Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07S4745
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SOUSA PEIXOTO
Descritores: FAT
ACIDENTE DE TRABALHO
EXTINÇÃO DE SOCIEDADE
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: SJ20080423047454
Data do Acordão: 04/23/2008
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE
Sumário :
1. A dissolução e extinção da sociedade entidade empregadora não equivalem, para efeitos do disposto no art.º 39.º, n.º 1, da LAT, ao desaparecimento da entidade responsável.
2. A extinção da sociedade não afecta as relações jurídicas de que era titular, que passam a ser encabeçadas pela generalidade dos seus sócios.
3. Extinta, por dissolução dos sócios, a sociedade ao serviço da qual o sinistrado sofreu o acidente de trabalho, compete a este alegar e provar que a sociedade tinha bens e que esses bens foram partilhados pelos sócios.
4. Não havendo factos para condenar os sócios, a condenação do FAT (co-réu na acção) impõe-se, pois, de outro modo, o sinistrado ficaria sem receber as pensões a que tem direito.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

1. No dia 13 de Novembro de 2003, AA participou, no Tribunal do Trabalho de Vila Nova de Famalicão, que tinha sido vítima de um acidente de trabalho, em 16 de Janeiro de 2003, quando prestava a sua actividade sob a ordens, direcção e fiscalização do Matadouro Central (BB), cuja responsabilidade por acidentes de trabalho estaria transferida para a Companhia de Seguros LL Portugal, S. A..

Após várias e demoradas diligências, veio a apurar-se que a entidade empregadora da sinistrada, à data do acidente, era a sociedade MP Comércio de Carnes, L.da que, entretanto, havia sido extinta, em consequência de ter sido dissolvida por deliberação dos seus dois sócios.

Face à extinção daquela sociedade, o M.º P.º mandou chamar o Fundo de Acidentes de Trabalho (FAT), para intervir na tentativa de conciliação, juntamente com a sinistrada, a companhia de seguros e os sócios da dita sociedade.

Frustrada a tentativa de conciliação, a acção passou à fase contenciosa, com a apresentação da petição inicial, em 23.5.2005, tendo a sinistrada/autora demandado, como réus, a MP Comércio de Carnes, L.da, a Companhia de Seguros LL, S. A., o Fundo de Acidentes de Trabalho e os sócios da primeira ré, CC e DD.

A autora pediu que lhe fosse fixada uma IPP nunca inferior a 26%, com incapacidade para o exercício da profissão habitual, requerendo, para tal, a realização de exame por junta médica, e pediu que os réus fossem solidariamente condenados a pagarem-lhe: (i) € 11.126,96, a título de indemnização por incapacidade temporária; (ii) uma pensão anual e vitalícia, em montante nunca inferior a € 4.131,86, por incapacidade permanente para o trabalho habitual, com efeitos a partir de 29.1.2005; (iii) um subsídio de elevada incapacidade, em montante nunca inferior a € 4.279,20; (iv) as quantias de € 20,00 e de € 150,00, a título, respectivamente, de despesas com transportes e com uma consulta médica na especialidade de ortopedia.

E fundamentando o pedido, a autora alegou, em resumo, que foi vítima de um acidente de trabalho, em 16.1.2003, quando, remuneradamente, prestava a sua actividade, sob as ordenes e direcção da primeira ré, cuja responsabilidade por acidentes de trabalho havia sido transferida para a segunda ré; que o pagamento da indemnização que lhe é devida sempre se encontra assegurado pelo FAT, nos termos do art.º 305.º do Código do Trabalho e do art.º 317.º do respectivo regulamento; que, dada a dissolução da primeira ré, em data posterior à ocorrência do acidente, e a inexistência de património por parte da referida ré para garantir a satisfação dos créditos da autora, a responsabilidade pela reparação do acidentes recai sobre os respectivos sócios (CC e DD), nos termos do art.º 78.º do CSC.

Contestaram a companhia de seguros, o FAT e os réus CC e DD.

A companhia de seguros alegou que não tinha legitimidade para a acção, por entre ela e a 1.ª ré não existir qualquer contrato de seguro de acidentes de trabalho, e, sem prescindir, impugnou os factos alegados pela autora, uns por não serem factos pessoais ou de que ela devesse ter conhecimento e outros por não corresponderem à verdade.

O FAT defendeu-se por excepção e por impugnação. Em termos exceptivos, alegou que era parte ilegítima, com o fundamento de que a sua intervenção pressupõe, em primeiro lugar, que já esteja apurado quem é a entidade responsável pela reparação do acidente e, em segundo lugar, que já esteja demonstrado que a mesma não pode pagar as prestações por motivo de incapacidade económica objectivamente caracterizada em processo judicial de falência ou processo equivalente, ou processo de recuperação de empresa, ou por motivo de ausência, desaparecimento ou impossibilidade de identificação da mesma, o que, no caso, ainda não sucedia. E em termos de impugnação, alegou que desconhecia, nem podia conhecer, os factos articulados pela autora.

Por sua vez, os réus CC e DD excepcionaram a ilegitimidade do réu DD, alegando que o mesmo nunca foi gerente da 1.ª ré, e enjeitaram a sua responsabilidade pela reparação do acidente, alegando que a sociedade foi dissolvida porque não exercia qualquer actividade, que a mesma não tinha activo nem passivo e que, por isso, a sua dissolução não consubstancia qualquer diminuição do património, inexistindo a culpa que nos termos do art.º 78.º do CSC é pressuposto da sua responsabilidade. E, sem conceder, alegaram que, quando ocorreu o acidente, a autora já não trabalhava para a 1.ª ré, pois tinha abandonado o seu posto de trabalho, em Dezembro de 2002 e que, devido a essa cessação unilateral do contrato, a 1.ª ré tinha contratado, em 2 de Janeiro de 2003, um outro trabalhador (MF), para a substituir, sabendo os réus que no dia acidente, a autora, por sua iniciativa e sem o conhecimento da 1.ª ré, tinha ido substituir o referido trabalhador, que é seu cunhado.

No despacho saneador julgaram-se improcedentes as excepções de ilegitimidade, seleccionaram-se os factos admitidos por acordo, organizou-se a base instrutória e ordenou-se a abertura de apenso para fixação do grau de incapacidade.

Realizada que foi a junta médica, no apenso referido, aí foi proferido despacho no qual se decidiu que a autora esteve com incapacidade temporária absoluta (ITA) desde 17.1.2003 até à data da alta, em 17.7.2003, e que, a partir desta data, tinha ficado com uma incapacidade permanente parcial (IPP) de 24,9%.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença condenando o FAT a pagar à autora a quantia de € 2.477,22, a título de indemnização por incapacidade temporária absoluta, e a pensão anual e vitalícia, obrigatoriamente remível, de € 1.220,10, com início em 18.7.2003, a que corresponde o capital de remição de € 19.168,99, deduzindo-se a esta quantia os valores que o FAT havia já pago à autora a título de pensão provisória, e absolvendo os demais réus do pedido.

