Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
162/11.1JAGRD.C1.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: MANUEL AUGUSTO DE MATOS
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PENA PARCELAR
PENA ÚNICA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Data do Acordão: 06/23/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Área Temática:
DIREITO PENAL - CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / PENAS / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA / PUNIÇÃO DO CONCURSO DE CRIMES - CRIMES EM ESPECIAL / CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A INTEGRIDADE FÍSICA / CRIMES CONTRA A AUTODETERMINAÇÃO SEXUAL.
Doutrina:
- HELOÍSA PINTO, A Sexualidade na Escola, Ed. Summus, S. Paulo, 1997, 46.
- JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 541-542; Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, 4.ª Reimpressão, Coimbra Editora, 306-307; in Actas de Revisão de 95, do Código Penal, 246.
- JOSÉ MOURAZ LOPES e TIAGO CAIADO MILHEIRO, Crimes Sexuais – Análise Substantiva e Processual, Coimbra Editora, 140.
- M. MIGUEZ GARCIA e J. M. CASTELA RIO, “Código Penal” – Parte geral e especial, Com notas e comentários, 2015 – 2.ª Edição, Almedina, 394.
- PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código Penal, 3.ª Edição actualizada, Universidade Católica Editora, 365, 680.
- TERESA PIZARRO BELEZA, «O Repensar dos Crimes Sexuais na Revisão do Código Penal», Jornadas de Direito Criminal – Revisão do Código Penal, I Volume, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 1996, 169.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGO 432.º, N.º 1, AL. C).
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 40.º, N.º 1, 71.º, 72.º, N.º 1, 152.º, N.º 1, AL. D), 171.º, N.ºS 1 E 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 7-10-2009, PROC. N.º 611/07.3GFLLE.S1.
-DE 25-11-2009, PROC. N.º 490/07.0TAVVD.S1 – 3.ª SECÇÃO.
-DE 25-11-2009, PROC. N.º 490/07.0TAVVD.S1 – 3.ª SECÇÃO, E DECISÕES AÍ CITADAS.
-DE 15-12-2011, PROC. N.º 41/10.0GCAZ.P2.S1.
-DE 12-09-2012, PROC. N.º 2745/09.0TDLSB-L1.S1 – 3.ª SECÇÃO.
-DE 12-09-2012, PROC. N.º 605/09.4PBMTA.L1.S1.
-DE 10-10-2012, PROC. N.º 617/08.5PALGS.E2.S1 – 3.ª SECÇÃO.
-DE 22-01-2013, PROC. N.º 182/10.3TAVPV.L1.S1 – 3.ª SECÇÃO.
-DE 14-03-2013, PROC. N.º 294/10.3JAPRT.P1.S2 - 3.ª SECÇÃO
-DE 13-04-2013, PROC. N.º 700/01.8JFLSB.C1.S1.
-DE 26-02-2014, PROC. N.º 29/03.3GACNF.S1 – 3.ª SECÇÃO
-DE 17-09-2014, PROC. N.º 595/12.6TASLV.E1.S1 – 3.ª SECÇÃO
-DE 21-01-2015, PROC. N.º 12/09.9GDODM.S1.
-DE 14-10-2015, PROC. N.º 41/13.8GGVNG.S1 – 3.ª SECÇÃO.
-DE 28-04-2016, PROC. N.º 252/14.9JACBR – 3.ª SECÇÃO.
Sumário :

I - Nos termos do art. 71.º, do CP, a pena é determinada em função da culpa e das exigências de prevenção. No caso, a ilicitude dos factos cometidos pela arguida é muito acentuada: pela repetição da sua conduta por um dilatado período de tempo, pois os abusos sexuais ocorreram por diversas vezes, num período de tempo aproximado de 6 meses; pela tenra idade da menor ofendida (sua enteada) que, à data dos factos, tinha apenas 8 anos de idade; pelo aproveitamento protagonizado pela arguida potenciada pela vulnerabilidade da ofendida decorrente da sua idade; por ter agido valendo-se do ascendente que tinha sobre a menor, já que era a referência feminina do agregado familiar.
II - A arguida agiu com dolo directo, na sua forma mais intensa. São muitas intensas e prementes as exigências de prevenção geral que se fazem especialmente sentir nos crimes de abuso sexual de crianças. No que toca à prevenção especial avulta a personalidade da arguida, com absoluta indiferença e insensibilidade pela idade da ofendida. Tudo visto e ponderado, a pena de 5 anos e 6 meses de prisão aplicada pela prática de 1 crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 171.º, n.ºs 1 e 2, do CP, é justa, adequada e proporcional.
III - No que diz respeito ao crime de violência doméstica, pelo qual a arguida foi também condenada, as exigências de prevenção geral são também elevadas. É elevado, de igual forma, o grau de ilicitude, não só pela perpetuação e extensão temporal da conduta praticada pela arguida, repetindo-se sucessivamente os comportamentos atentatórios da juridicidade penal, que ocorreu pelo período aproximado de 7 meses, pela vulnerabilidade do ofendido (seu enteado e irmão da ofendida do crime de abuso sexual de crianças), que à data contava apenas com 6 anos, pela extensão das lesões sofridas, aproveitando-se do facto desta criança estar à sua guarda. Pelo que tudo ponderado, se afigura como adequada a pena aplicada pela 1.ª instância de 2 anos de prisão.
IV - Estabelece o n.º 1 do art. 72,º do CP que o tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena. No caso, nem a culpa, nem a ilicitude globalmente consideradas permitem o recurso à atenuação especial da pena relativamente aos dois crimes pelos quais a arguida foi condenada.
V - A gravidade dos factos, pelas circunstâncias em que ocorreram, muito em particular os abusos sexuais da menor que coabitava com a arguida, é de tal forma elevada, que intensifica a ilicitude do facto, a culpa do arguido e a necessidade da pena. Mais, a arguida não assumiu os factos que lhe haviam sido imputados e o tempo decorrido (cerca de 4 anos), dada a natureza dos factos e cessação da coabitação com as vítimas, não reveste especial significado atenuante.
VI - A pena única repousa numa valoração da totalidade dos factos, que fornece a ilicitude global, sendo decisiva para essa avaliação a conexão e o tipo de conexão entre os factos e se eles representam, também, uma manifestação da personalidade, na vertente de uma mera pluriocasionalidade, de um trajecto de vida puramente ocasional e não enraizado, ou, ao invés, uma carreira criminosa.
VII - No caso, é muito acentuada a ilicitude global dos factos praticados pela arguida. E, embora não se possa afirmar a existência de uma verdadeira conexão entre o crime de abuso sexual de crianças e o crime de violência doméstica cometidos pela arguida-recorrente, não se pode ignorar o elemento comum que liga tais ilícitos, que foram cometidos sobre duas crianças, de 8 e 6 anos. Pelo que, tudo ponderado considera-se justa a pena única de 6 anos e 2 meses de prisão aplicada pela 1.ª instância.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:




I – RELATÓRIO



1. AA, arguida no processo supra referenciado, foi condenada pelo Tribunal Colectivo da Comarca de Castelo Branco – Instância Central Criminal, por acórdão proferido em 25 de Setembro de 2015,

a) Pela prática, em autoria material, de um crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelo artigo 171.º, n.os 1 e 2, do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão.

b) Pela prática, como autora material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão.


Em cúmulo jurídico destas penas, foi a arguida condenada na pena única de um 6 (seis) anos e 2 (dois) meses de prisão.


Foi ainda condenada a pagar a BB a quantia de 12.500,00€ (doze mil e quinhentos euros) a título de danos não patrimoniais, e a CC a quantia de 5.000,00€ (cinco mil euros) a título de danos não patrimoniais, quantias acrescidas de juros de mora, à taxa legal, contados desde a prolação daquele acórdão.



2. Inconformada, interpôs a arguida recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, extraindo da respectiva motivação as conclusões seguintes:


«CONCLUSÕES


1ª- O Tribunal Colectivo recorrido condenou a Arguida como autora material de um crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelo artigo 171, n°s 1 e 2 do C. Penal e como autora material de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152, n°s 1, al. d) do C. Penal;

2ª- A pena aplicada à ora Recorrente é inadequada e excessiva, por não tomar em consideração questões essenciais, como o arrependimento da Recorrente, os seus problemas familiares e de saúde e o consequente apoio médico permanente necessário para a manutenção da sua saúde.

3ª- À data do acórdão recorrido já tinham decorrido mais de quatro anos sobre a prática dos factos, sem que a ora Recorrente tenha cometido qualquer outro facto merecedor de censura penal, pelo que, ao ignorar este facto na determinação da medida da pena, não a tendo atenuado especialmente, o Tribunal "a quo" violou o disposto na al. d) do n° 2 do art° 72 do CP.

4ª- Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo desconsiderou os critérios de determinação da medida da pena constantes do art° 71 do CP, violando-a, norma cuja aplicação implica no caso concreto uma redução da pena concretamente aplicada à Recorrente;

5ª- Pelo exposto, em face, do comportamento da Recorrente posterior aos crimes, a frequência de um curso de formação profissional e a não reincidência, o qual é revelador do seu arrependimento perante os seus confortamentos passados, conclui-se que a ameaça da prisão realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, no sentido de permitir que a mesma não volte a praticar qualquer outros factos, permitindo, em consequência, que o Tribunal suspenda a execução da pena;

6ª- Ao não suspender execução da pena, verificando-se os respectivos pressupostos, a decisão do Tribunal a quo aqui recorrida violou o disposto nos artigos 40 e 50 do CP.


Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, devendo, em consequência, o acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que reduza a pena concreta aplicada à arguida, ora Recorrente, AA para um limite máximo inferior a quatro anos, devendo ainda ser suspensa a sua execução.»



3. Respondeu o Ministério Público, concluindo:


«Conclusões:


1ª Nos presentes autos foi a arguida AA condenada, por douto Acórdão de 25.09.2015 na pena única de 6 (seis) anos e 2 (dois) meses de prisão pela prática, em autoria material, de um crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelo artigo 171.º, nºs 1 e 2, do Código Penal (na pena parcelar de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão) e, pela prática, como autora material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, al. d) e, do Código Penal (na pena parcelar de 2 (dois) anos de prisão).

