.
D 1 DE 1892/09/15 ARTIGO 21 PARUNICO.
DL 39351 DE 1953/09/07 ARTIGO 13.
D DE 1852/12/10 ARTIGO 1.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO RL DE 1961/10/11.
ACÓRDÃO RL PROC632 DE 1957/12/11.
Sumário : O paragrafo 1 do artigo 482 do Codigo Penal (Decreto-Lei n. 41074, de 17 de Abril de 1957), não revogou o n. 8 do artigo 58 do Codigo da Estrada.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferencia, no Supremo Tribunal de Justiça, reunido em Tribunal Pleno:

O excelentissimo Procurador da Republica junto da Relação de Lisboa traz, perante este Supremo Tribunal de Justiça, o presente recurso extraordinario, nos termos do artigo 669 do Codigo de Processo Penal.
Visa obter a fixação da jurisprudencia, no caso concreto versado nos presentes autos de instrução preparatoria que correram no 6 Juizo Correccional de Lisboa contra A.


E figura-nos em oposição, o acordão de 11 de Outubro de 1961, lavrado nesses autos a folhas 32 e seguintes pelo Tribunal da Relação de Lisboa, com o proferido em 11 de Dezembro de 1957, pela mesma Relação, nos autos de recurso crime n. 632.


Decidira-se no de 1957, que o preceituado no Decreto-Lei n. 41074, não revogou o artigo 58, n. 8, do Codigo da Estrada, passando as duas normas a funcionar paralelamente, embora cada uma em seu plano separado.
A do artigo 58, reserva-se aos casos de dano culposo nas regras de transito ao passo que o artigo 482 do Codigo Penal seria de aplicar, com as alterações do Decreto-Lei n. 41074, a todos os danos culposos não resultantes da infracção de regras da natureza apontada.
No acordão de agora (1961) se decidiu que o artigo 58, n. 8, aludido, deve ter-se por revogado.


Inicialmente, pretendeu o recorrente interpor recurso ordinario para este Supremo Tribunal de Justiça, do ultimo acordão.


Tratando-se de um processo preparatorio crime ainda não classificado, não poderia ter-se como proferido em Policia Correccional, e sujeito portanto, as limitações do artigo 646, n. 4, do Codigo de Processo Penal. Era a sua argumentação.
Mas, por cautela, desde logo pediu que, a ser arredado o ordinario, se considerasse interposto o competente recurso para Tribunal Pleno.
A possibilidade de recurso ordinario foi logo afastada e muito bem a folhas 37, pelo Senhor Relator. Fundou-se na razão convincente, do despacho que inicialmente suscitou o recurso, haver sido lavrado sobre uma promoção para julgamento em policia correccional, e os factos nela invocados, não poderem conduzir a outra solução.


Tal aspecto mostra-se assim definitivamente resolvido, deixando-nos perante um recurso para Tribunal Pleno.


E este que temos de encarar neste momento.


Foi alegado oportunamente a folhas 38, e mandado seguir no acordão de folhas 59, por se verificarem os pressupostos essenciais do artigo 763 do Codigo de Processo Civil ao tempo em vigor, aplicavel por força do disposto nos artigos 669 paragrafo unico, e 668, paragrafo unico, do Codigo de Processo Penal, que estabelece para este recurso, ser interposto, processado e julgado, como o recurso identico em materia civel.
São eles o dominio da mesma legislação, impossibidade de recurso ordinario, transito do acordão anterior e proferimento em processo diverso.
Alegou depois larga e doutamente, o excelentissimo Ajudante do Procurador-Geral da Republica, a folhas 63 e seguintes.
Correram-se ainda os vistos legais, a todos os Senhores juizes do Supremo Tribunal de Justiça, e o processo vem agora para decidir.
Tudo visto e ponderado:


I - Ja o Codigo de Processo Civil de 1939, estabelecia no seu artigo 767, paragrafo unico, que o reconhecimento da oposição no acordão preliminar, não impede que o Tribunal Pleno, decida em sentido contrario, e identica regra, encontramos no artigo 766, n. 3, do Codigo actual.
Mas nem dai poderão advir dificuldades, pois no caso vertente, a oposição e mais do que manifesta.


Os dois acordãos em presença assentam claramente em soluções divergentes e opostas, sobre a questão da vigencia ou revogação do artigo 58, n. 8, do Codigo da Estrada.