O FAT recorreu, por entender que quem devia ter sido condenado era a ré MP – Comércio de Carnes, L.da, uma vez que, à data do acidente, ainda não tinha sido dissolvida e por entender que, atendendo à data da dissolução, os sócios também deviam ser condenados, pelo menos até ao limite do capital social, respondendo cada um deles pelo valor da sua quota, não podendo, por essa razão, o FAT ser condenado a título principal.

O Tribunal da Relação do Porto, julgando procedente o recurso, absolveu o FAT do pedido e condenou os réus CC e DD a pagarem, solidariamente, à autora a quantia de € 2.490,83, a título de indemnização por ITA, bem como a pensão anual, obrigatoriamente remível, de € 1.220,10, com início em 18.7.2003, e os juros de mora sobre as prestações pecuniárias em atraso.
Inconformados com aquela decisão, dela recorreram a autora e os réus CC e DD, formulando as seguintes conclusões:

Conclusões da autora:
I - O fundamento do presente recurso é a violação, por errada interpretação, do artigo 39.º, n.º 1, da Lei n.º 100/97 e do artigo 1.°, n.º 1, al. a), do DL n.º 142/99.
II - Está assente, neste processo, a existência e caracterização do acidente como de trabalho e a possibilidade de identificação da entidade responsável, factos estes que permitem concluir que a responsabilidade da entidade patronal decorre directamente do disposto no art. 1.°, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 142/99; por outro lado, também está assente que, por motivo de incapacidade económica objectivamente caracterizada em processo equivalente a processo de insolvência – como é o caso de extinção por dissolução e liquidação –, não pode a entidade responsável pagar as prestações devidas.
III - Nesta conformidade, o tribunal recorrido opera uma interpretação restritiva do art. 1.°, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 142/99, dessa forma prejudicando gravemente a sinistrada.
IV - A extinção de uma sociedade comercial, condenada como entidade responsável na reparação de um acidente de trabalho, enquadra-se no conceito de desaparecimento.
V - Pelo que, sempre o FAT teria de ser responsabilizado, nos próprios autos, quer a título principal quer a título subsidiário ou derivado.
VI - Aliás, como também refere o Acórdão recorrido: "E só perante a responsabilização (originária) destes réus em condenação solidária, inexistindo seguro de acidentes de trabalho – o posterior incumprimento das prestações infortunísticas devidas, com fundamento em incapacidade económica daqueles responsáveis averiguado a jusante em previsto esquema processual, se perfectibilizam os pressupostos necessários para o F A T assumir ou garantir o referido pagamento – o que ocorre, não a título principal, mas subsidiário ou derivado."
VII- Sendo o Direito adaptável e adaptado através da designada interpretação realista e actualista, e tratando-se de actividade que tem vindo ao longo do tempo a mostrar-se cada vez mais perigosa, o tribunal a quo, que está apenas sujeitos à lei, não fez uma interpretação realista da mesma.
VIII - Assim não se entendendo, e atendendo a que, consoante art.º 18°, n.º 2, CRP, a lei só pode restringir os direitos constitucionais das pessoas quando estão em causa outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos – o que não parece aplicar-se ao caso concreto – haveria necessidade de intervenção do Estado para garantir a protecção de bens jurídicos consagrados na Constituição.
IX - A desconsideração dos direitos e garantias dos trabalhadores, como a ora Recorrente, significa negar ao particular os direitos constitucionais de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, à integridade física, à segurança no emprego, à assistência e justa reparação quando vítimas de acidentes de trabalho e à igualdade, respectivamente previstos nos art.os 20.°, 25.°, 53.°, 59.°, n.º 1, al. c), e 13.º da Lei Fundamental.
X - Assim, violado o princípio da igualdade consagrado no art. 6.° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e os arts.8.º, n.º 2, e 13.º da lei fundamental, consagrado que está neste último o princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei, a interpretação do regime jurídico da responsabilidade de acidentes de trabalho, no sentido de não considerar o desaparecimento jurídico da entidade patronal para efeitos de responsabilização do FAT, conduz à inconstitucionalidade daquele dispositivo na medida em que permite ao Estado e às Pessoas Colectivas ficarem incompreensivelmente numa situação de superioridade processual inadmissível e intolerável, impondo aos sinistrados uma impossibilidade técnica e prática de acesso aos meios de defesa.
XI - O acórdão recorrido violou o disposto nos art.os 39.°, n.º 1, da Lei n.º 100/97, 1.°, n.º 1, do DL n.º 142/99, 9.º do Código Civil, 6.°, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 20.°, 25.°, 53.°, 59°, n.º 1, al. c), 8.º, n.º 2, e 13.° da lei fundamental.
XII - Houve violação da lei substantiva e denegação de justiça traduzida na errada interpretação do regime jurídico da responsabilidade por acidentes de trabalho, não permitindo, assim, à sinistrada obter a necessária defesa da sua integridade física e à justa e efectiva reparação.

Conclusões dos réus CC e DD:
A - O aqui Recorrente DD não é nem nunca foi gerente da sociedade identificada nos autos, nenhuma responsabilidade lhe pode ser assacada, não é parte numa eventual relação material controvertida, devendo ser absolvido da instância.
B – Inexiste responsabilidade dos aqui Recorrentes, porque não se verificam as circunstâncias legais exigidas para responsabilizar os sócios/gerentes por dívidas sociais.
C – Por um lado, não se verificam os pressupostos enunciados no art.º 78.º do CSC, porque não só não se alegou, como não se encontra provado que os aqui Recorrentes não tenham observado, de forma culposa, as disposições legais ou contratuais destinadas a proteger a trabalhadora identificada nos autos.
D - Muito menos se poderia demonstrar que foi essa mesma inobservância geradora da insuficiência patrimonial para garantir o crédito da aqui credora.
E - Por outro lado, também não se alegaram, muito menos se demonstraram as circunstâncias exigidas pelo disposto nos art.os 162.º e 163.º do CSC.
F - Quando a sociedade foi dissolvida não estava pendente esta acção, os sócios não conheciam nem tinham como saber da existência do dever de indemnizar a trabalhadora dos autos.
G - Mas ainda que exista responsabilidade dos sócios, esta confina-se ao montante recebido pela partilha da dissolvida sociedade. Sabendo que a sociedade não tinha activo a partilhar, nada foi partilhado, nada foi recebido pelos aqui Recorrentes.
H - Por último diga-se que, como resulta do disposto nos art.os 197.º e 198.º do CSC, a responsabilidade restringe-se ao capital social da sociedade dos autos e, sendo esta de responsabilidade limitada, nunca pode afectar o património dos sócios.