2ª No caso dos autos, para além da gravidade intrínseca dos factos dados como provados, há que atender ainda às fortes as exigências de prevenção geral, tendo em conta, por um lado, a frequência com que são praticados os crimes em apreço e, por outro, como bem se salienta no douto acórdão recorrido, a repercussão social que os crimes de abuso sexual de crianças atingem, mormente, quando existe uma relação de garante potenciada pela coabitação entre o agente e a vítima.

3ª Com efeito, sabemos que a prática de factos deste tipo com crianças, tem normalmente subjacente a lascívia sexual, sendo elevada a perigosidade do agente voltar a delinquir, sendo também de considerar elevada a ilicitude da conduta, além de ser muito elevada a censura social que os factos merecem, sem prejuízo de se terem actualmente por indeterminadas as sequelas que a conduta da arguida determinará no desenvolvimento futuro da menor ofendida.

4ª Por outro lado, como também se refere no douto acórdão recorrido, o crime de abuso sexual de crianças é dos crimes que causam mais alarme e intranquilidade no tecido social, com repulsa e indignação na comunidade.

5ª Do mesmo modo que são elevadas, como de igual modo refere o douto acórdão recorrido, as necessidades de prevenção geral no que ao crime de violência doméstica respeita, dado sobretudo a enorme ocorrência deste tipo de crime, com as nefastas consequências que acarreta, quer ao nível das lesões físicas, quer psíquicas, em particular estando em causa vítimas da idade do menor ofendido – 6 anos de idade – sujeito a agressões reiteradas por um período de cerca de sete meses.     

6ª Havendo ainda que ponderar em desfavor da arguida, como foi feito, a idade dos menores ofendidos e, bem assim, a circunstância dos factos praticados terem ocorrido enquanto aquela assumia a função de sua cuidadora e educadora, em especial quando o pai daqueles não se encontrava em casa e os confiava à sua guarda.

7ª Não menos despicienda é a circunstância de a arguida possuir à data dos factos um já significativo curriculum criminal, revelador, à saciedade que antes da prática dos factos pelos quais foi agora condenada não quis adoptar as regras básicas da convivência social, antes preferindo uma vida de marginal e contrária às normas jurídicas. Concretamente, aquando da prática dos factos a arguida encontrava-se em cumprimento de pena de prisão, executada em regime de permanência na habitação com vigilância electrónica.

8ª Diferentemente, inexistem quaisquer circunstâncias que deponham a favor da arguida.

9ª Ora, em estrito cumprimento das normas e princípios que norteiam a fixação do quantum da pena, os Mmºs. Juízes a quo ponderaram, criteriosamente, as circunstâncias que, no caso, e na justa medida, agravam e atenuam a responsabilidade da arguida, bem como as exigências de prevenção geral e especial.

10ª E, mostrando-se elevadas quer as exigências de prevenção geral, quer as exigências de prevenção especial, bem decidiu o Tribunal a quo ao graduar como graduou a pena que aplicou à arguida, pois fez uma correcta aplicação dos critérios legais para a determinação concreta da medida da pena.

11º De resto, no que à suspensão da execução se pretende, afigura-se-nos que a comunidade social seguramente não compreenderia que em face do elevado grau de ilicitude e de censurabilidade ético-jurídica, as exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico (prevenção geral) fossem ainda compatíveis com a ressocialização em liberdade pretendida pela recorrente.

12º Tanto mais que não se provaram em nosso entender, pelos motivos acima indicados, e como dá conta o acórdão recorrido, quaisquer factos que permitam um qualquer juízo de prognose favorável àquela pretensão de ressocialização em liberdade, no sentido de que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, de acordo com o disposto no artº 50º do Código Penal, antes pelo contrário.

13ª Manifestamente, no caso concreto, a censura do facto e a ameaça da prisão só por si, de modo nenhum, se revelariam suficientes para se assegurarem as finalidades da punição, tudo aconselhando ao cumprimento efectivo da pena, pois, por tudo o que já foi dito, só em meio prisional é que a arguida iniciará um percurso de interiorização da necessidade de respeitar as normas jurídicas.

14ª Donde, por todas as razões ora aduzidas, se entende que o acórdão proferido pelo tribunal a quo não deverá merecer qualquer censura, devendo, ao invés, ser negado qualquer provimento ao recurso interposto e mantida aquela decisão nos seus precisos termos.»



4. No Tribunal da Relação de Coimbra, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer (fls. 788-790), subscrevendo na íntegra a resposta apresentada pelo Ministério Público na 1.ª instância, dizendo, nomeadamente, que «a pena aplicada à recorrente (…) de 6 (seis) anos e 2 (dois) meses de prisão mostra-se adequada e equilibrada e teve em atenção os critérios estabelecidos no art. 71.º do Cod. Penal», devendo improceder o recurso.



5. Por decisão de 9 de Março de 2016 (fls. 793), o Ex.mo Desembargador Relator julgou o Tribunal da Relação incompetente para apreciação do recurso, considerando competente o Supremo Tribunal de Justiça para onde determinou a remessa dos autos, por entender que:

«No seu recurso (…) a arguida apenas suscita a questão da medida concreta das penas, a medida da pena única e a eventual suspensão da execução da pena que resultar da apreciação do recurso.

Ou seja, estamos perante a apreciação de mera questão de direito.

Assim sendo, tendo em conta a medida da pena parcelar do crime de abuso sexual por um lado, bem como a pena única, a competência para a apreciação do recurso cabe ao Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 432.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Penal, pois estamos perante penas de prisão superiores a cinco anos».



6. O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto no Supremo Tribunal de Justiça emitiu proficiente parecer que agora se reproduz:

«Recurso da arguida AA (727-735):

 Recurso próprio, com efeito suspensivo e subida adequada (737), nada obstando ao seu conhecimento, da competência deste STJ, por visar exclusivamente matéria de direito e a pena aplicada ser superior a 5 anos de prisão - art. 432.º, 1, al. c) do Cód. Proc. Penal.


**


 Não foi requerida audiência, pelo que o recurso deverá ser julgado em conferência - art. s 411.º, 5 e 419.º, 3, al. c) do Cód. Proc. Penal.

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1. São as seguintes as questões submetidas a reexame:

- Medida da pena única;

- Atenuação especial;

- Suspensão da execução da pena.

2. Respondeu o Ministério Público (744-768), concluindo pela improcedência do recurso, considerando que a pena fixada acata os critérios legais que a devem determinar, não existindo factos que permitam formular um juízo de prognose favorável justificativo da pretendida suspensão.

3. Subindo os autos à Relação, a Ex. ma Procuradora-Geral Adjunta, no seu parecer (787-790), subscreveu a resposta da Magistrada do Ministério Público na 1.ª instância, pronunciando-se pela improcedência do recurso.


4.

4.1 Atenuação especial do artigo 72.º, n.º 2, alínea d) do Código Penal: Alega a recorrente que «já passaram mais de quatro anos desde a prática dos factos e, desde então a esta parte, a recorrente tem mantido bom comportamento, frequenta um curso na área de geriatria, esporadicamente, executa tarefas de pastorícia e de agricultura.».

A circunstância constante da alínea d) encontra a sua justificação no facto de poder revelar uma acentuada diminuição da necessidade da pena e também uma inadequação do facto praticado à personalidade do agente.

 No caso, afigura-se-nos que o tempo decorrido (cerca de 4 anos), dada a natureza dos factos e cessação de coabitação com as vítimas, não reveste o exigido especial significado atenuante.

Saliente-se, por outro lado, que, contrariamente ao que alega a fls. 731, 1.º parágrafo, não «assumiu os factos que lhe haviam sido imputados…». Basta ler a fundamentação do acórdão a fls. 688 e parte inicial de fls. 689 para constatar que a inicial assunção dos factos «pronta e mecanizada», bem como «o seu pedido de desculpas e… o seu arrependimento», passou a uma negação frontal dos factos, terminando por não querer prestar outras declarações.

Deste modo, improcede o recurso neste segmento, o único com reflexo na moldura de cada crime (embora a recorrente conexione a atenuação especial com a pena única).

4.2 No que respeita à pena única (posto que as parcelares, com a excepção da decorrente da atenuação especial já apreciada, não foram impugnadas) cumpre avaliar se a mesma, fixada em 6 anos e 6 meses, acata os critérios fixados no artigo 77.º do Código Penal.

 Vejamos:

- A moldura do concurso situa-se entre 5 anos e 6 meses e 7 anos e 6 meses (penas parcelares de 5 anos e 6 meses e 2 anos de prisão).

- Os crimes em concurso são de violência doméstica e de abuso sexual de crianças.

- A violência doméstica consistiu em agressões «com frequência», com as mãos, mas frequentemente com um cabo de machada, colher de pau ou pau para guardar o gado, ao menor João, que estava à sua guarda.

- Os actos sexuais de relevo, praticados durante cerca de 6 meses, consistiram no esfregar dos dedos da arguida na vagina e na introdução de um dedo na vagina da mesma menor.

- O crime abuso de crianças situa-se na hierarquia superior da categoria axiológica-normativa dos tipos legais;

- A arguida não confessou os factos, nem demonstrou arrependimento

- Os actos praticados repercutiram-se – n.ºs 10 e 21 da matéria de facto provada - (e repercutir-se-ão) no desenvolvimento físico, sexual e psíquico da menor.

 Estando o crime de abuso normalmente associado a características da personalidade do agente, com (...) evolução… habitualmente crónica[1], são acrescidas as exigências de prevenção especial.

 Em suma: Fixada que se mostra a moldura do concurso, com um mínimo de 5 anos e 6 meses de prisão, cremos que a pena única de 6 anos e 2 meses, na ponderação conjunta do ilícito global e personalidade da arguida, com um desvio no domínio sexual, projectada no crime de abuso praticado, é adequada à sua culpa e exigências de prevenção geral e especial, muito elevadas.

 E, como tem vindo a ser decidido nesta Alta Instância, situando-se a quantificação da pena dentro dos parâmetros legais, a intervenção correctiva do STJ só se justificará em casos muito limitados, nomeadamente em que aquela, não obstante, se mostre desproporcionada ou desconforme às regras da experiência e da vida (Ac STJ de 29.04.04, proc. n.º 1394.04 5ª[2]), o que não acontece no caso.

4.3 Finalmente, e no que respeita à suspensão, cumpre anotar que tal pena de substituição é inviável face à limitação constante do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal.

