Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08S837
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SOUSA PEIXOTO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
AGRAVO CONTINUADO
NULIDADE DO CONTRATO DE SEGURO
MATÉRIA DE FACTO
ILAÇÕES
NECESSIDADE DE ASSISTENCIA CONSTANTE DE TERCEIRA PESSOA
RESPONSABILIDADE PELAS PRESTAÇÕES MÉDICAS E MEDICAMETOSAS
Nº do Documento: SJ2008102908374
Data do Acordão: 10/29/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE
Sumário :
1. A nulidade por omissão de pronúncia só ocorre quando o tribunal deixa de emitir qualquer juízo sobre determinada questão de que devia conhecer.
2. Tal omissão não ocorre quando a Relação decide não conhecer da invocada nulidade da sentença, por entender que a mesma não foi arguida no requerimento de interposição de recurso.
3. O fundamento específico do recurso de revista é a violação da lei substantiva. Todavia, a par da violação da lei substantiva também pode ser invocada a violação da lei processual, desde que a decisão atinente a tal violação fosse em si susceptível de recurso nos termos do art.º 754.º, n.º 2, do CPC.
4. Não admite recurso para o Supremo a decisão da Relação que confirmou o despacho proferido na 1.ª instância, que indeferiu o aditamento de novos quesitos à base instrutória formulado pela ré, no decurso da audiência, ao abrigo do disposto no art.º 72.º, n.º 1, do CPT.
5. Os recursos destinam-se a reapreciar as questões que já foram objecto de pronúncia no tribunal recorrido e não a proferir decisões ex novo sobre questões que naquele tribunal não foram objecto de análise, salvo se as mesmas forem de conhecimento oficioso.
6. Assim, se o thema decidendum da fase contenciosa do processo emergente de acidente de trabalho era restrito à questão de saber se a sinistrada necessitava, ou não, da assistência constante de terceira pessoa e à questão da saber qual era a retribuição por ela efectivamente auferida, a ré seguradora não pode suscitar, no recurso de apelação, a questão da nulidade do contrato de seguro, com o fundamento de que a ré tomadora do seguro não era a entidade empregadora da sinistrada e com o fundamento de que, na tentativa de conciliação, só tinha assumido a responsabilidade pela reparação do acidente, relativamente ao salário declarado para efeito do prémio de seguro, por estar convencida de que entre a sinistrada e a ré tomadora do seguro existia uma relação laboral.
7. Essa questão devia ter sido suscitada em articulado superveniente, se fosse caso disso.
8. A ilação extraída pelas instâncias, com base nos factos provados, de que a sinistrada necessitava da assistência constante de terceira pessoa, tem natureza factual e não pode ser sindicada pelo Supremo.
9. Sendo a retribuição da sinistrada superior ao salário declarado para efeitos do seguro, a responsabilidade pelas prestações médicas e medicamentosas de que a sinistrada venha a precisar recai sobre a seguradora e a entidade empregadora, na respectiva proporção.
Decisão Texto Integral:


Acordam na Secção Social do Supremo tribunal de Justiça:

1. Relatório
Os presentes autos referem-se a um acidente de trabalho de que foi vítima AA, natural da Hungria, no dia 27.10.2000, quando exercia a actividade de bailarina no EE Strip Club, traduzindo-se o acidente no facto de ter caído quando dançava.

Na fase conciliatória dos autos, o perito médico do tribunal considerou que a sinistrada tinha ficado, em consequência das lesões sofridas no acidente, com uma incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual e com uma incapacidade permanente de 75% para as restantes profissões, a partir de 24.4.2002.

Foram realizadas duas tentativas de conciliação, intervindo, na primeira, a sinistrada e a seguradora (BB – Portugal, Companhia de Seguros, S. A.) e, na segunda, a sinistrada e a CC– Agência de Modelos Unipessoal, L.da, esta na qualidade de entidade empregadora.

Nessas tentativas de conciliação, a seguradora e a entidade empregadora reconheceram a natureza laboral do acidente e aceitaram o nexo de causalidade entre o acidente e as lesões e a incapacidade atribuída pelo perito médico, e a seguradora aceitou pagar à sinistrada não só a pensão anual e vitalícia de € 2.895,88, com efeitos a partir de 25.4.2002, referente ao salário anual de 63.800$00 x 14, declarado pela entidade empregadora para efeitos do contrato de seguro que com ela tinha celebrado, mas também o subsídio de elevada incapacidade, no montante de € 3.818,80, e as prestações em espécie referidas no auto de exame médico, sem prejuízo de, em relação a estas, fazer responder a entidade patronal na proporção respectiva.

Apesar disso, o acordo não foi obtido, por duas ordens de razões: a sinistrada não aceitou o resultado do exame médico, por entender que necessitava da ajuda constante de uma terceira pessoa, e não aceitou que a sua retribuição correspondesse apenas ao montante declarado pela entidade empregadora à seguradora; a entidade empregadora não aceitou a retribuição que a sinistrada declarou auferir (entre os 300.000$00 e os 500.000$00 mensais), alegando que a retribuição efectivamente por ela recebida era a que tinha sido declarada à seguradora, apesar de no contrato de trabalho junto aos autos constar que o salário diário da sinistrada era de 4.000$00, acrescido de outras prestações (table dance e comissão nas bebidas), dado que, nos termos do referido contrato, a sinistrada pagava à Agência uma comissão que correspondia a uma parte do referido salário diário, sendo que as outras prestações não eram pagas pela “CC”, mas sim directamente pelo Clube onde ela trabalhava.

Dada a falta de acordo, o processo avançou para a fase contenciosa, com a apresentação da respectiva petição inicial, demandando a autora, na segunda petição, apresentada a convite do M.mo Juiz, a Companhia de Seguros BB e a CC– Agência de Modelos, Unipessoal, L.da (na primeira petição a autora também tinha demandado o FAT).

