Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03B2066
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: QUIRINO SOARES
Descritores: REGISTO PREDIAL
JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
ACÇÃO DE APRECIAÇÃO NEGATIVA
IMPUGNAÇÃO
IMPUGNAÇÃO DE FACTOS REGISTADOS
ÓNUS DA PROVA
ESCRITURA PÚBLICA
PRESUNÇÃO DE PROPRIEDADE
Nº do Documento: SJ200307030020667
Data do Acordão: 07/03/2003
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário : - As regras de interpretação da declaração negocial definidas nos artº. 236º e segs., CC., aplicam-se, também, no domínio dos actos processuais, designadamente, dos actos das partes, por se tratar, assim se tem entendido no Supremo Tribunal de Justiça, de regras estruturais do ordenamento jurídico, e não só do direito civil.
- A impugnação das justificações notariais tem sido classificada, entre as espécies de acções definidas no artº. 4º, CPC, como acção de simples apreciação negativa (4º, 2, a, CPC), do facto notarialmente justificado.
- Nas acções de simples apreciação negativa, cabe ao autor demonstrar os fundamentos do pedido (as causas e razões do seu direito) e negar, antecipadamente, as declarações contrárias do réu; a este cabe alegar e demonstrar, por seu lado, os fundamentos do direito que contrapõe ao do autor.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. "A" demandou B e C, pedindo o seguinte:
. seja anulada a escritura realizada pelos réus em 20.11.98, no 2º Cartório Notarial de Tomar, de justificação do seu direito de propriedade sobre o prédio inscrito na matriz rústica da freguesia de Vila Nova da Barquinha sob o nº. 10 G;
. seja reconhecido o autor como dono daquele prédio;
. seja cancelado o registo de aquisição a favor dos réus, feito com base na dita escritura de justificação.
Os réus contestaram e deduziram reconvenção, na qual pediram a condenação do autor a reconhecer que eles, reconvintes, adquiriram a propriedade do prédio rústico em litígio pelo modo dito na escritura de justificação: usucapião.
A acção obteve parcial ganho, pela declaração de que os réus não adquiriram por usucapião o dito prédio e pela consequente ordem de cancelamento da correspondente inscrição no registo predial; foi ordenada, ainda, vista ao Mº Pº, por causa da denúncia, feita pelo autor, do crime de falsas declarações;
a reconvenção foi julgada totalmente improcedente.
Apelaram os réus, mas a Relação confirmou o julgado.

Vem, agora, pedida revista, assim fundamentada:
. o acórdão impugnado violou o artº. 661º, CPC (1), visto que, ao confirmar a sentença, na parte em que declarou que os réus não adquiriram por usucapião, o prédio objecto da escritura de justificação, condenou em objecto diverso do pedido, que era o de que fosse declarada nula a dita escritura; o mesmo sucede relativamente à ordem de vista ao Mº Pº, para efeitos de procedimento criminal;
. ao contrário do entendido nas instâncias, a acção não é de mera apreciação negativa, é, antes, uma acção condenatória, pelo que se não justifica a inversão do ónus da prova, que ditou o êxito da acção, assim tendo sido violado os artº. 342º, CC (2) e 516º, CPC;
. o autor não tem interesse em agir, por não ser o dono do prédio;
. não se pode anular uma escritura através de prova testemunhal, pelo que foi violado o artº. 371º, CC;
. os recorrentes gozam da presunção do artº. 7º, CRP (3), que o recorrido não ilidiu;
. foram violados os artº. 1251º e 1252º, 2, CC, porque o elemento subjectivo da posse tira-se por presunção;
. o acórdão recorrido é nulo, nos termos do artº. 668º, 1, c e d, CPC.