E entraremos portanto, sem hesitações, na apreciação do objecto do recurso ou seja o problema sobre o qual os dois arestos se enfrentam.
II - A bipartição dos crimes em publicos e particulares, ainda se mantinha na Novissima Reforma Judiciaria, artigo 854, e somente no regime criado pelo Decreto de 10 de Dezembro de 1852, artigo 1, surgiu a categoria dos crimes quase-publicos, correspondendo a nova modalidade de acusação, estabelecida no Codigo Penal do mesmo ano, para certos crimes.
E foi esta formula tripartida, assim estruturada, que, vindo ate nossos dias atraves do dispsoto no artigo 21, paragrafo unico, do Decreto n. 1, de 15 de Setembro de 1892, ainda perdura no Codigo de Processo Penal, artigos 5, 6 e 7.


Nesta projecção, crime particular sera aquele, que so pode ser perseguido criminalmente, mediante acusação da parte ofendida, ou pessoas a quem a lei confira essa faculdade.


Crime quase publico, aquele em que a acusação pelo Ministerio Publico, so pode ter lugar, quando as mesmas pessoas derem conhecimento do facto delituoso em juizo.


Crimes publicos todos os outros, ou sejam aqueles em que o Ministerio Publico pode acusar independentemente das restrições mencionadas.
III - Segundo o artigo 482 do Codigo Penal, o dano involuntario, pela violação ou falta de observancia das providencias policiais e administrativas contidas nas leis e regulamentos, era crime publico.


E assim se mantem, com a publicação do Codigo de Processo Penal, em 15 de Fevereiro de 1929, nos termos do respectivo artigo 5, pois quanto a ele se não verificava qualquer das restrições dos subsequentes artigos 6 e 7.
Mais tarde, os Decretos-Leis ns. 39351, 39672 e 40275, vieram estabelecer um regime diverso de acusação, para os casos de acidente de viação.
Primeiro, o Decreto-Lei n. 39351, de 7 de Setembro de 1953, que fez a integração da Policia Judiciaria no serviço e organização do Ministerio Publico, dispos no seu artigo 13 que o procedimento criminal pelo crime de dano, quando consista na violação ou falta de observancia, das providencias policiais e administrativas contidas nas leis e regulamentos, relativos ao transito de veiculos, sem intenção malevola, depende de participação do ofendido.


Entretanto, o Codigo da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n. 39672, de 20 de Maio de 1954, adoptou no seu artigo 58, n. 9, a mesma regra, com ligeirissimas alterações de redução.


N. 9 - "O procedimento criminal pelo crime de dano, quando este consista na violação, sem intenção malefica, das disposições legais sobre transito, so tera lugar, mediante participação do ofendido.


Na falta desta apenas sera punivel a contravenção".
E o Decreto-Lei n. 40275, de 8 de Agosto de 1955, no seu artigo 2, substitui esse n. 9 por um n. 8, cuja redacção e praticamente igual.
N. 8 - "O procedimento criminal pelo dano culposo, quando este resulte de violação das disposições legais sobre transito, so teria lugar mediante participação do ofendido. Na falta desta, apenas sera punivel a contravenção".
E na incidencia destes textos cujas redacções inteiramente se equivalem, se estruturam assim as infracções das regras do transito, como crime quase-publico, no ambito do citado artigo 6 do Codigo de Processo Penal, firmando a seguinte posição:


O dano culposo, e na generalidade um crime publico, devendo encarar-se a sua punição, independentemente da atitude do ofendido.


No caso restrito, de tal crime haver resultado da violação das regras legais do transito, sera quase-publico, por depender de participação daquele, a sequencia do competente procedimento crime.


Posteriormente, o Decreto-Lei n. 41074, de 17 de Abril de 1957, veio porem acrescentar ao artigo 482 dois paragrafos, concebidos nestes termos.
Paragrafo 1 - "O procedimento judicial, pelo crime previsto neste artigo, depende de participação do ofendido, e ainda da sua acusação, nos casos em que, se o dano tivesse sido dolosamente praticado, a acção dependeria de acusação particular".


Paragrafo 2 - "Na falta de participação ou de acusação, apenas havera procedimento judicial pela contravenção".


Destarte adicionado o artigo 482, passou, na sua nova redacção, a alterar profundamente o regime processual da punição do dano involuntario.
Quando não concorra circunstancia agravante, atira-nos para regime igual ao que no paragrafo unico do artigo 481 se estatui para o dano voluntario. Crime particular.


Nos restantes casos, isto e existindo agravante, passamos a estar em presença de um crime quase-publico.


E a posição resultante sera que, na verificação do agravamento, o Decreto-Lei n. 41074 atribui a todos os restantes danos involuntarios, esse caracter de crime quase-publico, que a legislação anterior estabelecera exclusivamente para todas as situações emergentes de violações dos preceitos reguladores do transito de veiculos.


Não havendo agravante, o diploma, atribui ao dano culposo em geral o regime de crime particular, quando o dano naquelas situações, era considerado crime quase-publico.