 Acrescente-se, igualmente, que não procedendo o pedido relativamente à atenuação especial referido em 4.1, o limite mínimo da moldura do concurso é impeditivo da suspensão.

 De todo o modo acompanha-se a reflexão dos magistrados do Ministério Público quanto à impossibilidade de formulação de uma prognose favorável relativamente à evolução comportamental da arguida justificativa da opção por uma pena de substituição.

5 Face ao exposto, entendemos dever ser negado provimento ao recurso.»



7. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a arguida nada disse.



8. Não tendo sido requerida audiência, o recurso é decidido em conferência – artigo 419.º, n.º 3, alínea c), do Código de Processo Penal.



9. Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.



II – FUNDAMENTAÇÃO



1. Enquadramento e questões a debater


Constitui jurisprudência assente que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, relativas aos vícios da decisão quanto à matéria de facto, a que se refere o n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, doravante CPP, e às nulidades, a que alude o n.º 3 do mesmo preceito, é pelo teor das conclusões apresentadas pelo recorrente, onde resume as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), que se define e delimita o objecto do recurso.


Da interpretação e conjugação das conclusões formuladas pela recorrente com a motivação apresentada, tarefa que tem de se empreender perante a ambiguidade de que padecem aquelas, entendemos serem as seguintes as questões cuja reapreciação é pedida a este Supremo Tribunal:


- A medida das penas parcelares aplicadas;

- A medida da pena conjunta;

- A atenuação especial da pena;

- A suspensão da execução da pena.


Na verdade, da conjugação das conclusões 1ª e 2.ª, pode depreender-se que a recorrente impugna também «a pena aplicada» pelo crime de abuso sexual de crianças e pelo crime de violência doméstica, pena que tem por «inadequada e excessiva», por alegada desconsideração dos «critérios de determinação da medida da pena constantes do artº 71 do CP». Aliás, na sua motivação, a recorrente entende que «deveria o tribunal Colectivo “a quo” ter aplicado, relativamente ao crime de abuso sexual de crianças uma pena de prisão não superior a 3 anos (…); pelo crime de violência doméstica uma pena de prisão não superior a 1 ano».


2. Competência do Supremo Tribunal de Justiça


Tendo em consideração a pena fixada pelo Tribunal Colectivo para o crime de violência doméstica (dois anos de prisão), coloca-se a questão da competência do Supremo Tribunal de Justiça para conhecer desta pena parcelar aplicada à arguida, inferior ao patamar de recorribilidade consagrado no artigo 432.º, n.º 1, alínea c), do CPP.


A questão, que tem sido apreciada e decidida em termos nem sempre convergentes neste Supremo Tribunal, aguardando-se fixação de jurisprudência, sendo que a oposição de julgados já foi reconhecida por acórdão de 14 de Outubro de 2015, proferido no Proc. n.º 41/13.8GGVNG.S1 – 3.ª Secção.


Acompanhando o recente acórdão deste Supremo Tribunal, de 28 de Abril de 2016, proferido no Proc. n.º 252/14.9JACBR – 3.ª Secção (ainda inédito), relatado pelo agora relator, tal questão pode formular-se da seguinte forma, conforme acórdão de 21 de Janeiro de 2015, proferido no processo n.º 12/09.9GDODM.S1:

«saber se em situação em que um arguido tenha sido condenado numa mesma decisão em várias penas de prisão, todas elas, ou algumas, em medidas iguais ou inferiores a 5 anos, e apenas alguma ou algumas daquelas e a pena única ultrapassando aquele limite, o Supremo, sabido que terá óbvia competência para conhecer de penas parcelares superiores a 5 anos de prisão, bem como da pena conjunta, tem ou não competência para apreciar também as penas parcelares, mesmo que aplicadas em medida inferior àquele patamar, erigido em condição de cognoscibilidade».


O citado acórdão regista extensa e detalhada informação sobre as orientações perfilhadas neste Supremo Tribunal, dando conta da que, em termos largamente maioritários, tem prevalecido: a ampla recorribilidade, competindo ao Supremo Tribunal de Justiça, reunidos os demais pressupostos previstos no artigo 432.º, n.º 1, alínea c), do CPP, já enunciados, apreciar as questões relativas a crimes punidos com penas iguais ou inferiores a cinco anos de prisão englobadas numa pena conjunta superior a cinco anos de prisão.

Convocando o acórdão deste Supremo Tribunal, de 26 de Fevereiro de 2014 (Proc. n.º 29/03.3GACNF.S1 – 3.ª Secção), dir-se-á que «a lei adjectiva penal, ao atribuir competência ao Supremo Tribunal de Justiça para conhecer recurso de acórdão final proferido pelo tribunal do júri ou pelo tribunal colectivo que aplique pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente a matéria de direito (alínea c) do n.º 1 do artigo 432º), obviamente pressupõe que o Supremo Tribunal, nos casos de condenação em pena conjunta, conheça de todas as penas singulares que integram aquela, sob pena de o condenado ver precludido o direito a, pelo menos, um grau de recurso no que àquelas penas concerne, direito que a Constituição da República lhe garante (n.º 1 do artigo 32º)».

Tem sido este o entendimento que vem sendo assumido pela 3ª secção criminal deste Supremo Tribunal. Como se refere no acórdão de 13 de Abril de 2013, proferido no Processo n.º 700/01.8JFLSB.C1.S1:

«1. No caso de o recurso ser dirigido directamente ao STJ, visando o conhecimento em termos de direito, de uma pena conjunta superior a 5 anos de prisão, bem como de penas parcelares inferiores a tal limite inscrito no art. 432.º, al. c), do CPP, entende-se que ocorre um “alargamento” da competência do STJ à apreciação das penas parcelares. 2. Esta posição está em coerente coordenação com a natureza e finalidades processuais do recuso directo para o STJ, bem como com o princípio do conhecimento unitário do recurso, que supõe que a instância competente para decidir parte das questões (no caso, a pena parcelar superior a 5 anos e a pena única), assume a competência para conhecer todas as questões de que depende o exercício da competência da instância superior, ou seja, no caso, a medida das penas parcelares e da pena única». 

Já no acórdão deste Supremo Tribunal, de 7 de Outubro de 2009 (proc. n.º 611/07.3GFLLE.S1), se justificava esse «alargamento» da competência do Supremo Tribunal de Justiça nos seguintes termos:

 «O “alargamento” da competência do STJ à apreciação das penas parcelares (não superiores a 5 anos de prisão) nada tem de incongruente, pois se trata de questão exclusivamente de direito, compreendida (isto é, integrada) na questão mais geral da fixação da pena conjunta, a qual, nos termos do art. 77º do CP, deve considerar globalmente os factos e a personalidade do agente.

Sendo certo que o STJ só deve ser convocado para as causas de maior relevância, não deve ignorar-se (o intérprete também não deve fazê-lo) que o STJ tem um importante papel regulador e orientador (e garantista) da jurisprudência, um papel de “referência” para os tribunais judiciais, que não se compadece com uma excessiva parcimónia da sua intervenção processual.

Sendo o STJ o tribunal vocacionado, por excelência, para “dizer o direito”, havendo dúvidas quanto à sua competência, quando se tratar de recurso exclusivamente de direito, essas dúvidas deverão ser resolvidas no sentido da sua competência.

Interpreta-se, pois, a al. c) do nº 1 do art. 432º do CPP como atribuindo competência ao STJ para, em recurso de uma pena conjunta superior a 5 anos de prisão, apreciar também as penas parcelares integrantes daquela pena conjunta não superiores a essa medida, quando elas sejam impugnadas.

Assim se cumprirá o “desígnio” do legislador (celeridade), sem prejuízo, antes pelo contrário, das garantias processuais.»

Numa outra perspectiva, mas assumindo-se a mesma orientação, cumpre mencionar o acórdão deste Supremo Tribunal, de 15 de Dezembro de 2011, proferido no processo n.º 41/10.0GCAZ.P2.S1, onde se concluiu que:

«(…) em caso de recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça de decisão que tenha aplicado penas parcelares em medida inferior ou igual a cinco anos e pena conjunta a ultrapassar esse limite, visando-se apenas o reexame de matéria de direito, o conhecimento do objecto do recurso abrange as medidas das penas parcelares, por ser essa a solução que compense a falta de possibilidade de recurso para a Relação.

Sabido que por força do n.º 2 do artigo 432.º, visando-se apenas reapreciação de matéria de direito, não é possível recurso prévio para a Relação, a não cognição de tais penas redundaria na denegação de um único grau de recurso, contrariando a garantia de defesa estabelecida a partir da quarta revisão constitucional - Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro - com a introdução na parte final do n.º 1 do artigo 32.º da locução “incluindo o recurso”, abrangendo nas garantias de defesa o direito ao recurso, correspondendo a densificação do direito à protecção judicial efectiva e significando que o direito de defesa pressupõe a existência de um duplo grau de jurisdição.»  


Em face do exposto, considera-se que este Supremo Tribunal tem competência para proceder ao conhecimento de todo o recurso, quer relativamente à pena de prisão aplicada pela prática do crime de abuso sexual de criança, quer em relação à pena conjunta em que a recorrente foi condenada, quer ainda em relação à pena parcelar aplicada para o crime de violência doméstica, inferior a cinco anos de prisão, cumprindo consignar que estamos perante um recurso interposto de acórdão final proferido pelo tribunal colectivo, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito.


3. Matéria de facto

Assente a recorribilidade do acórdão recorrido, englobando a cognição das penas parcelares e conjunta aplicadas à recorrente, é tempo de enfrentar o objecto do recurso.

Para tanto, importa conhecer previamente a matéria de facto.


O Tribunal Colectivo considerou provados e não provados os seguintes factos:


«Dos factos provados:


1) Em data não concretamente determinada, mas anterior a Dezembro de 2010, a arguida AA iniciou uma relação amorosa com DD, passando a residir com este no decurso do mês de Dezembro de 2010, na Quinta da …, EN. n.º …, Cruzamento de …, ….

2) E com eles residiam BB, nascida a 16 de Dezembro de 2002, e CC, nascido a 10 de Outubro de 2004, ambos filhos de EE e do já referido DD.

3) Não obstante residir com o seu pai, DD, a menor BB passava os fins de semana e as férias escolares com a sua madrinha, FF, na residência desta, onde pernoitava nesses períodos de tempo.

