Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3762/18.5T8AVR.P1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: JORGE DIAS
Descritores: ABUSO DO DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
BOA FÉ
PRESCRIÇÃO
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
DEFESA POR EXCEÇÃO
CONHECIMENTO OFICIOSO
CASO JULGADO
TRÂNSITO EM JULGADO
Data do Acordão: 06/21/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - O princípio da boa-fé exprime a relevância que a ordem jurídica confere às considerações éticas e diretrizes morais presentes numa sociedade, sendo transversal a todas as áreas do Direito.

II - A proibição do "venire contra factum proprium" reconduz-se à doutrina da confiança, pressupondo, como elemento subjetivo, que o confiante adira realmente ao facto gerador de confiança.

III - Resultando dos factos provados que era legítimo ao “homem médio”, ao “bonus pater familiae”, ou seja, a uma pessoa de normal entendimento, colocado na posição do autor, que pudesse formar a convicção e confiança de que a ré não iria deduzir defesa por exceção alegando a prescrição, se alegada a prescrição age a ré em abuso de direito.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, 1ª Secção Cível.



I – AA instaurou no Tribunal Judicial da Comarca ... - Juízo Central Cível ... a presente ação, com processo comum, contra BB, pedindo a condenação desta:

1.º - A pagar ao autor a quantia de €83.265,00 por via do enriquecimento sem causa, assim discriminada:

a) Tornas pelo valor da casa melhor identificada no artigo 3.º da petição inicial, no valor de metade do valor da venda - €63.750,00;

b) O valor de €11.825,00 relativo aos montantes por si pagos entre 2004 e 2008, quando suportou a totalidade das prestações;

c) Despesas que suportou em exclusivo com a habitação e que constituíram benfeitorias na mesma, assim como despesas com automóveis da ré, mencionados no artigo 13.º da petição inicial, no valor de €19.325,00, deduzindo a quantia paga pela ré aquando da liquidação antecipada do empréstimo.

2º - Se assim não se entender, e em alternativa, ser reconhecido o mútuo da quantia de €52.590,00, correspondente ao valor das prestações pagas pelo autor e o pagamento da quantia de €19.325,00 a título de benfeitorias na habitação e nas viaturas automóveis, propriedade da ré, no montante global de €71.915,00, condenando-se a ré a pagar tal quantia ao autor.

Alegou para tanto, e em síntese, que autor e ré viveram em união de facto entre 1994 e 2008. Em finais de 1995 decidiram adquirir uma moradia sita na Rua ..., ..., para onde foram residir em permanência e para aquisição da mesma contraíram um empréstimo junto do Banco 1.... O autor para a formalização da escritura de compra e venda, pagou a entrada/sinal de 1.840.000$00, a 05.01.1996, e a ré entregou a quantia de 2.200.000$00. O autor pagou sempre metade do valor do empréstimo pedido para a compra da casa. E despendeu, ainda, com a mesma moradia as quantias discriminadas no artigo 13.º da petição inicial. A partir de Abril de 2004 e até 31.12.2008 foi o autor quem pagou a totalidade da prestação mensal, que se cifrava no montante de €600,00/mês, a pedido da ré por esta estar, na altura, a pagar o crédito à habitação do apartamento que, entretanto, comprara na Rua ....

A relação íntima terminou, a finais de 2008, e o autor foi residir para um apartamento na ..., apesar disso continuou, sempre, a pagar metade da prestação até meados de 2013.

Autor e ré convencionaram que na altura da venda a ré daria tornas ao autor, fazendo-se aí também o encontro de contas em relação aos inúmeros gastos que o autor teve e suportou em exclusivo na habitação. A partir de 27.01.2012, a ré começou a pagar ao autor a quantia de €300,00, mensalmente, por transferência bancária para a conta do autor, para lhe restituir o montante de €15.900,00, correspondente a metade da quantia paga por este, entre Abril de 2004 e 31.12.2008, quando suportou a totalidade da prestação mensal do empréstimo.


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Pessoal e regularmente citada, a ré veio contestar e pediu a improcedência da ação.

Para tanto, excecionou a prescrição do direito de restituição das quantias pedidas por enriquecimento sem causa, nos termos do art.º 482.º do C. Civil, por, a ter ocorrido enriquecimento sem causa da ré, ter-se-ia dado aquando da deslocação patrimonial da esfera do autor para a esfera jurídica da ré; não, aquando da venda do prédio urbano pela ré; o último pagamento que o autor efetuou foi em meados de 2013 e a última restituição pela ré ocorreu em Fevereiro de 2013; a presente ação foi proposta a 21.12.2018; logo, está exaurido há muito o prazo de três anos.