E aqui nos quedamos perante a divergencia de criterio base deste recurso.
Devem os crimes culposos de dano, emergentes da violação de regras de transito de veiculos, manter-se quando haja agravante, na designação de crimes quase-publicos, ou passar a ser tratados como particulares?
Quer dizer: o preceituado no Decreto n. 41074, revogou o disposto no artigo 58, n. 8, do Codigo da Estrada, lição do Decreto n. 40275, artigo 2, ou este preceito continua de pe?


IV - Parece não sofrer duvida que os preceitos do Codigo da Estrada constituem lei especial, quando as do Decreto-Lei n. 41074, ao pretender remediar alguns defeitos do Codigo Penal, nomeadamente o seu artigo 482, devem ter-se como lei geral.


Ate o proprio acordão de 1961, o aceita.


Como se afirma no parecer de folhas 63 e seguintes, não se trata propriamente de um direito excepcional, mas sim de variantes da norma geral e corrente, em cujos principios fundamentais se inspiram.
Tal conceito, resulta marcadamente das considerações insertas nos relatorios que precedem os dois Decretos-Leis ns. 39672 (capitulo IV, n. 3) e n. 40275 (n. 15), e ainda da forma como, em diversos preceitos desses diplomas, se adoptam normas peculiares. Num e noutro lado transparece claramente a ideia de estruturar um conjunto de medidas mais rigorosas, capazes de manter a segurança do transito, atraves da boa circulação nas estradas.

Podem citar-se neste aspecto. Cunha Gonçalves, Tratado, volume I, pagina 8, Professor Antunes Varela, segundo as lições do Professor Pires de Lima, 1945, volume I, paginas 28-31, Coviello, Manuale, pagina 17, Coppa-Zuccari,
Diritto Singolare e Diritto Commune, pagina 72, todos citados no mesmo lugar.
V - Ora segundo regra, ao que pensamos aceite por todos, ao passo que a lei especial revoga sempre a geral nos casos por ela contemplados, esta por seu lado, so revoga aquela, quando o diga expressamente, ou quando haja incompatibilidade entre elas, por uma se inspirar em principios novos, incompativeis com os que informam a outra.
Veja-se Guilherme Moreira, Instituições, volume I, pagina 21, Professor Manuel de Andrade, Interpretação..., pagina 106, Professor Antunes Varela, ibidem, volume I, pagina 60, Cunha Gonçalves, ibidem, volume I, paginas 15-159, Professor Cabral Moncada, Lições..., 2 edição, volume I, paginas 104-105, Manzini, Diritto Penale, volume I, paginas 319-321, igualmente citados no parecer de folhas 63.
E não se vislumbra, qualquer circunstancia susceptivel de levar-nos a descobrir nesse Decreto-Lei n. 41074, inspiração em principios incompativeis com os ligados ao regime do preceituado no aludido artigo 58, n. 8.
O competente relatorio da-nos o seu proposito de remediar alguns defeitos do Codigo Penal, alterando a formula da perseguição judicial de certos crimes, mas nele expressamente se observa porem, nem por isso haver razões para modificar o sistema de direito em vigor.
E acrescenta mesmo, prosseguir assim na linha de orientação que, iniciada pelo Decreto n. 39351, se fixou no texto do artigo 58, n. 8, do Codigo da Estrada.
Tal referencia traduz a ideia de manter esta norma, e nunca de a arredar, pois de outra forma, não se compreenderia deixasse de dize-lo expressamente, uma vez invocado aquele preceito especial.
VI - Em conclusão:
O Decreto-Lei n. 41074 não podia revogar, nem revogou o artigo 58 n. 8, do Codigo da Estrada.
Esta e lei especial.
Aquele lei geral.
Sem incompatibilidade de principios.
Sem proposito de modificar o sistema do direito em vigor.
Antes expressamente reconhecendo a conveniencia do preceituado nesse artigo 58, n. 8.
VII - Nestes termos se acorda em conferencia neste Supremo Tribunal de Justiça, em Tribunal Pleno, em lavrar o seguinte assento:
Assento
"O paragrafo 1 do artigo 482 do Codigo Penal, Decreto-Lei n. 41074, de 17 de Abril de 1957, não revogou o n. 8 do artigo 58 do Codigo da Estrada".
Sem imposto de justiça.


Lisboa, 20 de Fevereiro de 1963

F. Toscano Pessoa (Relator) - Barbosa Viana - Amorim Girão
- Jose Osorio - Gonçalves Pereira - Cura Mariano - Alberto Toscano - Arlindo Martins - Jose Meneses - Ricardo Lopes - Eduardo Coimbra - Fragoso de Almeida - Abreu Lobo - Lopes Cardoso.