2. Os factos provados são os seguintes:
. em 17 de Outubro de 1895, nasceu D, filho de E e de F, tendo enviuvado de G, em 26 de Maio de 1950;
. em 7 de Novembro de 1904, nasceu H, filha de E e de F, tendo casado civilmente em 29 de Outubro de 1924 e catolicamente em 23 de Abril de 1947 com I e falecido em 7 de Setembro de 1969;
. em 15 de Novembro de 1921, no Cartório Notarial de Torres Novas, foi lavrado testamento de J, no qual consta que deixava a sua irmã L, todos os bens, direitos e acções que possuir à hora da morte;
. em 29 de Outubro de 1924, I e H casaram civilmente um com o outro, sob o regime da comunhão geral de bens;
. em 26 de Maio de 1950, faleceu G no estado de casada com D;
. em 17 de Novembro de 1950, faleceu F, filha de M e de N, no estado de viúva de E;
. em 1 de Dezembro de 1954, faleceu L, no estado de solteira;
. em 1 de Junho de 1960, faleceu D no estado de viúvo de G;
. por escritura pública celebrada no Cartório Notarial de Vila Nova da Barquinha, em 24 de Maio de 1983, O, na qualidade de representante de A, declarou que, pelo preço de vinte mil escudos, vendia a B 3/4 indivisos de um prédio urbano, que serviu de estabelecimento comercial e hoje serve de arrecadação, sito na Rua ..., freguesia e concelho de Vila Nova da Barquinha, a confrontar do norte com caminho, do sul com a estrada nacional nº. 3, do nascente com P e do poente com o bico onde cruzam os referidos caminho e estrada nacional, inscrito na matriz sob o artigo nº. 11, e descrito na Conservatória do Registo Predial da Golegã sob o nº. 9235, a fls. 29, do livro B-23, tendo B declarado que aceitava a referida venda;
. por escritura de justificação notarial, celebrada no 2° Cartório Notarial de Tomar e lavrada de folhas 58 verso a 60 do livro de notas para escrituras diversas nº. 38-F, em 20 de Novembro de 1998, e em que compareceram, como outorgantes, B e mulher C, Q, R e S, os primeiros outorgantes (B e mulher) declararam que são donos com exclusão de outrem e legítimos possuidores do seguinte prédio:
prédio rústico, composto de terra de cultura arvense, figueiras e oliveiras, com a área de setecentos e vinte metros quadrados, no sítio da Rua ..., freguesia de Vila Nova da Barquinha, concelho de Vila Nova da Barquinha, a confinar do norte com o caminho, sul Estrada Nacional nº. 3, nascente P e poente com B, inscrito na matriz sob o artigo dez secção G, com o valor patrimonial de 2369$00 e o atribuído de cinquenta contos e descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova da Barquinha, sob o número cento e quarenta e sete, sem qualquer registo de transmissão;
mais declararam que o indicado prédio se encontra inscrito na matriz em nome do justificante marido e que veio à posse dos agora justificantes por volta do ano de mil novecentos e setenta, por compra verbal a A e I e mulheres, sem que deles ficassem a dispor de título suficiente e formal que lhes permita efectuar o respectivo registo e que possuem o dito prédio há mais de vinte anos, em nome próprio sem a menor oposição de quem quer que seja desde o seu início, posse que sempre exerceram sem interrupção e ostensivamente, com o conhecimento de toda a gente da freguesia de Vila Nova da Barquinha, lugares e freguesias vizinhas, traduzida em actos materiais de fruição, conservação e defesa, nomeadamente usufruindo dos seus rendimentos, cultivando e recolhendo os seus frutos, pagando impostos e contribuições, agindo sempre pela forma correspondente ao exercício do direito de propriedade, sendo por isso ainda uma posse contínua, pública, pacífica e de boa fé, pelo que adquiriram o referido prédio por usucapião;
as referidas declarações foram confirmadas pelos restantes outorgantes;
. o extracto da escritura de justificação agora referida foi publicado no jornal O ..., em 17 de Dezembro de 1998;
. em 2 de Dezembro de 1927, nasceu A, filho de D e de G;

. por escritura pública lavrada no dia 10 de Maio de 1949, no Cartório Notarial de Vila Nova da Barquinha, de fls. 65 a 67 verso, do livro de notas 181, L declarou que era dona e legítima possuidora de:
a) umas casas térreas com quintal e um bocado de terra com oliveiras cortado pela estrada distrital, situado na Rua ..., em Vila Nova da Barquinha e que, no seu todo, confronta do norte com estrada nacional e caminho que segue para a Roda, do sul com caminho público e terrenos da Câmara Municipal, do nascente com T e U e do poente com o prédio adiante descrito e com terreno da Câmara Municipal, inscrito na matriz sob o artigo urbano nº. 12 e o artigo rústico nº. 7, descrito na Conservatória do Registo Predial da Golegã sob o nº. 9234, a fls. 28 verso do livro B-23;
b) uma casa térrea que serviu de estabelecimento comercial e hoje serve de arrecadações, na mesma rua, em Vila Nova da Barquinha, que confronta do norte com caminho que segue para a Roda, do sul com a estrada nacional, do nascente com o prédio anterior e do poente com o bico onde cruzam as estradas, inscrito na matriz sob o artigo nº. 11 e descrito na Conservatória do Registo Predial da Golegã sob o nº. 9235, a fls. 29 do livro B-23;
mais declarou que tais prédios lhe pertencem por os ter herdado de seu irmão J e que, pelo preço global de 16.000$00, sendo 12.000$00, pelo primeiro e 4.000$00 pelo segundo, e com reserva de usufruto vitalício para si, os vendia em comum e partes iguais a D e I.
