Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B4507
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: CUSTÓDIO MONTES
Descritores: CONCORRENCIA
RESPONSABILIZAÇÃO DA SOCIEDADE
Nº do Documento: SJ200712180045077
Data do Acordão: 12/18/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Sumário :

1. Vinculando-se os sócios de uma sociedade à obrigação de não concorrência, por si ou através de outra sociedade, se violarem essa obrigação, constituindo uma sociedade concorrente, não podem fazer-se valer da posição de terceiros em relação a essa sociedade, para se eximirem à responsabilidade por actos de concorrência por esta levada a efeito.
2. A sociedade, porém, não é responsável pela indemnização decorrente dos danos causados pelo exercício dessa concorrência, cabendo exclusivamente aos mencionados sócios essa responsabilidade.
Decisão Texto Integral:

Acórdão no Supremo Tribunal de Justiça

dos RR.

. a pagar, solidariamente, à sociedade comercial Autora a quantia de €105.048,08, acrescida dos juros legais à taxa de 12% ao ano, a contar da data da citação, bem como a quantia que se vier a liquidar em execução de sentença, a título de indemnização pelos danos que sofreu e venha ainda a sofrer, até ao trânsito em julgado da decisão final;

. os réus CC e mulher DD a pagar ao autor BB a importância de € 19.951,92, bem como os juros à taxa anual de 12%, a contar da citação;

. se declare nulo e de nenhum efeito o contrato de constituição da sociedade comercial Ré, ordenando-se o cancelamento do respectivo registo ou, subsidiariamente, se decrete a dissolução da sociedade comercial Ré, ordenando-se o registo dessa mesma dissolução.

Alegaram, no essencial, que o R. CC foi sócio-gerente da A. e cedeu a sua quota com a obrigação de não exercer por cinco anos actividade idêntica à da Autora, não lhe fazendo concorrência, quer por si, quer através de outrem, obrigação que ficou a constar do acto da cessão, com o conhecimento e anuência da Ré, sua esposa, DD; obrigação essa que não cumpriu, tendo constituído uma sociedade com objecto social coincidente, sendo ele e a mulher os únicos sócios dessa sociedade, ele com 90% do capital e ela com 10%.

Alega ainda os prejuízos que lhe causaram com essa situação.

Contestaram os Réus, por impugnação.

Replicaram os AA.

Efectuado o julgamento, foi a acção julgada parcialmente procedente,

. condenando-se os RR. CC e mulher DD a pagar à A. AA a importância de €225.000 (duzentos e vinte e cinco mil euros), acrescida de juros de mora comerciais, a contar da data de hoje, nos termos e à taxa acima referidos.

. absolvendo-se os mesmos RR. dos pedidos que contra eles formularam aquela A. e BB.

. e absolvendo a R. “EE” dos pedidos contra si formulados.

Inconformados, interpuseram recurso de apelação AA. e RR., julgadas parcialmente procedente, condenando-se os RR. solidariamente a pagar à A. a indemnização de €45.000,00; no mais se confirmando a decisão recorrida.

Voltam a interpor recurso – de revista – AA. e RR. terminando as suas alegações com as seguintes

Conclusões

Dos AA.

1. Tendo em conta a matéria de facto dos n.ºs 20 a 23, demonstra-se inequivocamente que os RECORRIDOS atribuíram à sociedade RECORRENTE o valor de 250 000 euros, e que a eles cabia metade desse valor por serem titulares de uma quota do capital social da sociedade, correspondente a metade desse capital.

2. Resulta ainda de tais factos que os RECORRIDOS induziram astuciosamente a compra da sua participação na sociedade RECORRENTE, pelo valor de 125 000 euros, ao assumirem a obrigação de, durante 5 anos, não exercerem, por si ou interposta pessoa, idêntica actividade, para assim, não prejudicar o desenvolvimento desta.

3. A aquisição da quota dos RECORRIDOS só foi aceita nessas condições por causa de ser o demandado CC quem "tratava de todas as relações com a clientela da Autora", com a qual ele "tinha relações de amizade e conhecimento", e porque, "caso continuasse a operar no mercado, ao serviço doutra empresa concorrente, por sua conta ou interposta pessoa", ele "podia tirar clientes" à RECORRENTE.

