Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08A1470
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: CARDOSO DE ALBUQUERQUE
Descritores: CONTRATO DE EMPREITADA
MERA DETENÇÃO
POSSE
DIREITO DE RETENÇÃO
HIPOTECA
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
CONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: SJ20080603014701
Data do Acordão: 06/03/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I - Demonstrado que a A no âmbito da empreitada de um edifício levada a efeito por contrato celebrado com os 1ºs RR se constituiu credora destes por efeito das diversas facturas que lhes foi endereçando e relativas às obras desenvolvidas, de harmonia com o esquema entre eles acordado de pagamento faseado, sendo que por via do não pagamento das mesmas, reteve em seu poder o edifício cujo acesso proibiu a qualquer pessoa, incluindo aos ditos RR, não existindo facto algum que importe uma eventual indefinição temporal da detenção do edifício pela recorrida, tem de se concluir que essa detenção preexistia ao vencimento das facturas.
II - No contrato de empreitada, o empreiteiro face ao não pagamento do preço pela contraparte, goza do direito de retenção.
III - A prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca prevista no art. 759.º, n.º 2, do CC, não é materialmente inconstitucional.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I - Construções DM, Limitada instaurou a presente acção declarativa de condenação, com forma de processo ordinário, contra AA e mulher BB, e contra a Caixa Geral de Depósitos, Sociedade Anónima, pedindo que os réus AA e mulher sejam condenados a pagar-lhe a quantia de 220.811,58 €, acrescida de juros legais à taxa anual de 9,09%, juros esses que incidem sobre o capital de 205.714,78 € desde 4/5/2005 até efectivo e integral pagamento, bem como serem todos os réus condenados a verem declarado o direito de retenção da autora sobre o prédio identificado na petição inicial.
Alegou que celebrou com o R AA um contrato de empreitada em que se comprometeu a construir um edifício, sendo os trabalhos objecto de medição mensal.
Esse réu pagou algumas das facturas relativas a trabalhos efectuados, mas já não pagou as duas últimas facturas que totalizam 205.714,78 €, também reportadas a trabalhos executados.
Até 3/5/2004 a dívida venceu juros no montante de 15.097 €.
Por via do procedimento cautelar apenso aos presentes autos de acção ordinária, foi arrestado em benefício da autora e para garantia da dívida citada o prédio urbano composto de terreno para construção, terreno esse onde foi construído pela autora o referido edifício.
Esse prédio é dos réus AA e mulher e encontra-se hipotecado a favor da ré Caixa.
A autora detém o edifício, não tendo mais ninguém acesso ao mesmo, mantendo-o fechado e guardado.
Dada a falta de pagamento de parte dos trabalhos, pretende a autora que seja declarado o seu direito de retenção sobre o imóvel.

Os RR AA e mulher não contestaram.
A R Caixa contestou concluindo pela improcedência do pedido quanto à contestante, alegando que a hipoteca de que beneficia garante o financiamento que concedeu aos réus AA e mulher para a construção do prédio ora em causa, bem como que desconhece os factos alegados pela autora.

Proferiu-se saneador e elaborou-se a condensação.

