Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1524/23.7PBFAR.E1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: LOPES DA MOTA
Descritores: RECURSO PER SALTUM
CONCURSO DE INFRAÇÕES
CÚMULO JURÍDICO
VIOLAÇÃO
INTRODUÇÃO EM LUGAR VEDADO AO PÚBLICO
DETERMINAÇÃO DA MEDIDA DA PENA
PENA DE PRISÃO
PENA ÚNICA
Data do Acordão: 03/05/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Sumário :
I - Tendo em conta as conclusões da motivação, que delimitam o âmbito dos recursos, o STJ é chamado a apreciar e decidir da adequação e proporcionalidade da pena (de 5 anos de prisão) aplicada a um crime de violação, que o MP pretende ver agravada e o arguido pretende ver reduzida, bem como da pena única (de 5 anos e 1 mês) aplicada aos crimes em concurso (violação e introdução em lugar vedado ao público), com idênticas consequências.

II - É na consideração dos fatores relevantes por via da culpa e da prevenção (art. 71.º do CP), determinados na averiguação do «grande facto» caraterizado pelas circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, constituem o substrato da determinação da pena, que deve avaliar-se a concreta gravidade da lesão do bem jurídico protegido pela norma incriminadora, materializada na ação levada a efeito pelo arguido pela forma descrita nos factos provados, de modo a verificar se a pena aplicada respeita aqueles critérios, constitucionalmente impostos (art. 18.º, n.º 2, da Constituição), que devem pautar a sua aplicação.

III - Como resulta dos factos provados, é consideravelmente elevado o grau de ilicitude da conduta do arguido, tendo em conta a forma de execução do crime, em particular, o nível de violência e ameaça utilizados para neutralização da vítima e vencer a sua resistência, o número de penetrações, duas vaginais e uma anal, as quais, não fora a sua unificação pela interconexão e concentração espácio-temporal, em realização de uma forte e persistente vontade criminosa, poderiam, se analisadas separadamente, constituir repetidos atos de consumação do crime autonomamente puníveis.

IV - Idêntica conclusão se extrai das consequências da conduta do arguido, nomeadamente das lesões físicas e dos danos psicológicos e emocionais descritos na matéria de facto provada, tudo a indiciar caraterísticas de uma personalidade violenta, projetada nos factos praticados, e, como tal, reveladoras de consideráveis necessidades de prevenção especial.

V - Tendo em conta estas necessidades, que se comportam nos limites da culpa (art. 40.º do CP) definidos pelas descritas circunstâncias relativas ao grau de ilicitude do facto, ao modo de execução e à gravidade das suas consequências, bem como à intensidade do dolo, justifica-se uma intervenção corretiva na determinação da pena, no sentido da sua agravação, fixando-se em 6 anos a medida da pena correspondente ao crime de violação.

VI - Na ponderação destes fatores e na consideração do critério especial do art. 77.º do CP, tendo em conta que a moldura penal do cúmulo se passa a situar entre 6 anos e 6 anos e 2 meses de prisão, fixa-se a pena única em 6 anos e 1 mês de prisão.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

1. Por acórdão de 5 de julho de 2024 do Juízo Central Criminal de ... – Juiz ... – do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, foi o arguido AA, com a identificação dos autos, condenado pela prática de um crime de violação, p. e p. pelo artigo 164.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal, na pena de cinco anos de prisão e de um crime de introdução em lugar vedado ao público, p. e p. pelo artigo 191.º do Código Penal, na pena de dois meses prisão, e, realizado o cúmulo jurídico destas penas, na pena única de cinco anos e um mês de prisão.

Desta decisão vem interposto recurso pelo Ministério Público e pelo arguido.

2. Pretendendo uma agravação da pena, apresentou o Ministério Público recurso com motivação de que extrai as seguintes conclusões:

«(…)

2ª A decisão ora em crise enferma de vício de ponderação na aplicação do comando processual consagrado no artigo 71.º do Código Penal, por referência ao art.º 40.º do mesmo diploma.

3ª O crime de violação imputado ao arguido é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos de prisão (cf. alínea a) do n.º 2 do art.º 164.º do Código Penal).

4ª Em sede de determinação concreta da pena, importa atender à culpa do agente, às exigências de prevenção de futuros crimes e a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do mesmo ou contra ele (cf. nº 1/2 do art.º 71.º do Código Penal).

5ª Com efeito, será por via da culpa que se revela a medida da pena na consideração do ilícito típico, ou seja, considerando ou seja, considerando, entre outras circunstâncias, o grau de ilicitude do facto, o modo de execução e a gravidade das suas consequências, bem como ao grau de violação dos deveres impostos ao agente, como, ainda à intensidade do dolo, sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram (cf. alíneas a), b) e c) do n.º 2 do art.º 71.º do Código Penal).

6ª Neste caso, fazem-se sentir elevadíssimas necessidades de prevenção geral positiva face ao número elevado e constante de episódios de idêntica natureza na região algarvia, sendo igualmente certa a elevada insegurança que tais comportamentos geram na comunidade, circunstância que foi não devidamente tida em conta pelo Tribunal a quo.

7ª Ponderando o modo de execução dos factos, constata-se que o arguido agiu com elevada contundência física sobre a vítima, manietando-a fisicamente e constrangendo-a a vários coitos vaginal e anal, não obstante a mesma ter manifestado claramente a sua recusa, circunstância que lhe determinou várias escoriações nos braços e introito vaginal, bem como dores intensas nesses locais e hiperemia, tendo, por isso, padecido de sete dias de doença, sendo que as dores ainda se prolongaram pelos dias seguintes.

8ª Em consequência, é imperioso concluir que, por referência à moldura penal abstratamente aplicável, é muito intenso o grau de ilicitude dos factos, manifestado pela forma violenta e contundente como atou sobre a vítima, circunstância demonstrativa do seu total menosprezo perante o bem jurídico da liberdade de determinação sexual, sendo muito consideráveis as consequências físicas e emocionais para a vítima, na medida em que a conduta do arguido determinou-lhe sete dias de doença e consequências ao nível do sono e agudização dos seus sintomas de perturbação limite de personalidade e perturbação afetiva bipolar.