4. Estas obrigações de não concorrência com a RECORRENTE, assumidas pelos RECORRIDOS, têm a força de lei (lex contractus), por força do disposto nos artºs. 405°.1, 406°.1 e 398°. do CC.

5. Ora, os factos julgados provados demonstram inequivocamente que os RECORRIDOS agiram com o intuito de receber aquela quantia de 125 000 euros, e, depois, de agirem, pela via societária, contra os interesses da sociedade, concorrendo, com ela, não só em violação do contrato mas, também, deslealmente, mormente quando afirmavam que iam levar a RECORRENTE à falência, quando aliciaram trabalhadores desta e lhe tiraram clientes, bem como quando rebaixaram preços.

6. Estes factos demonstram que a sociedade recorrida foi constituída para, desse modo, os demandados CC e mulher exercerem uma actividade ilícita, porque proibida pelo contrato que outorgaram, e que a vêm exercendo de forma continuada.

7. Como o contrato de sociedade é um contrato plural, de organização, fim comum e execução continuada, e a personalidade jurídica das sociedades comerciais tem natureza meramente instrumental, não essencial, e analógica, os Recorridos CC e mulher, na constituição e na duração ou existência da sociedade, dos que desconsideraram e desconsideram a lei que atribui a personalidade jurídica à sociedade recorrida.

8. Por isso, por força da aplicação conjunta do disposto nos artºs. 405°.1, 406°.1 e 398°. do CC e dos arts. 42°.1, c), lª parte e 141°.1, d) do CSC, o contrato de sociedade é nulo ou a sociedade deverá ser dissolvida.

9. A indemnização que os RECORRIDOS devem pagar à sociedade RECORRENTE não deverá ser inferior a 225 000 euros, porque o comportamento dos RECORRIDOS demonstra que obtiveram a quantia de 125 000 euros que só lhe foi entregue porque se obrigaram a não concorrer com a sociedade, mas também porque não só não cumpriram aquela obrigação como ainda a perseguiram com práticas ilícitas e desleais.

10. Esse comportamento danoso não se confina só ao valor que lhes foi pago, como se repercute na quebra acentuada do desempenho da sociedade, cujos danos não serão inferiores a 100 000 euros.

11. Por isso, os RECORRIDOS devem ser condenados solidariamente a pagar a quantia de 225 000 euros, com base no disposto nos arts, 405°.1, 406º.1, 398º" 483°., 562°., 563°., 564°. e 566°, do CC.

Termina pedindo que o acórdão recorrido seja substituído por outro que declare nulo o contrato de sociedade da sociedade recorrida ou dissolvida a sociedade, e condene solidariamente os demandados a pagar à Recorrente a quantia de 225.000 euros.

Dos RR.

1. O vínculo contratual assumido pelos recorrentes CC e DD consistiu numa obrigação de carácter pessoal, que em nada vinculou a sociedade recorrente EE, uma vez que, à data, a mesma não existia.

2. A verificação da violação do clausulado só poderia ocorrer com a constituição da referida empresa concorrente, pelo que uma é causa da outra, sendo que a obrigação de indemnizar resulta da simples verificação da constituição daquela sociedade, mas não como instrumento directo da violação do que fora contratado.

3. Os recorrentes CC e DD agiram e acordaram enquanto entes jurídicos individuais e não como representantes ou comissários da firma EE, enquanto comitente, uma que vez que a mesma só posteriormente veio a ser constituída.

Terminam pedindo se conceda a revista e se revogue a decisão recorrida, absolvendo-se a R. EE do pedido.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir

Matéria de facto provada remete-se para a decisão das instâncias – art. 713.º, 6 do CPC.