Procedeu-se, por fim, ao julgamento, tendo-se exarado sentença que julgou o primeiro pedido procedente e condenou os RR AA e BB a pagarem à autora a quantia de 205.714,58€, a que acrescem juros contados nos seguintes termos:
- Sobre a parcela de 99.361,07€ acrescem, até efectivo e integral pagamento, juros contados desde o dia 15/7/2004 até ao dia 30/9/2004 à taxa anual de 12%, desde 1/10/2004 até 31/12/2004 à taxa anual de 9,01%, desde 1/1/2005 até 30/6/2005 à taxa anual de 9,09%, desde 1/7/2005 até 31/12/2005 à taxa anual de 9,05%, desde 1/1/2006 até 30/6/2006 à taxa anual de 9,25%, desde 1/7/2006 até 31/12/2006 à taxa anual de 9,83%, desde 1/1/2007 até 30/6/2007 à taxa anual de 10,58% e desde 1/7/2007 em diante à taxa anual que resultar da aplicação do art. 1 da Portaria 597/2005 de 19/7;
- Sobre a parcela de 106.353,51€ acrescem, até efectivo e integral pagamento, juros contados desde o dia 15/8/2004 até ao dia 30/9/2004 à taxa anual de 12%, desde 1/10/2004 até 31/12/2004 à taxa anual de 9,01%, desde 1/1/2005 até 30/6/2005 à taxa anual de 9,09%, desde 1/7/2005 até 31/12/2005 à taxa anual de 9,05%, desde 1/1/2006 até 30/6/2006 à taxa anual de 9,25%, desde 1/7/2006 até 31/12/2006 à taxa anual de 9,83%, desde 1/1/2007 até 30/6/2007 à taxa anual de 10,58% e desde 1/7/2007 em diante à taxa anual que resultar da aplicação do art. 1 da Portaria 597/2005 de 19/7.
Julgou igualmente procedente o segundo pedido e declarou que a autora beneficia de direito de retenção sobre o prédio sito no lugar de P...., freguesia de Rio Tinto, concelho de Gondomar, com a referência no registo predial 03773/120894, e condenou os RR AA, BB e Caixa Geral de Depósitos a reconhecerem tal direito de retenção, referindo antecedentemente que o dito direito prevalecia sobre a hipoteca e que em caso de venda executiva tinha o direito a ser pago em primeiro lugar.
Interposto recurso de apelação pela R Caixa, não lhe foi dado guarida pela Relação do Porto que através do douto acórdão de fls confirmou o sentenciado na 1ª instância.

