Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
197/2000.E1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: NUNO CAMEIRA
Descritores: PRÉDIO RÚSTICO
FRACCIONAMENTO DA PROPRIEDADE RÚSTICA
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
DIREITO DE PROPRIEDADE
UNIDADE DE CULTURA
PRÉDIO ENCRAVADO
FRAUDE À LEI
Data do Acordão: 06/07/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - DIREITOS REAIS
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - RECURSOS
Doutrina: - Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, III, 259.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 1376.º, NºS 1 E 2, 1379.º, N.º2, 1549.º, 1550.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 470.º, 660.º, N.º2, 668.º, N.º1, D), N.º2, 712.º, N.º 2, 729.º, N.º2.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
- DE 8/11/2007, PROCESSO N.º 8/11/07.
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:
- DE 1/2/2007, PROCESSO N.º 2764/05-3.
Sumário :
I - É certo que o fraccionamento de um prédio rústico pressupõe a sua divisão por dois ou mais proprietários, isto é, a transferência do domínio para outrem, designadamente por venda. Daí que não deva falar-se em fraccionamento quando se opera uma divisão da propriedade para efeitos matriciais ou registrais, ficando a titularidade na mesma pessoa.
II - Porém, assente que os réus “procederam ao fraccionamento em treze novos prédios distintos e demarcados” do prédio rústico de que eram proprietários e sendo certo que sete destes novos prédios foram depois objecto de compra e venda, com a consequente transferência das respectivas propriedades, não há dúvida que se trata de uma situação de fraccionamento de prédio rústico, nos termos e para os efeitos previstos no art. 1376.º do CC.
III - Negar ao acto jurídico referido a qualificação de fraccionamento, a partir da sua consideração em termos completamente isolados dos negócios de compra e venda que se lhe seguiram, é fechar por completo os olhos à realidade dos factos concretos ocorridos e, mais do que isso, abrir a porta, em termos práticos, à legitimação de negócios em fraude à lei.
IV - Tal entendimento, consistente em ignorar o significado jurídico da alienação de parcelas do prédio fraccionado após a divisão deste, pode representar um incentivo à realização de operações de divisão de prédios rústicos cujo resultado prático coincide, justamente, com aqueles que a norma do art. 1376.º pretende proibir (criação de parcelas que violam a unidade de cultura fixada para a zona, ou que, independentemente disso, ficam encravadas).


Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I. Relatório
No 2º Juízo do Tribunal Judicial de Évora o Ministério Público intentou contra AA e outros uma acção ordinária, pedindo que fossem anulados os actos de divisão e fraccionamento consubstanciados na escritura de divisão de 22/8/97, referida no art° 1º da petição, e os negócios jurídicos de compra e venda dos imóveis (novos prédios) referidos no artº 6º do mesmo articulado titulados pelas escrituras aí identificadas, ordenando-se o cancelamento dos registos das parcelas resultantes da divisão e que deram origem aos novos prédios rústicos, bem como dos registos das aquisições tituladas pelas escrituras de compra e venda ali mencionadas.
Em resumo, alegou que através da escritura pública de 22/8/97 foi realizado o fraccionamento ilegal do prédio rústico denominado Quinta do Bacelo, descrito na CRP de Évora sob o nº 7986, por desrespeito à área exigida legalmente para a unidade de cultura, não dispondo as explorações resultantes do fraccionamento viabilidade técnico-económica, além de que algumas das parcelas não confrontam com caminho público.
Os réus contestaram, alegando que o fraccionamento do prédio obedeceu a todos os formalismos legais, não tendo violado o artº 1376º, nºs 1 e 2, do CC.
Realizado o julgamento e estabelecidos os factos foi proferida sentença que julgou a acção procedente, anulando o acto de divisão e fraccionamento operado pela escritura de 22/8/97 e os negócios de compra e venda dos imóveis (novos prédios) identificados no processo, determinando o cancelamento dos registos das aquisições.Os réus apelaram, e com êxito, pois a Relação de Évora, apoiando-se exclusivamente na fundamentação do acórdão do mesmo tribunal proferido na apelação 2764/05.3, que transcreveu e fez sua, revogou a sentença e absolveu os réus do pedido.
Agora é o MP que, inconformado, pede revista, sustentando que o acórdão recorrido deve ser revogado, ficando a prevalecer a sentença da 1ª instância; para o caso de assim não se entender, defende que se ordene a baixa dos autos à 2ª instância, nos termos dos artºs 731º, nº 2, e 715º, nº 2, do CPC, para que a Relação conheça dos pedidos cuja apreciação considerou prejudicada por inutilidade.