O direito

Nas suas conclusões (1)., os AA. suscitam as seguintes questões:

. Ao assumir a obrigação de não concorrência e ter criado a sociedade R. para exercer uma actividade concorrente, esta sociedade foi criada para exercer um fim ilícito, pelo que deve ser dissolvida nos termos dos arts. 405.º, 1, 406.º, 1 e 398.º do CC e 42.º, 1, c), 1.ª parte e 141.º, 1 d) do CSC.

. a indemnização a pagar pelos RR. não deve ser inferior a 225.000€ “porque o comportamento dos recorridos demonstra que obtiveram a quantia de 125.000€ que só lhes foi entregue porque se obrigaram a não concorrer com a sociedade, mas também porque não só não cumpriram aquela obrigação como ainda a perseguiram com práticas ilícitas e desleais” – valor indemnizatório que terá a ver com esse valor que lhes foi pago como pela quebra acentuada do desempenho da sociedade, não inferior a 100.000€.

Os RR., por seu turno, defendem que o seu acto se não pode comunicar à sociedade R. porque quando assumiram o compromisso de não concorrer a sociedade ainda não existia e, também, porque não agiram como representantes ou comissários da firma R.

Vejamos.

Quanto à dissolução da sociedade, os AA. recorrentes não têm razão porque, como se diz nas decisões das instâncias, o seu objecto não é física nem legalmente impossível ou contrário à lei (2) ou contra disposição legal de carácter imperativo(3) ou ilícito(4) nem ocorre ilicitude superveniente(5), como defendem os AA/recorrentes.

Não foi a sociedade em causa que assumiu o compromisso de não concorrência, pois nem sequer estava constituída a essa data, sendo certo que, quando isso ocorreu, adquiriu personalidade própria, distinta dos sócios.(6)

É o que nos ensina Henrique Mesquita (7) quando afirma que “personalização ou objectivação das sociedades significa que o ente colectivo, enquanto pessoa jurídica, é um sujeito distinto dos sócios, os quais, apesar de constituírem o seu substrato, ficam em relação a ele titulares na posição de terceiros….

Por isso, inexistindo fundamento legal para a peticionada dissolução da sociedade, improcede o respectivo pedido.

Isso, no entanto, não significa que os sócios, que se obriguem à não concorrência e a exerçam através da sociedade, se possam valer dessa posição de terceiros para se eximirem à responsabilização dos seus actos.

Na verdade, como mais uma vez nos diz Henrique Mesquita (8), no exemplo clássico que apresenta: “se A e B, adstritos contratualmente perante C a uma obrigação de não concorrência, constituírem uma sociedade que tem por objecto a actividade económica que eles se vincularam a não exercer, não poderão alegar, num litígio em que C pretenda fazer valer o seu direito de crédito, que os actos que o prejudicaram são praticados por um terceiro (a sociedade) estranho à relação contratual. O litígio deve ser resolvido como se fossem eles próprios a praticar o acto”.

Por outro lado, contrariamente ao que se defende na decisão recorrida, a sociedade não é responsável pela indemnização decorrente dos danos causados pelos RR. por terem concorrido com a sociedade A., em violação da obrigação que contratualmente assumiram; essa responsabilidade cabe tão só a estes que não àquela.

Com efeito, como refere Nogueira Serens (9),” … a sociedade não fica sujeita a qualquer sanção. As sanções para uma tal infracção vertem-se, apenas, sobre a pessoa que, estando legalmente impedida de o fazer, se tornou gerente de uma certa sociedade por quotas. E a razão é ….: essa sociedade é estranha à relação jurídica que intercede entre …” essa pessoa e a sociedade A.

Daqui decorre a procedência da questão suscitada pelos RR.: a sociedade R. não é responsável pela indemnização decorrente dos actos dos RR., seus sócios.

No entanto, decorre também do exposto que os RR. não podem exercer a actividade a que se dedica a R. pelo período em que assumiram a obrigação de não concorrência, o que significa que, violada essa obrigação, sempre poderão os AA. demandá-los pela violação dessa obrigação.

Questão, no entanto, que não faz parte do objecto do recurso.

E quanto à indemnização?