9ª Acresce, ainda, que arguido agiu com dolo direto, de forma muito intensa, empregando elevada energia criminosa, só cessando a sua conduta após total consumação dos seus instintos libidinosos.

10ª Para além disso, o arguido não demonstrou qualquer arrependimento, sendo a sua conduta, por isso, muito censurável em termos de culpa.

11ª Assim, fazem-se sentir elevadas exigências de prevenção geral positiva e de prevenção especial positiva, em que se reclama neste último contexto a aplicação de uma pena suficientemente desencorajadora.

12ª Em consequência, sopesando as finalidades de prevenção geral positiva e de prevenção especial positiva, conclui-se que o arguido deverá ser condenado a uma pena parcelar não inferior a 6 anos pela prática do crime de violação que lhe foi imputado.

13ª Para tanto, convoca-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 14 de Maio de 2014, relatado pelo Ex.º Juiz Conselheiro, Dr.º Pires da Graça, publicado na internet em www.dgsi.pt, em que concluiu por uma dosimetria semelhante.

14ª Por conseguinte, igualmente sopesando as mencionadas finalidades de prevenção geral positiva e de prevenção especial positiva, conclui-se que o arguido deverá de ser condenado na pena única de 6 anos e 1 mês de prisão.

Assim, deverá essa decisão judicial ser revogada e substituída por outra que condene o arguido AA a uma pena não inferior a 6 (seis) anos e 1 (um) mês de prisão.»

3. Por sua vez, pugnando pela diminuição e suspensão da pena de prisão, motiva o arguido o seu recurso, concluindo:

« (…)

II - A decisão ora em crise enferma de vício de ponderação na aplicação do comando processual consagrado no artigo 71º do Código Penal, por referência ao art.º 40º do mesmo diploma.

III - Em sede de determinação concreta da pena, importa atender à culpa do agente, às exigências de prevenção de futuros crimes e a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do mesmo ou contra ele (cf. nº 1/2 do art.º 71º do Código Penal).

IV - Com efeito, será por via da culpa que se revela a medida da pena na consideração do ilícito típico, ou seja, considerando ou seja, considerando, entre outras circunstâncias, o grau de ilicitude do facto, o modo de execução e a gravidade das suas consequências, bem como ao grau de violação dos deveres impostos ao agente, como, ainda à intensidade do dolo, sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram (cf. alíneas a), b) e c) do nº 2 do art.º 71º do Código Penal).

V - Neste caso, não existem sinais alarmantes na região da prática destes crimes, e o contexto e a dinâmica de todos os acontecimentos apontam que a conduta do arguido terá sido prática isolada.

VI - Sem descurar a ausência de antecedentes criminais, e a conduta anterior e posterior aos factos, tudo factores que parecem de ter sido menosprezados para que o Tribunal a quo fixasse assim a pena única em cinco anos de prisão.

VII - A aplicação e subsequente cumprimento de uma pena de prisão efetiva acarretarão naturalmente a uma dessocialização total do recorrente.

VIII - Será de relembrar o péssimo ambiente que se respira nos estabelecimentos prisionais, onde, em vez de se erradicar o vício do crime, se adquirem, infelizmente, novos vícios, o que é do conhecimento generalizado as prisões, em vez de corrigirem, são verdadeiras escolas para o cometimento de futuros crimes, para além das parcas condições de higiene e segurança que são de conhecimento publico e notório.

IX - O periodo já privado da liberdade serviu como castigo, e lição de que se voltar a praticar crimes regresserá para a prisão.

X - Por conseguinte, igualmente sopesando as mencionadas finalidades de prevenção geral positiva e de prevenção especial positiva, conclui-se que o arguido deverá de ser condenado na pena única de 5 anos de prisão, a qual deverá ser suspensa na sua execução, sujeita a regime de prova.

Assim, deverá essa decisão judicial ser revogada e substituída por outra que condene o arguido AA a uma pena 5 (cinco) anos de prisão, suspensa na sua execução, sujeita a regime de prova (…)»

4. Na resposta ao recurso apresentado pelo arguido, defende, porém, o Ministério Público, agora representado por diferente magistrada, que o recurso deste não merece provimento e que as penas aplicadas devem ser mantidas, dizendo, em conclusões:

«1. As concretas penas para cada um dos ilícitos imputados ao recorrente, bem como a pena única que lhe foi aplicada, mostram-se, dentro das respetivas molduras abstratas, justas e criteriosas, dando expressão acertada às exigências de prevenção, especial e geral, que no caso se faziam sentir.

2. Não se mostram, pois, violados, por qualquer forma, quaisquer preceitos legais ou princípios, designadamente os referidos pelo recorrente.

Face ao exposto, e ao abrigo das disposições legais supra citadas, deve o presente recurso ser julgado totalmente improcedente, confirmando-se, na íntegra, a decisão judicial recorrida.»

5. O arguido não respondeu ao recurso do Ministério Público.

6. O processo foi remetido ao Tribunal da Relação de Évora, tendo o Senhor Juiz Desembargador relator proferido despacho pelo qual julgou esse tribunal incompetente, por o recurso ter por objeto um acórdão da 1.ª instância que aplicou uma pena de prisão superior a 5 anos e se limitar a matéria de direito, o que constitui matéria da competência do Supremo Tribunal de Justiça [artigos 432.º, n.º 1, al. c), do CPP].

7. Recebidos, foram os autos com vista ao Ministério Público, tendo o Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal, emitido parecer de concordância com o recurso do Ministério Público no tribunal recorrido, nos termos do artigo 416.º do CPP, dizendo (transcrição parcial):

«(…)

1. Como afirma o Professor Figueiredo Dias quando analisa a controlabilidade em via de recurso do procedimento de determinação da pena – “é susceptível de revista a correção do procedimento ou das operações de determinação, o desconhecimento pelo tribunal ou a errónea aplicação dos princípios gerais de determinação, a falta de indicação de factores relevantes para aquela, ou, pelo contrário, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, já quanto à determinação do quantum exato da pena ele só será alterável se «tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada» (Cfr. in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, §§254 e 255, 196 e 197)”.