As questões úteis suscitadas nas vinte e nove conclusões da revista são as seguintes:
1ª) Dando como provada a venda de sete das treze parcelas resultantes do fraccionamento do prédio rústico, entre as quais as parcelas encravadas, mas considerando, em simultâneo, que não houve fraccionamento por não ter havido transmissão da propriedade, o acórdão recorrido é nulo por contradição entre os fundamentos e a decisão, nos termos do artº 668º, nº 1, c), do CPC;
2ª) Ao deixar de pronunciar-se sobre a validade das escrituras de compra e venda das parcelas e sobre os pedidos de cancelamento dos registos com o argumento de que tal conhecimento estava prejudicado pela improcedência do primeiro pedido, o acórdão recorrido violou o disposto no artº 660º, nº 2, do CPC, e incorreu no vício de omissão de pronúncia, o que o torna nulo, face ao disposto no artº 668º, nº 1, d), citado;
3ª) Ao não tomar em consideração no julgamento de mérito que do fraccionamento resultava o encrave das parcelas I, J, L, M e N e, consequentemente, que a escritura de 22/8/07 não operou um fraccionamento da propriedade, o acórdão recorrido interpretou e aplicou erradamente o artº 1376º do CC.
Os recorridos contra alegaram, defendendo a manutenção do julgado.
Tudo visto, cumpre decidir.
II. Fundamentação
De entre os factos que a Relação considerou definitivamente assentes interessa destacar os seguintes, visto o objecto do recurso: 1) Por escritura pública de divisão datada de 22/8/97, lavrada no 2º Cartório Notarial de Évora, os RR. AA e sua mulher, BB procederam ao fraccionamento em 13 novos prédios distintos e demarcados, do prédio rústico denominado “Quinta do Bacelo”, situado na freguesia de Évora (Sé), concelho de Évora, com a área de onze hectares cinco mil e quinhentos centiares, composto de três parcelas cadastrais de horta, pomar misto e de cultura arvense de regadio, descrito na CRP de Évora sob o número 7986, de 24/8/95, da freguesia de Évora (Sé) e inscrito na respectiva matriz rústica sob o artigo 235 da Secção “H”.2) Desta divisão resultaram 13 parcelas que passaram a ser identificadas como de “A” a “N”, tendo ficado exarado que a parcela “A” se destinaria a cultura arvense de regadio e as restantes a fins hortícolas de regadio.
3) A resultante parcela “A” ficou com a área de quatro hectares mil setecentos e cinquenta centiares, ficando a confrontar pelo Norte com parte do prédio inscrito na matriz sob o artigo 234, pelo Sul com os inscritos na respectiva matriz sob os artigos 151, 166 e 167, pelo Nascente com parte do prédio inscrito na respectiva matriz sob o artigo 188, com os prédios inscritos sob os artigos 189 e 190 e pelo Poente com caminho público, à qual foi atribuído o valor, patrimonial arredondado de 800.000$00.
4) A resultante parcela “B” ficou com a área de cinco mil duzentos e cinquenta e seis centiares, ficando a confrontar pelo Norte com o prédio inscrito na respectiva matriz sob o artigo 234, pelo Sul com a parcela ‘C’, pelo Nascente com o caminho público e pelo Poente com a parcela “N”, à qual foi atribuído o valor patrimonial arredondado de 200.000$00 .