D por si e em representação de I declarou que aceitava a referida venda na indicada proporção e obrigações exaradas;
. V escreveu a seu primo A a dar conhecimento ao mesmo que o imóvel em questão estava para venda e da escritura de justificação referida;
. após a realização da escritura de justificação os réus encarregaram uma imobiliária sediada no ..., e com o nome de "X- Sociedade de Mediação Imobiliária, Lda.", a qual manteve na sua montra afixado o anúncio de venda da propriedade em causa;
. o prédio em questão estava inicialmente descrito na Conservatória do Registo Predial da Golegã sob os nº. 9234 e 9235, tendo tais registos sido transferidos para a Conservatória do Registo Predial de Vila Nova da Barquinha, onde foi criado para a parte rústica o artigo 10-G e para as partes urbanas os artigos 11 e 12 da matriz predial, pelo que à descrição 9234 ficaram a corresponder os artigos matriciais nº. 10 secção G e matricial urbano nº. 12;
. está descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova da Barquinha, sob o nº. 00147, o prédio misto sito em Vila Nova da Barquinha, com a área de 720 m2, inscrito na matriz sob os artigos rústico 10-G e urbano 12, prédio sito na Rua ... e que confronta do norte com estrada nacional nº. 3, do sul com Câmara Municipal de Vila Nova da Barquinha do nascente com P e do poente com B e que se compõe de cultura arvense com figueiras, oliveiras e citrinos com o valor patrimonial de 2.369$00, estando inscrita a aquisição pela apresentação nº. 5 de 17/02/99 a favor de B, casado no regime da comunhão geral de bens com C, com base em usucapião;
. está descrito na Conservatória do Registo Predial da Golegã, sob o nº. 9234, desde 25 de Abril de 1918, e inscrita sob o nº. 8872 a transmissão de 4/6 a favor de J, solteiro, por o haver comprado juntamente com outros bens a Z, F e marido E, L, A' e mulher B', por escritura de 05 de Novembro de 1917, o seguinte:
duas terras com quintal, situadas na Rua ... da Vila e freguesia da Barquinha, que confronta do norte com estrada distrital, sul com caminho público, nascente com herdeiros de C' e poente com herdeiros de D';
. está descrito sob o nº. 9235, a fls. 29 do livro B-23, da Conservatória do Registo Predial de Golegã, e 00737 da Conservatória do Registo Predial de Vila Nova da Barquinha, o prédio urbano, sito na Rua ..., a confrontar do norte e sul com estradas, do nascente com herdeiros de C' e do poente com cruzamento, composto de uma faixa de terreno com uma casa abastecida, tudo com o valor de 40$00, achando-se inscrita a aquisição de 4/6, pela inscrição nº. 8873, pela apresentação nº. 1, de 25 de Abril de 1918, a favor de J;
. está descrito sob o nº. 9234, a fls. 28 verso do livro B-23 da Conservatória do Registo Predial da Golegã e 00752 da Conservatória do Registo Predial de Vila Nova da Barquinha, o prédio urbano, sito na Rua ..., a confrontar do norte com a estrada distrital, do sul com caminho público, do nascente com herdeiros de C' e do poente com herdeiros de D', terreno com casas térreas e quintal com o valor de 54$98, achando-se inscrita a aquisição de 4/6 pela inscrição nº. 8872 pela apresentação nº. 1 de 25 de Abril de 1918, a favor de J;
. o artigo 10-G era atravessado por uma estrada, actual Rua ... e seguia para baixo até um caminho público e terrenos camarários, confrontando do lado nascente com T e U e do poente com terrenos da Câmara Municipal;
. há cerca de três anos, o réu solicitou ao autor que lhe vendesse o prédio em causa;
. os réus não procederam ao arranjo da casa de habitação existente na parte sul do prédio rústico;
. o autor e seu pai passavam férias, feriados e fins de semana na casa de habitação que tinham no prédio em causa, o que o autor deixou de fazer, sendo que a referida casa necessita de obras de conservação;
. os réus ocupam o prédio em questão há mais de 20 anos, tendo plantado árvores e cultivando o respectivo terreno, cavando a terra e colhendo os frutos que ela produziu, podando as laranjeiras e colhendo os seus frutos, à vista da população de Vila Nova da Barquinha, de forma continuada e ininterrupta, sem que nunca ninguém viesse dizer que não eram donos de tal prédio.