A justa medida da pena há-de resultar, assim, da correta ponderação conjugada dos factos que constituem os elementos do tipo de ilícito com as circunstâncias que, deles não fazendo parte, possam depor a favor do agente ou contra ele, nos termos do n.º 2 do art.º 71.º do Código Penal, tudo dentro dos limites fixados pelos critérios da culpa e da prevenção.

Impõe-se, pois, que na medida da pena “(…) sejam considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente – a personalidade do agente manifestada no facto, em que se incluem, designadamente, as condições económicas e sociais deste, reveladoras das necessidades de socialização, a sensibilidade à pena, a susceptibilidade de por ela ser influenciado e as qualidades da personalidade manifestadas no facto, nomeadamente a falta de preparação para manter uma conduta lícita (Figueiredo Dias, loc. cit., p. 248ss).”1

Ora, quanto aos factos, importa ponderar devidamente o alcance da lesão do bem jurídico.

H.H. Jescheck ensina que esta lesão se mede, desde logo, em consonância com a magnitude e a qualidade do dano causado, devendo atender-se, para tanto, seja em sentido agravante, seja em sentido atenuante, tanto ao grau das consequências materiais do crime como ao grau das consequências psíquicas2.

Já quanto à personalidade do agente manifestada na produção dos factos e à sua preparação para manter uma conduta lícita, esta revela-se na atitude de contrariedade ou indiferença do agente perante o dever socialmente consensual de se comportar de acordo com o direito, ou seja, na sua opção de agir contra o direito apesar de se encontrar na posição de se determinar de outro modo.

Aqui releva, de sobremaneira, o modo de cometimento do crime e os sentimentos manifestados durante a sua execução.

É exatamente no que respeita a esta avaliação dos fatores que devem ser levados em consideração na fixação da medida da pena que se nos afigura ter sido, a decisão recorrida, demasiado benevolente.

Vejamos o que se diz na decisão recorrida: [transcrição]

Como se vê, o acórdão recorrido não desrespeitou os princípios da proibição do excesso e da segurança jurídica, mas ficou aquém do que impunham os critérios estruturantes da proporcionalidade e da necessidade.

Quer a pena parcelar aplicada ao crime de violação (5 anos), quer a pena única (5 anos e 1 mês) em cúmulo com o crime de introdução em lugar vedado ao público, carecem de dimensão para responderem adequadamente às exigências de prevenção geral, que são aqui muito elevadas, considerando tratar-se de crime cuja natureza violenta, o receio social que provoca e o seu potencial lesivo reclamam rigor punitivo para desincentivar o seu cometimento.

Para além disso, o muito considerável grau de ilicitude dos factos e o desvio aos valores impostos pela ordem jurídica que os mesmos implicaram, o desrespeito e a indiferença pelo sofrimento da vítima manifestada no modo de cometimento e, também, na repetição dos atos integradores do crime, bem como a intensidade do dolo, que é a mais elevada, uma vez que o arguido atuou com intenção direta de levar a cabo os atos pelos quais veio aqui a ser condenado reclamavam penas mais severas.

Por fim, o grau de lesão do bem jurídico e as consequências dessa lesão não deviam ter permitido uma pena próxima do limite mínimo da pena abstratamente aplicável ao crime de violação aqui em causa.

Como refere Figueiredo Dias (Direito Penal Português, Editorial Notícias, pp. 231, § 310), “Tudo o que o aplicador tem de perguntar-se é qual o mínimo de pena capaz de, perante as circunstâncias concretas do caso relevantes, se mostrar ainda comunitariamente suportável à luz da necessidade de tutela dos bens jurídicos e da estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada”.

É exatamente esta ponderação, esta procura de equilíbrio, que se encontra deficitariamente usada na decisão recorrida.

III. Assim, examinados os fundamentos dos recursos, sufragamos integralmente a argumentação do Ministério Público no recurso que interpôs na 1ª instância, que aqui damos por reproduzida e, por todo o exposto: somos de parecer que o recurso do arguido deve ser julgado totalmente improcedente, julgando-se, porém, procedente o recurso do Ministério Público.»

8. Notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, o arguido nada disse em resposta.

II. Fundamentação

Factos provados

9. Consta do acórdão recorrido:

«Com relevância para a decisão, resultaram provados os seguintes factos:

1. No dia 2 de maio de 2023, sem a autorização ou consentimento de quem pudesse ser o dono, AA [doravante AA ou arguido], verificando que a porta de entrada do imóvel sita na Rua ..., em ..., tinha a fechadura quebrada, penetrou no interior do mesmo, aí passando a pernoitar e a tomar refeições;

2. O imóvel identificado em 1), na data aí referida e na data mencionada em 3), era propriedade da sociedade “V..., Lda..”, estava desocupado, degradado e, antes da fechadura ser quebrada, fechado;

3. No dia 2 de julho 2023, entre as 22:00 horas e as 23:00 horas, AA convidou BB [doravante BB] e CC [doravante CC] para irem consigo para o imóvel identificado em 1), dizendo-lhes que se tratava da sua casa, tendo ambos acedido ao pedido;

4. A porta de entrada no imóvel encontrava-se fechada com uma corrente e um cadeado, bem como com uma fechadura, que AA abriu;

5. A dado momento, CC saiu do interior do imóvel, ficando BB e AA a sós;

6. Momentos depois, AA agarrou BB pelo braço e levou-a para a divisão da habitação onde estava uma cama e empurrou-a para cima da mesma, tapando-a, de seguida, com uma colcha ou lençol, com a mesma na posição de barriga para baixo;

7. A dado momento, AA agarrou BB pelo tronco e colocou a mesma de barriga virada para cima e puxou para baixo as calças e as cuecas que que aquela envergava, deixando-a desnudada da cintura para baixo;

8. De seguida, sentou-se em cima da zona da anca de BB, fez pressão com as suas mãos no tórax e, depois, nos ombros, daquela, impedindo-a de mexer o tronco e dificultando a mobilidade dos braços da mesma;

9. BB, ao mesmo tempo que, com as suas mãos, empurrava para cima os braços e tronco de AA, dizia, repetidamente: “não”, “eu não quero fazer isto”, “deixa-me sair daqui”, “quero sair daqui”, “quero ir para casa”, “deixa-me ir embora”;