5) A resultante parcela “C” ficou com a área de cinco mil trezentos e oitenta e três centiares, ficando a confrontar pelo Norte com a parcela “B”, pelo Sul com a parcela “D”, pelo Nascente com o caminho público e pelo Poente com arruamento, à qual foi atribuído o valor patrimonial arredondado de 200.000$00.6) A resultante parcela “D” ficou com a área de cinco mil duzentos e vinte e seis centiares, ficando a confrontar pelo Norte com a parcela “C”, pelo Sul e Poente com arruamento e pelo Nascente com caminho público, à qual foi atribuído o valor patrimonial arredondado de 200.000$00.7) A resultante parcela “E” ficou com a área de cinco mil duzentos e cinquenta e sete centiares, ficando a confrontar pelo Norte com futuro arruamento, pelo Poente com arruamento, pelo Sul com a parcela “F” e pelo Nascente com caminho público, à qual foi atribuído o valor patrimonial arredondado de 200.000$00.8) A resultante parcela “F” ficou com a área de cinco mil duzentos e cinquenta e um centiares, ficando a confrontar pelo Norte com a parcela “E”, pelo Sul com a parcela “G”, pelo Nascente com caminho público e pelo Poente com arruamento, à qual foi atribuído o valor patrimonial arredondado de 200.000$00.9) A resultante parcela “G” ficou com a área de cinco mil quinhentos e oito centiares, ficando a confrontar pelo Norte com a parcela “F”, pelo Sul com estrada camarária, pelo Nascente com caminho público e pelo Poente com arruamento, à qual foi atribuído o valor patrimonial arredondado de 250.000$00.10) A resultante parcela “H” ficou com a área de seis mil duzentos e vinte centiares, ficando a confrontar pelo Norte com a parcela “I”, pelo Sul com estrada camarária, pelo Nascente com arruamento e pelo Poente com parte do prédio inscrito na respectiva matriz sob o artigo 135, à qual foi atribuído o valor patrimonial arredondado de 300.000$00.
11) A resultante parcela “I” ficou com a área de cinco mil oitocentos e vinte e seis centiares, ficando a confrontar pelo Norte com a parcela “J”, pelo Sul com a parcela “H”, pelo Nascente com arruamento e pelo Poente com parte dos prédios inscritos na matriz sob os artigos 135 e 136, à qual foi atribuído o valor patrimonial arredondado de 270.000$00.12) A resultante parcela “J” ficou com a área de cinco mil oitocentos e seis centiares, ficando a confrontar pelo Norte com a parcela “L”, pelo Sul com a parcela “I”, pelo Nascente com arruamento e pelo Poente com parte dos prédios inscritos na matriz sob os artigos 136 e 137, à qual foi atribuído o valor patrimonial arredondado de 270.000$00.13) A resultante parcela ‘L” ficou com a área de cinco mil setecentos e noventa e nove centiares, ficando a confrontar pelo Norte com a parcela “M”, pelo Sul com a parcela “J”, pelo Nascente com arruamento e pelo Poente com parte dos prédios inscritos na matriz sob os artigos 137 e 138, à qual foi atribuído o valor patrimonial arredondado de 260.000$00 .14) A resultante parcela “M” ficou com a área de cinco mil setecentos e trinta e seis centiares, ficando a confrontar pelo Norte com a parcela “N”, pelo Sul com a parcela “L”, pelo Nascente com arruamento e pelo Poente com parte dos prédios inscritos na matriz sob os artigos 138 e 139, à qual foi atribuído o valor patrimonial arredondado de 270.000$00.15) A resultante parcela “N” ficou com a área de oito mil setecentos e setenta e três centiares, ficando a confrontar pelo Norte com parte do prédio inscrito na matriz sob o artigo 234, pelo Sul com a parcela “M” com o prédio inscrito na matriz sob o artigo 139, com caminho e com parte do prédio inscrito na matriz sob o artigo 140, pelo Nascente com a parcela “B”, com a parcela “C” e com arruamento e pelo Poente termina em bico, à qual foi atribuído o valor patrimonial arredondado de 400.000$00.16) Por escritura pública datada de 17/5/99, lavrada no 2º Cartório Notarial de Évora, os RR. AA e sua mulher BB venderam aos RR. CC e mulher DD o prédio rústico sito na Quinta do Bacêlo, freguesia administrativa da Senhora da Saúde, anteriormente freguesia de Évora (Sé), concelho de Évora, com a área de 5226 m2, formado por uma única parcela cadastral de horta, descrito na CRP sob o n 9110, de 15/10/97 e inscrito na matriz cadastral respectiva sob o artigo 243 da Secção “H”, com o valor patrimonial de 23.120$00.
17) Por escritura pública datada de 22/7/99, lavrada no 2º Cartório Notarial de Évora, os RR. AA e sua mulher BB venderam, por intermédio de procurador, aos RR. EE, casado com FF no regime de comunhão de adquiridos, o prédio rústico sito na Quinta do Bacêlo, freguesia administrativa da Senhora da Saúde, anteriormente freguesia de Évora (Sé), concelho de Évora, com a área de 5508 centiares, formado por uma única parcela cadastral de horta, descrito na CRP de Évora sob o n 9113, de 15/10/97, ainda da freguesia da Sé, e inscrito na matriz cadastral respectiva sob o artigo 246 da Secção “H”, com o valor patrimonial de 24.360$00.