Apenas a ré “CC” contestou, alegando, em resumo, o seguinte:
- não tem conhecimentos médicos para poder contrariar a versão da A. de que ficou paraplégica da cintura para baixo; no entanto, pela leitura do relatório médico do Hospital Militar Central ...... de 00 de Janeiro de 2002, junto aos autos, verifica-se que ela apenas ficou com paraplegia incompleta;
- o vencimento da autora era realmente composto de uma parte fixa e de uma parte variável, mas apenas a parte fixa constante do contrato de trabalho era da responsabilidade da ré;
- os valores relativos às table dance e às comissões sobre bebidas eram pagas diariamente à autora pelo Clube onde se encontrava a prestar serviço, que no caso era o EE Strip Club pertencente à sociedade BB, L.da, desconhecendo a ré esses valores, sobre os quais não recebia qualquer comissão;
- a ré tinha um contrato com o Clube onde a autora trabalhava, nos termos do qual recebia uma comissão de 20% sobre o valor fixo facturado que era de 5.000$00 por cada dia, dos quais resultava para a ré uma comissão de 1.000$00 e dos restantes 4.000$00 eram deduzidos mais 20%, o que resultava no pagamento de 64.000$00 mensal à autora da responsabilidade da ré;
- foi este o valor fixo que a ré se obrigou a pagar à A. e que servia de base ao seguro de acidentes de trabalho.

Proferido o despacho saneador, seleccionados os factos admitidos por acordo e elaborada a base instrutória, foi aberto o apenso para fixação da incapacidade, no qual veio a ser proferido despacho que considerou a sinistrada totalmente incapaz para o seu trabalho habitual e com uma IPP de 75% para as restantes actividades.
No decurso da audiência de discussão e julgamento, a ré seguradora requereu (fls. 450) que, face ao que tinha sido dito durante a mesma, fossem aditados três quesitos à base instrutória, com o objectivo de esclarecer qual era realmente a entidade empregadora da sinistrada, a “CC” ou a “EE Strip Club”, cujo teor seria o seguinte:
40.º - Para quem trabalhava a A., aquando do acidente de que se ocupam os autos?
41.º - Qual a entidade que pagava à A. a parte variável da sua retribuição?
43.º - Qual o valor da referida parte variável?

O M.mo Juiz indeferiu o requerido e a seguradora interpôs recurso de agravo do respectivo despacho.

Findo o julgamento e dadas as respostas aos quesitos, foi proferida sentença, condenando:
a) as rés a pagar à autora uma pensão anual e vitalícia, no valor de € 21.685,66, a partir de 25.4.2002, sendo 13,4% – € 2.895,89 – da responsabilidade da seguradora e 86,6% – € 18.789,77 – da responsabilidade da ré entidade patronal (“CC”), a actualizar anualmente de acordo com as legais percentagens;
b) a ré seguradora a pagar à autora um subsídio por situação de elevada incapacidade permanente, pago de uma só vez, no montante de € 3.818,80;
c) a ré seguradora a pagar à autora a prestação suplementar mensal prevista no art.º 19.º da LAT, a partir da data da alta, equivalente ao valor do salário mínimo dos trabalhadores do serviço doméstico;
d) as rés a pagar à autora os juros de mora, a contar das datas de vencimento das prestações.

Da sentença recorreram a ré seguradora e a sinistrada.

A seguradora, por entender que a sentença era nula (por ter sido condenada a pagar à sinistrada o subsídio de elevada incapacidade, sem esta tivesse formulado qualquer pedido nesse sentido – certamente pelo facto de, logo na tentativa de conciliação, a seguradora ter aceitado o seu pagamento e de o mesmo já ter sido pago em 17.7.2002 –, e por ter sido condenada a pagar à sinistrada a prestação suplementar, sem qualquer suporte factual para tal) e por entender que o contrato de seguro não era válido, uma vez que a sua segurada, a “CC”, não era a entidade empregadora da sinistrada, mas sim a sociedade que explorava o “EE Strip Club”.
A sinistrada, por entender que a sentença lhe devia ter reconhecido o direito vitalício a assistência médica e medicamentosa.

Conhecendo dos recursos, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu: i) negar provimento ao recurso de agravo; ii) não tomar conhecimento das nulidades da sentença arguidas pela ré seguradora, por tal arguição não ter sido feita no requerimento de interposição do recurso, e julgar improcedente a apelação da ré quanto ao mais; iii) julgar procedente a apelação da sinistrada e condenar a seguradora a prestar-lhe a assistência médica e farmacêutica.

Mantendo o seu inconformismo, a ré “BB” interpôs recurso de revista, arguindo, no respectivo requerimento, a nulidade do acórdão da Relação, “por defeito de pronúncia designadamente ao não tomar conhecimento da suscita[da] nulidade em torno da questão do subsídio por elevada incapacidade”, e concluindo as suas alegações da seguinte forma:

1.ª - É inteiramente verdade que, em sede de tentativa de conciliação, a aqui Recorrente assumiu a responsabilidade pela reparação do acidente, condicionando-a à retribuição de Esc. 63.800$00 x 14 meses.
2.ª - Fê-lo, porém, perante os factos que até então conhecia e que lhe terão sido transmitidos pela CC.
3.ª - Ao tomar conhecimento, em plena audiência de julgamento, de factos até então silenciados pela sinistrada e pela CC e que consubstanciavam a inexistência de qualquer vínculo jurídico-laboral entre as mesmas, e,
4.ª - Por outro lado, indiciando os mesmos factos que a sinistrada estava ao serviço e sob as ordens, direcção " fiscalização do EE Strip Club,
5.ª - Requereu, por esse facto, o aditamento de 3 quesitos à B.I. em vista a saber:
Quesito 40.º: Para quem trabalhava a A., aquando do acidente de que se ocupam os autos?
Quesito 41.º: Qual a entidade que pagava a parte variável da sua retribuição?
Quesito 42.º: Qual o valor da referida parte variável?
6.ª - A pretensão foi denegada pela 1.ª instância. Da respectiva decisão coube recurso de agravo.
7.ª - Apreciando-o, a Relação acolheu, no essencial, a tese da 1.ª instância sustentando que aquela matéria estava subtraída à discussão, quer porque o contrato de trabalho integrava matéria de especificação, quer porque a pretensão da Recorrente extravasava as únicas questões que terão desencadeado a passagem à fase contenciosa.
8.ª - Mas a verdade é que a Recorrente desconhecia aqueles factos, e quem deles tinha conhecimento silenciou-os (entenda-se a sinistrada e a CC).
9.ª - A matéria que se pretendia aditar e foi recusada não o foi por ser irrelevante como dispõe a lei – ver art.º 72.º, n.º 1, do Cód. de Processo do Trabalho.
10.ª - E com ela visava-se o apuramento de factos aptos ao enquadramento no art.º 2.º da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, e simultaneamente,
11.ª - Aferir da validade do contrato de seguro, nomeadamente ante a manifesta falta de interesse da CCem outorgá-lo – ver artigos 15.º do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril, e 428° parágrafo 1.º do Cód. Comercial.
12.ª - Assim, mostram-se violados os artigos 72.º, n.º l, do Cód. de Processo do Trabalho, art.º 2.º da Lei 100/97, de 13 de Setembro, art.º 428.º do Cód. Comercial e art.º 663.º, n.º 2, do Cód. de Processo Civil.
13.ª - Não obstante ficou a saber-se que a CCapenas fazia a gestão da actividade profissional da sinistrada que era prestada nas instalações, sob as ordens, direcção e fiscalização do EE Strip Club,
14.ª - E, por esse facto, a CC embolsava da sinistrada Esc. 1.000$00/ diariamente, a título de comissão, por lhe assegurar trabalho, e
15.ª - Outro tanto embolsava a CC do EE Strip Club, a título de comissão, por lhe proporcionar permanentemente a bailarina AA.
18.ª - Contudo, a Relação considerou, ainda assim, ser a CC a entidade patronal da sinistrada.
17.ª - Deste ponto de vista ocorreu erro de julgamento já que a decisão foi proferida contra factos provados,
18.ª - Por não haver conhecido da nulidade suscitada, porventura por mero lapso, quanto à condenação no pagamento do subsídio por elevada incapacidade, a Relação cometeu a nulidade prevista no art.º 668.º, 1, d), do Cód. de Processo Civil.
19.ª - A condenação na prestação suplementar por necessidade de auxílio constante da terceira pessoa não está devidamente ancorada, porque lhe falta a demonstração de indispensabilidade.
20.ª - A prova lograda demonstra, tão só, a necessidade pontual de ajuda de 3.ª pessoa.
21.ª - Acresce que médico algum a preconizou – Ver art.º 48.º, n.º 2, do D.L n.º 143/99, de 30 de Abril.
22.ª - Mas, ainda que a ela houvesse lugar, sempre a CCteria de nela comparticipar, na proporção da sua responsabilidade – cfr. art.º 37.º, n.º 3, da Lei 100//97, de 13 de Setembro.
23.ª - O mesmo se diga, mutatis mutandis, quanto à condenação na prestação de assistência médica e farmacêutica.
24.ª - Violados ficam os artigos 72.º, n.º 1, do Cód. de Processo do Trabalho, art.º 2.º e 37.º, n.º 3, da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, art.º 428.º do Cód. Comercial, art.os 15.º e 48.º, n.º 2, do D.L. 143/99, de 30 de Abril, e art.os 663.º, n.º 2, e 668.º, n.º 1, d), do Cód. de Processo Civil.
A autora contra-alegou defendendo a confirmação do julgado e, neste Supremo Tribunal, a Ex.ma Procuradora-Geral-Adjunta pronunciou-se –“em parecer” a que as partes não responderam –, no sentido de que processo devia baixar à Relação, para que esta conhecesse da nulidade da sentença referente ao subsídio por elevada incapacidade, e de que, quanto ao mais, o recurso devia ser julgado improcedente.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

2. Os factos
Na 1.ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
Admitidos por acordo:
A) No dia 27 de Outubro de 2000, pelas 23 horas, quando a autora se encontrava a dançar apoiada num varão vertical, escorregaram-lhe as mãos, caiu e bateu com as costas no chão do palco.
B) De imediato levada para o Hospital de S. José, aí recebeu assistência de urgência.
C) No dia 31.10.2000, foi sujeita a osteo-síntese de T12 a L2, na Unidade Vértebra Medular do mesmo Hospital.
D) No dia 23.11.2000, foi recuperada no Hospital de S. José, fazendo corporectomia de L1 e libertação do epicone.
E) A 18.12.2000, teve a sua primeira consulta no Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão.
F) Teve alta do Centro de Medicina e Reabilitação de Alcoitão no dia 00 de Julho de 2001, tendo sido transferida para o Hospital da Ordem Terceira, onde se encontra neste momento internada, à espera de alta.
G) Na altura daquela queda, a autora estava a praticar o seu número de dança,
H) Dentro do seu horário de trabalho, encontrando-se em preparação para a sua exibição.
I) A autora nasceu em 1981 e é húngara.
J) A 2.ª ré estabeleceu com a autora o contrato de trabalho temporário de fls. 169 a 171.
L) Aí se estabeleceu que o salário da autora era calculado “com base nas seguintes componentes:
a) 4.000 PTE fixo, por dia.
b) 3.000 PTE, por cada table dance.
c) Uma percentagem sobre o consumo, conforme especificado na lista de percentagens sobre as bebidas em vigor no respectivo Clube.
M) Teve lugar a tentativa de conciliação de fls. 152 a 154 (1.ª ré seguradora BB) e de fls. 181 a 184 (2.ª ré, CC), tendo a seguradora ali aceitado a existência de acidente de trabalho, o nexo causal entre esse acidente e as lesões, bem como a sua responsabilidade em função da retribuição mensal de 63.800$00 x 14 para si transferida; a entidade patronal, por seu turno, aceitou a existência de acidente de trabalho, o nexo causal entre esse acidente e as lesões consideradas pelo perito médico do tribunal, considerando, porém, que o vencimento transferido para a seguradora era o correcto, pelo que não aceitou a sua responsabilidade pelo acidente em causa.
Da base instrutória:
1. A autora auferia, para além do valor fixo, quantia variável que podia ascender, por noite a cerca de Euros 250,00 (50.000$00).
2 e 3 – A referida quantia variável resultava das bebidas que a autora consumia com os clientes e das danças (table dance e private dance) pela mesma efectuadas, sendo-lhe tais valores entregues por funcionário do EE Strip Club, onde a mesma dançava.
4. Apesar de facultar residência à autora e transporte, a agência ainda tinha lucros.
5. Foi fixado o valor de diário de 12.000$00, no caso de falta não justificada da bailarina.
6. As lesões da autora não têm cura.
7. A autora jamais vai poder voltar a andar.
8. A autora não mexe nem sente toda a parte inferior do corpo.
9. A autora tem que tomar especial cuidado nos locais onde se senta.
10. A autora, dado não ter sensibilidade na parte do corpo abaixo da vértebra lesionada, pode-se queimar, cortar, ferir, sangrar, que nada sente.
11. A autora tem que realizar um exame diário do seu corpo, com um espelho, a fim de verificar o estado da pele.
12. A autora está especialmente sujeita a infecções urinárias, à formação de escaras, a problemas respiratórios decorrentes da imobilidade das costas e da acumulação de secreções e a edemas (inchaços) nas articulações.
13. Bem como à calcificação das articulações, que causam grandes dores peri-articulares e dores nas costas e retracções musculares.
14. A autora tem que fazer exercícios, para se pôr em pé e tem que auto-mobilizar-se.
15. A autora necessita de assistência médica de revisão, no mínimo anual.
16. A autora teve que usar sondas para retirar a urina e procede a treino intestinal vesical.
17. A autora necessitará de tratamentos e assistência médica e medicamentosa, assim como medicamentos, para defecar e urinar.
18. Para defecar a A. tem que tomar comprimidos.
19. A autora sofreu uma trombo-flebite na perna esquerda, em Agosto de 2002, que se manteve até Janeiro de 2003 e necessitará de assistência e cuidados médicos.
20. Em virtude das lesões, a autora, apesar de poder circular de cadeira de rodas, não pode fazer, sozinha, a sua higiene pessoal.
21. Não pode também, sozinha, vestir-se, despir-se, deitar-se, levantar-se da cama, fazer as actividades caseiras, fazer a cama, subir e descer escadas, e ainda alcançar armários ou objectos colocados a mais de 1,60 m.
22. A autora também não pode ligar e desligar o esquentador, pôr cabides em armários, mudar uma lâmpada, fazer compras, transportar compras, estender roupa e fazer a limpeza da casa.
23. A autora não pode, sozinha, deslocar-se no metro, eléctrico, autocarro e cacilheiro.
24. A autora tentou ir passear no Bairro Alto, mas não conseguiu, em virtude da morfologia das ruas que não lhe permite o acesso para a cadeira de rodas.
25. A autora só consegue andar no Alfa que liga Lisboa ao Porto, que tem carruagens específicas para paraplégicos, e de táxi e com a ajuda de terceira pessoa.
26. A maioria das cabines telefónicas, dos postos de Multibanco, dos estádios de futebol e dos cinemas não tem acesso a cadeiras de rodas.
27. A autora, ao circular na rua, depara-se com escadas, passeios e carros estacionados, os quais impedem a sua circulação de cadeira de rodas.
28. Para subir e descer passeios, a autora necessita da ajuda de alguém.
29. No Tribunal de Trabalho de Lisboa, a autora não pode circular sozinha, razão pela qual a ré BB tem uma enfermeira que a traz.
30. Sem o auxílio de uma terceira pessoa, a autora não consegue levantar-se no caso de uma queda.
31. A autora perdeu grande parte das suas relações afectivas com os amigos e vizinhos e está impedida de ir sozinha ao cinema, teatro, etc.
33. A 2.ª ré recebia da sociedade que explorava o EE Strip Club 20% sobre valor facturado fixo.
34. O valor facturado por cada dia de trabalho era de 5.000$00, desses recebendo a 2.ª ré 1.000$00.
35. Dos 4.000$00 que a autora recebia da 2.ª ré, eram deduzidos para esta ré 20%.
36. O valor que fosse para além do que a 2.ª ré pagava à autora só era lhe pago quando esta trabalhava.
39. A penalização de 12.000$00 correspondia a três dias de trabalho em que a 2ª ré teria de indemnizar o Clube no caso de falta injustificada da bailarina, e a penalização de 120.000$00 correspondia à indemnização que a 2.ª ré teria de pagar ao clube, no caso de não substituir a bailarina.