Recorreu, de novo inconformada, a R Caixa, de revista, concluindo a sua peça alegatória como segue:
1. - O direito de retenção pressupõe a posse do imóvel por parte de quem a invoca à data da constituição e do vencimento da obrigação de o entregar não se compadecendo com situações em que a posse do imóvel, ainda que consentida pelo dono, só é posterior à data do vencimento do crédito.
2. - O único elemento que permite aferir do direito de retenção consta dos artºs 25º e 26º da p. i. e foi transferido para o quesito 13º que logrando obter resposta positiva apenas permite concluir que em 4/05/2005, data da propositura da acção e a partir dessa data a A impedia o acesso à obra e mantinha o edifício na sua posse.
3. – Não se provou que entre a data do abandono da obra pela A e da mora no pagamento das facturas por parte do R (a ultima factura venceu-se em 15/08/2003) e a data da acção (23/11/2004) a A estivesse na posse do imóvel e impedisse o acesso a qualquer pessoa.
4. – A carta de fls 148 subscrita pelo R em 1/08/2005, embora estranha por si e pelo seu teor, face às regras da experiência comum, se algo permite provar é que a posse ou a detenção do imóvel pela A , consentida e legítima só a partir dessa altura terá ocorrido.
5. – Não se provando a detenção legítima ou posse material do imóvel pela A com a subsequente obrigação de o entregar, no momebnto em que dispõe do crédito, apenas se podendo concluir que a referida posse ainda que consentida pelo dono só é posterior à data do vencimento do referido crédito, verifica-se a falta de um dos requisitos essencviau is do direito de retenção.
6. – Ao declarar que a A beneficia do direito de retenção , nestas circunstâncias foram violados os artºs 754º e 342º do CCivil.
7. – A lei faz depender o direito de retenção de uma relação de conexão entre a coisa retida e o crédito invocado, ou seja, na letra da lei, é exigível que o crédito resulta de despesas feitas po causa da coisa ou de danos por ela causados ( cfr artº 754º do CCivil)
8. – E na fórmula legal “ despesas feitas por causa da coisa “ apenas podem considerar-se abrangidas “as despesas feitas para conservar ou melhorar a coisa “ou seja as benfeitorias.
9 – O crédito da A resulta de despesas de edificação e não de despesas de mera beneficiação ou de conservação do edifício pré-existente .
10 – O referido crédito é relativo a despesas de edificação e é o preço da obra a que se refere o artº 1207º do CCivil, não podendo este preço confundir-se com as despesas a que se refere o artº 754º do mesmo código.
11 – As despesas feitas pela A correspondentes ao preço da obra imobiliária realizada não podem gerar direito de retenção porque s são préexistentes, nãi o sendo despesas feitas por causa da coisa, visto que a coisa( obras realizada) ainda não existia quanf do foram v constituídas (cfr Ac da RLxa de 5/06/1984, CJ 1984, Tº3º, 137 e A. Varela, Das Obrigações em Geral , 7ªed., 577 e ss)
12 – Ao decidir como decidiu a d. sentença recorrida violou o artº 754º do CCivil .
13 – Mesmo que viesse a reconhecer-se à A o direito de retenção, o que não se concede, nunca tal direito poderia ter o alcance previsto na sentença proferida no tribunal de 1ª instância, confirmada pelo douto acórdão recorrido, face à menção nela expressa do nº2 do artº 759º do CCivil .
14 – De facto, tem vindo a consolidar-se uma corrente de opinião que considera inconstitucional a preferência do direito de retenção face à hipoteca, consagrada naquele artigo, quando a hipoteca tenha sido registada anteriormente .
15 – E isto porque, tal prevalência do direito de retenção sobre créditos constituídos e registados em momento anterior , como sucede com os créditos hipotecários, ofende valores e direitos fundamentais, constitucionalmente tutelados.
16 - A prevalência do direito de retenção sobre hipoteca anteriormente constituida apresenta de facto uma intolerável sacrifício do credor hipotecário que confiou na certeza do direito e viola o princípio da confiança , ínsito no princípio do estado de direito democrático consagrado no artº 2º da Constituição, afecta gravemente as fundadas e legítimas expectativas de terceiros, lesando inexoravelmente a certeza e a segurança do tráfego jurídico e a protecção da confiança e da segurança jurídica dos particulares e viola os princípios constitucionais da proporcionalidade (que impõe a salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalnmente protegidos) e da igualdade de tratamento ( que impõe que situações idênticas sejam objecto do mesmo tratamento, proibindo diferenciações destituídas de fundamento racional).
17–O nº2 do artº 759º do CCivil enferma, pois, de inconstitucionalidade ao conferir a prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca anteriormente registada.
18 – De facto, interpretada aquela norma no sentido do direito de retenção prevalecer em relação ao credor titular de uma garantia hipotecária registada anteriormente à ocorrência dos pressupostos de que depenfde a verificação daquele direito a mesma é atentatória do disposto nos artºs 2º, 13º, 18º,nº2, 20º, nº1 e 165º aln b) da CRP na medida em que vai contra aqueles princípios .
19 – Este entendimento é reforçado pela orientação que para casos idênticos vem sendo seguida pela jurisprudência do Tribunal Constitucional que já julgou inconstitucionais , por violação do princípio da confiança (…), as normas constantes dos artºs 2º do DL 512/76 de 3/07, 11º do DL 103/80 de 9/05 e 104º do CIRS quando interpretadas no sentido que o privilégio imobiliário geral nelas conferido prefere à hipoteca nos termos do artº 751º do CCivil ( Ac.s nº 160/2000 de 23/02, 354/2000 de 5/07 , 100/2001 de 5/03, publicados b no DR s de 10/10/2000 de 7/11(2000e de 21/02/2002 ) inconstitucionalidade esta entretanto declarada com força obrigatória geral pelos Acs nºs 362/2002 e 363/2002, publicados no DR - 1ª A de 16/10/02.
20 – Como se lê do referido acórdão de 23/03/2000, o princípio da protecção da confiança (…) postula um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas expectatívas que lhes são juridicamente criadas, censurando as afectações inadmissíveis, arbitrárias ou excessivamente onerosas, com as quais não se poderia moral e razoavelmente contar.
21 - Parafraseando ainda o d. Acórdão dir-se-á que não estando o direito de retenção sujeito a registo e tendo a recorrente registado a sua hiopoteca muito antes da alegada verificação dos pressupostos em que se fundamenta aquele direito, não pode o mesmo ser oposto quanto à referida hipoteca, sob pena da recorrente se ver confrontada uma realidade que frustra a fiabilidade que o registo da hipoteca e a ausência de ónus anteriores naturalmente lhe mereciam
22 – Reconhecer a prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca ainda que esta tenha« sido registada anteriormente é um rude golpe na protecção devida aos legítimos interesses designadamente das entidades bancárias, com grande responsabilidade na dinamização da actividade económica e financeira, mormente no sector da construção civil, porque imprescindíveis a essa actividade, quer a montante quer a juzante , primeiro no financiamento às empresas para apoio à construção e depois no financiamento dos particulares para apoio à aquisição das habitações
23 .- E perante o conflito de interesses relevantes dos cidadãos e das empresas que são normalmente os beneficiários do direito de retenção e de interesses igualmente relevantes das instituições de crédito, habitualmente detentoras de hipoteca , terão de prevalecer os princípios da proporcionalidade e da igualdade de tratamento nos termos das qual perde razoabilidade a prevalência conferida ao direito de retenção sobre a hipoteca à revelia e ou contradição com a prioridade conferida pelo registo predial com o alcance e a relevância que lhe dão reconhecidos, designadamente na jurisprudência acima referenciada .
24 – A norma do nº2 do artº 759º do CCivil na interpretação de que o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca ainda que esta tenhá sido registada anteriormente padece pois de inconstitucionalidade material por violar o disposto nos artºs já atrás citados da Constituição.
Termina a recorrente por pedir a revogação do douto acórdão e da sentença na parte em que se declara que a A beneficia do direito de retenção e sem conceder se corrija o acórdão e a sentença na parte em que esta reconhece que o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca da ora recorrente pela menção expressa que nela é feita que o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca, ainda que anteriormente registada.