10. Nessa sequência, AA colocou a mão aberta a cinco centímetros do rosto de BB, sem tocar, dizendo-lhe, “isto ainda vai ser pior se continuares assim”, tendo aquela entendido a conduta daquele como: caso continuasse a falar e a gritar, lhe desferiria chapadas;

11. Depois, AA colocou a sua cabeça entre as pernas BB e lambeu-lhe a vulva, não tendo aquela reagido da forma descrita em 9), por temer ser esbofeteada;

12. Seguidamente, AA deitou o seu tronco em cima do tronco de BB, agarrou com as suas mãos os braços da mesma, e introduziu o seu pénis na vagina daquela, aí o friccionando por período de tempo não determinado e enquanto aquela verbalizava as expressões descritas em 10) e fazia força para libertar os seus braços, não o conseguindo;

13. Após, retirou o pénis do interior da vagina e colocou-o no interior do ânus de BB, aí o friccionando por período de tempo indeterminado;

14. De seguida, tirou o pénis de dentro do ânus e voltou a colocá-lo no interior da vagina de BB, aí o friccionando por período de tempo indeterminado;

15. AA ejaculou no interior da vagina de BB;

16. De seguida, AA bateu com a cabeça na cabeceira da cama, e parou de penetrar BB, ficando parado por cima da mesma;

17. De imediato, BB saiu debaixo de AA, vestiu-se e pediu para sair de casa, tendo-lhe oferecido dinheiro, ao que aquela rejeitou;

18. Após, AA abriu a porta e a BB saiu do interior do imóvel;

19. Devido ao descrito em 8), 12, 13) e 14), BB:

19.1. Sofreu:

19.1.1. equimose no braço direito, com 5 cm de comprimento por 4 cm de largura;

19.1.2. equimose no braço esquerdo, com 1 cm de comprimento por 0,5 cm de largura;

19.1.3. dores intensas na vagina e no ânus, que se prolongaram pelos dias subsequentes;

19.1.4. pequena escoriação no introito vaginal, na parte superior; e

19.1.5. hiperemia na vulva e vagina;

19.2. Chorou, teve dificuldade em conciliar o sono durante os dias que se seguiram;

19.3. Passou a residir com mãe, tendo necessidade de que mesma esteja presente até adormecer;

19.4. Sente receio quando sai sozinha;

19.5. Agravou os seus sintomas de perturbação limite de personalidade e perturbação afetiva bipolar;

19.6. Quando rememora o sucedido, chora;

20. O descrito em 19.1.1 a 19.1.5 determinou que BB sofresse um período de sete dias de doença, sem afetação da capacidade de trabalho geral e profissional;

21. AA:

21.1. Ao agir da forma descrita em 1), quis, forma livre e consciente, introduzir-se e ocupar o imóvel da sociedade “V..., Lda.”, sabendo que não tinha autorização, nem consentimento do legal representante da empresa para ali entrar, permanecer e passar a habitar, que se tratava espaço desocupado e fechado e que praticava conduta proibida e punida por lei;

21.2. Ao agir da forma descrita em 8), 12), 13) e 14), quis, de forma livre consciente, colocar-se em cima de BB, fazer pressão com as suas mãos no tórax e nos ombros daquela, agarrar os braços da mesma, colocar a sua mão perto do rosto da BB, de maneira a ser entendido que caso continuasse a falar ou gritasse, eram-lhe desferidas chapadas para, dessa forma, lhe lamber a vulva, introduzir o seu pénis na vagina e no ânus da mesma, ciente que a determinava a suportar tais atos contra a vontade da mesma;

22. AA sabia o descrito em 8), 12), 13) e 14), proibido e punido por lei penal;

23. O processo de desenvolvimento de AA ocorreu na Alemanha, donde é natural e nacional, numa família de acolhimento, dado ter sido abandonado pelos pais biológicos;

24. Tal processo decorreu de forma normativa e afetivamente adequada;

25. No seu país de origem AA frequentou o equivalente ao ensino secundário pela via profissional, na área da construção civil;

26. Autonomizou-se da família aos 18 anos de idade, ficando a viver sozinho, iniciando a atividade de pedreiro;

27. Aos 29 anos de idade foi viver para Espanha, onde, decorridos 2 anos iniciou uma união de facto, do qual resultou o nascimento de descendente;

28. Após terminar essa união, AA deslocou-se para Portugal, onde viveu na rua até ter ocupado o imóvel identificado em em1), nos moldes aí descritos;

29. Os pais adotivos de AA já faleceram e o mesmo tem irmãos na Alemanha, com os quais não mantém atualmente contacto após a morte dos pais;

30. Na data mencionada em 3) dos factos provados, AA:

30.1. Exercia a atividade de pedreiro, na empresa de construção civil “T...”, em ..., auferindo 640€ (seiscentos e quarenta euros) mensais;

30.2. Consumia canábis;

31. No dia 6 julho de 2023 AA ficou preso preventivamente à ordem dos presentes autos, assim se mantendo até à atualidade;

32. No Estabelecimento Prisional encontra-se inativo;

33. É primário;».

Objeto e âmbito do recurso

10. O recurso tem, pois, por objeto um acórdão proferido pelo tribunal coletivo da 1.ª instância que aplicou uma pena de prisão superior a 5 anos, diretamente recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça [artigo 432.º, n.º 1, al. c), do CPP]. Limita-se ao reexame de matéria de direito (artigo 434.º do CPP), não vindo invocado qualquer dos vícios ou nulidades a que se referem os n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º do CPP, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º, na redação introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro.

O âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição deste tribunal, delimita-se pelas conclusões da motivação (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo, se for caso disso, em vista da boa decisão de direito, dos poderes de conhecimento oficioso dos vícios da decisão recorrida a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995), de nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) e de nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro), que, neste caso, não se verificam.