4) Já o menor CC permanecia os fins de semana em casa do seu progenitor.

5) Desde o início da convivência em comum entre a arguida AA e DD, este, por vezes, não permanecia em casa às primeiras horas da noite, ou porque tinha algum trabalho extra a realizar, para além do seu trabalho habitual na Junta de Freguesia de …, ou porque se deslocava ao café local.

6) Em datas não concretamente apuradas, mas situadas entre os primeiros dias do mês de Janeiro de 2011 e os primeiros dias do mês de Junho de 2011, a arguida AA, por diversas vezes, aproveitando-se dos períodos de tempo em que DD não se encontrava em casa, chamava a BB ao seu quarto, dizia-lhe para se deitar sobre a cama e, após afastar a roupa que a menor trazia vestida na zona genital, esfregava os seus dedos, da mão esquerda ou da mão direita, na vagina da menor.

7) Depois, introduzia o dedo indicador da mão esquerda ou da mão direita no interior da vagina da menor BB, ficando durante algum tempo a efectuar movimentos, com tal dedo, para dentro e para fora da vagina.

8) E logo advertia a menor BB para não contar a ninguém.

9) Nas circunstâncias descritas de 6) a 8), a arguida AA actuava com vontade de satisfazer os seus instintos sexuais com a menor BB, sujeitando-a a tais contactos sexuais.

10) Pelo referido em 3), quando FF levava a menor BB de volta a casa, aos Domingos, esta chorava manifestando não querer regressar.

11) No decurso dos primeiros 15 dias de Junho de 2011, a menor BB, por causa da actuação da arguida acima descrita, passou a viver com a sua madrinha FF.

12) Não obstante o descrito em 11), DD continuou a fazer vida em comum com a arguida AA, e com eles permanecia a viver o seu filho CC.

13) Desde Dezembro de 2010 a meados de Agosto de 2011, que a arguida AA com frequência batia no menor CC, o que fazia em regra quando DD não estava presente, embora, por vezes, lhe batesse mesmo na sua presença.

14) Para tanto, muitas vezes utilizava as mãos, mas frequentemente batia-lhe com um cabo de uma machada, com uma colher de pau ou com um pau que usava para guardar o gado.

15) Atingindo-o em diversas partes do corpo, concretamente, nas costas, nas mãos e nos braços.

16) No dia 19/08/2011, o menor CC apresentava diversas escoriações na cabeça, nomeadamente, a partir da região parietal e da frente para trás, uma escoriação com 4 mm, uma segunda escoriação, a cerca de 3 cm de distância daquela outra, com 1 cm, e uma terceira a cerca de 1,5 cm da segunda, com 5 mm, e ainda uma lesão tipo mordedura no cotovelo direito, que lhe demandaram 12 dias para a sua cura, sem afectação da sua capacidade de trabalho.

17) Com a conduta descrita de 6) a 9), a arguida AA agiu de forma livre, voluntária e deliberada, bem sabendo que BB tinha, nessa data, 8 anos de idade, e sempre com o intuito de satisfazer os seus instintos sexuais, o que conseguiu.

18) E actuou valendo-se não só do seu ascendente sobre a menor, porquanto era a figura de referência feminina do agregado familiar, mas também da sua vulnerabilidade em razão da sua idade.

19) Com a conduta descrita de 13) a 15), a arguida AA actuou ainda de forma livre, voluntária e deliberada, com o propósito de provocar maus tratos físicos ao menor CC, com quem coabitava, o que conseguiu, bem sabendo que este estava à sua guarda e sob a sua responsabilidade, já que a arguida fazendo vida em comum com DD, assumia a função de sua cuidadora e educadora, em especial quando o pai daquele não se encontrava em casa e confiava o menor à arguida.

20) A arguida sabia ainda que todas as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.

21) Com a conduta descrita de 6) a 8), BB sentiu-se constrangida, angustiada, triste, envergonhada e com medo da arguida.

22) Com a conduta descrita de 13) a 15), CC sentiu dores e ficou com marcas, ainda que temporárias, no seu corpo.

23) E sentiu-se angustiado e com medo da arguida AA.

24) A arguida AA nasceu num agregado familiar, em meio rural, compostos por si própria, pelos seus pais e pelos seus dois irmãos mais novos.

25) Os pais da arguida eram referenciados pela comunidade em que se inseriam como sendo consumidores excessivos de bebidas alcoólicas, o que condicionou a transmissão por aqueles à arguida de um adequado modelo educativo.

26) Desde criança a arguida sempre evidenciou dificuldades de aprendizagem e problemas comportamentais, caracterizados por frequentes fugas à escola.

27) Tal desmotivação escolar foi sendo estimulada pela sua progenitora, que a incentivava a executar tarefas agro-pecuárias, de forma a que a arguida contribuísse para o assistente daquele agregado familiar, o que culminou no abandono escolar definitivo pela arguida pelos seus 13/ 14 anos de idade.

28) Desde os 15 anos de idade, a arguida passou a frequentar consultas regulares de psiquiatria no departamento de saúde mental do Hospital Psiquiátrico da Guarda.

29) A arguida vem mantendo sucessivamente diversas relações conjugais, cujo respectivo desfecho na óptica da arguida se prende com a agressividade e uso abusivo de bebidas alcoólicas, respectivamente, pelos seus companheiros.

30) Aos 15 anos de idade a arguida foi mãe de duas filhas que, aos seus três anos de idade, por decisão judicial, foram entregues a uma instituição de cariz social.

31) Posteriormente, na sequência de uma outra relação afectiva, a arguida teve outro filho que terá presentemente cerca de 9 anos e que foi adoptado, cujo processo decorreu na instituição Fundação GG, em …, em Gouveia, onde a arguida ingressou, à data, por ser vítima de violência doméstica e onde foram efectuadas várias tentativas para estruturar um projecto de vida com o filho, que se mostraram infrutíferas.

32) Actualmente, o agregado familiar da arguida é composto por si própria, pelo seu companheiro e pelo filho de ambos, com 16 meses de idade, com quem vive, encontrando-se este sinalizado e a ser acompanhado pela CPCJ de Fornos de Algodres.

33) A arguida revela limitações cognitivas, traduzidas em atitudes pessoais reveladoras de imaturidade que se repercutem na estruturação da sua vida pessoal, familiar e profissional.

34) A arguida encontra-se desempregada e, desde Abril de 2015, frequenta uma formação na área da geriatria, ministrada pelo Centro de Emprego e de Formação Profissional de …, remunerada em cerca de 170,00€ mensais.

35) Esporadicamente, a arguida vem executando tarefas de pastorícia e de agricultura.

36) Tem o 4º ano de escolaridade.

37) A arguida tem os seguintes antecedentes criminais:

a) no âmbito do processo n.º 9/15.8GASBG, que correu termos no extinto Tribunal Judicial do Sabugal, por sentença, datada de 02/06/2006, transitada em julgado a 23/06/2006, por factos praticados em 2005, a arguida foi condenada na pena de 320 dias de multa, à razão diária de 3,00€, pela prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256.º, do Código Penal;

b) no âmbito do processo n.º 118/08.1GASBG, que correu termos no extinto Tribunal Judicial do Sabugal, por sentença, datada de 30/10/2008, transitada em julgado a 03/12/2008, por factos praticados a 28/10/2008, a arguida foi condenada na pena de 129 dias de multa, à razão diária de 5,00€, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro;

c) no âmbito do processo n.º 1/09.3GGCVL, que correu termos no extinto Tribunal Judicial da Covilhã, por sentença, datada de 15/01/2009, transitada em julgado a 04/02/2009, por factos praticados a 05/01/2009, a arguida foi condenada na pena de 80 dias de multa, à razão diária de 5,00€, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro;

d) no âmbito do processo n.º 10/09.2GFCVL, que correu termos no extinto Tribunal Judicial da Covilhã, por sentença, datada de 12/02/2009, transitada em julgado a 30/03/2009, por factos praticados a 24/01/2009, a arguida foi condenada na pena de 100 dias de multa, à razão diária de 5,00€, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro;

e) no âmbito do processo n.º 5/09.6GHCVL, que correu termos no extinto Tribunal Judicial da Covilhã, por sentença, datada de 15/01/2009, transitada em julgado a 14/04/2009, por factos praticados a 06/01/2009, a arguida foi condenada na pena de 110 dias de multa, à razão diária de 5,00€, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro;

f) no âmbito do processo n.º 5/09.6GFCVL, que correu termos no extinto Tribunal Judicial da Covilhã, por sentença, datada de 28/05/2009, transitada em julgado a 18/06/2009, por factos praticados a 09/01/2009, a arguida foi condenada na pena de 8 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro;

g) no âmbito do processo n.º 68/09.4GASBG, que correu termos no extinto Tribunal Judicial do Sabugal, por sentença, datada de 13/05/2009, transitada em julgado a 12/06/2009, por factos praticados a 30/04/2009, a arguida foi condenada na pena de 5 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro;

h) no âmbito do processo n.º 61/09.6GFCVL, que correu termos no extinto Tribunal Judicial da Covilhã, por sentença, datada de 08/07/2009, transitada em julgado a 28/07/2009, por factos praticados a 16/06/2009, a arguida foi condenada na pena de 9 meses de prisão efectiva, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro;

i) no âmbito do processo n.º 61/09.6GFCVL, que correu termos no extinto Tribunal Judicial da Covilhã, por sentença cumulatória, datada de 29/10/2009, transitada em julgado a 02/02/2010, que englobou as condenações sofridas pela arguida nos processos referidos em f), g) e h), a arguida foi condenada na pena única de 11 meses de prisão, executada em regime de permanência na habitação com vigilância electrónica;

j) no âmbito do processo n.º 166/09.4TAGVA, que correu termos no extinto Tribunal Judicial de Gouveia, por sentença, datada de 27/05/2010, transitada em julgado a 28/06/2010, por factos praticados a 09/05/2009, a arguida foi condenada na pena de 11 meses de prisão executada em regime de permanência na habitação com vigilância electrónica, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro;

k) no âmbito do processo n.º 166/09.4TAGVA, que correu termos no extinto Tribunal Judicial de Gouveia, por sentença cumulatória, datada de 07/02/2011, transitada em julgado a 28/02/2011, que englobou as condenações sofridas pela arguida nos processos referidos em f), g), h) e j), a arguida foi condenada na pena única de 21 meses de prisão, executada em regime de permanência na habitação com vigilância electrónica.