A Relação manteve os factos referidos e, ao abrigo do disposto no art.º 659.º do CPC, aplicável ex vi art.º 713.º, n.º 2, do mesmo Código, aditou-lhes mais um, a saber:

40. Em 17 de Julho de 2002, a 1.ª ré pagou à autora a quantia de € 3.818,80, a título de subsídio por situação de elevada incapacidade permanente (recibo de fls. 196, não impugnado).

3. O direito
Tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela recorrente, as questões suscitadas por ela suscitadas, segundo a ordem de precedência lógica que entre elas intercede, são as seguintes:
- Saber se o acórdão recorrido é nulo, por, alegadamente, não ter conhecido da nulidade da sentença arguida pela seguradora no recurso de apelação, relativa ao facto de ter sido condenada a pagar à sinistrada o subsídio por elevada incapacidade, sem que tal pedido tivesse sido formulado;
- Saber se a decisão recorrida deve ser revogada na parte em que negou provimento ao recurso de agravo interposto pela ré seguradora, a que acima já fizemos referência;
- Saber se o contrato de seguro celebrado entre a recorrente e a ré CC– Agência de Modelos Unipessoal, L.da é nulo;
- Saber se a sinistrada tem direito à prestação suplementar prevista no art.º 19.º da LAT (necessidade de assistência constante de terceira pessoa) e, na hipótese afirmativa, saber se essa prestação deve ser suportada unicamente pela recorrente seguradora ou, também, pela “CC”;
- Saber se a seguradora é a única responsável pelas prestações médicas e medicamentosas de que a sinistrada venha a necessitar.
3.1 Da nulidade do acórdão
Na sentença, a ré BB Portugal Companhia de Seguros, S. A., foi condenada a pagar à sinistrada, além do mais que agora e aqui não interessa, a quantia de € 3.818,80, a título de subsídio por elevada incapacidade, nos termos dos artigos 17.º, n.º 1.º alínea c), e 23.º da LAT (Lei n.º 100/97, de 13/9).

Como já foi referido, no requerimento de interposição do recurso de apelação, a seguradora alegou que a sentença era nula por, além do mais que ao recurso de revista não interessa, a ter condenado a pagar à sinistrada o subsídio por elevada incapacidade, sem que tal pedido tivesse sido formulado, certamente porque, na tentativa de conciliação, a seguradora aceitara assumir o seu pagamento e pelo facto de o mesmo já ter sido efectivamente pago.

O Tribunal da Relação reconheceu que a sentença enfermava realmente de excesso de pronúncia, por ter condenado a seguradora no pagamento do mencionado subsídio, mas decidiu que não podia conhecer da referida nulidade, pelo facto de a mesma não ter sido arguida no requerimento de interposição do recurso, mas tão somente nas alegações.

No requerimento de interposição do recurso de revista, a seguradora alegou que o acórdão da Relação era nulo por não ter conhecido da dita nulidade e, no corpo das alegações, alegou que a Relação, ao abster-se de conhecer da referida nulidade, com o fundamento de que esta não tinha sido arguida no requerimento de interposição de recurso, incorreu em manifesto lapso, uma vez que tal arguição constava daquele requerimento.