Mais impugnou os factos alegados pelo autor defendendo que autor e ré sempre tiveram patrimónios autónomos e separados. Quando, em Janeiro de 1996, autor e ré passaram a viver como “casal” na moradia sita na Rua ..., ..., o autor solicitou à ré a permissão para instalar, na garagem da moradia, uma clínica veterinária, no que esta consentiu. O autor, no seu próprio interesse e benefício, efetuou e custeou as obras de adaptação da garagem que entendeu necessárias, de gradeamento e vedação de modo a que os animais a tratar não fugissem para a via pública nem para a parte habitacional. O autor entendeu, de motu proprio, que deveria pagar, mensalmente, algum dinheiro como contrapartida pelo gozo residencial e profissional do prédio de ... e do de ... (Rua ...) pela alimentação, limpeza, trato de roupa e afins que a ré lhe proporcionava.

As quantias que o autor entregou à ré mormente, por transferência, para a conta n.º ...01 do Banco 1..., foram sempre por ele, unilateral e livremente, definidas e com a antes dita finalidade. A ré ajudou, ainda, o autor financeiramente durante, aproximadamente, um ano (em 2012) com €300,00/mês, quando ele necessitou para cumprir as suas obrigações com terceiros.


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O autor, em sede de resposta, reafirmou a existência de um compromisso entre a ré e o autor, desde o início, no sentido de que a habitação sita nas ..., em ..., era dos dois (autor e ré). Por isso, a contribuição de ambos, em partes iguais, até 2004, para o pagamento do empréstimo, depois, até 2008, em exclusivo, pelo autor, e, após a separação (2008), em partes iguais até 2012.

Na altura da separação, as partes firmaram também o compromisso de que a casa seria vendida e o produto da venda seria dividido entre os dois, com acerto de contas. Daí que o enriquecimento só se deu com a venda da casa e não com a entrega de valores.


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Realizou-se audiência prévia, no âmbito da qual foi proferido despacho saneador que relegou o conhecimento da exceção de prescrição para a sentença. Fixou-se o objeto do litígio e os temas da prova.

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Procedeu-se a julgamento, após o que foi proferida sentença de onde consta:

Julgo, nos termos e pelos fundamentos expostos, a acção parcialmente procedente e em resultado disso:

a) Declaro dissolvida desde Outubro de 2008 a união de facto existente entre autor e ré; b) Condeno a ré a pagar ao autor:

1º - O valor pago pelo autor entre agosto de 1995 e Maio (incluído) de 2004, correspondente a metade do valor de 106 prestações do empréstimo referido em 3 e 4 dos Factos Provados, a apurar em incidente de liquidação;

2º - A quantia €41.675,00.

Absolvo a Ré do mais pedido. Custas na proporção de vencido”.

Inconformada com a tal decisão, dela veio a ré recorrer de apelação, sendo, após deliberação, decidido:

Pelo exposto acordam os Juízes desta secção cível em julgar as presentes apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pela ré/apelante”.


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Novamente inconformada, com o decidido pela Relação, a ré interpõe recurso de Revista para este STJ e formula as seguintes conclusões:

“1ª) de acordo com alegado pela Recorrente na contestação e na apelação e contrariando o decidido na sentença em Primeira Instância, o douto Tribunal da Relação do Porto julgou e declarou prescrito o direito à restituição, por via do enriquecimento sem causa, que o A./Recorrido pretendia fazer valer na ação sub judice;

2ª) conforme douto entendimento do insigne Tribunal da Relação do Porto, o prazo prescricional em causa completou-se a 13.10.2017;

3ª) contrariamente ao decidido pelo douto Tribunal da Relação do Porto, a exceção perentória de prescrição suprarreferida é alegável pela Recorrente e não constitui abuso de direito;

4ª) o A./Recorrido não alegou ou invocou, em momento processual algum, que a Recorrente ao defender-se, invocando e alegando a mencionada prescrição, estivesse a fazê-lo com abuso de direito;

5ª) a sentença proferida em Primeira Instância também não julgou abusivo o direito da Recorrente à alegação e invocação da aludida exceção de prescrição, sendo completamente omissa quanto a esta questão;

6ª) a Recorrente nada fez que obstasse ao exercício tempestivo do direito por parte do A./Recorrido;

7ª) nada obstava, nem obstou, a que o A./Recorrido exercesse judicial e tempestivamente o seu direito – caso quisesse fazê-lo – e não o fez;

8ª) da matéria de facto considerada provada também nada resulta no sentido de se considerar que, após a venda que efetuou da moradia em questão, a Recorrente haja praticado qualquer facto que obstasse ao exercício tempestivo do pretenso direito por parte do A./Recorrido;

9ª) resulta da matéria provada que, nos termos do acordo verbal havido, a divisão do preço apenas ocorreria “se e quando vendesse a casa”;

10ª) a venda da casa não ficou estabelecida como certa;

11ª) os “se e quando”, atrás referidos, não eram aptos a alicerçar no R./Recorrido uma crença assertiva na venda da moradia que justificasse, da sua parte, uma confiança inabalável que objetivamente obstasse ao tempestivo exercício do seu direito;