Não houve contra alegacão.


Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

III.- Factos considerados provados na sentença:
1. O réu AA é comerciante em nome individual e dedica-se à actividade industrial e comercial de promoção e revenda de imóveis (A).
2. No lugar de Perlinhas, freguesia de Rio Tinto, concelho de Gondomar, existe um terreno para construção, com a referência no registo predial 03773/120894, cujo direito de propriedade se encontra inscrito, desde 17/8/1998, a favor do réu AA e da ré BB, casados entre eles sob o regime de comunhão de adquiridos (B).
3. Com registo predial desde 23/6/2000, foi constituído sobre esse prédio uma hipoteca a favor da ré Caixa para garantia do capital de 550.000.000 de escudos, com o limite máximo de 826.925.000 escudos (C).
4. A autora é uma sociedade comercial que se dedica à indústria de construção civil (1).
5. No âmbito das suas actividades industriais e comerciais, o réu AA e a autora celebraram em 30/9/2003 um contrato de empreitada em que a autora se comprometia a terminar a construção de um edifício implantado no terreno referido em B), edifício esse de que já estava construída a estrutura em tosco (2).
6. Pelo preço de 1.700.000 euros, acrescido de Imposto Sobre o Valor Acrescentado (3).
7. Foi acordado que os trabalhos da autora seriam pagos mensalmente, de acordo com os trabalhos efectuados (4).
8. Mais se acordou que a autora enviaria até ao dia 25 de cada mês ao réu AA um auto de medição dos trabalhos realizados nos 30 dias anteriores (5).
9. Valendo como aprovação do auto de medição a ausência de qualquer objecção do referido réu nos 5 dias que se sucedessem à recepção de tal auto (6).
10. Também foi acordado que, em conformidade com os autos de medição, a autora emitiria as facturas que o referido réu deveria pagar no prazo de 15 dias (7).
11. Iniciadas as obras, o réu AA pagou as primeiras facturas emitidas pela autora (8).
12. O réu AA não pagou a factura com data de 30/6/2004, no valor de 99.361,07€, relativa a trabalhos, com auto de medição, realizados no período de 25/5/2004 a 25/6/2004 (9).
13. O réu AA não pagou a factura com data de 30/7/2004, no valor de 106.353,51€, relativa a trabalhos, com auto de medição, realizados no período de 26/6/2004 a 25/7/2004 (10).
14. O referido réu não reclamou dos autos de medição que fundaram as facturas de 30/6/2004 e de 30/7/2004, tal como não reclamou dessas facturas ou recusou o seu pagamento (11).
15. A factura de 30/6/2004 venceu-se em 15/7/2004 e a factura de 30/7/2004 venceu-se em 15/8/2004 (12).
16. A autora impede o acesso ao edifício que construiu a qualquer pessoa e mantém esse edifício na sua posse (13).