Estando em causa uma situação de concurso de crimes (artigos 30.º, n.º 1, e 77.º do Código Penal), pode este tribunal conhecer de todas as questões de direito relativas à pena conjunta aplicada aos crimes em concurso e às penas aplicadas a cada um deles, englobadas naquela pena única, inferiores àquela medida, se impugnadas (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 5/2017, DR I, de 23.6.2017), como sucede neste caso.

11. Em síntese, tendo em conta as conclusões da motivação do recurso, este Tribunal é chamado a apreciar e decidir da adequação e proporcionalidade da pena aplicada ao crime de violação, que o Ministério Público pretende ver agravada e o arguido pretende ver reduzida, bem como da pena única, com idênticas consequências.

Quanto à pena aplicada ao crime de violação

12. A decisão de determinação da medida da pena encontra-se fundamentada nos seguintes termos:

«A) Determinação da medida legal ou abstrata da pena:

Em regra, a moldura penal aplicável, corresponde à moldura penal prevista no tipo de crime que a conduta do agente preenche (…).

No caso, não ocorrem quaisquer circunstâncias modificativas agravantes ou atenuantes, pelo que a moldura penal abstrata para o crime de violação é de prisão de três a dez anos de prisão [cf.alínea b),do n.º 2,do artigo 164º,doCódigoPenal].

(…)

C) Determinação da pena concreta de prisão:

Para proceder à determinação da medida concreta da pena de prisão interessa ter presente o disposto no artigo 71º, n.º 1 do Código Penal, segundo o qual a determinação da pena concreta se faz em função da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção de futuros crimes.

C-1.) Do modelo de determinação da medida concreta da pena:

(…)

Face ao disposto no artigo 40.º do Código Penal, que veio tomar posição expressa quanto à questão dos fins das penas, afigura-se-nos inquestionável que é o modelo da “moldura da prevenção” proposto por FIGUEIREDO DIAS [in, "Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime", pág. 285, § 409pp. 227/231], aquele que melhor se adequa ao espírito desta norma, quanto mais não seja por “nela ter sido consagrado o seu pensamento” [assim o afirma JOSÉ GONÇALVES DA COSTA, in RPCC, ano III, 1993, pág. 327].

(…)

Segundo aquele modelo, primordialmente, a medida da pena há de ser dada por considerações de prevenção geral positiva, isto é, prevenção enquanto necessidade de tutela dos bens jurídicos que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma infringida, que fornece uma «moldura de prevenção», isto é, que fornece um quantum de pena que varia entre um ponto ótimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias e onde, portanto, a medida da pena pode ainda situar-se até atingir o limiar mínimo, abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar. Através do requisito da culpa, dá-se tradução à exigência de que aquela constitui um limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas (limite máximo) – ligada ao mandamento incondicional de respeito pela dignidade da pessoa do agente. Por último, dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva – entre o ponto ótimo e o ponto ainda comunitariamente suportável – podem e devem atuar ponto de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que vão determinar, em último termo, a medida da pena. Esta deve, em toda a sua extensão possível, evitar a quebra da inserção social do agente e servir a sua reintegração na comunidade [In Direito Penal Português- As Consequências Jurídicas do crime, p..227ess. e, quanto ao juízo de culpa, ANABELA RODRIGUES, in A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, pp. 478 e ss.].

C- 1.1.) Critérios de aquisição e de valoração dos fatores de medida da pena:

Tendo presente o modelo adotado, importa, de seguida, eleger, no caso concreto, os critérios de aquisição e de valoração dos fatores da medida da pena, nomeadamente os referidos nas diversas alíneas do n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal.

Neste âmbito, há que ter em consideração:

C- 1.1.1.) A determinação do substrato da medida da pena:

Para efeito de medida da pena o conceito «substantivo» de facto é insuficiente para conter todos os fatores de medida da pena, se se considerar que aquele conceito é somente integrado pelas categorias do tipo-de-ilícito e do tipo-de-culpa.

Na medida da pena deve ser tido em consideração um tipo complexivo total, isto é, que não se basta com as categorias do tipo-de-ilícito e do tipo-de-culpa, mesmo quando a elas se acrescente a categoria da punibilidade, mas que abarque a categoria da punição (que suporta a consequência jurídica), integrada pelo princípio da carência punitiva [FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas - Editorial Notícias, 1993, pp. 232/234].

C-1.1.2. O princípio da proibição de dupla valoração:

O referido princípio, consagrado no artigo 71º, n.º 3, do Código Penal, implica que não devem ser tomadas em consideração, na medida concreta da pena, as circunstâncias que façam já parte do tipo de crime. Todavia, o que fica dito não obsta em nada a que a medida da pena seja elevada ou baixada em função da intensidade ou dos efeitos do preenchimento de um elemento típico e, portanto, da concretização deste, segundo as especiais circunstâncias do caso, v.g. não deve ser valorado da mesma forma um sequestro de 3 dias ou de 3 meses [FIGUEIREDO DIAS, ob., cit., pp. 234 e ata da 26º sessão da Comissão Revisora do Projeto da parte geral do Código Penal, in BMJ, 49, pág. 74/75].

Ainda neste âmbito importar referir que os fatores que influem na determinação da medida são, muitas vezes, dotados de particular ambivalência. Por exemplo um mesmo fator, na perspetiva da culpa, pode funcionar como agravante e, na perspetiva da prevenção, funcionar com atenuante.

B-1.2.) Os concretos fatores de medida da pena:

O artigo 71º, n.º 2, do Código Penal elenca, de forma não exaustiva, os concretos fatores de medida de pena que o tribunal deve ter em consideração, os quais, como se infere do que atrás ficou dito, devem valorados de acordo com o modelo adotado e dentro dos limites impostos pelo substrato da medida da pena e o princípio da proibição da dupla valoração.