12ª) aliás, se a Recorrente, ao invés de ter vendido a moradia referida nos autos recorridos, a houvesse doado, arrendado ou, no limite, se esta se transmitisse mortis causa, já não haveria obrigação de restituir ao A./Recorrido o que quer que fosse;

13ª) ao alegar a prescrição do direito que o A./Recorrido pretende fazer valer na ação sub judice, a Recorrente não violou a confiança daquele no exercício do seu direito;

14ª) não excede os limites impostos pela boa fé (subjetiva e ética), não é chocante, nem reprovável o facto de a Recorrente alegar a prescrição do direito pretendido exercer pelo A./Recorrido atenta, nomeadamente, a matéria de facto provada, referida no precedente número 6.1. da motivação deste recurso;

15ª) atenta, nomeadamente, a matéria de facto provada, referida no precedente número 6.2. da motivação deste recurso, ofende a Justiça e o sentimento jurídico dominante vir o A./Recorrido pretender, fora de prazo, que a Recorrente lhe devolva quantias que esta nunca lhe pediu e que este nunca antes da ação sub judice lhe exigiu;

16ª) a alegação da prescrição do direito à restituição, por via do enriquecimento sem causa, que o A./Recorrido pretendia fazer valer na ação sub judice, não se traduz nem consubstancia exercício de direito pela Recorrente “fora do seu objetivo natural e da razão justificativa da sua existência” e não cria “uma desproporção objetiva entre a utilidade do exercício do direito” de alegar aquela prescrição “e as consequências a suportar por aquele contra o qual é invocado”;

17ª) ao alegar a prescrição do direito que o A./Recorrido pretende fazer valer na ação sub judice, a Recorrente exerceu legítima e licitamente o seu direito à defesa, não tendo incorrido em abuso de direito;

18ª) vedar à Recorrente a alegabilidade da prescrição do direito pretendido exercer pelo A./Recorrido na ação sub judice constitui, isso sim, uma abusiva e inaceitável limitação ao seu direito de defesa;

19ª) sem prescindir (por cautela de patrocínio), ainda que se considerasse (de acordo com o raciocínio vertido no douto acórdão recorrido) que a prescrição do direito do A./Recorrido era inalegável pela Recorrente, por “abuso de direito” (na modalidade de venire contra factum proprium), tal inalegabilidade apenas se deveria circunscrever às quantias acordadas restituir, por Recorrente e A./Recorrido, aquando da separação ocorrida entre ambos, em 2008 (ou seja, às quantias correspondentes a metade das prestações totais pagas pelo A./Recorrido entre junho de 2004 e 30/12/2008);

20ª) sempre sem prescindir (por cautela de patrocínio) e seguindo o raciocínio vertido no douto acórdão recorrido, nenhum outro acordo ou promessa de pagamento por parte da Recorrente se encontrando provado que seja posterior ao referido no nº 25 dos factos provados, relativamente às quantias pagas pelo A./Recorrido “em princípios de 2009 (…) até março de 2013 (inclusive)”, no montante de € 41.675,00, não ocorre qualquer abuso de direito, sendo alegável a prescrição do direito pretendido exercer pelo Recorrido;

21ª) o douto acórdão recorrido viola a correta interpretação e aplicação do disposto nos artigos 334º e 482º do Cód. Civil, bem como o disposto nos artigos 572º, alíneas b) e c), 573º, nº 1, 574º, nº 1, e 576º, nº 3, do Cód. Proc. Civil e, ainda, nos artigos 17º, 18º, nº 1, e 20º, nº 4, segunda parte, da Constituição da República Portuguesa – disposições legais que devem ser interpretadas e aplicadas no sentido de:

I) - se reconhecer como lícita e legítima a alegação pela Recorrente da prescrição do direito à restituição, por via do enriquecimento sem causa, que o A./Recorrido pretende exercer pela ação sub judice;

II) - e, julgada que foi procedente tal exceção peremptória, absolver-se a Recorrente dos pedidos contra si formulados na ação em causa.

NESTES TERMOS e nos melhores de Direito, cujo douto suprimento se invoca, deverá ser concedido provimento ao recurso sub judice, substituindo-se o douto acórdão recorrido por outro que, julgando totalmente improcedente a ação, absolva a Ré/Recorrente de todos os pedidos contra si formulados pelo A./Recorrido, como é de JUSTIÇA!”.

O autor contra-alegou, concluindo:

“1. A Ré viu o seu recurso improceder e a ser confirmada pela Relação a sentença da 1ª instância, tendo, contudo, a final, vertido entendimento e fundamentação diversa, quanto à alegada prescrição que havia sido invocada, e «oficiosamente conhecido e decidido pela verificação do abuso de direito, na vertente de “venire contra factum proprium”.

2. Entende a Ré que deve operar a prescrição do direito do Autor, e que não se verifica o abuso de direito nem dele devia ter conhecido o Tribunal da Relação          

3. Concorda-se em absoluto com as Distintas Desembargadoras da Relação do Porto e aplaude-se o conhecimento do abuso do direito, impedindo a invocação do instituto da prescrição no caso concreto.

