Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A3025
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FARIA ANTUNES
Descritores: REQUISITOS
PETIÇÃO INICIAL
CAUSA DE PEDIR
Nº do Documento: SJ200611070030251
Data do Acordão: 11/07/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : 1- A causa de pedir é a causa de decidir, não podendo ser alterada em sede de recurso.
2- Após a reforma adjectiva de 1995/1996, deve ser-se mais exigente quanto ao controlo da observância da causa de pedir, para que o princípio do contraditório possa ser cabalmente cumprido.
3- O autor tem hoje em dia o ónus não só de alegar os factos pertinentes, mas também de expor os fundamentos de direito da acção, ónus que só poderá ser cumprido se no mínimo enunciar as normas jurídicas e os princípios gerais de direito que no seu entendimento suportam o pedido.
4- A total omissão dessa indicação deve ser sancionada em paralelismo com a situação de falta absoluta de causa de pedir.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



"AA" intentou acção ordinária contra BB, menor, representado por sua mãe CC, pedindo que o réu seja condenado a reconhecer o seu direito de compropriedade, na proporção de metade, sobre o prédio urbano que discriminou, sobre o veículo automóvel que identificou e sobre o crédito de Esc. 1.000.000$00 relativo ao preço de venda de um outro veículo automóvel que também identificou, ou, "solidariamente" (querendo certamente dizer subsidiariamente...), a pagar metade do valor de tais bens.
Na 1ª instância foi proferida sentença que:
-- Declarou a autora comproprietária, na proporção de metade, do veículo automóvel AQ;
-- Declarou a autora comproprietária, na proporção de metade, do crédito de EUR 4.987,98 devido pela Empresa-A, com estabelecimento na Av. Padre Manuel Nóbrega nº ... ...;
-- Julgou improcedentes os demais pedidos formulados, de que absolveu o réu.
Inconformadas, apelaram ambas as partes para a Relação de Lisboa que negou provimento a ambos os recursos.
Recorre agora apenas a autora de revista, tirando as seguintes conclusões:
1ª- A recorrente viveu maritalmente com um companheiro, adquirindo ambos um fundo comum, por contribuição de ambos;
2ª- Com esse fundo comum foram comprados um bem imóvel e 2 automóveis;
3ª- Mas, em obediência à lei do mais forte, os bens adquiridos foram comprados em nome apenas do falecido;
4ª- Todavia, a aquisição da metade da recorrente ocorria e só podia ocorrer no quadro de um mandato sem representação, que obrigava à transferência posterior para ela dessa metade;
5ª- Por isso, em execução específica de tal acordo pode o tribunal suprir a declaração negociaI do faltoso e assim transferir para a recorrente a sua metade no imóvel;
6ª- De qualquer maneira, foi feito na petição inicial o pedido subsidiário de pagamento de metade do valor dos bens, com base em não locupletamento à custa alheia;
7ª- Assim, o acórdão recorrido violou, por erro de interpretarão e aplicação, o disposto nos artºs 334º e 830º, nº 1 do Código Civil.
Contra-alegou réu menor, representado por CC, sua mãe.
Decidindo, corridos que foram os vistos legais.
As instâncias deram como provados os seguintes factos:
1- Em 20 de Março de 1997 faleceu nesta cidade DD, no estado de solteiro;
2- No final de 1990, a autora e o falecido passaram a viver em união de facto, na Rua Luís Pastor de Macedo, .... ..... .... 1750-156 Lisboa em comunhão de leito, mesa e habitação, como se de marido e mulher se tratassem;
3- A autora e o falecido constituíam uma família e trabalhavam ambos para um fundo comum, do qual saíam todas as despesas do casal, sendo que o falecido administrava esse património comum;
4- Por escritura de 5 de Julho de 1995, exarada a fls. 7v. - 12v. do Cartório Notarial de Vila Nova de Poiares, DD adquiriu o prédio urbano inscrito na respectiva matriz de Poiares, Santo André, concelho de Vila Nova de Poiares sob o artigo 204 e uma parcela de terreno nos limites urbanos de Valeiro das Hortas, com a área de 840 m2, anteriormente inscrito na matriz rústica sob o artigo 1.359 e depois omissa;
5- "DD" adquiriu ainda o automóvel de marca Hyundai, matrícula AQ e uma viatura de carga, vendida pouco antes do seu falecimento pelo preço de Esc. 1.000.000$00, à Empresa-A, com estabelecimento na Av. Padre Manuel Nóbrega nº ... ....;
6- No decurso da união de facto, a autora e o falecido adquiriram em comum e em partes iguais os bens descritos nos nºs 4 e 5;
7- O automóvel encontra-se registado sob o nº 676 de 13 de Julho de 1994, a favor de DD;
8- "DD" de Carvalho era pai do réu;
9- O inventário por óbito de DD corre termos sob o nº 1144/98 na 1ª secção do 3° juízo cível de Lisboa.
A autora estruturou a petição inicial do seguinte modo:
-- Viveu maritalmente com o DD nos últimos seis anos de vida deste, trabalhando ambos para um fundo comum donde saíam todas as despesas, sendo o DD quem administrava o património comum;
-- Compraram, em comum e partes iguais, o imóvel e os dos veículos que discriminou, figurando embora nessas compras apenas o DD como adquirente;
-- Assim, é dona legítima de metade dos bens adquiridos pelo falecido DD, que era solteiro e pai do réu, podendo reivindicá-los (artº 1311º, nº 1 do Código Civil);
-- A mãe do réu menor escusou-se a partilhar amigavelmente os referidos bens com a autora.