A recorrente tem razão quando alega que a Relação incorreu em manifesto lapso. Na verdade e como já foi referido, a nulidade em questão foi expressamente arguida pela seguradora no próprio requerimento do recurso de apelação. Tal lapso deve-se, certamente, ao facto de tal requerimento e as alegações estarem inseridas no mesmo suporte físico, mas, como deste se constata (vide fls. 583), não há a mínima confusão entre o requerimento e as alegações: o primeiro antecede claramente as alegações e é expressamente dirigido ao “Ex.mo Senhor Dr. Juiz de Direito; as segundas, embora na mesma folha, vêm a seguir e são dirigidas aos “Venerandos Desembargadores”.

Não tem, todavia, razão a recorrente quando alega que o acórdão da Relação enferma de nulidade, por se ter abstido de conhecer da nulidade em questão.

É que a nulidade por omissão de pronúncia só ocorre quando o tribunal deixa de emitir qualquer decisão sobre alguma das questões de que devia apreciar nos termos do art.º 660.º, n.º 2, do CPC, isto é, quando alguma dessas questões é absolutamente silenciada.

Ora, no caso em apreço, não foi isso o que aconteceu. De facto, ao decidir, embora de forma incorrecta, que não podia conhecer da nulidade em causa, a Relação mais não fez do que tomar uma decisão sobre a questão referente à dita nulidade, não podendo, por isso, falar-se em omissão de pronúncia. O que houve foi, claramente, um erro de julgamento, mas o erro de julgamento não determina a nulidade dos acórdãos da Relação, uma vez que estes só são nulos quando enfermem de algum dos vícios que tornam nula a sentença (art.º 716.º, n.º 1, do CPC), ou seja, quando se verifique algumas das situações taxativamente previstas no art.º 668.º, n.º 1, do CPC, subsidiariamente aplicável ao processo laboral nos termos do art.º 1.º, n.º 2, alínea a), do CPT, das quais o erro de julgamento não faz parte.

Improcede, deste modo, a arguida nulidade do acórdão da Relação.

Todavia, o erro de julgamento cometido pela Relação relativamente à referida nulidade da sentença, implica que este Supremo Tribunal desta tenha de conhecer, nos termos dos artigos 715.º, n.º 2, e 726.º do CPC, aplicáveis ao processo laboral por força do disposto no art.º 81.º, n.º 5, do CPT, o que se fará mais adiante.

3.2 Da decisão proferida relativamente ao agravo
Como já foi referido em 1. (Relatório), no decurso da audiência de julgamento a ré BB requereu que fossem aditados três novos quesitos à base instrutória, alegando que “[d]urante a 1.ª sessão de julgamento foram produzidas afirmações sobre factos que[,] não tendo sido alegados pelas partes[,] assumem relevância para a casuística dos autos” e que “[p]aralelamente, afirmações outras foram produzidas que contendem com o que consta dos autos e maxime a posição assumida pela R. Seguradora, em sede de tentativa de conciliação levada a cabo em 14/6/2002”.

E mais alegou, então, a seguradora que os factos em questão (que sumariamente concretizou) levavam à conclusão de que a sinistrada não trabalhava para a CC, mas sim para o EE Strip Club, o qual, por isso, devia figurar nos presentes autos e que, por essa razão, a CC não tinha qualquer interesse na celebração do contrato de seguro que consigo outorgou, o que acarretava a nulidade do mesmo, nos termos do art.º 428.º, § 1.º, do Código Comercial, sendo que ela (seguradora) tinha agido de boa fé, aquando da celebração do dito contrato, pois não lhe competia indagar sobre se existia algum vínculo laboral entre a sinistrada e a CC.

Aquela pretensão foi indeferida pelo M.mo Juiz, a seguradora agravou do respectivo despacho, mas a Relação negou provimento ao recurso.

No recurso de revista, a recorrente pôs em causa a bondade daquela decisão.

Acontece, porém, que aquela decisão da Relação não é susceptível de recurso para o Supremo, face ao disposto nos artigos 722.º, n.º 1, e 754.º, n.º 2, do CPC, aplicáveis ao recurso de revista em processo laboral por força do que estabelecido no art.º 81.º, n.º 5, do CPT.

Na verdade, a pretensão formulada no requerimento que vem sendo referido reveste-se claramente de natureza processual, uma vez que a mesma contendia com o disposto no art.º 72.º, n.º 1, do CPT, nos termos do qual o tribunal deve ampliar a base instrutória, ou não a havendo, tomar em consideração na decisão da matéria de facto, os factos que, embora não articulados, tenham surgido no decurso da produção da prova e se mostrem relevantes para a boa decisão da causa, desde que sobre eles tenha incidido discussão.

Ora, embora no recurso de revista, quando este seja o próprio, o recorrente possa alegar, nos termos do art.º 722.º, n.º 1, do CPC, além da violação de lei substantiva (que constitui o fundamento específico do recurso de revista – art.º 721.º, n.º 2, do CPC), a violação de lei do processo, o certo é que esta violação só pode ser alegada quando a respectiva decisão, autonomamente considerada, fosse, em si mesma, susceptível de recurso nos termos do art.º 754.º, n.º 2, do CPC, isto é, quando tal decisão admitisse recurso de agravo em 2.ª instância.

Ora, nos termos do citado art.º 754.º, n.º 2, não há recurso de agravo do acórdão da Relação que haja sido proferido sobre decisão da 1.ª instância, salvo nas situações excepcionais previstas na segunda parte do referido n.º 2 e no n.º 3 do art.º 754.º.

No caso em apreço nenhumas das aludidas excepções se verifica e dúvidas não há de que o acórdão da Relação incidiu sobre decisão da 1.ª instância. E sendo assim, é fácil de ver que a decisão da Relação, na parte em que negou provimento ao recurso de agravo e manteve o despacho do M.mo Juiz que indeferiu a aditamento de novos quesitos à base instrutória, formulado pela ré seguradora no decurso da audiência de julgamento, não era em si mesma passível de recurso de agravo para o Supremo, o que vale por dizer que tal decisão não podia ser impugnada no recurso de revista e que, tendo-o sido, não pode o Supremo conhecer do recurso, nessa parte.

3.3 Da nulidade da sentença
Como já referimos, a sentença condenou a seguradora a pagar à sinistrada a quantia de € 3.818,80, a título de subsídio por elevada incapacidade, sem que na petição inicial a sinistrada tivesse formulado tal pedido.

Todavia, daí não resultaria, sem mais e só por si, a nulidade da sentença.

Com efeito, ao contrário do que acontece no processo civil comum, em que a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido (art.º 661.º do CPC), no processo laboral essa regra comporta as excepções previstas no art.º 74.º do CPT, nos termos do qual “[o] juiz deve condenar em quantidade superior ao pedido ou em objecto diverso do pedido quando isso resulte da aplicação à matéria provada, ou aos factos de que possa servir-se, nos termos do artigo 514.º do Código de Processo Civil, de preceitos inderrogáveis de leis ou instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho”.