18) Por escritura pública datada de 2/12/99, lavrada no Segundo Cartório Notarial de Évora, os RR. AA e sua mulher, BB venderam à R. “S...& L..., Ldª” representada por GG e mulher HH, o prédio rústico sito na Quinta do Bacêlo, freguesia administrativa da Senhora da Saúde, anteriormente freguesia de Évora (Sé), concelho de Évora, com a área de 6220 centiares, formado por uma única parcela cadastral de cultura arvense de regadio com destino a horta, descrito na CRP de Évora sob o n 9114, de 15/10/97, ainda da freguesia de Évora (Sé), e inscrito na matriz cadastral respectiva sob o artigo 247 da Secção “H”, com o valor patrimonial de 27.500$00.
19) Por escritura pública datada de 22/9/99, lavrada no 2º Cartório Notarial de Évora, os RR. AA e sua mulher, BB venderam ao R. II, casado com JJ no regime de comunhão de adquiridos, o prédio rústico sito na Quinta do Bacêlo, freguesia administrativa da Senhora da Saúde, anteriormente freguesia de Évora (Sé), concelho de Évora, com a área de 5826 centiares, formado por uma única parcela cadastral de cultura arvense de regadio com destino a horta, descrito na CRP de Évora sob o n 9115, de 15/10/97 ainda da freguesia de Évora (Sé), e inscrito na matriz cadastral respectiva sob o artigo 248 da Secção “H”, com o valor patrimonial de 25.760$00.
20) Por escritura pública datada de 17/11/99, lavrada no 2º Cartório Notarial de Évora, os RR. AA e sua mulher, BB venderam ao R. LL, casado com MM no regime de comunhão de adquiridos, o prédio rústico sito na Quinta do Bacêlo, freguesia administrativa da Senhora da Saúde, anteriormente freguesia de Évora (Sé), concelho de Évora, com a área de 5806 centiares, formado por uma única parcela cadastral de cultura arvense de regadio com destino a horta, descrito na CRP de Évora sob o nº 9116, de 15/10/97, ainda da freguesia de Évora (Sé), e inscrito na matriz cadastral respectiva sob o artigo 249 da Secção “H”, com o valor patrimonial de 25.680$00.21) Por escritura pública datada de 22/9/99, lavrada no 2º Cartório Notarial de Évora, os RR. AA e sua mulher BB venderam ao R. QQ, casado com NN no regime de comunhão de adquiridos, o prédio rústico denominado Quinta do Bacêlo, sito na freguesia administrativa da Senhora da Saúde, anteriormente freguesia de Évora (Sé), concelho de Évora, com a área de 5790 centiares, formado por uma única parcela cadastral de cultura arvense de regadio com destino a horta, descrito na CRP de Évora sob o nº 9117, de 15/10/97 da freguesia de Évora (Sé) e inscrito na matriz cadastral respectiva sob o artigo 250 da Secção “H”, com o valor patrimonial de 25.640$00.
22) Por escritura pública datada de 20/12/99, lavrada no 2º Cartório Notarial de Évora, os RR. AA e sua mulher, BB venderam ao R. OO, casado com PP no regime de comunhão de adquiridos, o prédio rústico sito na Quinta do Bacêlo, freguesia administrativa da Senhora da Saúde, anteriormente freguesia de Évora (Sé), concelho de Évora, com a área de 5736 centiares, formado por uma única parcela cadastral de cultura arvense de regadio com destino a horta, descrito na CRP de Évora sob o nº 9118, de 15/10/97 e ainda da freguesia de Évora (Sé) e inscrito na matriz cadastral respectiva sob o artigo 251 da Secção “H”, com o valor patrimonial de 25.360$00.23) Os RR. QQ, CC, LL e II, registaram as respectivas aquisições a seu favor na CRP de Évora.24) Encontra-se inscrita a favor da Chamada RR a aquisição, por compra aos RR. AA e mulher BB, do prédio rústico sito na Quinta do Bacelo, em Évora, freguesia da Sé, destinado a fins hortícolas de regadio, com a área de 5.257 m2 descrito na 1ª CRP de Évora sob o n 9111/, e inscrito na matriz cadastral sob o n 244, secção H, da aludida freguesia.25) A aquisição referida em 24) foi inscrita pela Ap. 2, de 22/12/2000, tendo ficado provisória por natureza, e em 16/06/04 foi oficiosamente convertida em definitiva.26) As parcelas I, J, L, M e N inscritas na matriz sob os artºs 248 a 252 não confrontam com caminho público.