Com estes fundamentos pediu a autora a condenação do réu a reconhecer o direito a metade dos aludidos bens, ordenando-se as alterações registrais correspondentes e ficando o réu obrigado a dividi-los com ela, ou, subsidiariamente, a pagar metade do respectivo valor.
Relativamente ao automóvel Hyundai com a matrícula AQ e ao crédito de 1.000.000$00 devido pela empresa "Empresa-A", foi a autora declarada comproprietária na proporção de metade, com trânsito em julgado, cingindo-se portanto o objecto da revista ao imóvel em referência.
Diz o artº 1311º, nº 1 do Código Civil (único dispositivo legal a que a autora se arrimou no petitório) que o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence.
Inexistindo registo definitivo de propriedade do imóvel a favor da autora (bem como do falecido DD e até do réu, que se saiba...), a conceder-lhe a presunção juris tantum do direito de propriedade, contemplada no artº 7º do Código de Registo Predial, teria ela de alegar e provar factos demonstrativos da aquisição originária do imóvel, o que não fez. Com efeito, face ao princípio da substanciação, adoptado pelo nº 4 do artº 498º do CPC, não bastava à autora, para poder reivindicar o reconhecimento do direito de compropriedade do imóvel, invocar a escritura pública de compra e venda em que outorgou como comprador o DD, com quem vivia more uxorio, e aduzir que pagou metade do preço.
Nas acções reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real (artº 498º, nº 4 do CPC), não sendo tal facto jurídico apenas o acto translativo da propriedade para o autor da acção. Como refere Anselmo de Castro (Lições de Processo Civil, I, 1964, pág. 361), o acto translativo em si mesmo não é título que se imponha ao réu, mas somente na medida em que com os actos translativos anteriores, e em última análise por posse conducente à prescrição, portanto posse durante o prazo necessário, invistam o autor no direito de propriedade ou domínio invocados.
Não tendo isso sido anteriormente alegado e pedido, tão pouco pode a autora/recorrente alegar já em sede de recurso que o DD adquiriu o imóvel ao abrigo de um mandado sem representação, pelo que estava obrigado a transmitir para ela o aludido direito, e que, não tendo feito tal transferência, deve o tribunal proceder à respectiva execução específica, suprindo a declaração negocial do faltoso, transferindo para a recorrente a reivindicada metade.
É que a autora não pode alterar a causa de pedir (que é a causa de decidir) e o pedido em sede de recurso. De resto, deve hoje ser-se mais exigente quanto ao controlo da observância da causa de pedir, pois, como refere Lebre de Freitas na "Introdução ao Processo Civil, Conceito e Princípios Gerais à Luz do Código Revisto", pág. 102 a 105: «... o princípio do contraditório exige que, antes da sentença, às partes seja facultada a discussão efectiva de todos os fundamentos de direito em que a decisão se baseie... Não basta... que às partes... seja dada a possibilidade de, antes da decisão, alegarem de direito... É preciso que, mesmo depois desta alegação, possam fazê-lo ainda quanto a questões de direito novas, isto é, ainda não discutidas no processo. Mas, ao verificar se uma questão de direito é nova, o tribunal deverá atender ao facto de as partes terem dado ou não cumprimento ao disposto nos arts. 467-1-d..., na parte em que impõem que na petição inicial se exponham os fundamentos de direito da acção.... Estes preceitos, tidos até agora como meramente indicativos, por a falta dessa exposição não ser sancionada, devem passar, após a revisão do código, a ser interpretados como impondo... ao autor... um ónus... este ónus não pode ser interpretado como impondo mais do que a indicação da norma jurídica ou do princípio geral de direito tido por aplicável, só a total omissão desta indicação sendo sancionada, em paralelismo com a situação de falta absoluta de causa de pedir».
Não é portanto admissível que a autora, tendo proposto a acção como de reivindicação (louvando-se no disposto no artº 1311º do CC), se tenha em sede de recurso escudado na aquisição do direito de compropriedade em execução de mandato sem representação (estribando-se nos artºs 1181º e 830º do CC, cuja citação omitiu na 1ª instância), nem é tolerável que já em sede de recurso fale pela primeira vez no não locupletamento à custa alheia para justificar o direito ao reembolso da metade do dinheiro que despendeu na aquisição derivada do imóvel pelo ex-companheiro.
Provou-se que o DD, ao celebrar a escritura da compra do imóvel (doc. certificado de fls. 9 a 19) o fez em comum e partes iguais com a autora, o que significa que o preço declarado na escritura foi suportado pelos dois elementos do casal.
A autora pediu subsidiariamente a condenação do réu a pagar metade do valor do imóvel. Fê-lo porém por se considerar comproprietária do imóvel, pedindo a alteração registral deste e a condenação do réu a dividi-lo com ela ou a pagar metade do respectivo valor (metade do valor do imóvel - note-se - e não metade do valor declarado na escritura, o que é ou pode ser bem diferente...). Denegado o reconhecimento do reivindicado direito de compropriedade, prejudicado ficou portanto o pedido subsidiário, como ajuizadamente se ponderou no acórdão em crise, que abordou esta matéria e não cometeu por conseguinte a arguida nulidade por omissão de pronúncia.
Termos em que acordam em negar a revista, condenando a recorrente nas respectivas custas, sem prejuízo do apoio judiciário.

Lisboa, 7 de Novembro de 2006

Faria Antunes (Relator)
Sebastião Póvoas
Moreira Alves