*



Dos factos não provados:

Não se provaram quaisquer outros factos, designadamente:

A. CC nas férias escolares ficava com HH, que dele cuidava nesses períodos.

B. O referido em 5) sucedia todos os dias.

C. A arguida AA actuou da forma descrita de 6) a 8) todas as noites entre os primeiros dias do mês de Janeiro de 2011 até aos primeiros dias do mês de Junho de 2011, com excepção dos fins de semana e férias escolares em que a menor se encontrava na casa da sua madrinha.

D. Durante o período compreendido entre os primeiros dias de Janeiro de 2011 até meados de Junho de 2011 o calendário escolar para o 1º ciclo escolar teve uma interrupção escolar entre os dias 7 a 9 de Março de 2011 – Férias de Carnaval, e entre os dias 11 a 21 de Abril de 2011 – Férias da Páscoa.

E. Nas circunstâncias descritas em 10), a BB dizia que tinha medo da arguida, sem revelar o que esta lhe fazia todas as noites no seu quarto, pelo medo que a sentia.

F. Na sequência do descrito em 11), DD transmitiu que havia expulsado de casa a arguida AA.

G. O referido em 13) ocorria com uma frequência praticamente diária.

H. O descrito em 14), provocou a CC duas feridas numa das mãos.

I. No dia 11 de Agosto de 2011, a hora não concretamente determinada, a arguida encontrava-se em casa com o menor CC, estando a cortar-lhe o cabelo com uma máquina própria para o efeito, e a dada altura, sem qualquer razão aparente, a arguida desferiu diversas pancadas na cabeça do menor com a referida máquina de cortar cabelo.

J. E de seguida mordeu-lhe o cotovelo do braço direito.

K. A conduta da arguida descrita em I) e J), provocou ao menor CC as lesões descritas em 16).

L. A conduta descrita de 6) a 8), provocou na menor BB um corrimento vaginal anormal.»


4. Apreciação


4.1. Determinação da medida da pena do crime de abuso sexual de crianças


4.1.1. A arguida, ora recorrente, foi condenada na pena de cinco anos e seis meses de prisão pela prática de um crime de abuso sexual de crianças p. e p. no artigo 171.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal.


De acordo com a matéria de facto provada, a arguida iniciou, em data anterior a Dezembro de 2010, uma relação amorosa com DD, passando a residir com este no decurso do mês de Dezembro de 2010, na Quinta da …, EN. n.º …, Cruzamento de …, Caria, com eles residindo a menor BB, nascida a 16 de Dezembro de 2002, e CC, nascido a 10 de Outubro de 2004, ambos filhos de EE e do já referido DD.

Em datas não concretamente apuradas, mas situadas entre os primeiros dias do mês de Janeiro de 2011 e os primeiros dias do mês de Junho de 2011, a arguida AA, por diversas vezes, aproveitando-se dos períodos de tempo em que DD não se encontrava em casa, chamava a BB ao seu quarto, dizia-lhe para se deitar sobre a cama e, após afastar a roupa que a menor trazia vestida na zona genital, esfregava os seus dedos, da mão esquerda ou da mão direita, na vagina da menor.

Depois, introduzia o dedo indicador da mão esquerda ou da mão direita no interior da vagina da menor BB, ficando durante algum tempo a efectuar movimentos, com tal dedo, para dentro e para fora da vagina.

E logo advertia a menor BB para não contar a ninguém.

Nas circunstâncias descritas, a arguida actuava com vontade de satisfazer os seus instintos sexuais com a menor Joana, sujeitando-a a tais contactos sexuais (factos 1, 2, 6, 7, 8 e 9).

Com esta conduta, a arguida agiu de forma livre, voluntária e deliberada, bem sabendo que BB tinha, nessa data, 8 anos de idade, e sempre com o intuito de satisfazer os seus instintos sexuais, o que conseguiu.

E actuou valendo-se não só do seu ascendente sobre a menor, porquanto era a figura de referência feminina do agregado familiar, mas também da sua vulnerabilidade em razão da sua idade.

A arguida sabia que esta sua conduta era proibida e punida pela lei.

E, com tal conduta, a menor BB sentiu-se constrangida, angustiada, triste, envergonhada e com medo da arguida (factos 17,18,20 e 21).


4.1.2. Há que dar nota de que arguida fora acusada da prática de 90 crimes de abuso sexual de crianças p. e p. pelo citado artigo 171.º, n.os 1 e 2 do Código Penal. A qualificação jurídica foi, entretanto, objecto de alteração, cumprindo-se o disposto no artigo 358.º, n.os 1 e 2 do CPP.

Neste âmbito, o Tribunal Colectivo confrontou-se com a situação, debatida pela doutrina e pela jurisprudência, relativa aos crimes sexuais que «envolvem uma repetitiva actividade prolongada no tempo», em que se torna «difícil e quase arbitrária qualquer contagem», tendo convocado a figura dos «crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo» como solução jurídica para a contagem do número de crimes.

Assim, optou-se pela subsunção da actividade criminosa da arguida a um único crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 2, do Código Penal.


Trata-se, não se podendo ignorar tal circunstância, de uma unificação da conduta da arguida no quadro de um crime de trato sucessivo, estando subjacente a reiteração, durante um determinado período de tempo, da actividade criminosa descrita, sem qualquer margem para atenuação da ilicitude da conduta ou da culpa da arguida.


4.1.3. De acordo com o artigo 171º, n.º1, do Código Penal:

«1 – Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa, é punido com pena de prisão de um a oito anos.»


Estabelecendo, por sua vez, o n.º 2 da mesma disposição legal que:

«2 – Se o ato sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos».


Perante a matéria de facto considerada provada, nenhuma dúvida pode suscitar a integração dos factos nas citadas disposições, na incriminação agravada uma vez que, como bem se considera no acórdão recorrido, a arguida praticou com a menor ofendida «actos sexuais de relevo que, além do toque efectuado na zona genital, consistiu na introdução vaginal de partes do corpo, mormente, dos seus dedos».


4.1.4. Questiona a recorrente a pena concretamente aplicada pela prática deste crime de abuso sexual de crianças, que considera «inadequada e excessiva», pretendendo «uma pena de prisão não superior a 3 anos».


Recuperando considerações tecidas no já citado acórdão deste Supremo Tribunal, de 28 de Abril de 2016 (Proc. n.º 252/14.9JACBR – 3.ª Secção), na secção do Código Penal dedicada aos crimes contra a autodeterminação sexual, visa-se «o direito à protecção da sexualidade numa fase inicial ou em desenvolvimento da personalidade, que, pelas suas características, é carecida de tutela jurídica».


Consagram-se tipos «tipos preordenados à protecção da juventude e infância», sendo que, conforme assinalam JOSÉ MOURAZ LOPES e TIAGO CAIADO MILHEIRO, que vimos citando, «as perturbações fisiológicas e psicológicas que um precoce despertar sexual (seja ou não violento ou consentido) pode provocar, são factos e motivos suficientes para uma tutela jurídica efectuada naqueles termos»[3].


Segundo TERESA PIZARRO BELEZA, a ideia de atentado ao pudor foi substituída pela de desrespeito pela autodeterminação sexual, pois «já não é o pudor da criança ou do jovem (...) que está em causa – ele pode, até, ser inexistente e nem por isso o crime deixa de existir ou o Direito ficciona um pudor inexistente – mas a convicção legal (iuris et de iure, dir-se-ia) de que abaixo de uma certa idade ou privada de um certo grau de autodeterminação a pessoa não é livre de se decidir em termos de relacionamento sexual».


«O bem jurídico ofendido por um acto sexual de relevo, que seja praticado com, em ou perante uma criança, já não é o pudor, salienta esta autora, mas as potencialidades de desenvolvimento, não excessivamente condicionado ou traumatizado por experiências demasiado precoces»[4].


Também JORGE DE FIGUEIREDO DIAS entende que «[a] lei presume (…) que a prática de actos sexuais com menor, em menor ou por menor de certa idade prejudica o desenvolvimento global do próprio menor (…); e considera este interesse (no fundo, um interesse de protecção da juventude) tão importante que coloca as condutas que o lesem ou ponham em perigo sob ameaça de pena criminal»[5].


Os crimes contra a autodeterminação sexual são crimes de perigo abstracto. Para PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, «[o] perigo abstracto resulta da presunção legal do prejuízo dos actos descritos na lei para o livre desenvolvimento da personalidade da criança»[6].


O bem penalmente protegido e a irrelevância do consentimento têm sido igualmente postos em destaque pelo Supremo Tribunal de Justiça.


«Nos crimes de abuso sexual o bem jurídico protegido – considera-se no acórdão de 22 de Maio de 2013, proferido no processo n.º 93/09.5TAABT.E1.S1 – 3.ª Secção, relatado pelo Ex.mo Conselheiro Adjunto – o bem jurídico protegido é a liberdade de autodeterminação sexual, lesada sempre que, à luz dos n.os 1 e 2 do art. 171.º do CP, o menor de 14 anos é vítima de acto sexual de relevo, que pode consistir, tipificadamente, em cópula, coito anal, oral ou introdução vaginal ou anal de partes de corpo ou de objectos».


Também no acórdão deste Supremo Tribunal, de 14 de Março de 2013, do mesmo Relator, proferido no processo n.º 294/10.3JAPRT.P1.S2 - 3.ª Secção), se identifica o bem jurídico que se pretende proteger, «a liberdade de autodeterminação sexual, de uma forma muito particular, não somente de condutas que possam resultar de extorsão de contactos sexuais mas daqueles actos de natureza sexual, que, em razão da pouca idade da vítima, mesmo que consentidos, podem prejudicar gravemente o desenvolvimento da sua personalidade física e psíquica, muito particularmente no aspecto do livre desenvolvimento da personalidade na esfera sexual».