Todos os recorrentes terminaram as suas alegações pedindo a revogação do acórdão e a manutenção da sentença proferida na 1.ª instância.

Neste Supremo Tribunal, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se pela procedência dos recursos, em “parecer” a que as partes não reagiram.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

2. Os factos
Os factos que, sem qualquer impugnação, vêm dados como provados, desde a 1.ª instância e com base nos quais o recurso terá de ser apreciado, são os seguintes:
1 - Os 4.º e 5.º réus, CC e DD, foram os únicos sócios da sociedade “MP – Comércio de Carnes, L.da, conforme resulta do respectivo contrato de sociedade, cuja certidão da respectiva escritura está junta a fls. 201, 202 e 203, dando-se aqui por integralmente reproduzido o seu conteúdo, sociedade essa que se encontra dissolvida, conforme escritura de dissolução junta por certidão a fls. 203 e 204, cujo teor aqui também se dá por integralmente reproduzido, e dissolução essa, assim como o encerramento da liquidação, que foram inscritos no registo comercial, bem como foram inscritos como (únicos) gerentes daquela sociedade o sócio CC e EG, conforme decorre da certidão do registo comercial (matrícula e inscrições) junta a fls. 90 e 91.
2 - O perito do tribunal fixou à autora a IPP de 18,24%, absoluta para o exercício da profissão habitual (facto processual).
3 - A ré MP – Comércio de Carnes, L.da dedicava-se ao comércio a retalho e por grosso de carne e produtos à base de porco.
4 - A autora foi admitida em Dezembro de 2002, para exercer, como exerceu, a sua actividade profissional – empregada de triparia –, por conta e sob a autoridade da referida MP – Comércio de Carnes, L.da.
5 - As funções exercidas pela autora consistiam, concretamente, na limpeza de tripa fina, utilizando para o efeito uma máquina.
6 - Auferindo por essa actividade o vencimento (mensal) de € 500,00.
7 – A autora iniciava o trabalho, pelo menos, às 07:00 horas, tinha um intervalo para almoço e saía à hora em que acabasse as tarefas que lhe fossem destinadas para esse dia, sempre depois das 18.00 horas.
8 - No dia 16 de Janeiro de 2003, cerca das 17.20 horas, quando a autora prestava a sua actividade à mencionada “MP”, cumprindo as ordens que esta lhe tinha dado, encontrando-se a trabalhar com a máquina das tripas, feriu-se, na mão esquerda, ao trabalhar na referida máquina.
9 - Provocando a mutilação de três dedos.
10 - Em consequência do acidente sofreu “amputação do terceiro distal dos 4.º e 5.º dedos da mão esquerda e do polegar esquerdo.
11 - No processo apenso, de incidente para fixação de incapacidade, foi fixada à autora uma situação de ITA desde 17/01/2003 até 17/07/2003, sendo esta a data da alta, e, a partir desta data, a IPP de 24,9%.

3. O Direito
Como é sabido, os trabalhadores e seus familiares têm direito a reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho, nos termos previstos na Lei n.º 100/97, de 13/9 e demais legislação complementar (art.º 1.º da referida Lei).

E, como também é sabido, no que toca aos trabalhadores por conta de outrem, a obrigação de reparação recai sobre a respectiva entidade empregadora. Por estranho que pareça, a Lei n.º 100/97 (LAT) não o diz expressamente. Tal só veio a ser afirmado no art.º 11.º do seu regulamento (D.L. n.º 143/99, de 30/4), embora essa obrigação já decorresse do disposto em alguns dos artigos da LAT, nomeadamente do disposto no n.º 1 do seu art.º 37.º, nos termos do qual “[a]s entidades empregadoras são obrigadas a transferir a responsabilidade pela reparação prevista na presente lei para entidades autorizadas a realizar este seguro” e também do disposto no n.º 3 do mesmo art.º, nos termos do qual quando a retribuição declarada para efeito do prémio de seguro for inferior à real, a entidade seguradora só é responsável em relação àquela retribuição, respondendo, neste caso, a entidade empregadora pela diferença e pelas despesas efectuadas com a hospitalização, assistência clínica e transporte, na respectiva proporção.

Nos termos das referidas disposições, é, pois, inequívoco que, não havendo contrato de seguro, é sobre a entidade empregadora que recai a obrigação de pagar ao sinistrado ou seus familiares as prestações que no caso legalmente sejam devidas.

Pode acontecer, porém, que não seja possível obter da entidade responsável (seja ela a entidade empregadora, seja a entidade seguradora) o pagamento das referidas prestações e, para prevenir essa situação, a Lei n.º 100/97 previu, no seu art.º 39.º, a criação de um fundo dotado de autonomia administrativa e financeira, destinado a garantir o pagamento das prestações, por incapacidade permanente ou morte e das indemnizações por incapacidade temporária estabelecidas na lei “que não possam ser pagas pela entidade responsável por motivo de incapacidade económica objectivamente caracterizada em processo judicial de falência ou processo equivalente, ou processo de recuperação de empresa ou por motivo de ausência, desaparecimento ou impossibilidade de identificação”.

O fundo em questão veio a ser criado pelo D.L. n.º 142/99, de 30/4, com a designação de Fundo de Acidentes de Trabalho, abreviadamente designado por FAT, competindo-lhe, além do mais que ao caso em apreço não interessa, “[g]arantir o pagamento das prestações que forem devidas por acidente de trabalho sempre que, por motivo de incapacidade económica objectivamente caracterizada em processo judicial de falência ou processo equivalente, ou processo de recuperação de empresa, ou por motivo de ausência, desaparecimento ou impossibilidade de identificação, não possam ser pagas pela entidade responsável” (art.º 1.º, n.º 1, al. a), do D.L. n.º 142/99).

Como do art.º 39.º da LAT e do art.º 1.º, n.º 1, al. a), do D.L. n.º 142/99 resulta e como expressamente se diz no preâmbulo do D.L. n.º 142/99, o FAT foi criado “[p]ara prevenir que, em caso algum, os pensionistas de acidentes de trabalho deixem de receber as pensões que lhe são devidas”, mas o FAT só é chamado a intervir verificados que sejam os pressupostos referidos nas mencionadas disposições legais, ou seja, quando a entidade responsável não tenha capacidade económica para o fazer e essa incapacidade tenha sido judicialmente averiguada, ou quando por motivo da ausência, desaparecimento ou impossibilidade de identificação da entidade responsável não seja possível obter dela o pagamento das prestações devidas.

No caso em apreço, a existência do acidente, a sua caracterização como de trabalho e o grau de incapacidade que do mesmo resultou para a autora são questões que ficaram definitivamente resolvidas na 1.ª instância, uma vez que no recurso de apelação o FAT não pôs em causa o que na sentença tinha sido decidido a esse respeito. Na verdade e como já foi referido, no recurso de apelação, o FAT apenas pôs em causa o que na sentença havia sido decidido relativamente à entidade responsável pela reparação do acidente, por entender que essa responsabilidade devia recair sobre a 1.ª ré (a entidade empregadora), ou sobre os sócios, pelo menos até ao limite do capital social, respondendo cada um deles pelo valor da sua quota.