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A presente acção, proposta pelo MP ao abrigo do disposto no artº 1378º, nºs 1 e 2, do CC (1) , fundou-se, de direito, no artº 1376º, nºs 1 e 2, do mesmo diploma, que dispõe o seguinte:
nº 1: Os terrenos aptos para cultura não podem fraccionar-se em parcelas de área inferior a determinada superfície mínima, correspondente à unidade de cultura fixada para cada zona do país; importa fraccionamento, para este efeito, a constituição de usufruto sobre uma parcela de terreno.
nº 2: Também não é admitido o fraccionamento quando dele possa resultar o encrave de qualquer das parcelas, ainda que seja respeitada a área fixada para a unidade de cultura.
Logo na sentença da 1ª instância foi afastado o fundamento estabelecido no nº 1 deste preceito - fraccionamento do terreno ajuizado em parcelas de área inferior à da unidade de cultura; e isto porque, em face da matéria de facto coligida, a natureza do prédio - arvense ou de sequeiro - ficou por determinar em concreto, já que também não se apurou que utilização lhe estava a ser dada à data da escritura, o que tudo inviabilizou a conclusão de que o fraccionamento operado envolveu infracção da unidade de cultura vigente na zona.
Das alegações da revista retira-se que o autor, ora recorrente, já se conformou com este segmento do julgado, pois advoga a revogação do acórdão da Relação e a consequente procedência do pedido com base, apenas, na norma do nº 2 do mesmo preceito, que, como se viu, proíbe o fraccionamento quando dele possa resultar o encrave de qualquer das parcelas, ainda que a área fixada para a unidade de cultura seja respeitada. Foi esta, aliás, como a seguir melhor se verá, a disposição legal que a sentença considerou violada, nela fazendo assentar a decretada procedência da causa. O acórdão recorrido, por seu turno, valendo-se da fundamentação jurídica dum outro aresto da mesma Relação, decidiu que o acto ou negócio jurídico unilateral, consubstanciado na escritura de divisão, é perfeitamente válido por não ter operado um fraccionamento da propriedade nos termos definidos pelo artº 1376º do CC; e arrancando desta premissa considerou que a apreciação dos restantes pedidos formulados - anulação dos negócios de compra e venda que se seguiram à escritura de divisão e cancelamento dos respectivos registos - não se justificava uma vez que, sendo mera “consequência” da procedência do pedido principal (anulação da escritura de divisão de 22/8/97) não gozavam de autonomia. Assim precisado o objecto do presente recurso, torna-se agora mais simples a análise das conclusões da minuta.
a) Começa o recorrente por arguir a nulidade do acórdão recorrido por contradição entre os fundamentos e a decisão uma vez que, por um lado, deu como provada a venda de sete das treze parcelas de terreno resultantes do fraccionamento do prédio rústico, mas, por outro, considerou não haver fraccionamento ilegal por não se ter verificado a transmissão da propriedade do imóvel. A nulidade em questão, prevista no artº 668º, nº 1, c), do CPC, ocorre quando os fundamentos invocados pelo tribunal levariam, logicamente, a uma decisão oposta (no todo ou em parte) àquela que foi adoptada. No caso presente, todavia, só aparentemente isso sucedeu. Na verdade, a contradição apontada pelo autor não ocorre porquanto o julgamento de fundo proferido está em perfeita harmonia, do ponto de vista lógico, com a concepção de fraccionamento que o acórdão acolheu; e a circunstância de nele ter sido desconsiderado, para o efeito de operar essa qualificação jurídica, o facto - provado - de várias das “parcelas” ou “lotes” provenientes da divisão do prédio ajuizado terem sido alienadas em momento posterior, é susceptível de constituir, não uma mera nulidade da decisão (no sentido de vício de construção formal), mas um verdadeiro e próprio erro de julgamento (questão que será analisada a propósito da conclusão 3ª).