Nos crimes sexuais – considera-se no mesmo acórdão – «tutela-se a liberdade de se relacionar sexualmente ou não e com quem, para os adultos; liberdade de crescer na relativa inocência até à adolescência, até se atingir a idade da razão para aí se poder exercer plenamente aquela liberdade, considerou o Prof. Figueiredo Dias, in Actas de Revisão de 95, do CP, pág. 246, pois é benéfico que o processo de desenvolvimento da liberdade sexual das crianças se exercite de forma sadia, sem pressas ou sobressaltos, de risco incontrolável, se bem que dificilmente se conceba a sua evolução em ambiente asséptico, totalmente puro, à margem de influência, no dizer de Heloísa Pinto, in A Sexualidade na Escola, Ed. Summus, S. Paulo, 1997, 46.

Está-se perante crimes de perigo abstracto, em que «o perigo abstracto resulta da presunção legal, “juris et de jure“, “com razoável correcção“, do prejuízo físico e psíquico, à pessoa da criança, na sua dimensão integral, que os actos sexuais de relevo, segundo o enunciado o legal, podem provocar – Cfr. Tereza Beleza, citada in Comentário Conimbricense do Código Penal, TI, 541».


Acompanhando ainda o citado acórdão, «[n]o acto sexual de relevo praticado com, em ou perante uma criança já não é o pudor mas a potencialidade de desenvolvimento, não excessivamente condicionado ou traumatizado por experiências demasiadamente precoces, escreveu Teresa Beleza, in O Repensar dos Crimes Sexuais, Revisão do Código Penal, Jornadas de Direito Criminal, Centro de Estudos Judiciários, pág., 169, sobretudo quando sustentados por uma vontade controlada, “viciada “ (cfr. A Tutela Penal da Liberdade Sexual, de Inês Ferreira Leite, pág. 9) por terceiro, por factores exteriores, terceiro esse que se acha numa posição de ascendência sobre a vítima, incapaz de se furtar, em razão de uma infra-avaliação do seu alcance, do seu desígnio libidinoso, tendo a idade, à medida que a criança nela avança, consabida eficácia portadora de uma maior consciencialização do malefício e de gradual inflexão».


Como também se refere no acórdão deste Supremo Tribunal, de 22 de Janeiro de 2013, proferido no processo n.º 182/10.3TAVPV.L1.S1 – 3.ª Secção:


«O princípio que fundamenta a menoridade sexual não é qualquer suposição de que o jovem abaixo da idade definida legalmente não tenha desejo ou prazer sexual, mas, sim, que ele não desenvolveu ainda as competências consideradas relevantes para consentir a relação sexual. Só o tempo, por meio de um processo de socialização no qual o sujeito racional completo é (com)formado permitem um processo de decisão correctamente elaborado.»


4.1.5. Na fundamentação da medida da pena aplicada a este crime, lê-se no acórdão recorrido:

«Reportando-nos ao reforço da consciência jurídica comunitária e ao sentimento de segurança face à violação da norma, in casu, as necessidades e exigências de prevenção geral são elevadas face à repercussão social que os crimes de abuso sexual de crianças atingem, mormente, quando existe uma relação de garante potenciada pela coabitação entre o agente e a vítima.

Tais exigências da incriminação em apreço são incrementadas porque os factos que a densificam constituem sempre um frontal e grave entrave à autodeterminação sexual da vítima, que, atenta a concreta idade da vítima deste crime – menores de 14 anos – podem prejudicar o seu desenvolvimento fisiológico ou psíquico com a prática dos referidos actos de natureza sexual, em virtude de não terem ainda a capacidade e o discernimento necessários para uma livre e esclarecida decisão no que concerne ao relacionamento sexual.

No que diz respeito à ilicitude do facto, consideramo-la de grau elevado, pela perpetuação e extensão temporal da conduta praticada pela arguida, repetindo sucessivamente os comportamentos atentatórios da juridicidade penal, já que tais abusos sexuais ocorreram por diversas vezes, num período de tempo aproximado de seis meses; pela tenra idade da Joana que, à data dos factos, tinha apenas 8 anos de idade; pelo aproveitamento protagonizado pela arguida potenciada pela vulnerabilidade da Joana decorrente da sua idade; por ter agido valendo-se do ascendente que tinha sobre a menor, já que, como respinga da matéria de facto, era a figura de referência feminina do agregado familiar.

Apurado nos termos expendidos que a arguida agiu com dolo directo, havemos de concluir que o fez na sua forma mais intensa, porque agiu de forma livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era punida por lei penal.»


Estas considerações não podem deixar de merecer a nossa concordância.

De acordo com o disposto no artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal, a aplicação de uma pena visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

A protecção de bens jurídicos consubstancia-se na denominada prevenção geral, dita de integração, ligada às exigências comunitárias da contenção da criminalidade e de defesa da sociedade. Trata-se da necessidade de reafirmação das expectativas da comunidade na validade e vigência de uma norma.

Por seu lado, a finalidade de reintegração do agente na sociedade reporta-se à designada prevenção especial.


Nos termos do artigo 71.º do Código Penal, a pena é determinada em função da culpa e das exigências de prevenção.

A pena tem como finalidade primordial a prevenção geral (protecção dos bens jurídicos), entendida como prevenção positiva, ou seja, entendida como a afirmação da validade das normas perante a comunidade, sendo nessa moldura que devem ser valoradas as exigências da prevenção especial e intervindo a culpa apenas como limite máximo da pena.


No caso em apreço, como se salienta no acórdão recorrido, a ilicitude dos factos cometidos pela arguida é muito acentuada: pela repetição da sua conduta por um dilatado período de tempo, pois os abusos sexuais ocorreram por diversas vezes, num período de tempo aproximado de seis meses; pela tenra idade da menor ofendida que, à data dos factos, tinha apenas 8 anos de idade; pelo aproveitamento protagonizado pela arguida potenciada pela vulnerabilidade da Joana decorrente da sua idade; por ter agido valendo-se do ascendente que tinha sobre a menor, já que, como respinga da matéria de facto, era a figura de referência feminina do agregado familiar.


A arguida agiu com dolo directo, na sua forma mais intensa, porque agiu de forma livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era punida por lei penal.


São muito intensas e prementes as exigências de prevenção geral que se fazem especialmente sentir nos crimes de abuso sexual de crianças tendo em conta o bem jurídico violado no crime em questão – a autodeterminação sexual de crianças, sendo também impostas pela frequência de condutas deste tipo e do conhecido alarme social e insegurança que estes crimes em geral causam na comunidade, justificando resposta punitiva firme, sendo ainda de ter em conta os danos que são susceptíveis de acarretar na formação da personalidade e desenvolvimento afectivo e emocional das vítimas.


O abuso sexual de crianças representa uma catástrofe na vida da vítima, produzindo uma devastação da sua estrutura psíquica. O abuso afecta o corpo da vítima do abuso sexual, o núcleo mais pessoal, mais íntimo da sua identidade.


Como se pondera no acórdão deste Supremo tribunal, de 10 de Outubro de 2012, proferido no processo n.º 617/08.5PALGS.E2.S1 – 3.ª Secção), «o abuso sexual de crianças repugna à consciência colectiva, tanto no plano ético como moral, por um lado por ser um grave atentado a seres indefesos, salutar e desejável, em termos de interesse comunitário, que as crianças cresçam e se desenvolvam harmonicamente, por outro por ser frequente a prática de crimes desta natureza, gerando graves consequências à pessoa das vítimas, e também alarme e intolerância social, ataque à paz social, não se dispensando uma intervenção firme dos tribunais, como forma de apaziguar o tecido social afectado e demover potenciais delinquentes». Por isso, quer a prevenção geral, quer a prevenção especial «concorrem – lê-se no citado acórdão – com particular exigência punitiva».


 No que toca à prevenção especial avulta a personalidade da arguida, a forma como actuou, na procura da satisfação dos seus instintos sexuais, com absoluta indiferença e insensibilidade pela idade da ofendida e pelos valores que a lei protege com a incriminação destes actos, por ter agido valendo-se do ascendente que tinha sobre a menor.


Saliente-se ainda atitude da arguida quanto à assunção dos factos praticados, bem descrita no acórdão recorrido, na parte em que se procede à apreciação e valoração da prova, ao adoptar «duas posições distintas e, na realidade, diametralmente opostas». Na verdade, afirma-se, «a arguida, num primeiro momento, assumiu todos os factos que lhe haviam sido imputados na acusação, dirigindo ao tribunal, de forma pronta e mecanizada, o seu pedido de desculpas e, bem assim, o seu arrependimento.

Todavia, instada pelo Tribunal para compreender a extensão e, bem assim, a credibilidade dessa sua apregoada confissão, a arguida, alterando o discurso que então iniciara, frontalmente negou a prática dos factos que, quanto à menor ..., se lhe imputavam».


No que diz respeito ainda às necessidades de prevenção especial positiva, há a salientar que a arguida já foi condenada pela prática de um crime de falsificação de documentos e, bem assim, pela prática de oito crimes de condução sem habilitação legal, denotando, como também se refere no acórdão recorrido, «um assaz desrespeito pelas solenes advertências que lhe vêm sendo feitas pela justiça».


Acresce, como também se salienta naquele acórdão, «a arguida, aquando da prática dos factos descritos na matéria assente, se encontrava em cumprimento da pena única de 21 meses de prisão (…) executada em regime de permanência na habitação com vigilância electrónica».


A arguida-recorrente carece, pois, fortemente de socialização, com necessidade de fidelização ao Direito, tendo em vista a prevenção da prática de futuros crimes.


Tudo visto e ponderado, a pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão aplicada pela prática do crime de abuso sexual de crianças, previsto no artigo 171.º, nºs 1 e 2, do Código Penal, correspondendo-lhe uma pena de 3 a 10 anos de prisão, é justa, adequada e proporcional à defesa do ordenamento jurídico, não ultrapassando a medida da culpa da recorrente, pelo que se mantem, improcedendo, nesta parte, o recurso interposto.


4.2. Determinação da medida da pena pelo crime de violência doméstica


4.2.1. De acordo com a matéria de facto assente, a arguida, desde Dezembro de 2010 a meados de Agosto de 2011, com frequência batia no menor CC, de seis anos de idade, que consigo coabitava e com o seu pai DD, seu companheiro, utilizando as mãos, sendo que, frequentemente, batia-lhe com um cabo de uma machada, com uma colher de pau ou com um pau que usava para guardar o gado, atingindo-o em diversas partes do corpo, concretamente, nas costas, nas mãos e nos braços, o que lhe causou dores e deixou marcas, ainda que temporárias, no seu corpo.