A respeito desta questão, na 1.ª instância decidiu-se, como já foi dito, que a responsabilidade pela reparação do acidente competia ao FAT. E tal decisão assentou na seguinte fundamentação:
Por não existir contrato de seguro, a responsabilidade pela reparação do acidente recairia, em princípio, sobre a 1.ª ré, a ré MP – Comércio de Carnes, L.da, por ser a entidade empregadora da autora, à data do acidente, mas a mesma não pode ser condenada pelo facto de, entretanto, ter sido dissolvida e extinta, sendo que nem sequer devia ter sido demandada, uma vez que deixou de ter personalidade jurídica.
O 5.º réu (DD) não pode ser responsabilizado ao abrigo do disposto no art.º 78.º do CSC, por nunca ter sido gerente da 1.ª ré e o 4.º réu (CC ), apesar de ter sido gerente, também não pode ser responsabilizado ao abrigo daquele normativo, por não estarem provados os pressupostos da responsabilidade nele estabelecida, ou seja, que o património da sociedade se tenha tornado insuficiente para satisfazer os créditos sociais, por ele culposamente não ter as disposições legais ou contratuais destinadas a proteger os credores da sociedade.
Por outro lado, o 4.º e 5.º réus também não podem ser responsabilizados por via da sua qualidade de sócios e liquidatários da 1.ª ré, por não estar provado que tivesse havido partilha, não havendo razões para presumir que havia activo, pois, apesar dos quesitos 14.º e 15.º (nos quais se perguntava, respectivamente, se, ao tempo da dissolução, a “MP” não exercia qualquer actividade e não tinha qualquer património) terem sido dados como não provados, a verdade é que nada se provou em contrário, não havendo qualquer razão para presumir que havia activo para distribuir.
Além disso, o art.º 158.º do CSC também exige a culpa dos liquidatários e a factualidade dada como provada é insuficiente para concluir nesse sentido.
Nada obsta, por isso, numa situação como a dos autos, que o FAT seja condenado como responsável principal, uma vez que a extinção da entidade originariamente responsável equivale ao seu desaparecimento do mundo jurídico, tratando-se, por isso, de uma situação perfeitamente subsumível na letra e no espírito do art.º 39.º, n.º 1, da LAT e no art.º 1.º, n.º 1, al. a), do Decreto-Lei n.º 142/99, de 30/4. Só assim não seria, se os sócios e/ou gerentes da entidade empregadora (a 1.ª ré) pudessem ser responsabilizados, caso em que a responsabilidade do FAT seria meramente subsidiária.