Assim, improcede a 1ª conclusão.
b) Aponta-se ainda uma segunda nulidade ao acórdão recorrido: indevida omissão de pronúncia por não ter emitido julgamento sobre a validade dos negócios de compra e venda das parcelas posteriores à divisão operada e sobre o pedido de cancelamento dos registos das aquisições. O artº 668º, nº 1, d), do CPC, diz que a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. Esta disposição tem que ser interpretada e aplicada sem perder de vista a do artº 660º, nº 2, segundo a qual “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Não pode senão ocupar-se das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”. Ora, no caso presente a Relação decidiu, em primeira linha, que não houve sequer fraccionamento do prédio rústico identificado no processo; por essa razão a questão da ilegalidade da divisão, assente na violação da unidade de cultura ou do encrave de parcelas, ficou prejudicada, deixando a sua apreciação de interessar ao julgamento de fundo do litígio; e prejudicado ficou também o conhecimento da questão da invalidade dos negócios de compra e venda de várias das parcelas resultantes do fraccionamento por isso que, justamente, se decidiu inexistir fraccionamento do prédio, na acepção do artº 1376º do CC. A este propósito cabe salientar que no caso presente não pode com inteira propriedade falar-se na existência de pedidos cumulados - acumulação real de pedidos, tal como prevista no artº 470º do CC - já que o pedido principal, e único verdadeiramente subsistente, consiste na anulação do fraccionamento desencadeado pela formalização da escritura de 22/8/97, surgindo a anulação das subsequentes alienações de diversas parcelas, e bem assim o cancelamento dos registos, como uma consequência necessária daquele vício inicial, que ao Ministério Público, enquanto detentor da legitimidade para propor a acção, nos termos do artº 1379º, nº 2, do CC, interessa ver judicialmente declarada tendo em vista assegurar na sua totalidade o efeito prático da procedência da causa. Passa-se aqui algo de semelhante ao que ocorre na acção de reivindicação, onde é nítida a existência duma acumulação aparente de pedidos: formula-se aí um pedido de reconhecimento do direito de propriedade e outro de restituição da coisa apenas porque esta não pode ser ordenada se o autor não provar que é o dono da coisa; na realidade, contudo, o que se pede - aquilo que o demandante pretende, em termos práticos - é que a coisa lhe seja restituída. Tal o que, ressalvadas naturais diferenças, ocorre na situação aqui analisada; por isso é que, julgado improcedente - com ou sem razão - o pedido de anulação da escritura de divisão de 22/8/97, o julgamento dos restantes pedidos deixou de fazer sentido, não por serem subsidiários ou alternativos, mas sim porque o seu conhecimento, atendendo ao modo como a acção se estruturou, ficou na inteira dependência, do ponto de vista processual, do “destino” daquela primeira pretensão.
Improcede, portanto, a 2ª conclusão.
c) Conforme já se referiu o acórdão recorrido, acolhendo o essencial da fundamentação do acórdão 2764/05-3, de 1/2/07, da mesma Relação, entendeu que enquanto os prédios originados pela divisão se mantiverem sob o domínio e titularidade do mesmo dono a divisão não contende com qualquer dos fins visados pela estatuição constante do artº 1376º do CC; e como a escritura de 22/8/97 - factos 1 a 14 - não constituiu qualquer acto de fraccionamento, mas de simples divisão, não tendo esta infringido nenhuma das normas invocadas como fundamento da acção, revogou a sentença, absolvendo os réus do pedido.
É o acerto deste julgamento que se questiona na conclusão 3ª da revista, e a nosso ver com razão.
Efectivamente, como este Supremo já ponderou num caso de contornos muito semelhantes ao presente (Revª 3587/07-7, de 8/11/07), é certo que o fraccionamento de um prédio rústico pressupõe a sua divisão por dois ou mais proprietários, isto é, a transferência do domínio para outrem, designadamente por venda. Daí que não deva falar-se em fraccionamento quando se opera uma divisão da propriedade para efeitos matriciais ou registrais, ficando a titularidade na mesma pessoa (neste sentido P. de Lima e A. Varela, CC Anotado, III, 259, e o Ac. da Rel. de Évora atrás citado). Só que no caso presente - facto 1 - os réus AA e sua mulher BB “procederam ao fraccionamento em treze novos prédios distintos e demarcados” do prédio rústico identificado nos autos, denominado Quinta do B..., sendo certo que sete destes novos prédios foram objecto de compra e venda, com a consequente transferência das respectivas propriedades - factos 16 a 22. Não há dúvida, sendo assim, que estamos perante uma situação de fraccionamento de prédio rústico, nos termos e para os efeitos previstos no artº 1376º do CC. Negar ao acto jurídico que teve lugar em 22/8/97 a qualificação de fraccionamento a partir da sua consideração em termos completamente isolados dos negócios de compra e venda que se lhe seguiram é fechar por completo os olhos à realidade dos factos concretos ocorridos e, mais do que isso, abrir a porta, em termos práticos, à legitimação de negócios em fraude à lei. Com isto queremos dizer que o entendimento perfilhado no acórdão recorrido, consistente em ignorar o significado jurídico da alienação de parcelas do prédio fraccionado após a divisão deste, pode representar um incentivo à realização de operações de divisão de prédios rústicos cujo resultado prático coincide, justamente, com aqueles que a norma do artº 1376º pretende proibir (criação de parcelas que violam a unidade de cultura fixada para a zona, ou que, independentemente disso, ficam encravadas).