4. Os tribunais da relação não estão circunscritos a apreciar apenas o que é alegado pelas partes, nos seus recursos, em matéria de facto e/ou de direito, podendo conhecer de outras matérias, oficiosamente, quando resultar dos autos todos os elementos para tal.

5. Sempre se dirá, no entanto, que foi pelo facto de a própria Recorrente ter suscitado a questão da prescrição, que a relação ao analisar esta matéria de direito, apura, e bem, o abuso de direito, na vertente “venire contra factum proprium”.

6. Logo, não nos parece sequer correcto dizer que não devia ter conhecido do que não lhe é trazido a decidir ou a pronunciar-se; foi a Recorrente que trouxe a si o conhecimento.

7. Sufraga-se e subscreve-se nesta parte o entendimento vertido nos Acs. do STJ de 11.12.2012 e 12.07.2018, aos quais também alude o Acórdão recorrido.

8. Agiu a Ré em abuso do direito, na vertente de “venire contra factum proprium”.

9. A Relação do Porto, pela prova produzida e ouvida por conta da impugnação da matéria dada como provada, deduzida pela Recorrente, assim o concluiu.

10. Efetivamente tal resulta dos pontos 22 a 28 inclusive dos factos provados.

11. Sendo por isso, falso quando a Recorrente refere que nada fez para obstar ao exercício tempestivo do seu direito e, fez o mais importante para que ele não agisse, criou nele a confiança de que o acordo se ia cumprir, levando o Autor para mostrar a casa a potenciais compradores, mantendo este as chaves ainda que não lá vivesse, começando a restituir parte dos valores que o Autor tinha pago, quando pagou entre 2004 e 2008 a totalidade das prestações.

12. A Ré acordou com o Autor, aquando da separação, que a casa seria vendida e que nessa altura, restituía ao Autor os valores pagos.

13. Só assim se compreende que depois da rutura, o Autor tenha continuado a pagar metade do empréstimo, quando naquela moradia já não residia sequer.         

14. Saindo reforçado tal acordo, pelo facto de adicionalmente a Ré ter em 2012 começado a restituir os 300.00€, por referência aos anos entre 2004 e 2008 quando o Autor pagou a totalidade e para se irem igualando as posições e pagamentos dos dois.

15. Se assim não fosse, como se justificam os pagamentos da Ré para o A. desde 2012? Já que não provou que ajudou financeiramente o A. e numa altura em que sobre ela pendiam dois empréstimos bancários ainda? O da casa de ... e o do apartamento da Rua ...? Justificam-se unicamente por via do compromisso e do acordo firmado entre as partes, radicando aqui de novo a má fé da Ré, e por esses motivos o Autor não comtemplava sequer nessa altura que a Ré não ia cumprir, e concretizando-se assim por parte da Ré, esta prática de atos que obstavam ou impediam o Autor de reagir.

16. Tendo até o A. participado nas diligências atinentes à venda ou ao arrendamento daquele imóvel.

17. A casa de ..., foi inclusivamente posta à venda a partir do momento em que passaram a residir no apartamento da ..., fazia assim, como fez, todo o sentido continuar a pagar as prestações, como fez, sempre iludido pelas promessas no cumprimento do acordo que havia sido feito pelos dois, bem sabendo a Ré que defraudava as suas expectativas, mas ainda assim sempre continuando na mesma atuação.

18. A confiança ia sendo renovada no Autor, pela actuação da Ré.

19. Não se oferecem, pois, dúvidas quanto à correcta aplicação do abuso do direito e inalegabilidade da prescrição pela Ré.

20. Ainda assim entende o Recorrido contudo que não se verifica a prescrição, e se deve confirmar o entendimento da 1ª instância, quanto à prescrição e com aquela fundamentação, crendo que a tal conclusão decorre da fundamentação apresentada pela Relação, ainda que proceda à contagem de forma diferente.

21. A Relação considerou que o prazo de prescrição de 3 anos, para invocação de enriquecimento sem causa, se conta a partir da data da ruptura da relação, ao invés, a 1ª instância considerou o início do prazo, após a data da venda da casa, 13/07/2017, para os devidos efeitos, por ser, e transcreve-se o segmento da sentença proferida em 1ª instancia, no que aqui importa, “por ser aquela até à qual o A. poderia esperar a restituição das prestações, confiando, como confiou, em termos de boa fé, na Ré. Certo é que esta não cumpriu, como ele esperava e ela se comprometera.”– (sublinhado nosso).

22. O enriquecimento sem causa, dá-se, efectivamente, com a venda da habitação, atendendo neste caso sobretudo aos factos provados e até ao abuso de direito da Ré, a qual só ocorreu em Agosto de 2017, só ali se dando a deslocação patrimonial em definitivo.

23. O Autor continuou a pagar a casa mesmo após a separação, na sequência do dado como provado acordo que existiu entre Autor e Ré quanto ao momento da restituição das quantias, e que tal momento era a venda da casa, pelo que só ali há o locuptamento, enriquecimento da Ré a expensas do Autor.