Ao crime de violência doméstica pelo qual foi a arguida condenada previsto no artigo 152.º, n.º 1, al. d), do Código Penal, é punido com uma pena de prisão de um a cinco anos de prisão, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.


4.2.2. O Tribunal recorrido aplicou-lhe a pena de 2 (dois) anos de prisão a qual merece a nossa inteira concordância.


Também aqui, como se salienta no acórdão recorrido, «as necessidades e exigências de prevenção geral são elevadas face à repercussão social que os crimes de violência doméstica atingem, mormente, quando existe uma relação de coabitação entre o agente a vitima e quando esta é menor de idade.

Com efeito, a enorme frequência com que este ilícito tem vindo a ser praticado nos últimos anos no nosso país, quase sempre associado a estruturas familiares desequilibradas, em que a vítima aparece colocada numa posição de inferioridade física e psicológica relativamente ao agressor, tantas vezes dele economicamente dependente, eleva ao mais alto grau de tutela a protecção conferida a este tipo de crime, reflectindo-se na sua forma de punição as preocupações comunitárias relativas à salvaguarda da integridade destas vítimas em especial.»


É levado o grau de ilicitude «não só pela perpetuação e extensão temporal da conduta praticada pela arguida, repetindo-se sucessivamente os comportamentos atentatórios da juridicidade penal, que ocorreu pelo período aproximado de 7 meses; pela vulnerabilidade da vítima, atenta a parca idade de CC, que, à data, contava apenas com 6 anos; pela extensão das lesões corporais sofridas pelo CC; pela circunstância da arguida reiterar a sua conduta, aproveitando-se do facto desta criança estar à sua guarda e sob a sua responsabilidade, já que a arguida fazendo vida em comum com DD, assumia a função de sua cuidadora e educadora, em especial quando o pai daquele não se encontrava em casa e confiava o menor à arguida» (do acórdão).


A arguida agiu com dolo directo, sabendo que a sua conduta era censurável penalmente, revelando uma forte insensibilidade com as sucessivas ofensas corporais que infligiu a uma criança particularmente indefesa.


São elevadas também, pelas razões já expostas, as necessidades de prevenção especial positiva.


Em face do exposto, consideramos justa e adequada a pena de dois anos de prisão em que a agora recorrente foi condenada pelo crime de violência doméstica pelo que se mantém a decisão recorrida, improcedendo o recurso também nesta parte.


4.3. Da atenuação especial da pena


4.3.1. Pugna a recorrente pela atenuação especial da pena por considerar que «à data do acórdão recorrido já tinham decorrido mais de quatro anos sobre a prática dos factos, sem que (…) tenha cometido qualquer outro facto merecedor de censura penal». Pelo que, conclui, «ao ignorar este facto na determinação da medida da pena, não a tendo atenuado especialmente, o Tribunal “a quo” violou o disposto na al. d) do n.º 2 do art. 72 do CP».


A recorrente não especifica qual a pena ou penas relativamente à qual ou às quais deveria o tribunal ter aplicado a atenuação especial.

Uma vez que não é possível a atenuação especial quanto à pena conjunta, definida em cúmulo jurídico das duas penas parcelares aplicadas à arguida, examina-se a questão relativamente a estas últimas penas.


4.3.2. Estabelece o n.º 1 do artigo 72.º do Código Penal, que o tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.


O n.º 2 elenca algumas de «entre outras» circunstâncias que podem ser consideradas para o efeito consignado, a saber:

a) Ter o agente actuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência;

b) Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida;

c) Ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados;

d) Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta.


Pressuposto material da atenuação da pena, autónomo ou integrado pela intervenção valorativa das situações exemplificativamente enunciadas, é a acentuada diminuição da culpa ou das exigências de prevenção.


Como se refere no acórdão deste Supremo Tribunal, de 25 de Novembro de 2009 (Proc. n.º 490/07.0TAVVD.S1 – 3.ª Secção), «Em relação à versão originária de 1982, a expressão do nº 1 do então artigo 73º «O tribunal pode atenuar» foi substituída por «O tribunal atenua», tendo sido aditada a alternativa final «ou a necessidade da pena».

Este aditamento veio esclarecer que o princípio basilar que regula a atenuação especial é a diminuição acentuada não só da ilicitude do facto ou da culpa do agente, mas também da necessidade da pena, e consequentemente das exigências de prevenção».


4.3.3. Tratando do pressuposto material do instituto de atenuação especial, refere FIGUEIREDO DIAS que «passa-se aqui algo de análogo (…) ao que vimos suceder com os exemplos-padrão: por um lado, outras situações que não as descritas naquelas alíneas podem (e devem) ser tomadas em consideração, desde que possuam o efeito requerido de diminuir, por forma acentuada, a culpa do agente ou as exigências da prevenção; por outro lado, as próprias situações descritas nas alíneas do art. 73°-2 não têm o efeito “automático” de atenuar especialmente a pena, mas só o possuirão se e na medida em que desencadeiem o efeito requerido. Deste ponto de vista, pode afirmar-se, com razoável exactidão, que a acentuada diminuição da culpa ou das exigências da prevenção constitui o autêntico pressuposto material da atenuação especial da pena»[7].


«A diminuição da culpa ou das exigências da prevenção só poderá, por seu lado – acrescenta este autor –, considerar-se acentuada quando a imagem global do facto, resultante da actuação da(s) circunstância(s) atenuante(s), se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo. Por isso, tem plena razão a nossa jurisprudência – e a doutrina que a segue – quando insistem em que a atenuação especial só em casos extraordinários ou excepcionais pode ter lugar»[8].


Segundo PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, «a atenuação especial da pena pode justificar-se quer por circunstâncias contemporâneas do facto quer por circunstâncias prévias ou posteriores ao facto. As circunstâncias contemporâneas do facto relevam por via da culpa, enquanto as circunstâncias prévias ou posteriores ao facto relevam por via da prevenção.

O elenco legal das circunstâncias que dão azo a uma atenuação especial da pena é (…) exemplificativo e não automático, podendo a ocorrência de factos materialmente subsumíveis a estas circunstâncias não dar azo a uma atenuação especial. Esta depende de uma diminuição significativa (ou acentuada) da culpa ou da “necessidade da pena”, consoante os casos»[9].


Também M. MIGUEZ GARCIA e J. M. CASTELA RIO consideram que «o princípio básico que regula a atenuação especial é a diminuição acentuada não só da ilicitude do facto ou da culpa do agente, mas também da necessidade da pena, e consequentemente das exigências de prevenção». A atenuação especial decorrente do n.º 1 – prosseguem estes autores – «reconduz-se a determinadas circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime ou contemporâneas dele. Para a produção do benefício exige-se uma diminuição acentuada da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena (prevenção geral positiva ou de integração). Qualquer destas situações não tem valor atenuante especial de per si, na sua existência objectiva, mas tem sempre de ser conexionada com um certo preceito que terá de produzir: o de diminuir essencialmente a ilicitude ou a culpa do agente (…) ou a necessidade da pena».


Acompanhando ainda estes autores, o tempo decorrido sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta, «pode constituir uma circunstância que revele a inadequação do facto à personalidade do agente ou sobre a necessidade da pena. O tempo dispõe de nítida eficácia erosiva e a sua conjugação com a boa conduta do agente traduz culpa mitigada, que há-se erguer-se, porém, sobre boas provas»[10].


4.3.4. Estes ensinamentos têm sido seguidos pelo Supremo Tribunal de Justiça, como sucedeu nas decisões citadas no acórdão de 25 de Novembro de 2009 (Proc. n.º 490/07.0TAVVD.S1 – 3.ª Secção). Assim:

«Como se expressou o acórdão do STJ, de 23-02-2000, processo nº 1200/99-3ª, SASTJ, nº 38, pág. 75, “É na acentuada diminuição da ilicitude e/ou da culpa e/ou das exigências da prevenção que radica a autêntica ratio da atenuação especial da pena. Daí que, as circunstâncias enunciadas no nº 2 do artigo 72º do Código Penal, não sejam as únicas susceptíveis de desencadear tal efeito, nem este seja consequência necessária ou automática da presença de uma ou mais daquelas circunstâncias”.

No acórdão de 30-10-2003, CJSTJ 2003, tomo 3, pág. 220, pode ler-se: a atenuação especial só em casos extraordinários ou excepcionais pode ter lugar, considerando-se como antiquada a solução de consagrar legislativamente a cláusula geral de atenuação especial como válvula de segurança, pois que dificilmente se pode ter tal solução por apropriada para um Código como o nosso, “moderno e impregnado pelo princípio da humanização e dotado de molduras penais suficientemente amplas”, seguindo-se aqui a lição constante do § 465 da referida obra de Figueiredo Dias.

No acórdão de 03-11-2004, CJSTJ 2004, tomo 3, pág. 217 refere-se: “Justifica-se a aplicação do instituto de atenuação especial da pena, que funciona como instrumento de segurança do sistema nas situações em que se verifique um afastamento crítico entre o modelo formal de integração de uma conduta em determinado tipo legal e as circunstâncias específicas que façam situar a ilicitude ou a culpa aquém desse modelo”.

E no acórdão de 25-05-2005, CJSTJ 2005, tomo 2, pág. 207: “A atenuação especial da pena só pode ser decretada (mas se puder deve sê-lo) quando a imagem global do facto revele que a dimensão da moldura da pena prevista para o tipo de crime não poderá realizar adequadamente a justiça do caso concreto, seja pela menor dimensão e expressão da ilicitude ou pela diminuição da culpa, com a consequente atenuação da necessidade da pena - vista a necessidade no contexto e na realização dos fins das penas”.

Como se extrai do já citado acórdão de 07-06-2006, processo n.º 1174/06 - 3.ª Secção, in CJSTJ 2006, tomo 2, pág. 207, “A atenuação especial da pena depende do concurso de circunstâncias anteriores, posteriores ou concomitantes ao crime, que façam diminuir de forma acentuada a culpa, a ilicitude e a necessidade de pena, elencando de forma não taxativa o n.º 2 do art. 72.º do CP os seus factos-índices, ligados a uma imagem global do facto favorecente do agente criminoso.»