Tendo presentes estas considerações, assumem relevância para a determinação da medida da pena os seguintes fatores:

- O grau elevado de ilicitude do facto, o modo de execução deste e gravidade consequências: O arguido prendeu os braços e tronco da vítima, causando-lhe escoriações em ambos os braços, escoriação no introito vaginal, lambeu a vulva da mesma, introduziu com o seu pénis, a vagina e o ânus da mesma, causando dores intensas nesses locais e hiperemia, tudo determinando sete dias de doença. Além disso, a vítima continuou a sentir dores nos dias seguintes, teve dificuldades e conciliar o sono, chorou, sente receio quando sai sozinha, passou a residir com a mãe, de cuja companhia necessita para dormir, agravou os seus sintomas de bordeline e bipolaridade e, quando rememora o sucedido, chora; (…)

- A elevada intensidade do dolo: o arguido agiu, em ambos os crimes, com dolo direto, que é a forma mais gravosa de culpa dolosa, e, como tal, a merecer um maior juízo de censura;

- Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins e os motivos que o determinaram: o arguido agiu com o propósito de obter satisfação sexual, revelando sentimentos de indiferença relativamente às consequências graves da sua conduta sobre o desenvolvimento da personalidade da vítima, a qual tornou objeto dos seus desejos reprimidos. Dito de outra forma, perante a ideia de que podia ser rejeitado caso tentasse convencer BB a ter voluntariamente relações sexuais consigo, decidiu coisificá-la para satisfazero que não conseguiu voluntariamente.

As condições pessoais e situação económica: o arguido, na data dos factos o arguido, na data dos factos trabalhava, auferindo € 640 mensais, consumia em excesso bebidas alcoólicas, consumia canábis e vivia em imóvel devoluto;

- Conduta anterior aos factos: ausência de condenações;

- Conduta posterior aos factos: (…) revelou falta de sentido crítico relativamente ao crime de violação;

- Falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto: nada se apurou.

Sopesando todos os fatores conclui-se que, no caso dos autos, as necessidades de prevenção especial, na sua vertente ressocialização do delinquente (prevenção especial positiva), não são elevadas, dado facto de o arguido, na data dos factos, se encontrar profissionalmente integrado.

No que se refere às exigências de prevenção geral necessidades de prevenção geral positiva ou de integração – que satisfaz a necessidade comunitária de afirmação ou mesmo reforço da norma jurídica violada, dando corpo à vertente daproteção de bens jurídicos, finalidade primeira da punição – é de afirmar, como se refere no acórdão do STJ de 5.3.2008 [disponível, em texto integral, in www.dsgsi.pt] que são muito elevadas, dado o alarme social que tal tipo de condutas provocam na comunidade.

No mesmo sentido se pronunciou o acórdão da Relação de Coimbra de18.11.2009 [disponível, em texto integral, in www.dsgsi.pt], onde se sustenta que a comunidade rejeita veementemente a prática de tais atos e exige que os seus autores sejam punidos com uma pena que e os faça sentir a enorme dimensão dac ensura social por tais condutas e que ao mesmo tempo se mostre suficientemente intimidante para futuros comportamentos idênticos.

No que se refere ao limite máximo imposto pela culpa [não se ignora que a «medição» do limite máximo pela culpa não é controlável plenamente de modo racional, já que se trata de converter justamente a quantidade de culpabilidade em magnitudes penais e os princípios que regem a determinação da pena não comportam a mesma concisão que os elementos do tipo.

Porém, essa margem de discricionariedade deixada ao julgador na tarefa de fixação concreta da pena é balizada por aquilo que se encontra positivado na lei] o mesmo não impõe que a moldura concreta se deva situar baixo das exigências de prevenção, dado que, no caso, o elevado grau de ilicitude do arguido é acompanhado por um elevado grau de culpa.

Em suma, há que «usar de cautelas para que a pena não desça, dentro da respetiva moldura, a um limite tão baixo que possa funcionar como incentivo à prática de mais crimes, nem ascenda a um patamar tão elevado que venha a dificultar, ou pelo menos adiar, de forma desproporcionada, a reinserção do delinquente» [acórdão do STJ de 7-1-2005 e acórdão do mesmo tribunal de 23.3.2006, ambos disponíveis, em texto integral, in www.dgsi.pt].

Tudo ponderado, e tempo em conta o limite máximo imposto pela culpa, têm-se como adequadas as seguintes penas:

- Crime de violação: cinco anos de prisão;

(..)»

13. Em termos gerais, convoca, pois, a fundamentação os critérios a observar na determinação da pena, nos termos dos artigos 40.º e 71.º do Código Penal, refletidos na jurisprudência deste Supremo Tribunal, que importa sumariamente relembrar.

14. Dispõe o artigo 40.º do Código Penal que a aplicação de penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade e em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.

Nos termos do n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias relacionadas com o facto praticado (facto ilícito típico) e com a personalidade do agente manifestada no facto, relevantes para avaliar da medida da pena da culpa e da medida da pena preventiva, que, não fazendo parte do tipo de crime (proibição da dupla valoração), deponham a favor do agente ou contra ele considerando, nomeadamente, as indicadas no n.º 2 do mesmo preceito, em observância do critério de proporcionalidade com fundamento no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, segundo o qual «a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos»3.

Para a medida da gravidade da culpa, de acordo com o artigo 71.º, há que considerar os fatores reveladores da censurabilidade manifestada no facto, nomeadamente, nos termos do n.º 2, os fatores capazes de fornecer a medida da gravidade do tipo de ilícito objetivo e subjetivo (grau de ilicitude do facto, modo de execução e gravidade das suas consequências e intensidade do dolo ou da negligência), os sentimentos manifestados no cometimento do crime e fins ou motivos que o determinaram e o grau de violação dos deveres impostos ao agente [als. a), b) e c)], bem como os fatores atinentes ao agente, que têm que ver com a sua personalidade (condições pessoais e situação económica, conduta anterior e posterior ao facto, e falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto [als. d), e), f)].

Na consideração das exigências de prevenção, destacam-se as circunstâncias relevantes em vista da satisfação de exigências de prevenção geral – traduzida na proteção do bem jurídico ofendido mediante a aplicação de uma pena proporcional à gravidade dos factos, reafirmando a manutenção da confiança comunitária na norma violada – e, sobretudo, de prevenção especial, as quais permitem fundamentar um juízo de prognose sobre o cometimento, pelo agente, de novos crimes no futuro, e assim avaliar das suas necessidades de socialização. Aqui se incluem as consequências não culposas do facto (v.g. frequência de crimes de certo tipo, insegurança geral ou pavor causados por uma série de crimes particularmente graves, comportamento anterior e posterior ao crime (com destaque para os antecedentes criminais) e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto [als. a) e) e f)]. O comportamento do agente [als. e) e f)] adquire particular relevo em vista da satisfação das exigências de prevenção especial, em função das necessidades individuais e concretas de socialização do agente, devendo evitar-se a dessocialização.