24. Contudo e se assim não se entender, mesmo com a fundamentação expendida pela Relação do Porto no proferido acórdão, cremos também que chegamos à mesma conclusão, a não verificação da prescrição.

25. Entende o Tribunal da Relação do Porto que a contagem do prazo para efeitos de prescrição se inicia com a rutura da relação amorosa entre Recorrido e Recorrente, ou seja, a partir de Outubro de 2008, sendo certo que logo após tal prazo se interrompeu, por efeitos do acordo firmado entre as partes já melhor identificadas nos autos principais e de acordo com os factos dados como provados.

26. Mais entende que tal prazo por força da interrupção, faz reiniciar a contagem após a venda da moradia em 13/07/2017.

27. Inutilizado que fica assim todo o prazo que possa ter corrido entretanto, (tendo-se entendido que nem sequer chegou a correr pois o acordo foi feito logo de seguida), recomeça assim a contar aquando da venda, e logo, quando a acção é intentada em juízo, ainda não tinha ocorrido a prescrição, faltando isso sim mais de ano e meio para se alcançar o decurso dos 3 anos.

28. Não se alcança pois o entendimento que a Relação do Porto teve ao chamar à colação o prazo do artigo 321º do Código Civil, como restando apenas 3 meses para intentar a acção, após a venda, quando pela exposição e seguindo o pensamento cronológico apresentado no Acordão, o prazo ainda mal teria começado a correr, aquando da venda, pelo que e após a mesma, não poderiam apenas restar 3 meses para o Autor intentar a acção.

29. O prazo de prescrição, ainda que se inicie com a rutura da relação, foi de imediato interrompido e suspenso, pelo que, não chegando a correr, após a venda, teria de correr ainda na totalidade dos 3 anos para que precludisse o direito do Autor, o que não aconteceu.

30. E é só neste ponto que se permite, e sempre com a devida vénia por melhor entendimento, fazer o reparo ao acórdão proferido.

31. Mas a verdade é que quer se entenda que o prazo se iniciou com a ruptura da relação, quer que se inicia com a venda da moradia já melhor identificada nos autos, a prescrição não ocorreu quando o Autor dá entrada da acção, ou quando a Ré é citada.

32. No mais, de novo se aplaude a confirmação da decisão da 1ª instância, assim como o conhecimento do abuso de direito, porque dela podia conhecer e porque dos autos assim inequivocamente resultou provado, por parte da Ré, fazendo assim o Acordão a merecida Justiça.

Assim, deve o recurso improceder, mantendo-se o Acordão proferido, confirmando a decisão da 1ª instância na integra, quanto à prescrição, mas sempre, e ainda que quanto a esta matéria assim não se entenda, ali se tendo feito JUSTIÇA, mais se confiando e esperando saía reforçada destarte pelos Insignes Juízes Conselheiros”.


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O recurso foi admitido.

Cumpre apreciar e decidir.


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Nas Instâncias foram julgados como provados e não provados, os seguintes factos:

“1 - Por escritura de 13.07.2017, outorgada no Cartório Notarial ..., BB, divorciada, declarou vender a CC e mulher DD, pelo preço de €127.500,00, que já recebeu, o seguinte prédio urbano de sua propriedade:

- Prédio urbano, composto de rés-do-chão, 1.º andar, sótão, anexos, logradouro e jardim, destinado a habitação, sito na Rua ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz sob o artigo ...66, descrito na Conservatória do Registo Predial ..., inscrito a favor da vendedora pela Ap. ...20 – fls. 489/493 (A).

2. Este imóvel fora adquirido, para habitação própria permanente, por BB, por escritura de compra e venda e mútuo com hipoteca de 28.07.1995, lavrada no Cartório Notarial ..., à Sociedade “C..., Ld.ª, pelo preço de 14.600.000$00, já pagos – fls. 240/244 (B).

3. Para o efeito, o Banco 2..., S.A., emprestou, mediante hipoteca, à compradora, ora ré, 16.500.000$00, sendo 14.600.000$00 para habitação e 1.900.000$00 para obras de beneficiação – fls. 242 (C).

4. O empréstimo foi concedido pelo Banco à compradora, ora ré, sob a forma de abertura de crédito nos termos das cláusulas de fls. 245/252 que não adianta transcrever (D).

5. Pelo acordo escrito de 21.12.1998, o Banco 1... (nova designação do Banco 2..., S.A.) e a ora ré subscreveram a alteração das condições do empréstimo concedido para a compra da habitação própria feita pela escritura de 28.07.1995 quanto à taxa de juros que, a partir de 30.01.1999, passou de fixa a variável, a rever trimestralmente – fls. 255/256 (E).

6. BB foi titular junto do Banco 1... da conta n.º ...01, a qual, no momento da sua abertura, tinha, ainda, como co-titular EE – fls. 257 (F).