Não podendo, por consequência, o acórdão recorrido subsistir, e tendo em conta o segmento da sentença que já transitou em julgado, nos termos atrás explicitados, há que verificar se está demonstrada a causa de pedir que motivou a procedência da acção na 1ª instância - encrave de parcelas resultante do fraccionamento.
Ora, a este respeito estamos de acordo com a fundamentação e decisão da sentença, cujos passos mais relevantes passamos a transcrever:
“.....
Caracterização no caso dos autos ;
A questão é:
As parcelas resultantes do fraccionamento no caso dos autos são ou não encravadas para a proibição prevista no n.º 2 do artº 1376ºdo C.C ? Resulta ou não da matéria dada como provada que existe falta de comunicação de algumas parcelas com a via pública?
No caso dos autos, verifica-se desde logo que na escritura de fraccionamento é referido que algumas parcelas tem como confrontação a “Estrada Interna da Quinta do Caldeireiro”, ou seja, criaram os RR, no acto de fraccionamento uma “parcela” com destino a estrada (??) .
Desta forma, pela própria via do fraccionamento, foi criado um caminho. Trata-se de uma espécie de “auto-servidão”.
Resulta da matéria provada que:
“41: As parcelas I, J, L, M e N, inscritas na matriz sob os artºs 248º a 252, não confrontam com caminho público”.
É que, não nos parece que a estrada Interna possa ser de alguma forma uma via pública.
Na verdade, este caminho interno não é mais do que outra parcela do próprio fraccionamento, como as outras, mas a que chamaram “Estrada Interna”.
Não tem as características de via pública desde logo porque não tem os requisitos os seguintes requisitos:
- Não está nem nunca esteve no uso directo e imediato do público;
- E muito menos, desde tempos imemoriais;
- Não teve nem tem qualquer afectação à utilidade pública;
Com efeito, é apenas uma faixa de terreno no interior da propriedade, um carreiro entre videiras, que antes da escritura nem tinha autonomia.
Se assim não se entendesse, nunca existiria uma situação de encrave, bastando para tal que fosse criada uma parcela com o nome de caminho interno ou outro semelhante.
Por outro lado, tal caminho nunca podia traduzir uma garantia de “libertação” dos prédios, já que não estão constituídas quaisquer servidões - não há título aquisitivo de servidão - e a possibilidade de vir a constituir uma servidão, para além de ser só isso, uma mera expectativa, significa que (ao contrário do que defendem os RR ) não lhes retira a característica de prédio encravado.
É justamente essa necessidade de constituição de servidão que a lei pretende evitar, ao proibir o fraccionamento nestes casos.
A constituição de uma eventual “servidão” nessas circunstâncias, motivada pelo encrave, é exactamente o que a lei pretende evitar, pelo que a “solução” pretendida pelos RR, com a constituição de um “caminho interno”, ao contrário do que referem os RR, é um resultado proibido e não uma forma de permitir o fraccionamento.
Concluindo:
Do fraccionamento resulta o encrave das parcelas I, J, L, M e N inscritas na matriz sob os artºs 248 a 252 nos termos do art. 1376º n.º 2 do C. Civil e por isso a escritura deve ser anulada.
Esta invalidade afecta os negócios onerosos de transmissão de cada uma das parcelas uma vez que, independentemente da boa ou má fé dos adquirentes, a presente acção foi proposta no triénio posterior ao fraccionamento (artº 291º, nº 1 e 2, do CC)” (fls 1336/37).