Ora, o subsídio por elevada incapacidade é uma das prestações que integram o direito à reparação por acidentes de trabalho (artigos 10.º e 23.º da LAT) e, nos termos do art.º 35.º da LAT, os créditos provenientes do direito àquelas prestações “são inalienáveis, impenhoráveis e irrenunciáveis”, o que significa que as disposições que as fixam são de natureza inderrogável.

E, sendo assim, o juiz não pode deixar de condenar o responsável pela reparação do acidente no pagamento das prestações que, em cada caso, sejam devidas ao sinistrado ou aos seus beneficiários, ainda que as mesmas ou alguma delas não tenham sido pedidas.

No caso em apreço, porém, a condenação da seguradora não devia ter sido decretada, uma vez que, na sentença, o M.mo Juiz devia ter levado em conta, nos termos do art.º 659.º, n.º 3, do CPC, o facto de o subsídio por elevada incapacidade já ter sido pago pela seguradora (recibo de fls. 196), na sequência, aliás, da posição que esta já tinha assumido na tentativa de conciliação de aceitar pagar o subsídio em questão (vide facto n.º 40 aditado pela Relação).

Na verdade, estando aquele subsídio já pago, não havia que aplicar o disposto no art.º 74.º do CPT e, não sendo este aplicável, dúvidas não há de que sentença condenou para além do pedido, o que acarreta a sua nulidade nos termos do art.º 668.º, n.º 1, alínea e), do CPC, aplicável ao processo laboral ex vi art.º 1.º, n.º 2, al. a) do CPT.

Nos termos dos já referidos artigos 715.º, n.º 2 e 726.º do CPC, cabe ao Supremo suprir aquela nulidade e tal suprimento implica naturalmente a revogação da sentença na parte em que condenou a seguradora a pagar à sinistrada a quantia de € 3.818,80, a título de subsídio por elevada incapacidade.

3.4 Da alegada nulidade do contrato de seguro
No recurso de apelação, a seguradora suscitou a questão da “validade do contrato de seguro em face do conhecimento superveniente de factos que não caracterizam um contrato de trabalho” entre a sinistrada e a CC, alegando, em resumo, que o facto de ter assumido a responsabilidade pela reparação do acidente, relativamente ao salário transferido de 63.800$00 x 14 meses, não a inibia de, perante uma nova realidade, surgida no decurso da audiência de julgamento, questionar a validade do contrato de seguro, uma vez que a assunção daquela responsabilidade assentara nos elementos de facto que então eram conhecidos, nos termos dos quais a sinistrada estaria, supostamente, vinculada à “CC” por um contrato de trabalho, consoante esta tinha declarado ao subscrever a proposta do contrato de seguro.

E, prosseguindo na sua alegação, a companhia de seguros teceu argumentação visando a convencer a Relação de que os factos dados como provados permitiam concluir no sentido de que o contrato de trabalho da sinistrada não era com a “CC”, mas sim com a sociedade que explorava o “EE Strip Club”, daí decorrendo, nos termos do art.º 428.º, § 1.º, do Código Comercial, a nulidade do contrato de seguro que tinha firmado com a “CC”, por falta de interesse desta na realização de tal contrato -(1).

O Tribunal da Relação de Lisboa julgou improcedente o recurso, nessa parte, com o fundamento de que nas tentativas de conciliação realizadas na fase administrativa dos autos tinha ficado assente que a entidade empregadora da sinistrada era a “CC”, uma vez que nelas tinha havido acordo acerca da existência e caracterização do acidente como de trabalho e do nexo causal entre o acidente e as lesões e a seguradora tinha assumido a sua responsabilidade relativamente ao salário de 63.800$00 x 14, cingindo-se o desacordo ao montante da retribuição auferida pela sinistrada e à necessidade por parte desta da assistência constante de terceira pessoa, tendo sido estas as duas questões que transitaram para a fase contenciosa.

Mais concretamente e a tal respeito, no acórdão recorrido escreveu-se o seguinte:
«A este respeito, a ré retoma, o que já havia alegado em sede de recurso de agravo e procura demonstrar que a autora trabalhava, de facto, para o EE Strip Club, daí concluindo que o contrato de seguro celebrado com a 2.ª ré é nulo, face ao disposto no art. 428.º nº 1 do Cód. Com..
Como tivemos oportunidade de ver, quando apreciámos o recurso de agravo, está definitivamente assente e excluída de qualquer posterior discussão processual a questão de saber quem era a entidade patronal da autora: a entidade patronal da autora era a 2.ª ré, visto que se trata de facto sobre o qual, como se disse, houve acordo nas tentativas de conciliação – art. 131.º, nº 1, alínea c) do Cód. Proc. Trab.»

A recorrente discorda e nesse sentido alegou, em resumo, o seguinte:
- a recorrente só participou na tentativa de conciliação realizada em 14.6.2002 e, nessa tentativa, não foi suscitada a questão de saber quem seria a entidade patronal da sinistrada e também nunca foi notificada de qualquer outra tentativa de conciliação onde aquela questão tivesse sido suscitada;
- por isso, mantém absoluta actualidade a questão de saber quem era a entidade patronal da sinistrada e deve ser objecto de análise, visto que influi na validade do contrato de seguro que foi efectuado pela CC;
- os factos conhecidos em audiência de julgamento demonstram que a CC fazia a gestão da actividade profissional da sinistrada perante o EE Strip Club e, em consequência, deste embolsava 20% e daqueloutra o mesmo sobre 5.000$00;
- deste modo, a CC não pode ser vista como a entidade patronal da sinistrada, porque não o é, pelo que o contrato de seguro pela mesma celebrado enferma de nulidade, dada a sua falta de interesse em contratar.

Como decorre do assim alegado, a recorrente pretende eximir-se da responsabilidade que assumiu na tentativa de conciliação pela reparação do acidente, com o fundamento de que a sinistrada não trabalhava para a tomadora do seguro (a ré CC”), mas sim para a sociedade proprietária do Clube onde exercia a sua actividade, facto de que só veio a tomar conhecimento no decurso da audiência de discussão e julgamento.
Como se extrai de tudo quanto já foi dito, o thema decidendum da fase contenciosa da presente acção ficou restrito à questão de saber qual era o montante da retribuição auferida pela sinistrada e à questão de saber se esta necessitava, ou não, da assistência constante de terceira pessoa.