7. Esta conta foi encerrada a 10.02.2018 – fls. 257 (G).

8. Por escritura de 31.05.2004, a sociedade “C..., Ld.ª” vendeu a BB, que aceitou comprar, para sua habitação permanente, por €137.000,00, a fracção autónoma designada pela ..., destinada a habitação, correspondente ao 2.º andar, tipo T2, no ... mais a norte, no lado norte do ..., com uma garagem, a do lado nascente, na terceira fila, no sentido poente nascente a quinta do sentido sul – norte, do prédio urbano sito na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz sob o artigo provisório n.º 4884 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...14 – fls. 259/263 (H).

9. A compra foi feita por recurso ao crédito bancário junto da Banco 3..., por empréstimo titulado pela ré e garantido por hipoteca – fls. 261/263 (I).

10. Por contrato, celebrado a 23.12.2008, o ora autor AA tomou de arrendamento, para sua habitação, a FF o apartamento T2, melhor identificado a fls. 321, pela renda anual de €5.400,00 a pagar em duodécimos, sendo o prazo de duração do contrato de arrendamento de cinco anos, com início a 01.02.2009 – fls. 321/322 (J).

11. Autor e ré viveram em união de facto, pelo menos entre 1996 e 2008 (K).

12. A ré liquidou, junto do Banco 1..., em Março de 2014, o remanescente do empréstimo da moradia no montante de € 23.270,00 (L).

13. Após a venda da moradia, a ré não mais contactou o autor. (M).

14. O autor e a ré começaram a viver em união de facto (em condições análogas às dos cônjuges) no final de 1994, num apartamento, propriedade da ré, em ..., no Bairro ....

15. No início de 1996 passaram a residir na moradia sita na Rua ..., ....

16. A ré, a partir de meados de 2004, passou a residir, em permanência, no apartamento identificado em 8 dos Factos Provados, sito na Rua ..., ....

17. O autor, entre meados de 2004 e Outubro de 2008, residiu alternadamente na moradia da Rua ..., ..., e no apartamento da ré na Rua ..., por o seu relacionamento com a ré atravessar uma fase difícil.

18. A relação amorosa entre autor e ré terminou em Outubro de 2008.

19. O autor deixou, definitivamente, de residir na moradia, no início de Fevereiro de 2009, e foi residir para um apartamento na ....

20. A conta n.º ...01 foi aberta a 30.03.1995 junto do Banco 2..., S.A. (actual Banco 1...) e tinha como co-titulares a ora ré e a mãe desta EE – fls. 257.

21. O autor passou a ser co-titular da mesma conta a partir de 27 de Abril de 2005.

22. O autor pagou:

a) desde o início e até Maio de 2004, metade da prestação mensal do empréstimo referido em 3 e 4 dos Factos Provados; e

b) a partir de Junho de 2004 até 31.12.2008, pagou a totalidade da prestação mensal no montante de €600,00, a pedido da ré, por esta estar a ter dificuldades em suportar este crédito e o crédito da habitação do imóvel sito na Rua ....

23. O autor, em princípios de 2009, passou novamente a pagar apenas metade da prestação do empréstimo à moradia em ... (€250,00) e pagou-o até Março de 2013 (inclusive).

24. O autor continuou a fazer estes pagamentos de metade das prestações do empréstimo para a compra da moradia até Março de 2013, confiado no acordo verbal existente entre ele e a ré de que, se e quando vendesse a casa, seria dividido o preço entre ambos.

25. Aquando da separação de ambos, a ré acordou restituir ao autor o montante correspondente à metade das prestações totais pagas por este, respeitantes entre Junho de 2004 e 30.12.2008, quando procedesse à venda da moradia.

26. O autor tomou parte activa em várias diligências efectuadas para procurar vender a moradia.

27. A partir de 27.01.2012, a ré começou a pagar, mensalmente, €300,00 ao autor para lhe restituir metade da quantia que aquele pagou entre Junho de 2004 e 30.12.2008, quando suportou a totalidade da prestação mensal de €600,00.

28. Restituiu apenas €4.075,00 entre Janeiro de 2012 e Fevereiro de 2013.

29. Foi unicamente a ré que decidiu comprar e comprou, a 28.07.995, para si, a moradia sita na Rua ..., da freguesia ..., à sociedade “C..., Ld.ª”, pelo preço de 14.600.000$00 (€72.824,00).

30. As prestações de amortização do aludido empréstimo eram efectuadas através da conta da ré n.º ...16 de que ela era titular na agência de ... do aludido Banco 2..., S.A..

31. No mês de Outubro de 1996 o Banco 1..., adquiriu aquele Banco 2..., S.A., pelo que a autor passou a proceder aos pagamentos das prestações do empréstimo através da conta n.º ...01, domiciliada no Banco 1....

32. A 18.11.1998, a ré (e apenas a ré) solicitou ao Banco 1... a revisão do contrato de empréstimo, tendo sido no seguimento deste requerimento alteradas as condições do empréstimo, designadamente quando à taxa de juros de modalidade das prestações.