Como se tem sublinhado, é na consideração destes fatores, determinados na averiguação do «grande facto» caraterizado pelas circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, constituem o substrato da determinação da pena, que deve avaliar-se a concreta gravidade da lesão do bem jurídico protegido pela norma incriminadora, materializada na ação levada a efeito pelo arguido pela forma descrita nos factos provados, de modo a verificar se a pena aplicada respeita os critérios de adequação e proporcionalidade constitucionalmente impostos (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição), que devem pautar a sua aplicação4 . Não se podendo fundar em considerações de ordem geral pressupostas na definição dos crimes e das molduras abstratas das penas em vista da adequada proteção dos bens jurídicos postos em causa, sob pena de violação da proibição da dupla valoração, a determinação da pena dentro da moldura penal correspondente ao crime praticado há de comportar-se no quadro e nos limites da gravidade dos factos concretos, nas suas próprias circunstâncias concorrentes por via da culpa e da prevenção (artigo 71.º do Código Penal), tendo em conta as finalidades de prevenção especial de ressocialização5.

15. A discordância do Ministério Público, que pugna pela aplicação de uma pena mais grave, radica essencialmente no elevado grau de ilicitude do facto e nas suas consequências.

Lembrando a motivação: «o arguido agiu com elevada contundência física sobre a vítima, manietando-a fisicamente e constrangendo-a a vários coitos vaginal e anal, não obstante a mesma ter manifestado claramente a sua recusa, circunstância que lhe determinou várias escoriações nos braços e introito vaginal, bem como dores intensas nesses locais e hiperemia, tendo, por isso, padecido de sete dias de doença, sendo que as dores ainda se prolongaram pelos dias seguintes»; «em consequência, é imperioso concluir que, por referência à moldura penal abstratamente aplicável, é muito intenso o grau de ilicitude dos factos, manifestado pela forma violenta e contundente como atou sobre a vítima, circunstância demonstrativa do seu total menosprezo perante o bem jurídico da liberdade de determinação sexual, sendo muito consideráveis as consequências físicas e emocionais para a vítima, na medida em que a conduta do arguido determinou-lhe sete dias de doença e consequências ao nível do sono e agudização dos seus sintomas de perturbação limite de personalidade e perturbação afetiva bipolar.»

E a posição assumida no parecer neste Supremo Tribunal: «o acórdão recorrido (…) ficou aquém do que impunham os critérios estruturantes da proporcionalidade e da necessidade (…) o muito considerável grau de ilicitude dos factos e o desvio aos valores impostos pela ordem jurídica que os mesmos implicaram, o desrespeito e a indiferença pelo sofrimento da vítima manifestada no modo de cometimento e, também, na repetição dos atos integradores do crime, bem como a intensidade do dolo, que é a mais elevada, uma vez que o arguido atuou com intenção direta de levar a cabo os atos pelos quais veio aqui a ser condenado reclamavam penas mais severas (…)».

16. Como resulta da narração da matéria de facto, nomeadamente dos pontos 6 a 15 dos factos provados, é consideravelmente elevado o grau de ilicitude da conduta do arguido, tendo em conta a forma de execução do crime, em particular, o nível de violência e ameaça utilizados para neutralização da vítima e vencer a sua resistência, o número de penetrações, duas vaginais e uma anal, as quais, não fora a sua unificação pela interconexão e concentração espácio-temporal, em realização de uma forte e persistente vontade criminosa, poderiam, se analisadas separadamente, constituir repetidos atos de consumação do crime.

Idêntica conclusão se extrai das consequências da conduta do arguido, nomeadamente das lesões físicas provocadas e descritas no ponto 19.1 e 20 e dos danos psicológicos e emocionais indicados nos pontos 19.2 a 19.6 da matéria de facto provada.

Estas circunstâncias são indiciadoras de caraterísticas de uma personalidade violenta, projetada nos factos praticados, e, como tal, reveladoras de consideráveis necessidades de prevenção especial de socialização do arguido para, neste domínio, manter uma conduta lícita.

Assim, tendo em conta estas necessidades, que se comportam nos limites da culpa definidos pelas descritas circunstâncias relativas ao grau de ilicitude do facto, ao modo de execução e à gravidade das suas consequências, bem como à intensidade do dolo, na consideração, em concreto, dos fatores estabelecidos no artigo 71.º do Código Penal anteriormente mencionados, justifica-se uma intervenção corretiva na determinação da pena, no sentido da sua agravação.

Pelo que, na procedência do recurso interposto pelo Ministério Público, se revoga, nesta parte, a decisão recorrida, fixando-se em 6 anos a medida da pena correspondente ao crime de violação por que o arguido vem condenado.

17. Em consequência, com estes fundamentos, é o recurso do arguido julgado improcedente.

Quanto à pena única

18. A decisão de determinação da medida da pena única encontra-se fundamentada nos seguintes termos:

«No que toca à determinação da medida concreta da pena do concurso, verifica-se que a lei elegeu como elementos determinadores da pena conjunta os factos e a personalidade do agente, elementos que devem ser considerados em conjunto.

Acolhendo-nos ao ensinamento de FIGUEIREDO DIAS [In Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, pp. 290/292], entendemos que a pena conjunta deve ser encontrada, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique, relevando, na avaliação da personalidade do agente sobretudo a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade, sem esquecer o efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro daquele, sendo que só no caso de tendência criminosa se deverá atribuir à pluriocasionalidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura da pena conjunta.

Adverte no entanto que, em princípio, os fatores de determinação da medida das penas singulares não podem voltar a ser considerados na medida da pena conjunta (dupla valoração), muito embora, «aquilo que à primeira vista possa parecer o mesmo fator concreto, verdadeiramente não o será consoante seja referido a um dos factos singulares ou ao conjunto deles: nesta medida não haverá razão para invocar a proibição de dupla valoração» [Cf. EDUARDO CORREIA no seio da Comissão Revisora do Código Penal– cf. ata já atrás referida].