3. A interpretação que as instâncias fizeram da parte do pedido do autor que respeita à anulação da escritura de justificação realizada em 20.11.98 constitui um exercício perfeitamente aceitável face às regras de interpretação da declaração negocial definidas nos artº. 236º e segs., CC.
Essas regras ou normas de interpretação aplicam-se, também, no domínio dos actos processuais, designadamente, dos actos das partes (por se tratar, assim se tem entendido neste Supremo Tribunal, de regras estruturais do ordenamento jurídico, e não só do direito civil).
A dita interpretação deflui com naturalidade dos termos em que foi estruturado o articulado da petição (que e porque é negatório dos factos justificativos afirmados na escritura) e da ligação que o autor estabelece entre a pretensa nulidade daquele acto formal e as alegadamente falsas afirmações justificatórias.
A pretensa nulidade da escritura derivaria da falsidade das aludidas afirmações, e, como essa circunstância (falsidade das afirmações dos outorgantes) não figura entre as causas típicas de nulidade dos actos notariais (70º e segs., CN (4), não citados, aliás, na fundamentação jurídica do pedido), bem se justificou a interpretação de que o pedido de anulação da escritura valeu como pedido de declaração de que os outorgantes não adquiriram a propriedade do prédio em causa pela forma nela declarada.
. A impugnação das justificações notariais tem sido classificada, entre as espécies de acções definidas no artº. 4º, CPC, como acção de simples apreciação negativa (4º, 2, a, CPC), do facto notarialmente justificado.

Mas o autor não se limitou a impugnar a escritura, a suscitar uma declaração negatória do direito a que os réus se arrogam.
Com efeito, embora mantendo-se no âmbito da simples apreciação (nunca tendo passado à espécie condenatória, ao contrário do que os recorrentes alegam), o autor pede, também, que se declare como dele o mesmo direito.
Parte dos factos que fundamentam este pedido de apreciação positiva (a pertinência do prédio ao património do pai, a sua qualidade de herdeiro) sempre o autor teria de os alegar e provar, enquanto fundamentos do pedido de apreciação ou declaração negativa do direito a que os réus se arrogam. São factos que fundamentam a sua pretensão à declaração negativa.
Prova que, vistas bem as coisas lhe estava, à partida, facilitada porque são os próprios réus que justificam o seu alegado direito com a descrição de uma compra verbal ao pai do autor e a outro, cunhado deste.
Aquela prova a cargo do autor não briga com a regra especial de distribuição do ónus da prova, consagrada, no artº. 343º, 1, CC, precisamente para as acções de apreciação negativa (nestas acções, diz aquela norma, "...compete ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga").
Ao autor cabia demonstrar aqueles fundamentos do pedido (as causas e razões do seu direito) e negar, antecipadamente, as declarações contrárias do réu; a este cabe alegar e demonstrar, por seu lado, os fundamentos do direito que contrapõe ao do autor.
Ora, não obstante o pedido de declaração positiva do direito do autor ter sido um insucesso, e definitivo (já que não constitui objecto de recurso), existem boas razões para afirmar que o autor conseguiu a prova dos factos essenciais que invocou como fundamento do seu pedido de apreciação negativa da situação jurídica justificada.
É, com efeito, consensual que o prédio em causa pertencia, em comum, ao património do já falecido pai do autor e de seu cunhado I, por efeito de compra à anterior proprietária L (escritura pública de 10.05.1949, do Cartório Notarial de Vila Nova da Barquinha).
E também se não discutiu a vocação sucessória do autor à herança do pai, apenas tendo sido posta em causa, mas sem sucesso, o direito de aceitação, pelo decurso do prazo (caducidade).
Na distribuição de tarefas de alegação e prova relativas ao pedido de declaração negativa do direito dos réus, o autor desenvencilhou-se bem do seu encargo.
Vejamos, então, o que sucede do lado dos réus.
Alegou, como se disse, posse continuada, por mais de 20 anos, subsequente à compra e venda informal realizada com o falecido pai do autor e com I (cunhado deste), então comproprietários do prédio.
Provou a prática reiterada sobre o prédio, por mais de 20 anos, de actos materiais de cultivo (plantação de árvores, cultivo da terra, poda das laranjeiras, colheita dos frutos) exercidos publicamente e pacificamente.