Por sua vez e como também já foi referido, na Relação decidiu-se que a responsabilidade pela reparação do acidente competia aos sócios da 1.ª ré, com base na seguinte fundamentação:
«Sendo o objecto do presente recurso delimitado pelas conclusões alegatórias (arts. 684º/3 e 690º/1 e 4 do CPC), a única questão a apreciar in casu consiste em saber se o FAT pode ser condenado, a título principal, pela reparação de acidente de trabalho, quando a entidade patronal foi absolvida (enquanto sociedade por quotas) por já dissolvida e liquidada à data da sentença –, sendo a seguradora absolvida por não ter ficado provada a existência de contrato de seguro de acidentes de trabalho.
Sustenta a propósito o apelante que (o FAT) apenas garante o pagamento das prestações decorrentes do acidente quando estas não possam ser pagas pela entidade responsável; que a determinação da responsabilidade pela reparação do acidente, bem como da entidade responsável reporta-se à data do acidente (em 16.01.2003); e que com referência à data da dissolução da entidade patronal, MP, em 04.08.2004 deveriam ser condenados os sócios até ao limite do capital social.
Logo, ao condenar directamente o FAT o tribunal a quo violou o disposto no art. 39º/1 da L.100/97, 13.09, e o art. 1º/1-a) do DL 143/99, de 30-04 e ao absolver da instância a R. MP violou o disposto no art. 162º/1 conjugado com o art. 163º/2 do CSComerciais.
Vejamos:
Inquestionado está tratar-se in casu de acidente de trabalho e bem assim o direito da autora à correspondente reparação, bem como a absolvição da seguradora demandada por não ter sido feita prova da existência de seguro de acidentes de trabalho], impõe-se, portanto indagar se deve condenar-se directamente o FAT ao pagamento das prestações infortunístico-laborais, nos termos em que o fez a sentença sub iudice.
Dispõe, com efeito, o art. 39º/1 da Lei 100/97 de 13-09, [vulgo LAT]:
“A garantia do pagamento das pensões por incapacidade permanente ou morte e das indemnizações por incapacidade temporária estabelecidas nos termos da presente lei que não possam ser pagas pela entidade responsável por motivo de incapacidade económica objectivamente caracterizada em processo judicial de falência ou processo equivalente, ou processo de recuperação de empresa ou por motivo de ausência, desaparecimento ou impossibilidade de identificação, serão assumidas e suportadas por fundo dotado de autonomia administrativa e financeira, a criar por lei, no âmbito dos acidentes de trabalho nos termos a regulamentar.”
Outrossim, o art.º 1º, n.º 1, al. a) do DL 142/99, de 30 de Abril, diploma que criou o FAT, reafirma que constitui competência dessa entidade: “Garantir o pagamento das prestações que forem devidas por acidentes de trabalho sempre que, por motivo de incapacidade económica objectivamente caracterizada em processo judicial de falência ou processo equivalente, ou processo de recuperação de empresa, ou por motivo de ausência, desaparecimento ou impossibilidade de identificação, não possam ser pagas pela entidade responsável.”
Aliás, foi nesta medida – de mero garante de pagamento – que se quis definir a responsabilidade do FAT, ao consignar-se no preâmbulo do DL 142/99[-]: “Para prevenir que em caso algum os pensionistas de acidentes de trabalho deixem de receber as pensões que lhe são devidas, prevê-se que o FAT garantirá o pagamento das prestações que forem devidas por acidentes de trabalho sempre que, por motivo de incapacidade económica objectivamente caracterizada em processo judicial de falência ou processo equivalente, ou processo de recuperação de empresa, ou por motivo de ausência, desaparecimento ou impossibilidade de identificação, não possam ser pagas pela entidade responsável” [realce e itálico nosso].
Daqui decorre portanto que a responsabilidade do FAT não é autónoma ou principal, mas antes subsidiária ou de garante do pagamento das obrigações que impendem sobre as entidades responsáveis pela reparação dos acidentes de trabalho, actuando apenas se e na medida em que o sinistrado ou beneficiários não logrem cobrar as respectivas quantias dessas entidades responsáveis[-].
Assim sendo, no iter da assunção da respectiva garantia é mister, em primeiro lugar, determinar quem é a entidade responsável, para, depois, verificando-se a incapacidade económica da entidade responsável objectivamente caracterizada em processo judicial de falência ou processo equivalente, ou processo de recuperação de empresa, ou por motivo de ausência, desaparecimento ou impossibilidade de identificação, o FAT assegurar ou garantir, em substituição, o pagamento das respectivas pensões ou indemnizações.
É pois necessária a existência de uma entidade que já tenha reconhecido o direito do trabalhador ou cuja responsabilidade tenha sido declarada judicialmente. Só que, no caso em apreço, nem a demandada MP, enquanto entidade empregadora da sinistrada, nem os seus sócios reconheceram o direito da sinistrada, nem foram condenados ao pagamento de qualquer quantia.
Diga-se, aliás, que, à data do acidente, em 16.01.2003, a referida entidade patronal MP, se encontrava em funcionamento, tendo a sua dissolução vindo apenas a verificar-se em 4-08-2004, com registo do encerramento da liquidação. Isto significa, na verdade, que a sociedade MP foi extinta, nesta data, nos termos do art. 160º do CSComerciais.
Todavia, tal extinção não significa a desresponsabilização da sociedade em questão das obrigações laborais e das inerentes dívidas, contraídas quando ainda tinha plena existência, mormente em 16-01-2003.
De facto, o art. 162º/1 e 2 do CSC estabelece que as acções em que a sociedade seja parte continuam após a extinção desta que se considera substituída pelos sócios, representada pelos liquidatários, sem necessidade de habilitação -(1).
Efectivamente, encerrada a liquidação e extinta a sociedade (como ocorreu in casu com a MP), os antigos sócios respondem pelo passivo social não satisfeito ou acautelado, até ao montante que receberam na partilha, sem prejuízo do disposto quanto aos sócios de responsabilidade ilimitada. É o que dispõe o art. 163º do CSC.
Nem se diga que os sócios declararam na escritura de dissolução da sociedade MP em 4.8.2004 “não haver qualquer activo nem, passivo” (o que a ser verdade significaria que não houve partilha de bens aquando da liquidação da sociedade) (2). Só que quanto ao passivo era conhecida a pendência da presente acção de acidente de trabalho enquanto passivo litigioso e quanto ao activo em sede de direitos indisponíveis e irrenunciáveis sempre se imporia apurar que nada tinham recebido na respectiva partilha.
Efectivamente, segundo A. Reis -(3), o valor probatório de documento em que as pessoas fazem certas narrações de factos perante o notário e que este reduz a escritura, se depois vem a ser junto aos autos – (tal documento) faz prova plena de que os outorgantes emitiram perante o notário as declarações que a escritura regista; porém, quanto a saber se os factos narrados pelos declarantes são ou não exactos, o juiz tem a liberdade de apreciação.
De referir, ainda, que em face da liquidação e dissolução da Ré MP sempre deveriam também os sócios – 4º e 5º réus – ser responsabilizados pela reparação do acidente de trabalho até ao limite do capital social da empresa, respondendo cada um pelo valor das suas quotas, arts 197º e 198º do CSC.
E só perante a responsabilização (originária) destes réus em condenação solidária, inexistindo seguro de acidentes de trabalho – o posterior incumprimento das prestações infortunísticas devidas, com fundamento em incapacidade económica daqueles responsáveis averiguado a jusante em previsto esquema processual, se perfectibilizam os pressupostos necessários para o FAT assumir ou garantir o referido pagamento – o que ocorre não a titulo principal, mas subsidiário ou derivado[-].
Logo, sem necessidade de averiguar se tais demandados dissolveram a sociedade com culpa, intuitos fraudatórios ou sem acautelar o passivo litigioso, como aduz o MP nesta Relação, ante o exposto é nossa convicção que se impõe hic et nunc [a] absolvição do FAT do respectivo pedido.
Sendo assim, e com o devido respeito o dizemos, ao invés do sufragado na sentença, extinta a sociedade, a responsabilidade pelas consequências do sinistro deve, como vimos, ser assumida pelos respectivos sócios – 4º e 5º réus – sem necessidade de habilitação ou suspensão da instância – art. 162º do CSC.» (fim de transcrição)

A autora discorda da decisão ora recorrida, por continuar a entender que o FAT deve ser condenado, pelo menos a título subsidiário e em prol da sua tese alegou o seguinte:
Está assente que a entidade patronal não pode pagar as prestações devidas à autora, por incapacidade económica objectivamente caracterizada em processo equivalente a processo de insolvência, como é o caso de extinção por dissolução e liquidação.
Ao não entender assim, o tribunal recorrido fez uma interpretação restritiva do art.º 1.º, n.º 1, al. a), do D. L. n.º 141/99, prejudicando dessa forma a sinistrada, pois, ao desconsiderar o desaparecimento jurídico da sociedade responsável (a ré MP) para efeitos de responsabilidade do FAT, remete essa responsabilidade para o âmbito do património pessoal dos sócios.
Ora, não tendo (“como será, desde logo, previsível…”) esses sócios qualquer património, ficaria a sinistrada votada ao total desamparo da justiça.
Por isso, o FAT devia ter sido responsabilizado, desde já, nos próprios autos, a título subsidiário ou derivado.
Assim não se entendendo e levando em conta o disposto no art.º 18.º, n.º 2, da CRP, nos termos do qual a lei só pode restringir os direitos constitucionais das pessoas quando estão em causa outros direitos ou interesse constitucionalmente protegidos, haveria necessidade de intervenção do Estado para garantir a protecção de bens jurídicos consagrados na Constituição.
A desconsideração dos direitos e garantias dos trabalhadores, como a ora recorrente, significa negar ao particular os direitos constitucionais de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, à integridade física, à segurança no emprego, à assistência e justa reparação quando vítimas de acidentes de trabalho e à igualdade, previstos, respectivamente, nos artigos 20.º, 25.º, 53.º, 59.º, n.º 1, al. c) e 13.º da lei fundamental.
Assim violado o princípio da igualdade consagrado no art.º 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e os artigos 8.º, n.º 2 e 13.º da lei fundamental, consagrado que está neste último o princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei, a interpretação do regime jurídico da responsabilidade por acidentes de trabalho, no sentido de não considerar o desaparecimento jurídico da entidade patronal para efeitos de responsabilização do FAT, conduz à inconstitucionalidade daquele dispositivo, na medida em que permite ao Estado e às pessoas colectivas ficarem incompreensivelmente numa situação de superioridade processual inadmissível e intolerável, impondo aos sinistrados uma impossibilidade técnica e prática de acesso aos meios de defesa.