IV.- De acordo com o conclusório da minuta do recurso que baliza, afora as questões de conhecimento oficioso, o objecto do mesmo, conforme os artºs 684º, nº3 e 690º,nº1 do CPC são as seguintes as questões jurídicas que nos cumpre dilucidar:
- inexistência de direito de retenção.
- inconstitucionalidade da norma referida na douta sentença atributiva da prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca

1ª Questão
A recorrente não tem sombra de razão ao pretender por um lado que se não provou a detenção pela A do edifício construído, enquanto pressuposto do direito de retenção e por outro que enquanto empreiteira do mesmo não poderia validamente invocar o mesmo .
Vejamos.
Como é sabido o direito de retenção, previsto genericamente no artº 754º do CPC confere ao devedor que se encontra adstrito a entregar certa coisa e disponha de um crédito sobre o seu credor de não efectuar a prestação, mantendo a coisa que deveria entregar em seu poder.
Para que exista direito de retenção ( e que constitui um direito real de garantia, conforme o disposto no nº2 do artº 604º, nº2) nos termos deste preceito é necessário, portanto e em primeiro lugar que o respectivo titular detenha licitamente uma coisa que deva entregar a outrem e em segundo lugar que simultaneamente, seja credor daquele a quem deva a restituição e por último que entre os dois créditos haja uma relação de conexão ( debitum cum re junctum) nas condições nele definidas “ resultar o credito de quem estaja obrigado a entregar a coisa de despesa com ela feitas ou de danos por ela causados “ como explanam A. Varela e P de Lima no seu Anotado , Vol. I, 4ª ed., 773
Ora no caso vertente, ficou demonstrado que a A no âmbito da empreitada de um edifício levada a efeito por contrato celebrado com os 1ºs RR se constituiu credor deste por efeito das diversas facturas que lhe foi endereçando e relativas às obras desenvolvidas, de harmonia com o esquema entre eles acordado de pagamento faseado, sendo que por via do não pagamento das mesmas, reteve em seu poder o edíficio cujo acesso proibiu a qualquer pessoa, incluindo aos ditos RR.
Vem, no entanto, a recorrente alegar que para que esse suposto direito da A pudesse validamente ser exercido, seria necessário demonstrar que a detenção do imóvel já existia aquando da constituição em mora dos donos da obra, sendo certo que da resposta ao quesito 13º apenas decorre que à data da propositura da acção, a recorrida está na legítima detenção do imóvel, mas não que essa detenção já remontasse ao momento da constituição da mora pelo pagamento do preço.
Trata-se esta de uma interpretação da matéria de facto que a recorrente já sustentara no recurso para a Relação, baseando-se para tal que decorria de um anterior processo de arresto que a A, aqui também recorrida não tinha a posse da construção quando se constituira credor dos 1ºs RR e que este rejeitou, por não resultar dos autos que tivesse existido hiato algum no exercício dessa posse, mais rigorosamente dessa detenção entre o vencimento das obrigações decorrentes da obra e a propositura da presente acção.
Rejeição que partiu da constatação da inexistência de um aventado abandono de obra por motivo do não pagamento das diversas facturas emitidas em 2004, facto não alegado pela R ora recorrente que se limitou a uma mera impugnação da matéria vertida na petição e que logicamente termos de corroborar, tanto mais que como com clareza ressalta da própria fundamentação à resposta positiva ao quesito 13º atinente à matéria em discussão, ela se ter baseado em depoimento de testemunhas que atestaram ter a recorrida a posse do edifício, no estado em que ele se encontrava quando cessaram os pagamentos dos donos da obra de construção do mesmo.
Assim, não existindo facto algum que importe uma eventual indefinição temporal da detenção do edifício pela recorrida, obviamente que se tem de concluir que essa situação preexistia ao vencimento das facturas, como de resto se teria de presumir pelas normalidade das coisas, por ao empreiteiro caber, em regra, a obrigação de conservar e logo guardar a coisa designadamente um edifício no decurso dos trabalhos antes de proceder à sua entrega, logo que aceite a obra pelo comitente.