Pelo prazo, pela publicidade, pela ininterrupção e reiteração, não haveria obstáculos à proclamada usucapião (1296º, CC).
São actos que se incluem nos que o proprietário costuma praticar, no exercício do seu direito ou poder de fruição.
Mas são, por outro lado, actos que não caracterizam, só por si, o exercício do direito de propriedade, visto que também podem ser surpreendidos no dia a dia do usufrutuário ou, mesmo, do arrendatário.
Acresce que o animus (isto é, a intenção de actuar como beneficiário do direito) que, ao lado da detenção da coisa (o chamado corpus), constitui um dos elementos essenciais da posse, o animus, estávamos dizendo, que se presume naquele que exerce o poder de facto (1252º, 2, CC), foi desmentido (e, assim, foi ilidida aquela presunção, que é juris tantum) pela prova de que o réu, cerca de três anos antes da propositura da acção, propôs ao autor a compra do prédio.
Não foi, como pretenderam os réus demonstrar, uma mera proposta de regularização da venda informal realizada com o pai do autor; foi, no seco rigor das palavras, uma proposta de compra.
Quem quer comprar uma coisa, não se sente dono dela antes de realizado o negócio.
Aquele exercício, por parte do réu, sem intenção de agir como dono, não pode deixar de reflectir-se na esfera jurídica do cônjuge, atento o regime de comunhão geral que preside ao respectivo casamento.
São, pois, boas as razões do autor para impugnar a escritura de justificação, já que nenhum obstáculo, por outro lado, lhe pode fazer o disposto no artº. 371º, CC (ao contrário do que os recorrentes alegam) porque a força probatória da escritura, definida na citada disposição, não abrange, como é óbvio, a verdade do conteúdo das declarações prestadas perante o notário.

Mas não é tudo, ainda.
Como a impugnação foi deduzida depois do decurso do prazo a que se reporta o artº. 101º, 2, CRP (30 dias sobre a publicação do extracto da escritura) não houve qualquer obstáculo ao registo de aquisição que os réus efectuaram com suporte naquela.
Quer isso dizer que os réus passaram a beneficiar da presunção de propriedade estabelecida no artº. 7º, CRP.
Na esteira de um acórdão deste Supremo Tribunal (de 26.04.94, in CJ - STJ, ano II, tomo II, pág. 68), as instâncias entenderam que, impugnada a escritura, torna-se incerto o direito nela justificado, ficando, desse modo, sem base a aludida presunção.
Não é essa, porém, a maneira correcta de perspectivar o problema.
Com o acórdão deste mesmo Supremo Tribunal, de 19.03.02, in CJ - STJ, ano X, tomo I, pág. 148, deve, antes, entender-se que o artº. 343º, 1, CC, que carrega sobre o réu o ónus de provar os factos constitutivos do seu direito, cede sempre que o mesmo réu tiver á mão o registo predial da justificação (a inscrição) e, com ele, invoque a presunção prevista e prescrita no dito artº. 7º, CRP.
Aí, como que se vira o bico ao prego, e, do regime especial de ónus da prova, consagrado naquele artº. 343º,1, passa-se para o geral, definido no artº. 342º, 1.
Só que a presunção do artº. 7º, CRP, é, também ela, juris tantum, e não cabe duvidar de que a já aludida falta de animus pela banda do réu, constitui a mais que suficiente prova do contrário exigida para o derrube de uma tal presunção (já que, note-se, o registo se baseia, precisamente, na usucapião).
Nada há, pois, que censurar ao acórdão recorrido, mesmo na parte em que confirmou a ordem de vista ao Mº Pº, para efeitos de eventual procedimento criminal por falsas declarações.
É uma medida que se justifica à luz do artº. 97º, CN, e que dá a devida resposta à denúncia que o autor fez acerca da actuação dolosa das testemunhas.
Não quer isto dizer, como é óbvio, que as testemunhas já estejam condenadas à partida, ou, mesmo, que o Mº Pº, como titular da acção penal, venha a entender que há motivos para a desencadear.
Resta dizer, por último, que o acórdão impugnado não enferma de nenhuma das nulidades que, por mera referência ao catálogo do artº. 668º, 1, CPC, lhe vêm imputadas.

4. Pelo exposto, negam a revista.
Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 3 de Julho de 2003
Quirino Soares
Neves Ribeiro
Araújo de Barros
_______________
(1) Código de Processo Civil.
(2) Código Civil.
(3) Código de Registo Predial.
(4) Código do Notariado.