33. Autor e ré sempre tiveram patrimónios autónomos e separados.

34. Quando, em Janeiro de 1996, autor e ré passaram a residir na moradia sita na Rua ..., da freguesia ..., o autor solicitou à ré a permissão para instalar na garagem da moradia um consultório veterinário, dispondo-se a realizar e a custear as obras de adaptação do prédio de modo a assegurar a coexistência do consultório veterinário e dos seus utentes com a parte reservada a habitação.

35. Tendo a ré consentido, o autor, no seu próprio interesse e benefício, efectuou e custeou as obras de gradeamento e vedação de modo a que os animais a tratar não fugissem para a via pública nem para a parte habitacional.

36. O autor exercia aqui, a título privado, medicina veterinária, no final do dia, quando lhe apareciam clientes.

37. Mandou construir e pagou um canil para os dois cães de companhia que levou para a moradia.

38. A ré ajudou e assistiu o autor quando ele foi operado ao coração em Março de 2011, recebendo-o no seu apartamento da Rua ... durante mais de mês e meio, sem dele receber qualquer contrapartida ou ajuda financeira.

39. O autor exerceu medicina veterinária na moradia de ... até 2009 (inclusive).

40. As despesas que o autor suportou com automóveis da ré, destinaram-se a reparar o automóvel ..., propriedade da ré, que o emprestara aos familiares do autor, e que se avariou quando estes o utilizaram.

41. Este automóvel era também utilizado, por vezes, pelo autor.

42. Os automóveis, propriedade da ré, foram pagos por ela.

43. A ré exercia, à data dos factos alegados, a profissão de professora do ensino básico.

44. O autor exerceu até 2009, data em que se reformou, o cargo de veterinário municipal em ....

45. Acumulava estas funções com o exercício de veterinário responsável pela “O..., Ld.ª”, dedicada ao abate de gado e comercialização de carnes.

46. E era, ainda, membro dos órgãos sociais da A....

47. O autor nunca pagou à ré qualquer renda habitacional ou pela ocupação e utilização do espaço onde exercia a actividade de médico veterinário.

Não se julgaram provados os seguintes factos:

a)     O autor e a ré adquiriram a moradia sita na Rua ..., em ..., de comum acordo, para os dois, tendo recorrido ao crédito bancário junto do Banco 1..., cujo empréstimo acordaram que seria pago em partes iguais por ambos;

b) O autor, para a formalização da escritura de compra e venda da moradia, pagou, a 05.01.1996, a entrada/sinal de 1.840.000$00 e a ré, a de 2.200.000$00;

c) O autor satisfez as despesas com a moradia constantes do artigo 13.º da petição inicial no montante total de € 19.325,00;

d) Autor e ré acordaram que seria feita competente escritura da venda da casa a favor do autor;

e) O autor fez os pagamentos mensais referidos em 22, 23 e 25 dos Factos Provados como retribuição de estar a ocupar e a usufruir o rés-do-chão da moradia com uma clínica veterinária onde atendia os seus clientes particulares;

f) A ré arrendou a moradia;

g) O autor mutuou à ré €19.325,00 para benfeitorias na moradia de ...;

h) O autor entendeu, de motu proprio, que deveria pagar, mensalmente, algum dinheiro como contrapartida pelo gozo residencial e profissional do prédio de ... e do de ... (Rua ...) pela alimentação, limpeza, trato de roupa e afins que a ré lhe proporcionava;

i) As quantias que o autor entregou à ré, mormente, por transferência para a conta nº ...01 do Banco 1..., foram sempre por ele, unilateral e livremente, definidas e com a antes dita finalidade;

j) A ré ajudou, ainda, financeiramente o autor durante, aproximadamente, um ano (em 2012) com €300,00/mês, quando ele necessitou para cumprir as suas obrigações com terceiros;

k) O autor, quando passou em Junho de 2004 a viver com a ré no apartamento da Rua ..., em ..., entendeu que devia aumentar a retribuição mensal e para quanto;

l) Foi a ré quem sempre suportou as prestações do empréstimo contraído para compra da casa de ...;

m) O autor nunca contribuiu para as despesas domésticas e do casal;

n) Qual o valor da prestação mensal do empréstimo entre Agosto (incluído) de 1995 e Maio (incluído) de 2004”.


*


Conhecendo:

São as questões suscitadas pela recorrente e constantes das respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar – artigos 608º, 635º, nº 3 a 5 e 639º, nº 1, do C.P.C.        

No caso em análise questiona-se:

- A não alegabilidade da prescrição do direito pretendido exercer pelo Aautor na ação, por verificação de “abuso de direito” (na modalidade de venire contra factum proprium).

Refere o acórdão recorrido que: “Nenhuma censura nos merece a interpretação jurídica assim feita em 1.ª instância ao complexo fáctico provado nos autos”, ou seja, a obrigação de restituir baseada no enriquecimento sem causa.