Assim, se, no decurso da fase contenciosa, a seguradora veio a constatar que tinha sido induzida em erro ao assumir, na tentativa de conciliação, a responsabilidade pela reparação do acidente, relativamente ao salário que, para efeitos do contrato de seguro, havia sido declarado pela co-ré “CC”, só tinha um caminho a seguir: avançar com um articulado superveniente, nos termos do art.º 506.º do CPC, subsidiariamente aplicável ao processo laboral, ex vi art.º 1.º, n.º 2, al. a), do CPT, o que podia fazer até ao encerramento da audiência de discussão e julgamento, alegando o erro de que foi vítima e os factos em que o mesmo se materializou.

Não tendo procedido dessa forma – pois se limitou a requerer o aditamento de novos quesitos à base instrutória – é óbvio que no recurso de apelação não podia suscitar aquela questão, dado que os recursos se destinam a reapreciar a decisão proferida no tribunal recorrido sobre questões que aí foram objecto de análise e não a proferir decisões ex novo sobre questões que aquele tribunal não foi chamado a pronunciar-se, salvo se se tratar de questões de conhecimento oficioso, o que no caso não sucede.

Bem andou, pois, a Relação ao julgar improcedente o recurso, nesta parte.

3.5 Do direito à prestação suplementar
Na sentença recorrida entendeu-se que a sinistrada necessitava da assistência constante de terceira pessoa e, a esse título, a companhia de seguros foi condenada a pagar-lhe, mensalmente, a contar da data da alta, a prestação suplementar, no valor do salário mínimo dos trabalhadores domésticos.

No recurso de apelação, a seguradora insurgiu-se contra aquela condenação, alegando a inexistência de suporte factual para tal, dado que o exame médico singular não reconheceu a necessidade de ajuda constante de terceira pessoa e a junta médica não sustentou o contrário, sendo que “a matéria não foi alegada pela A., não foi objecto de aditamento à B.I., nem está subtraída por lei à necessidade de prova” e “[a]s referências vagas, que encontram corpo nas respostas aos quesitos 20.º, 25.º e 30.º, e que terão sido feitas por algumas testemunhas[,] ficam--se por isso mesmo, isto é, pela vacuidade, por via da sua fragilidade”.

A Relação não acolheu a argumentação da recorrente e negou provimento ao recurso, nesta parte, com o fundamento de que, embora no exame médico singular e no exame por junta médica não se faça qualquer referência à necessidade, ou não, da sinistrada em ser constantemente assistida por terceira pessoa, não correspondia à verdade que ela não tivesse alegado e provado factos dos quais se conclui pela dita necessidade.

“Efectivamente [diz-se no acórdão recorrido], como decorre, à saciedade dos factos provados constantes dos nºs 6. a 14. e 20. a 30., é pacífico que a autora, como paraplégica, necessita do auxílio constante de terceira pessoa e, consequentemente, tem direito à prestação suplementar a que alude o art. 19º, nº 1 da LAT, segundo o qual se[,] em consequência da lesão resultante do acidente, o sinistrado não puder dispensar a assistência constante de terceira pessoa, terá direito a uma prestação suplementar da pensão atribuída não superior ao montante da remuneração mínima mensal garantida para os trabalhadores do serviço doméstico. Esta prestação suplementar, como decorre da mera análise literal da norma, tem por finalidade pagar o trabalho doméstico contratado para prestar assistência ao sinistrado incapacitado por acidente de trabalho, conclusão reforçada com o disposto no art. 48º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei nº 143/99, de 30 de Abril.»

Insurgindo-se contra tal decisão, no recurso de revista a companhia de seguros limitou--se a alegar que “não ficou demonstrada a indispensabilidade da assistência constante de terceira pessoa, sendo linear que a dita, nos termos da lei, deve ser atestada por médico”, e a alegar que, [a]o invés[,] ficou, tão só, demonstrada, pontualmente, a necessidade de ajuda de terceira pessoa”.

Vejamos se lhe assiste razão.

Nos termos do art.º 19.º, n.º 1, da LAT “[s]e, em consequência da lesão resultante do acidente, o sinistrado não puder dispensar a assistência constante de terceira pessoa, terá direito a uma prestação suplementar da pensão atribuída não superior ao montante da remuneração mínima mensal garantida para os trabalhadores do serviço doméstico”.

Com interesse para esta questão, provou-se (factos n.os 6 a 14 e 20 a 30) que as lesões da autora não têm cura; que a autora jamais vai poder voltar a andar; que a autora não mexe nem sente toda a parte inferior do corpo; que a autora tem que tomar especial cuidado nos locais onde se senta; que a autora, dado não ter sensibilidade na parte do corpo abaixo da vértebra lesionada, pode-se queimar, cortar, ferir, sangrar, que nada sente; que a autora tem que realizar um exame diário do seu corpo, com um espelho, a fim de verificar o estado da pele; que a autora está especialmente sujeita a infecções urinárias, à formação de escaras, a problemas respiratórios decorrentes da imobilidade das costas e da acumulação de secreções e a edemas (inchaços) nas articulações, bem como à calcificação das articulações, que causam grandes dores peri-articulares e dores nas costas e retracções musculares; que a autora tem que fazer exercícios, para se pôr em pé, e tem que auto-mobilizar-se; que a autora, em virtude das lesões e apesar de poder circular de cadeira de rodas, não pode fazer, sozinha, a sua higiene pessoal; que a autora também não pode, sozinha, vestir-se, despir-se, deitar-se, levantar-se da cama, fazer as actividades caseiras, fazer a cama, subir e descer escadas, e ainda alcançar armários ou objectos colocados a mais de 1,60 m; que a autora também não pode ligar e desligar o esquentador, pôr cabides em armários, mudar uma lâmpada, fazer compras, transportar compras, estender roupa e fazer a limpeza da casa; que a autora não pode, sozinha, deslocar-se no metro, eléctrico, autocarro, e cacilheiro; que a autora tentou ir passear no Bairro Alto, mas não conseguiu, em virtude da morfologia das ruas que não lhe permite o acesso para a cadeira de rodas; que a autora só consegue andar no Alfa que liga Lisboa ao Porto, que tem carruagens específicas para paraplégicos, e de táxi e com a ajuda de terceira pessoa; que a maioria das cabines telefónicas, dos postos de Multibanco, dos estádios de futebol e dos cinemas não tem acesso a cadeiras de rodas; que a autora, ao circular na rua, depara-se com escadas, passeios e carros estacionados, os quais impedem a sua circulação de cadeira de rodas; que, para subir e descer passeios, a autora necessita da ajuda de alguém; que no Tribunal de Trabalho de Lisboa a autora não pode circular sozinha, razão pela qual a ré BB tem uma enfermeira que a traz; que, sem o auxílio de uma terceira pessoa, a autora não consegue levantar-se, no caso de uma queda.