A segunda objecção colocada pela recorrente respeita à debatida questão de saber se no contrato de empreitada, o empreiteiro face ao não pagamento do preço pela contraparte, goza do direito de retenção.
Com efeito, autores há e também alguma jurisprudência que rejeitam tal direito por no fim de contas na empreitada o crédito do preço não corresponder exactamente às despesas feitas com a coisa, justificativas da conexão causal entre esta e o crédito sobre a pessoa que a deva receber
No entanto é amplamente maioritário o entendimento oposto, ou seja, o empreiteiro está sempre obrigado a entregar uma coisa, resultado da obra realizada e o crédito do preço sempre resultará de despesas feitas por causa dessa coisa, sejam despesas de construção, de modificação ou de reparação.
E como com pertinência observou em estudo feito sobre tal temática pelo Prof. Galvão Telles, O Direito de Retenção, no Contrato de Em preitada, “O Direito” 106/119, 1974 /1987 mal seria que se admitisse o direito de retenção a quem realizou benfeitorias e não se concedesse ao empreiteiro que constrói, modifica ou repara uma coisa, sendo que no mesmo sentido se pronunciaram Ferrer Correia e outro, “ Direito de Retenção, Empreiteiro” in CJ (1988) Tº I, 17 e 18, Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 1987, 339 e ss e Romano Martinez, Direito das Obrigações ( Parte Especial, ) 2ª ed., 375 e ss e Menezes Leitão, Garantias das Obrigações, 243 e ss indicando este último autor como argumento recente e suplementar o do DL nº 201/96 atribuir tal direito ao construtor de navios, o qual integra também uma modalidade de empreitada e na jurisprudência, os acórdãos deste tribunal citados pela Relação.
Improcede por consequência e também e quanto a este ponto, a crítica tecida pela recorrente.