Por sua vez, os réus CC e DD assentaram a sua discordância na seguinte argumentação:
O réu DD nunca foi gerente, administrador ou director da 1.ª ré, devendo, por isso, ser considerado parte ilegítima e consequentemente absolvido da instância.
Está demonstrado que os recorrentes procederam à dissolução da sociedade em 4.8.2004.
Esta já não exercia qualquer actividade e não tinha activo nem passivo.
Não houve, por isso, da sua parte qualquer atitude de dissipação patrimonial.
Não foi alegado nem se provou que os recorrentes tivessem agido com culpa, constituindo esta, nos termos do disposto no art.º 78.º do CSC, pressuposto da sua responsabilidade.
Quando a acção foi proposta, em 23.5.2005, já a sociedade estava dissolvida, mas ainda que se considere pendente a acção a partir da participação do acidente e que esta ocorreu antes da dissolução da sociedade, sempre se devia concluir, conforme o preceituado no art.º 163.º, n.º 1, do CSC, que os sócios só respondem até ao montante que receberam da partilha.
Não foi alegado nem provado que os recorrentes sabiam da existência do passivo invocado nos autos, nem quando é que a participação do acidente foi efectuada nem quando a mesma foi levada ao conhecimento dos recorrentes.
Mais do que isso, quando a sociedade foi dissolvida, a obrigação invocada nos autos não era líquida e, por isso, não era exigível.
Os recorrentes não sabiam se era devida alguma indemnização à autora e muito menos qual era o montante a pagar.
Deste modo, o disposto nos artigos 162.º e 163.º do CSC não é aplicável ao caso.
Sem conceder, o disposto nos artigos 187.º e 198.º do CSC é aplicável, mas o que daqueles artigos resulta é que apenas o património da sociedade responde pelas dívidas sociais, a não ser que o pacto social estipule de forma diversa, o que não sucede.

O objecto de ambos os recursos restringe-se, pois, à questão de saber quem deve ser condenado a pagar as prestações que na decisão recorrida foram reconhecidas à autora.

E adiantando desde já a resposta, diremos que essa responsabilidade terá de recair sobre o FAT. Vejamos porquê.

Como bem se disse na decisão recorrida, a reparação do acidente caberia, em princípio, à ré MP – Comércio de Carnes, L.da, por ser a entidade empregadora da autora, à data do acidente e por não ter transferido a sua responsabilidade civil por acidentes de trabalho para nenhuma seguradora.

Acontece, porém, que aquela sociedade veio a ser dissolvida e extinta na pendência da acção, mais propriamente no decurso da sua fase conciliatória, pois, conforme preceitua o art.º 26.º do CPC, no seu n.º 3, nas acções emergentes de acidentes de trabalho a instância inicia-se com o recebimento da participação do acidente, participação essa que deu entrada em juízo no dia 13.11.2003, sendo que a aludida sociedade só veio a ser dissolvida por escritura lavrada em 4.8.2004 (certidão a fls. 201, 202 e 203 dos autos), considerando-se a mesma extinta, nos termos do art.º 160.º, n.º 2 - (4), do CSC, na data em que a dissolução e o encerramento da liquidação foram registados na conservatória do registo comercial, o que aconteceu em 2.9.2004, conforme consta da certidão junta a fls. 90 e 91 dos autos.

Devido a essa extinção, a ré entidade empregadora deixou de ter personalidade jurídica e, em consequência disso, deixou de poder ser condenada. Em boa verdade, nem sequer devida ter sido demandada na fase contenciosa, uma vez que a mesma já estava extinta, quando, em 23.5.2005, a petição inicial deu entrada em juízo.

Porém, e ao contrário do que foi afirmado na sentença da 1.ª instância, a extinção daquela sociedade não equivale ao seu “desaparecimento”, para efeitos do disposto no art.º 39.º, n.º 1, da LAT e no art.º 1.º, n.º 1, al. a), do Decreto-Lei n.º 142/99, ou seja, a extinção da sociedade não é suficiente, só por si, para que o FAT seja chamado a assumir o seu papel de garante do pagamento das prestações devidas à autora/sinistrada.

Na verdade, como decorre do disposto nos art.os 162.º, 163.º e 164.º do CSC, as relações jurídicas de que a sociedade era titular não são afectadas pela sua extinção.

Assim, no que toca às acções pendentes em que a sociedade seja parte, o art.º 162.º estipula, no seu n.º 1, que tais acções continuam após a extinção da sociedade, considerando-se esta substituída pela generalidade dos sócios, representados pelos liquidatários, nos termos dos artigos 163.º, n.os 2, 4 e 5 e 164.º, n.os 2 e 5. E acrescenta, no seu n.º 2, que a instância não se suspende e que a habilitação não é necessária.

Por sua vez, no que toca ao chamado passivo superveniente, o art.º 163.º determina no seu n.º 1, que “[e]ncerrada a liquidação e extinta a sociedade, os antigos sócios respondem pelo passivo social não satisfeito ou acautelado, até ao montante que receberam na partilha, sem prejuízo do disposto quanto aos sócios de responsabilidade ilimitada”. E, no seu n.º 2, acrescenta que “[a]s acções necessárias para os fins referidos no número anterior podem ser propostas contra a generalidade dos sócios, na pessoa dos liquidatários, que são considerados legais representantes daqueles, para este efeito, incluindo a citação”. E, na segunda parte daquele n.º 2, o art.º 163.º acrescenta ainda que “sem prejuízo das excepções previstas no artigo 341.º do Código de Processo Civil, a sentença proferida relativamente à generalidade dos sócios constitui caso julgado em relação a cada um deles”.

Por outro lado, no que concerne ao activo superveniente, o art.º 164.º estipula que, “[v]erificando-se, depois de encerrada a liquidação e extinta a sociedade, a existência de bens não partilhados, compete aos liquidatários propor a partilha adicional pelos antigos sócios, reduzindo os bens a dinheiro, se não for acordada unanimemente a partilha em espécie” (n.º 1), que “[a]s acções para cobrança de créditos da sociedade abrangidos pelo disposto no número anterior podem ser propostas pelos liquidatários, que, para o efeito, são considerados representantes legais da generalidade dos sócios, podendo, contudo, qualquer destes propor acção limitada ao seu interesse (n.º 2) e que a sentença proferida relativamente à generalidade dos sócios constitui caso julgado para cada um deles, podendo ser individualmente executada, na medida dos respectivos interesses (n.º 3).

Das disposições legais referidas decorre inequivocamente que as relações jurídicas em que a sociedade extinta era parte se mantêm depois da extinção da sociedade, passando esta, em regra, a ser substituída pela generalidade dos sócios, representados pelos liquidatários.

E, no que toca ao passivo social, a responsabilidade pelo seu pagamento recai sobre a generalidade dos sócios, embora a responsabilidade destes seja limitada ao montante que receberam na partilha, sem prejuízo do disposto quanto a sócios de responsabilidade ilimitada.