Com base nestes factos, as instâncias concluíram que a autora necessitava da assistência constante de terceira pessoa. Tal conclusão consubstancia uma ilação de natureza factual, extraída com base nas regras da experiência, que o Supremo não pode sindicar, uma vez que, funcionando como tribunal de revista, a sua competência, no que toca ao erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa, é restrita aos casos previstos no art.º 722.º, n.º 2, do CPC, que, no caso em apreço, não ocorrem.

Diremos apenas que aquela ilação se mostra perfeitamente razoável, a ela não obstando o facto de nos exames médicos os peritos médicos nada terem dito a esse respeito, uma vez que o valor da perícia é apreciado livremente pelo juiz (art.º 389.º do C.C.) e a factualidade referida é por demais elucidativa acerca da necessidade constante que a sinistrada tem de ser assistida por terceira pessoa.

Admite-se que essa necessidade possa não ser permanente, mas a lei não faz depender o direito à prestação suplementar desse requisito. Limita-se a exigir que a necessidade seja constante, isto é, regular, o que não é a mesma coisa que permanente.

Improcede, por isso, o recurso, nesta parte.

3.6 Da entidade responsável pelo pagamento da prestação suplementar
Na 1.ª instância só a ré seguradora é que foi condenada a pagar à sinistrada a prestação suplementar, decorrente do facto de ela necessitar da assistência constante de terceira pessoa.

No recurso de apelação, a seguradora limitou-se a alegar que os factos provados não são suficientes para suportar aquela condenação. Não questionou a decisão na parte em que fez recair unicamente sobre si aquele encargo.

No recurso de revista, porém, a recorrente, para além de impugnar o direito da autora à prestação em causa (nos termos já referidos na questão anterior), também suscitou a questão da sua responsabilidade relativamente ao pagamento da mesma, alegando que “estando demonstrado, nos autos, que a sinistrada auferia retribuição superior à que se acha transferida para a Recorrente sempre será de fazer comparticipar a CC, na respectiva proporção de responsabilidade, naquela despesa e bem assim como em todas as demais feitas em benefício da sinistrada”.

Ora, como é fácil de ver, a questão assim trazida à revista não foi suscitada no recurso de apelação e, por essa razão, também não foi objecto de apreciação na decisão ora recorrida. Trata-se, pois, de questão nova, de que, por isso, o Supremo não pode conhecer, uma vez que a mesma também não é de conhecimento oficioso.

3.7 Da responsabilidade da ré seguradora relativamente às prestações médicas e medicamentosas
Julgando procedente a apelação da autora, a Relação condenou a ré seguradora a prestar à autora a assistência médica e medicamentosa, nos termos previstos no art.º 10.º, alínea a), da LAT e nos artigos 23.º e 25.º a 30.º do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30/4.

A recorrente entende que tal obrigação também devia impender sobre a co-ré “CC”, uma vez que, para efeito do prémio de seguro, só tinha declarado uma parte da retribuição que era auferida pela autora.

E, adiantando desde já a resposta, diremos que a razão está do lado da recorrente. Senão vejamos.

Nos termos do art.º 37.º, n.º 3, da LAT, quando a retribuição declarada para efeito do prémio de seguro for inferior à real, a entidade seguradora só é responsável em relação àquela retribuição e a entidade empregadora responderá, neste caso, pela diferença e pelas despesas efectuadas com a hospitalização, assistência clínica e transporte, na respectiva proporção.

Está provado (factos n.os 1, 33, 34 e 35) que a retribuição da autora era constituída por uma parte fixa (4.000$00 diários menos 20% de comissão que revertia a favor da ré “CC”) e por uma parte variável que podia ascender, por noite, a cerca de 50.000$00 (€ 250,00).

Com base nestes factos, a sentença da 1.ª instância fixou a retribuição variável da autora em € 2.000,00, por mês, a fixa em € 383,04, por mês, e a global em € 2.383,04, por mês. Estes valores nunca foram postos em causa nos recursos e foi com base na referida retribuição global que a pensão anual e vitalícia devida à autora foi calculada.

Por outro lado, também não vem posto em causa que a retribuição anual coberta pelo contrato de seguro era tão-somente de 63.800$00 (€ 318,22) x 14 meses.

Ora, sendo assim, é óbvio que a seguradora não pode ser a única responsável pelas prestações médicas e medicamentosas de que a sinistrada venha a necessitar. Tal encargo terá de recair sobre a ré seguradora e sobre a ré entidade empregadora, na proporção do salário que realmente era auferido pela sinistrada e aquele que foi declarado para efeito do prémio de seguro, ou seja, na proporção de 13,4% para a ré seguradora e 86,6% para a ré “CC”.

4. Decisão
Nos termos expostos, decide-se julgar parcialmente procedente o recurso de revista, ficando as rés condenadas nos seguintes termos:
A ré seguradora:
a) a pagar à sinistrada a quantia anual e vitalícia de € 2.895,89, correspondente 13,4% da pensão anual vitalícia de € 21.685,66, com efeitos a partir de 25.4.2002;
b) a pagar à sinistrada, a partir da data da alta, a prestação suplementar mensal prevista no art.º 19.º da LAT (Lei n.º 100/97), de valor igual ao do salário mínimo dos trabalhadores do serviço doméstico;
A ré entidade patronal (CC):
a) a pagar à sinistrada a quantia anual e vitalícia de € 18.789,77, correspondente a 86,6% da pensão anual e vitalícia de € 21.685,66, com efeitos a partir de 25.4.2002;
Ambas as rés:
a) a prestar à autora a assistência médica e farmacêutica, ficando essa obrigação a cargo da ré seguradora e da ré “CC”, na proporção, respectivamente, de 13,4% e 86,6%;
b) a pagar os juros de mora, às taxas legais, contados das datas de vencimento das prestações.
Custas na proporção do respectivo decaimento.

Lisboa, 29 de Outubro de 2008

Sousa Peixoto(relator)
Sousa Grandão
Pinto Hespanhol


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(1) - O art.º 428.º, § 1.º, do Código Comercial tem o seguinte teor: “Se aquele por quem ou em nome de quem o seguro é feito não tem interesse na cousa segura, o seguro é nulo.”