A 1.ª instância fixou a indemnização em “€225.000 (duzentos e vinte e cinco mil euros), acrescida de juros de mora comerciais, a contar da data de hoje, nos termos e à taxa acima referidos”; por seu turno, a Relação reduziu-a para a quantia de 45.000€.

Os AA/recorrentes pretendem que seja reposto o valor fixado na 1.ª instância.

Os RR. não põem em causa no seu recurso o montante indemnizatório fixado pela Relação.

Assim, transitada em julgado a decisão, nessa parte, os RR. responderão por esse montante, sem prejuízo do que a seguir se refere.

Dispõe o art. 661.º, 2 do CPC que “se não houver elementos para fixar o objecto ou a quantidade, o tribunal condenará no que vier a ser liquidado, sem prejuízo de condenação imediata na parte que já seja líquida.”

Ora, apesar de as instâncias terem quantificado a indemnização devida, analisados os factos, embora se prove o dano, não se prova o quantitativo.

Apenas vem demonstrado, no que interessa à fixação da indemnização:

. que o R. CC era quem tratava de todas as relações com a clientela da Autora;

. tinha relações de amizade e conhecimento com os clientes da Autora "AA.";

. caso continuasse a operar no mercado, ao serviço doutra empresa concorrente, por sua conta ou por interposta pessoa, o Réu CC podia tirar clientes à A. “AA.”;

. o Réu CC afirmou a alguns trabalhadores da Autora “AA.” que a ia levar à falência, e os trabalhadores desta FF, GG e HH rescindiram os seus contratos de trabalho com ela e celebraram outros com a Ré “EE.”;

. o Réu CC contactou com clientes da Autora “AA.”, oferecendo serviços de limpeza mais baratos que os desta (artigo 8º.);

. desde o último trimestre de 2003 até esta parte o Réu CC tirou à Autora “AA.”, pelo menos, os seguintes clientes: “II, Ldª.”; “JJ, Ldª.”; “KK, Ldª.”; “LL, Ldª.”; e “MM S. A.” (artigo 9º.);

. em alguns casos a A. “AA, Ldª.”, para manter os clientes, teve de baixar os seus preços (artigo 10º.).

Destes factos, prova-se que a acção de concorrência, contra o acordado, tem causado danos à A. mas não vêm quantificados tais danos nem os factos acabados de transcrever permitem a sua quantificação.

Assim, por força do disposto no mencionado art. 661.º, 2, citado, a sua quantificação terá que fazer-se em subsequente liquidação, até ao montante máximo de 225.000€ peticionados, sem prejuízo de se condenarem já os RR. Domingos e mulher no montante de 45.000€, por ter transitado esse segmento da decisão recorrida.

Decisão

Pelo exposto, concede-se parcialmente a revista dos AA., condenando-se os RR. CC e Mulher na indemnização que se vier a liquidar até ao montante máximo de 225.000€, sem prejuízo da condenação do montante já fixado de 45.000€, por ter transitado em julgado a decisão nessa parte; no mais mantêm-se a decisão recorrida.

Concede-se a revista dos RR., revogando-se a decisão recorrida na parte em que condena também a R. EE, Ldª, que se absolve do pedido.

Custas da revista dos AA., por estes e pelos RR. CC e mulher, na proporção do vencimento e, quanto à indemnização a liquidar, a meias, sem prejuízo do que se vier a fazer a final, após a liquidação.

Custas da revista dos RR. pela A.

Lisboa, 18 de Dezembro de 2007

Custódio Montes (Relator)

Mota Miranda

Alberto Sobrinho

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(1) Que delimitam o objecto do recurso – arts 1 e 3 e 690.º, 1 e 2 do CPC.

(2)Art. 280.º,1 do CC.

(3) Art. 294.º do CC.
(4) Art. 42.º, 1, c) 1.ª parte do CSC.
(5) Art. 141.º, 1, d) do CSC
(6) Art. 158.º do CC.
(7) RLJ Ano 127, pág. 219.
(8) Ob. cit., pág. 220, nota 2.
(9) Trespasse de Estabelecimento Comercial, CJ STJ, Ano IX, Tomo II, pág. 10.