Daqui que se deva concluir, como concluímos, que com a fixação da pena conjunta se pretende sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respetivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto (e não unitariamente), os factos e a personalidade do agente. Como doutamente diz FIGUEIREDO DIAS, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado.

Importante na determinação concreta da pena conjunta será, pois, a averiguação sobre se ocorre ou não ligação ou conexão entre os factos em concurso, bem como a indagação da natureza ou tipo de relação entre os factos, sem esquecer o número, a natureza e gravidade dos crimes praticados e das penas aplicadas, tudo ponderando em conjunto com a personalidade do agente referenciada aos factos[visto que estes, como resultado da vontade e atuação do delinquente, espelham a sua forma de pensar e o seu modo de ser, o seu temperamento, caráter e singularidade, isto é, a sua personalidade], tendo em vista a obtenção de uma visão unitária do conjunto dos factos, que permita aferir se o ilícito global é ou não produto de tendência criminosa do agente, bem como fixar a medida concreta da pena dentro da moldura penal do concurso, tendo presente o efeito dissuasor e ressocializador que essa pena irá exercer sobre aquele.

Feitas estas considerações sobre a determinação da medida da pena única ou conjunta, e aplicando-as ao caso concreto fixa-se a pena única de cinco anos e um mês meses de prisão.»

19. Relembrando os critérios gerais e os fatores de determinação da pena única importa convocar o artigo 77.º do Código Penal.

A pena única corresponde a uma pena conjunta resultante das penas aplicadas aos crimes em concurso segundo um princípio de cúmulo jurídico, seguindo-se, na sua fixação, o procedimento normal de determinação e escolha das penas, a partir das quais se obtém a moldura penal do concurso (pena aplicável), que tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas, não podendo ultrapassar 25 anos de prisão, e, como limite mínimo, a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal).

Assim definida a moldura do concurso, o tribunal determina a pena conjunta, seguindo os critérios da culpa e da prevenção (artigo 71.º do Código Penal) e o critério especial fixado na segunda parte do n.º 1 do artigo 77.º do Código Penal, segundo o qual na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente manifestada no facto, em que se incluem, designadamente, as circunstâncias relacionadas com as condições económicas e sociais deste, reveladoras das necessidades de socialização, a sensibilidade à pena, a suscetibilidade de por ela ser influenciado e as qualidades da personalidade manifestadas no facto, nomeadamente a falta de preparação para manter uma conduta lícita.

Recordando jurisprudência constante, com a fixação da pena conjunta pretende-se sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também, e especialmente, pelo seu conjunto, enquanto revelador da dimensão e gravidade global do seu comportamento. É o conjunto dos factos descritos na sentença que evidencia a gravidade do ilícito perpetrado (o “grande facto”), sendo decisiva, para a sua avaliação, a conexão e o tipo de conexão que se verifique entre os factos que constituem os tipos de crime em concurso.

20. As discordâncias manifestadas quanto à pena única encontram a sua explicação no relevo que, no concurso, assume a pena aplicada ao crime de violação.

Como resulta da fundamentação, esta mostra-se orientada pelos critérios e fatores de determinação da pena única.

Em consonância com o decidido, na ponderação destes fatores, tendo em conta que a moldura penal do cúmulo se passa a situar entre 6 anos (pena mínima) e 6 anos e 2 meses (pena máxima) de prisão, na procedência do recurso interposto pelo Ministério Público, fixa-se a pena única em 6 anos e 1 mês de prisão.

Quanto a custas

21. De acordo com o disposto no artigo 513.º do CPP (responsabilidade do arguido por custas), só há lugar ao pagamento da taxa de justiça quando ocorra condenação em 1.ª instância e decaimento total em qualquer recurso.

A taxa de justiça é fixada entre 5 e 10 UC, tendo em conta a complexidade do recurso, de acordo com a tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais.

III. Decisão

22. Pelo exposto, acorda-se na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em :

a) Julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, revogando a decisão recorrida:

a.1) Alterar a medida da pena pela prática do crime de violação, que se fixa em 6 (seis) anos de prisão; e

a.2) Reformulando o cúmulo jurídico, condenar o arguido na pena única de 6 (seis) anos e 1 (um) mês de prisão.

b) Julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA.

c) Mantendo-se, no mais, o decidido no acórdão recorrido.

Condena-se o arguido em custas, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC.

Supremo Tribunal de Justiça, 5 de março de 2025.

José Luís Lopes da Mota (Relator)

Carlos Campos Lobo

Jorge Raposo

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1. Ac. STJ, de 08.09.2022, relator Orlando Gonçalves, texto integral em: https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/02db48665a691d8c8025886f0034c157?Ope nDocument

2. Tratado de Derecho Penal, Parte General, Editorial Comares, 4ª Edição, pp. 801.

3. Sobre estes pontos, que seguidamente se desenvolvem, na determinação do sentido e alcance do artigo 71.º do Código Penal, segue-se, em particular, como em acórdãos anteriores, Anabela M. Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, Os Critérios da Culpa e da Prevenção, Coimbra Editora, 2014, pp. 611-678, em especial, e Figueiredo Dias, Direito Penal, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2011, pp. 232-357 – cfr., de entre muitos outros, o acórdão de 15.1.2019, Proc. 4123/16.6JAPRT.G1.S1, e, de entre os mais recentes, o acórdão de 25.9.2024, Proc. 3808/21.0JAPRT.S1, em www.dgsi.pt.

4. Assim, entre outros, os acórdãos de 8.6.2022, Proc. 430/21.4PBPDL.L1.S1, de 26.06.2019, Proc. 174/17.1PXLSB.L1.S1, de 9.10.2019, Proc. 24/17.9JAPTM-E1.S1, e de 3.11.2021, Proc. 875/19.0PKLSB.L1.S1, em www.dgsi.pt.

5. Salientando este ponto, entre muitos outros, o acórdão de 29.4.2020, Proc. 16/05.0GGVNG.S1, em www.dgsi.pt.