Como também se consigna no acórdão deste Supremo tribunal, de 17 de Setembro de 2014 (Proc. n.º 595/12.6TASLV.E1.S1 – 3.ª Secção):

«A atenuação especial da pena só pode ter lugar em casos extraordinários ou excepcionais, isto é, quando é de concluir que a adequação à culpa e às necessidades de prevenção geral e especial não é possível dentro da moldura geral abstracta escolhida pelo legislador para o tipo respectivo. Fora destes casos, é dentro da moldura normal que aquela adequação pode e deve ser procurada.

[…].

A diminuição da culpa ou das exigências de prevenção só poderá, por seu lado, considerar-se acentuada quando a imagem global do facto, resultante da actuação da(s) circunstância(s), se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo. Por isso, tem plena razão a nossa jurisprudência – e a doutrina que a segue – quando insiste em que a atenuação especial só em casos extraordinários ou excepcionais pode ter lugar; para a generalidade dos casos, para os casos ‘normais’, lá estão as molduras penais normais, com os seus limites máximo e mínimo próprios (Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, págs. 192, 302, 306 e, Ac. deste Supremo e desta Secção de 06-06-2007 in Proc. n.º 1899/07.


Como também se considera no acórdão deste Supremo Tribunal, de 12 de Novembro de 2014 (Proc. n.º 1287/08.6JDLSB.L1.S1 – 3.ª Secção), «a atenuação especial da pena só pode, pois, ser decretada quando a imagem global do facto revele que a dimensão da moldura da pena prevista para o tipo de crime não poderá realizar adequadamente a justiça do caso concreto, quer pela menor dimensão e expressão da ilicitude ou pela diminuição da culpa, com a consequente atenuação da necessidade da pena - vista a necessidade no contexto e na realização dos fins das penas».


4.3.5. No caso vertente, e tendo presentes somente as circunstâncias resultantes da matéria de facto dada como provada, nem a culpa nem a ilicitude globalmente consideradas permitem o recurso à atenuação especial da pena relativamente aos dois crimes pelos quais a arguida é condenada.


A gravidade dos factos, pelas circunstâncias em que ocorreram, muito em particular os abusos sexuais da menor que coabitava com a arguida, é de tal forma elevada, que intensifica a ilicitude do facto, a culpa do arguido e a necessidade de pena.


A arguida actuou bem sabendo que atentava contra o livre desenvolvimento da personalidade e sexualidade da menor BB.

Ao maltratar fisicamente o menor CC, a arguida revelou grande insensibilidade em relação à natural fragilidade decorrente da idade daquele. Recorde-se que a arguida, reiteradamente, num período compreendido entre meados de Dezembro de 2010 e meados de Agosto de 2011, infligiu maus-tratos físicos a CC, molestando-o corporalmente e atentando contra a sua saúde, sendo que este, à data dos factos, tinha apenas 6 anos de idade.


Acresce, como bem sublinha o Ex.mo Magistrado do Ministério Público neste Tribunal, que, contrariamente ao que alega a recorrente, esta não assumiu os factos que lhe haviam sido imputados.

Por outro lado, como também refere, «o tempo decorrido (cerca de 4 anos), dada a natureza dos factos e cessação da coabitação com as vítimas, não reveste especial significado atenuante».


Não se mostram, pois, verificados os pressupostos previstos no artigo 72.º do Código Penal, nomeadamente não vêm verificadas circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuem por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade de pena, não havendo, assim, lugar a atenuação especial da pena, pelo que improcede a pretensão da recorrente.


4.4. Determinação da pena conjunta


4.4.1. Prescreve o artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, quanto às regras de punição do concurso de crimes, que:

«Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente».


De acordo com o n.º 2 do mesmo preceito, a moldura penal aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.


No caso em apreço, a moldura da punição do concurso vai de 5 anos e 6 meses de prisão (a mais elevada da pena de prisão aplicada) a 7 anos e 6 meses de prisão (soma das duas penas aplicadas).


4.4.2. No domínio da fixação da pena única, o Supremo Tribunal de Justiça vem entendendo, em abundante jurisprudência, que, com a fixação da pena conjunta «se pretende sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto (e não unitariamente), os factos e a personalidade do agente. Como doutamente diz Figueiredo Dias, “como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado”, e, assim, importante na determinação concreta da pena conjunta será, pois, a averiguação sobre se ocorre ou não ligação ou conexão entre os factos em concurso, bem como a indagação da natureza ou tipo de relação entre os factos, sem esquecer o número e gravidade dos crimes praticados e das penas aplicadas, tudo ponderando em conjunto com a personalidade do agente referenciada aos factos (-), tendo em vista a obtenção de uma visão unitária do conjunto dos factos, que permita aferir se o ilícito global é ou não produto de tendência criminosa do agente, bem como fixar a medida concreta da pena dentro da moldura penal do concurso, tendo presente o efeito dissuasor e ressocializador que essa pena irá exercer sobre aquele» (acórdão de 12 de Setembro de 2012, proferido no processo n.º 605/09.4PBMTA.L1.S1).


Como também se refere no acórdão deste Supremo Tribunal, também de 12 de Setembro de 2012, proferido no processo n.º 2745/09.0TDLSB-L1.S1 – 3.ª Secção, «a medida da pena unitária reveste uma especificidade própria: por um lado, está-se perante uma nova moldura penal, mais ampla, abrangente, com maior latitude da atribuída a cada um dos crimes; por outro, tem lugar, porque se trata de uma nova pena, uma pena final, de síntese, correspondente a um novo ilícito (agora global), e a de uma nova culpa (agora outra culpa, ponderada pelos factos conjuntos, em relação), com outra específica fundamentação, que acresce à decorrente do art. 71.º do CP».


Na consideração dos factos (do conjunto dos vários factos que integram os diversos crimes em efectivo concurso), afirma-se no mesmo acórdão, «está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, como se o conjunto dos crimes em concurso ficcionasse como um todo único, total, globalizado, que deve ter em conta a existência, ou não, de ligações, conexões, ou pontos de contacto, entre as diversas actuações, e, na afirmativa, o tipo de ligação, conexão, ou contacto, que se verifique entre os factos em concurso».


A pena de conjunto repousa numa valoração da totalidade dos factos, que fornece a ilicitude global, sendo decisiva para essa avaliação a conexão e o tipo de conexão entre os factos e se eles representam, também, uma manifestação da personalidade, na vertente de uma mera pluriocasionalidade, de um trajecto de vida puramente ocasional e não enraizado, ou, ao invés, uma carreira criminosa.


4.4.3. No caso presente, é muito acentuada a ilicitude global dos factos praticados pela arguida. E, embora não se possa afirmar a existência de uma verdadeira conexão entre o crime de abuso sexual de crianças e o crime de violência doméstica cometidos pela arguida-recorrente, não se pode ignorar o elemento comum que liga tais ilícitos. Eles foram cometidos sobre crianças duas crianças, de 8 e 6 anos, respectivamente.


A arguida, como já se mencionou, revelou uma personalidade dissociada dos valores que a sociedade actual vem insistentemente a acolher e garantir no âmbito da protecção das crianças, sendo que, como bem pondera o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto neste Supremo tribunal, «o crime de abuso de crianças situa-se na hierarquia superior da categoria axiológico-normativa dos tipos legais».


Por outro lado, de salientar em absoluto desfavor da arguida o seu já extenso curriculum criminal, que se mostra vertido no n.º 38 dos factos provados.

Na verdade, como bem sublinha a decisão recorrida, a arguida já foi condenada pela prática de um crime de falsificação de documentos e, bem assim, pela prática de oito crimes de condução sem habilitação legal, denotando um assaz desrespeito pelas solenes advertências que lhe vêm sendo feitas pela justiça.

Neste particular, não obstante os crimes pelos quais a arguida já foi condenada protegerem bens jurídicos distintos às incriminações pelas quais nestes autos a arguida será condenada, a verdade é que tal circunstância não permite, em nosso entender, diminuir as suas extremadas necessidades de ressocialização, atenta a absoluta indiferença que a arguida vem denotando relativamente às condenações que vem sofrendo, mesmo quando aquelas determinaram a privação da sua liberdade.


Acresce que – aliás, como a própria assumiu em sede de audiência de discussão e julgamento – a arguida, aquando da prática dos factos descritos na matéria assente, se encontrava em cumprimento da pena única de 21 meses de prisão que foi executada em regime de permanência na habitação com vigilância electrónica.


Revela ainda a arguida limitações cognitivas, traduzidas em atitudes pessoais reveladoras de imaturidade que se repercutem na estruturação da sua vida pessoal, familiar e profissional.


Tudo ponderado, consideramos justa e adequada a pena conjunta de seis anos e dois meses de prisão pela prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado e de um crime de violência doméstica, fixada no acórdão recorrido que, assim, se confirma.


4.5. Suspensão da execução da pena


Tendo em consideração a pena única aplicada, superior a cinco anos de prisão, e o disposto no artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, não é possível a suspensão da sua execução.



III – DECISÃO


Termos em que os Juízes que compõem a 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça acordam em:

1. Negar provimento ao recurso interposto por AA, mantendo-se a decisão recorrida.

2. Tributar a recorrente em custas, com 4 unidades de conta (UC) de taxa de justiça.


SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 23 de Junho de 2016


Manuel Augusto de Matos (Relator)

Armindo Monteiro

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[1]     DSM-IV, 4ª edição, 541
[2]    No mesmo sentido: Ac. STJ de 29.04.04, proc. n.º 1114.04, 5ª, onde se decidiu que respeitados os parâmetros legais de doseamento concreto, existe sempre uma margem de liberdade do juiz praticamente insindicável.
[3]  Crimes Sexuais – Análise Substantiva e Processual, Coimbra Editora, p. 140.
[4]  “O Repensar dos Crimes Sexuais na Revisão do Código Penal”, Jornadas de Direito Criminal – Revisão do Código Penal, I Volume, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 1996, p. 169.
[5]   Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, pp. 541-542.
[6] Comentário do Código Penal, 3.ª Edição Actualizada, Universidade Católica Editora, Novembro de 2015, p. 680.
[7]    Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, 4.ª Reimpressão, Coimbra Editora, p. 306. Destacado no original.
[8]     Ob. cit., pp. 306-307.
[9]    Comentário do Código Penal, 3.ª Edição actualizada, Universidade Católica Editora, p. 365.
[10]   Código Penal – Parte geral e especial, Com notas e comentários, 2015 – 2.ª Edição, Almedina, p. 394.