2ª Questão.
Por último e embora essa questão não haja sido suscitada tanto na 1ª instância, como na Relação vem a recorrente arguir a inconstitucionalidade da norma do nº2 do artº 759 do CCivil apontada na 1ª instância como determinando a prevalência do direito de retenção que se pretende ver reconhecida sobre a hipoteca de que a mesma é titular e mau grado a anterioridade do respectivo registo.
Com efeito e de harmonia com o disposto na norma citada e quando recaia sobre coisa imóvel é o direito de retenção equiparado à hipoteca, mas prevalece sobre esta, mesmo que registada anteriormente.
Esta solução legal tem efectivamente suscitado reparos, mas não julgamos que a preferência atribuída ao “jus retentionis” seja equiparável ao regime dos privilégios imobiliários gerais que motivou a intervenção do Tribunal Constitucional através dos Acórdãos nºs 362/2002 e 363/2002 declarando a inconstitucionalidade com força obrigatória geral das normas que conferiam tais privilégios à Fazenda Nacional e à segurança social e na interpretação segundo a qual elas preferiam à hipoteca.
Na verdade, o principal argumento acentuado pelo Tribunal Constitucional foi o facto dos créditos privilegiados não terem conexão alguma com a coisa objecto da garantia e o próprio princípio da confidencialidade tributária impossibilitar os particulares de previamente indagarem se as entidades com quem contratam são ou não devedores ou do Estado ou da segurança social.
E neles se acrescentou que não estando tais créditos sujeitos a registo, o particular que exercesse a garantia podia ser confrontado com a existência de um crédito privilegiado e que “ frustrando a fiabilidade que qualquer registo deve merecer, tal implicará uma “ lesão desproporcionada do comércio jurídico”.
Situação diferente ocorre com o direito de retenção.
Com efeito a razão da preferência que lhe é atribuída reside no facto do retentor não poder invocar o seu direito contra outros credores, para impedir a execução da coisa, por isso em contraponto reconhecendo a lei, , esse dito privilégio, no âmbito do processo executivo como sustenta Vaz Serra no seu estudo sobre o tema no Anteprojecto do Cod . Civil
A atribuição ao direito de retenção da “oponibilidade erga omnes” decorre por seu turno do próprio facto da retenção e da publicidade inerente pois mostrando a coisa em poder do retentor, logo fará suspeitar de que não está livre.
E o grau de preferência que lhe é atribuído tem fundamentos que amplamente o justificam face à natureza dos actos que dão lugar as créditos do retentor.
Com efeito c resultando normalmente o crédito de despesas com a fabricação, conservação ou melhoramento de coisa alheia, será de concluir que se essas despesas não tivessem sido realizadas, a coisa poderia ter perecido e então nem o seu proprietário, nem o credor hipotecário nem qualquer outro credor poderiam realizar o seu direito.
È essa no fim de contas a razão fundamental da preferência que a lei entendeu atribuir-lhe pois como já sustentava Guilherme Moreira, citado por Mª Isabel Meneres Campos, Da Hipoteca, 224 ainda na vigência do direito anterior, se não lhe fosse atribuída tal preferência, todos os demais credores se locupletariam à sua custa em função do valor da coisa para que concorrera o retentor com as despesas com ela feitas.
No fundo, trata-se de garantia muito especial caracterizada por um nexo de ligação muito apertado entre a coisa e a obrigação, exactamente uma situação inversa às dos mencionados privilégios para além de envolver um processo de coacção sobre o devedor.
Para além disso, sempre importará referir que por via de regra os créditos que conferem o direito de retenção sobre os imóveis representavam uma pequena quantia em relação ao valor da coisa, logo sem possibilidade da prevalência a ele atribuída sobre a hipoteca esvaziar os créditos por esta garantidos
Outrossim e mesmo no caso muito especial e severamente criticado pela doutrina da atribuição dessa garantia ao crédito resultante do incumprimento pelo promitente alienante do contrato promessa com tradição da coisa, nos termos da aln f) do artº 755ºdo CCivil ( introduzido pelo DL nº379/86, retirando-o, com a respectiva eliminação do anterior nº 3 do artº 442º, conforme a redacção do DL nº236/80 ) já decidiu o Tribunal Constitucional em não julgar inconstitucional tal normativo, enquanto interpretado como concedendo ao promitente comprador de imóvel ou fracção autónoma com tradição do mesmo, direito de retenção com preterição de hipoteca constituída ou registada antes da invocação do direito de retenção ( Acórdãos nº 356/2004 in DR IIsérie de 28/06/2004 e o publicado no DR , II série, de 10/02/2005), tendo também este mesmo Supremo já decidido não serem inconstitucionais as normas que prevêem a preferência do direito de retenção do promitente adquirente de imóvel em contratos promessa tradiciários, sobre o titular da hipoteca.
Pelo que se não vê que a apontada prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca enquanto garantia real reconhecidamente das mais importantes e com um regime intimamente conexionado com o crédito imobiliário e desempenhando um papel insubstituivel na dinamização da vida económica ofenda qualquer dos princípios e valores constitucionais acima referidos quer o da proporcionalidade, quer o da igualdade, quer o da confiança, de resto já tendo este Supremo por inúmeras vezes rejeitado essa pretensa inconstitucionalidade da norma do artº 759º (em que estão definidos os casos especiais do direito de retenção conferido a titulares de créditos em que se dilui ou não existe a sua conexão objectiva com a coisa) ainda que convocada a propósito do direito de retenção conferido ao promitente comprador sendo a tal propósito elucidativo o recente acórdão deste Supremo de 12 /09/2007 procº nº 07ª 2235 in www.djsi.pt em que de forma exaustiva se aborda tal temática com resenha dos acórdãos anteriores, incluindo do Tribunal Constitucional.
Deste modo julgamos que ao contrário do alegado que de nenhuma inconstitucionalidade material enferma o dispositivo legal em questão.

V – Perante o quanto exposto fica, acorda-se em negar a revista .
Custas a cargo da recorrente.

Lisboa, 3 de Junho de 2008

Cardoso de Albuquerque (relator)
Azevedo Ramos
Silva Salazar