No caso em apreço, a 1.ª ré era uma sociedade por quotas e, nos termos do art.º 197.º do CSC, este tipo de sociedades reveste as seguintes características: o capital social está dividido em quotas; os sócios são solidariamente responsáveis por todas as entradas convencionadas no contrato social, mas não são obrigados a outras prestações, excepto quando a lei ou o contrato, autorizado por lei, assim o estabeleçam; só o património social responde para com os credores pelas dívidas da sociedade, embora seja lícito estipular no contrato que um ou mais sócios, além de responderem nos termos referidos, respondem também perante os credores sociais até determinado montante.

Ora, como do contrato social junto a fls. 201 a 204 dos autos se constata, a sociedade em questão tinha um capital social de € 5.000 que estava dividido em duas quotas iguais, pertencendo uma ao réu CC e a outra ao réu DD e no aludido contrato nada se estipulou acerca do agravamento da responsabilidade dos sócios relativamente aos credores sociais.

Deste modo, a responsabilidade dos sócios relativamente aos créditos da autora é restrita ao montante que receberam na partilha.

Acontece, porém, que na escritura de dissolução da sociedade os sócios declararam que não havia activo nem passivo e que, por isso, consideravam a sociedade liquidada. Tal significa que a sociedade não foi objecto de liquidação nos termos previstos na lei (artigos 146.º e seguintes do CSC), mas, como bem diz a Relação, tal não significa que não houvesse bens para partilhar e, acrescentamos nós, tal não significa que os sócios não tenham recebido bens.

Todavia, para que os sócios pudessem ser condenados com base no disposto no art.º 163.º era necessário que se tivesse provado que a sociedade tinha bens e que esses bens foram por eles partilhados. E no contexto da acção, a prova desses factos incumbia à autora, por se tratar de factos constitutivos do direito à reparação que contra eles peticionou (art.º 342.º, n.º 1, do C.C.). Não tendo essa prova sido feita, é óbvio que os sócios da 1.ª ré não podem ser condenados ao abrigo do daquele normativo legal.

Mas será que podem ser condenados até ao limite da sua quota, como foi decidido na Relação?

A resposta também é negativa. Para que tal responsabilidade existisse, era necessário alegar e provar que os sócios da 1.ª ré não tinham realizado a sua quota do capital social.

Com efeito e ao contrário do que a decisão recorrida implicitamente pressupõe, os sócios, nomeadamente nas sociedades por quotas, não são obrigados a manter a integridade do capital social. O princípio da intangibilidade do capital social não tem esse alcance. Como diz, Ferrer Correia - (5)., a intangibilidade do capital social não significa “que a sociedade esteja obrigada a conservar constantemente no seu activo os valores necessários para assegurar ao capital estatutário a sua integridade. Se assim fosse, a sociedade deveria logicamente dissolver-se todas as vezes que se registassem perdas, todas as vezes que a marcha dos negócios da empresa fosse absorvendo tais somas, que em determinado momento aquele fundo ficasse a descoberto.” E “os sócios não estão obrigados a cobrir, mediante novas entradas, sob pena de dissolução, todas as perdas sofridas pela sociedade no exercício do seu comércio. Nem a sociedade faz voto de meter em cofre e zelosamente guardar, preservando-o das urgências e apetites do seu giro, as quantias que tenha recebido dos sócios – para só no momento da liquidação, comum ou falimentar, as exibir. Tal não é a função do capital social, nem lei alguma determina coisa tão extravagante. Como já temos dito e repisado, o capital social é simplesmente uma cifra – cifra abaixo da qual o património da empresa não poderá descer em virtude de atribuições aos sócios (enquanto tais, e não enquanto terceiros) de valores de qualquer natureza”.

De facto, no CSC não existe qualquer norma que obrigue os sócios a fazer novas entradas, de modo a manter permanentemente a intangibilidade do capital social. Contém, é certo, disposições que limitam a distribuição de bens e dos lucros de exercício aos sócios (art.os 32.º e 33.º) e contém uma outra que obriga os membros da administração a propor aos sócios, quando, pelas contas de exercício, verifiquem estar perdida metade do capital, umas das seguintes medidas: a dissolução da sociedade; a redução do capital social; a realização de entradas em dinheiro que mantenham pelo menos em dois terços a cobertura do capital social; a adopção de medidas concretas tendentes a manter pelo menos em dois terços a cobertura do capital social (art.º 35.º). Todavia, de nenhuma delas decorre que os sócios são obrigados a fazer novas entradas sempre que o património da sociedade seja inferior ao valor do capital social.

No caso em apreço, não está provado nem alegado foi sequer que os sócios não tivessem realizado as suas quotas, sendo certo que o ónus desse facto também pertencia à autora, nos termos do art.º 342.º, n.º 1, do C.C.

E sendo assim, como se entende que é, importa concluir que não há fundamento legal para condenar os réus CC e DD, quer à luz do art.º 163.º, quer à luz do art.º 197.º do CSC, sendo certo que também não se vislumbra que a sua condenação seja possível à luz de qualquer outro normativo ou princípio legal, nomeadamente ao abrigo do disposto nos art.os 78.º e 158.º do mesmo Código, pelas razões já aduzidas na sentença da 1.ª instância que, nessa parte, se encontra, aliás, transitada em julgado.

E chegados aqui importa perguntar quem é que, a final, deve ser condenado a pagar à autora as prestações que lhe são devidas em consequência do acidente relatado nos autos.

E, respondendo a esta pergunta, diremos que só pode ser o FAT, pois, não sendo possível condenar a entidade empregadora, nem a generalidade dos seus sócios, terá de ser aquele organismo a assumir tal encargo, sob pena da autora ficar sem receber as prestações a que tem direito.

Face ao teor do art.º 39.º, n.º 1, da LAT e do art.º 1.º, n.º 1, al. a), do D.L. n.º 142/99, poder--se-ia dizer que a condenação do FAT só era admissível, caso se tivesse provado (o que não se provou) que a 1.ª ré não tinha bens e que os seus sócios nada tinham recebido em partilha.

Com efeito, nos termos dos referidos normativos, o FAT só é chamado a assumir o seu papel de garante do pagamento das prestações que forem devidas por acidente de trabalho quando estas não possam ser pagas pela entidade responsável, por motivo de incapacidade económica objectivamente caracterizada em processo judicial de falência ou processo equivalente, ou processo de recuperação de empresa, ou por motivo de ausência, desaparecimento ou impossibilidade de identificação daquela entidade.

No caso em apreço, a ausência, desaparecimento ou impossibilidade de identificação da entidade responsável não se verificam. A entidade que, em princípio, seria responsável está perfeitamente determinada e identificada (seria a 1.ª ré) e, como já foi dito, o facto de, entretanto, ter sido extinta não equivale ao seu desaparecimento ou ausência, para efeitos do disposto nos citados normativos legais -(6).