Os recorrentes alegam que esta decisão não pode manter-se porquanto ficou provado que o prédio primitivo era servido por um caminho ladeado por oliveiras, que já era utilizado para ligação de caminhos entre si e na escritura de divisão está designado como “arruamento”; assim, acrescentam, ainda que se entenda que esse caminho/arruamento não tem natureza pública, sempre teria de concluir-se que ele corresponde a uma servidão constituída por destinação do pai de família a partir do momento em que ocorreu o fraccionamento do prédio; o facto apontado resulta, na tese dos recorridos, do que expressamente se refere na escritura de 22/8/97 e “do depoimento da testemunha SS, não tendo sido contraditado por nenhuma das testemunhas ouvidas em audiência de julgamento”. Mas é evidente a fragilidade desta argumentação. Assim, e desde logo, deve sublinhar-se que o facto alegado pelos recorrentes - revelador, no seu entendimento, da existência duma servidão constituída por destinação do pai de família, nos termos do artº 1549º do CC - não se encontra provado nos autos; e conforme é por demais sabido o STJ não pode alterar a decisão proferida quanto à matéria de facto pelo tribunal recorrido, salvo o caso excepcional previsto no nº 2 do artº 722º, que aqui não se verifica (artº 729º, nº 2, CPC). Depois, sabido que prédio encravado, segundo a lei, é aquele que não tem comunicação com a via pública, nem condições que permitam estabelecê-la sem excessivo incómodo ou dispêndio (artº 1550º do CC), perante o facto 26) não se vê que dúvida legítima possa colocar-se quanto à existência duma situação de encrave originada pelo fraccionamento operado, tal como a sentença bem pôs em evidência no passo que se transcreveu. E merece a pena, a propósito disto, salientar que os ora recorridos pugnaram na sua apelação pela alteração da resposta dada ao quesito 36º, da qual resultou o referido facto 26, sustentando que o quesito deveria ser considerado não provado. Sucedeu que a Relação, reapreciando as provas em conformidade com o disposto no artº 712º, nº 2, CPC, rejeitou tal pretensão. E fê-lo não sem chamar a atenção para o segmento do despacho da 1ª instância que fundamentou aquela resposta, despacho esse que, ao mesmo tempo que revela com toda a clareza e transparência a convicção que a julgadora objectivamente expressou sobre a existência da situação de encrave originada pelo fraccionamento do prédio ajuizado, afasta em definitivo qualquer hipótese de acolher a pretensão dos recorridos acerca da comprovação de sinais visíveis e permanentes de serventia entre as diversas parcelas à data do fraccionamento operado. Repare-se:
“A resposta ao quesito 36° baseou-se na inspecção ao local, na certidão predial e escritura de fraccionamento juntas a fls. 16 a 21 e 74 a 78, relativas ao prédio, onde se pode verificar que tais parcelas (não é o prédio que está em causa) não confrontam nem nunca confrontaram com qualquer caminho.
A referência pontual de um caminho pela testemunha SS não infirmou o que resulta da restante prova: a testemunha não foi clara e fez referência a uma “passagem” possível para outro Bairro, sem definição concreta da mesma, embora se tenha notado uma intenção “insegura” de a fazer corresponder ao actual arruamento, mas acabando por referir que: “corresponde mais ou menos ao alcatrão”. Por outro lado, a referência a um caminho pela testemunha António Charuto ainda é mais vaga e imprecisa.
Note-se que o “arruamento” como confrontação das parcelas em causa traduz uma outra parcela que foi feita “no meio das parcelas restantes” que termina numa rotunda apenas com a possibilidade de retorno, como se pode ver nas fotografias juntas a fls. 1215 a 1218.
Tal “arruamento” foi previsto na própria escritura de fraccionamento (e é em tudo semelhante à infra-estrutura dos loteamentos urbanos) e até por ser criado pelo próprio fraccionamento não pode ser considerado um caminho público, pelo que é o próprio fraccionamento que impede o contacto destas parcelas com a via pública” (fls 1298/98).
Do exposto decorre que procede a conclusão 3ª do recurso, o que determina a procedência do recurso.

III. Decisão
Acorda-se em conceder a revista e, em consequência, revoga-se o acórdão recorrido, para ficar a prevalecer o decidido pela sentença da 1ª instância.
Custas pelos recorridos.

Supremo Tribunal de Justiça, 7 de Junho de 2011
Nuno Cameira (Relator)
Sousa Leite
Salreta Pereira

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(1) O nº 1 do artº 1379º, na parte que interessa, dispõe que são anuláveis os actos de fraccionamento ou troca contrários ao disposto no artº 1376º; o nº 2, que tem legitimidade para a acção o MP ou qualquer proprietário que goze do direito de preferência nos termos do artº seguinte.