Deste modo, a condenação do FAT só poderia assentar na incapacidade económica da 1.ª ré, ou, melhor dizendo, na inexistência de património à data da sua dissolução e extinção e, como na presente acção, isso não estava provado, o FAT não poderia ser condenado.

Temos de reconhecer que tal entendimento encontra apoio na letra do art.º 39.º, n.º 1, da LAT e do art.º 1.º, n.º 1, al. a), do D.L. n.º 142/99, e que esse é o entendimento correcto nas situações que chamaremos de normais, isto é, quando a acção é proposta apenas contra a entidade ou entidades directamente responsáveis pela reparação do acidente.

Nessas situações, compreende-se que o FAT não seja chamado a assumir o pagamento das prestações devidas pelo acidente de trabalho, sem que judicialmente se tenha apurado da incapacidade económica da entidade que na acção foi condenada como responsável pela reparação do acidente.

Mas o mesmo já não acontece quando o FAT é réu na acção e a entidade empregadora (sociedade por quotas) não pode ser condenada por, entretanto, ter sido extinta, o mesmo acontecendo como os sócios, por não estar provado que aquela tivesse património a partilhar.

Na verdade, se nesta situação fizéssemos depender a condenação do FAT da prova da inexistência de bens por parte da sociedade/entidade empregadora, a autora/sinistrada ficaria sem direito a reparação, uma vez que todos os réus acabariam por ser absolvidos do pedido, solução que obviamente, terá de ser rejeitada, por ser absolutamente contrária à razão que esteve subjacente à criação do FAT, que, como inequivocamente se diz no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 142/99, foi a de “prevenir que, em caso algum, os pensionistas de acidentes de trabalho deixem de receber as pensões que lhe são devidas”.

Por isso, temos de convir que a exigência prevista nos citados normativos legais, no que toca à incapacidade económica da entidade responsável, não tem cabimento nas situações como aquela sobre que versam os presentes autos.

E tal solução mais se compreende se tivermos em contar que o FAT, tendo sido parte na acção, teve ocasião de alegar e provar que a sociedade extinta tinha bens, aquando da sua dissolução.

Concluindo, diremos que os recursos merecem provimento e que a responsabilidade pelo pagamento das prestações devidas à autora deve recair unicamente sobre o FAT.

Tal responsabilidade abarca a quantia de € 2.490,83 de indemnização por ITA e a pensão anual, obrigatoriamente remível, de € 1.220,10, com início em 18.7.2003, que na decisão recorrida foram reconhecidas à autora, deduzidas dos montantes que o FAT já lhe pagou a título de pensão provisória, mas já não engloba os juros de mora que também lhe foram atribuídos, uma vez os juros de mora não fazem parte do elenco das prestações referidas no art.º 1.º, n.º 1, al. a), do D.L. n.º 142/99 e no art.º 39.º, n.º 1, da Lei n.º 100/97 - (7)traso devidos pela entidade responsável” (art.º 1.º, n.º 6, do D.L. n.º 142/99).
Todavia, já anteriormente se entendia que o FAT não respondia pelos juros de mora imputáveis à entidade responsável (vide acórdão de 18.12006, proc. 3478/05, da 4.ª Secção, de que foi relator o conselheiro Sousa Grandão)..

4. Decisão
Nos termos expostos, decide-se julgar procedentes os recursos de revista, revogar a decisão recorrida, na parte em que absolveu o FAT e condenou os réus CC e DD, e condenar o FAT a pagar à autora a quantia de € 2.490,83, a título de indemnização por ITA, e a pensão anual, obrigatoriamente remível, de € 1.220,10, com início em 18.7.2003, deduzidas dos montantes que o FAT já lhe pagou a título de pensão provisória.

Sem custas, por delas estar isento o FAT.

Lisboa, 23 de Abril de 2008

Sousa Peixoto (relator)

Sousa Grandão

Pinto Hespanhol — vencido nos termos da declaração anexa



Declaração de voto

Votei vencido por entender que não competia à autora alegar e provar que a sociedade comercial empregadora tinha bens quando foi extinta e que tais bens foram partilhados pelos seus sócios, nem que os sócios tivessem realizado as respectivas quotas, sendo que, nos termos do n.º 2 do artigo 342.º do Código Civil, considerando a conexão desses factos com o direito de reparação invocado, cabia antes aos sócios réus provar a não existência desses bens, a não verificação da sua partilha entre eles e a realização das respectivas quotas, já que revestem a natureza de factos impeditivos da pretensão formulada.

Por outro lado, tal como foi já acolhido no acórdão deste Supremo Tribunal, de 18 de Abril de 2007, Revista n.º 45/07, da 4.ª Secção, considera-se que «o Fundo de Acidentes de Trabalho (FAT) só garante o pagamento das prestações quando a incapacidade económica da entidade responsável tiver sido objectivamente caracterizada em processo judicial de falência ou processo equivalente, ou processo de recuperação de empresa», o que, no caso sujeito, não aconteceu.

Nestes termos, negaria ambas as revistas e confirmaria o acórdão recorrido.

_____________________________________
(1) - O caso em apreço enquadra-se em tal normativo (art. 162 do CSC), porquanto nas acções emergentes de acidente de trabalho, de harmonia com o disposto no art. 26º/2 e 3 do CT, a instância se inicia com o recebimento da participação.
(2) -Como aliás bem precisa a Exma Procuradora-Geral Adjunta no deu douto parecer.
(3)-In Código Processo Civil anotado, IV, 1981, p.29.
(4) - O n.º 2 do art.º 160.º tem o seguinte teor: “A sociedade considera-se extinta, mesmo entre os sócios e sem prejuízo do disposto nos artigos 162.º a 164.º, pelo registo do encerramento da liquidação.”
(5) - Lições de Direito Comercial, reimpressão, 1994, página 333
(6) - Neste sentido, vide o acórdão do STJ, de 18.4.2007, proferido no proc. n.º 45/07, da 4.ª Secção, subscrito pelo relator e adjuntos que subscrevem este.
(7) - Actualmente, por força das alterações de que o D.L. n.º 142/99 foi alvo por parte do D.L. n.º 185/2007, de 10/5, e que ao caso não são aplicáveis, a lei diz claramente que “[o] FAT não garante o pagamento de juros de mora das prestações pecuniárias em atraso devidos pela entidade responsável” (art.º 1.º, n.º 6, do D.L. n.º 142/99).
Todavia, já anteriormente se entendia que o FAT não respondia pelos juros de mora imputáveis à entidade responsável (vide acórdão de 18.12006, proc. 3478/05, da 4.ª Secção, de que foi relator o conselheiro Sousa Grandão).