Prosseguindo: “(…) Duvidas não restam de que a causa da deslocação dos valores patrimoniais do autor para a ré teve por razão de ser o projecto de vida em comum que conceberam e que vivenciaram, do qual fazia parte aquele imóvel pertencente à ré, sito em ..., que servia de morada do casal. As contribuições monetárias do autor para os pagamentos das prestações mensais do crédito contraído pela ré para a aquisição do imóvel, tiveram, portanto, uma causa jurídica, concretizada na adopção dessa moradia como residência do casal, tendo, por isso, o autor para aí canalizado essas contribuições.

O enriquecimento da ré advém, portanto, da circunstância de ser ela única proprietária de imóvel cujos avultados custos com os pagamentos das prestações mensais do empréstimo que contraiu para a sua aquisição terem sido suportados pelo com quem viveu em união de facto.

Nestas circunstâncias, “pode afirmar-se que a união de facto constitui a causa jurídica da contribuição monetária realizada” pelo autor/não proprietário do imóvel, pelo que “com a dissolução da união de facto extinguiu-se a causa jurídica justificativa da referida contribuição, deixando de ter justificação a privação da contribuição monetária prestada” para a aquisição do bem exclusivamente propriedade da ré/apelante. Trata-se, com efeito, do superveniente desaparecimento da causa da deslocação patrimonial, que representou tal contribuição monetária, correspondente à conditio ob causam finitam, consagrada no n.º 2 do art.º 473º do C.Civil, pelo que ocorrendo neste caso uma clara situação de enriquecimento sem causa, que despareceu em virtude da dissolução da união de facto, por parte da ré/apelante que ficou dona exclusiva do bem imóvel em apreço, em detrimento do autor, deverá esta ficar sujeita à obrigação de restituir com base no instituto do enriquecimento sem causa os montantes monetários com que aquele contribuiu para o enriquecimento do património dela e consequente empobrecimento do seu.

Mais se dirá ainda que os pagamentos dessas prestações do empréstimo contraído pela ré/apelante para a aquisição da referida moradia unicamente pela ré, por parte do autor não consubstanciam indiscutivelmente encargos normais e correntes da vida familiar, posto que respeitam à aquisição da titularidade de um imóvel por parte de apenas um dos unidos de facto em detrimento do outro.

Dissolvida a união de facto em Outubro de 2008, é manifesto e não nos merece dúvidas, que a causa que justificou o contributo feito pelo autor/apelado para o pagamento do referido empréstimo bancário feito à ré/apelante para a aquisição da moradia sita em ..., desapareceu e com esse desaparecimento a ré/apelante deixou de ter qualquer causa justificativa à luz do sistema jurídico para não restituir ao autor as exactas quantias monetárias por este assim despendidas e com o qual aquela viu enriquecido o seu património em detrimento do autor.

Impõe-se concluir encontrarem-se preenchidos os três pressupostos cumulativos do instituto do enriquecimento sem causa, pelo que nenhuma censura nos merece a sentença recorrida, ao condenar a apelante a restituir ao apelado a quantia já líquida de €41.675,00 e a quantia que se vier a liquidar em incidente subsequente, respeitante o valor pago pelo autor entre Agosto de 1995 e Maio (incluído) de 2004, correspondente a metade do valor de 106 prestações do empréstimo referido em 3 e 4 dos factos provados, por força do preceituado no n.º2 do art.º 609.º do C.P.Civil”.

Concluíram, pois, as Instâncias que se verifica enriquecimento sem causa por parte da ré/recorrente.

Contrariamente ao entendido pela 1ª Instância, entendeu o Tribunal da Relação que se verificava prescrição do direito do autor ao ressarcimento das prestações que efetuou.

Refere o acórdão recorrido: “Destarte, entendemos que ocorreu uma suspensão do prazo prescricional, ou seja, o mesmo suspendeu-se nos seus últimos três meses após a realização da venda da moradia pela ré (e consequente incumprimento do que havia acordado com o autor), cfr. art.º 321.º n.º2 do C.Civil.

Assim a ruptura dissolução da situação de união de facto entre autor e ré ocorreu em Outubro de 2008, o prazo prescricional foi interrompido e simultaneamente suspenso logo após essa ruptura – ou seja, aquando da separação de ambos, a ré acordou restituir ao autor o montante correspondente à metade das prestações totais pagas por este, respeitantes entre Junho de 2004 e 30.12.2008, quando procedesse à venda da moradia, ou seja, começou a correr com a ruptura, interrompeu-se aquando do referido acordo, cuja data se não conhece, mas que terá sido por volta de Outubro de 2008, e voltou a correr até que o autor pode exercer o seu direito, ou seja, após a realização da venda da moradia e consequente incumprimento do acordado pela ré/apelante, ocasião em que retomou o seu curso no decurso dos últimos três meses do prazo, cfr. art.º 321.º do C.Civil. Ou dito de outra forma, após a realização da venda da moradia e consequente incumprimento do acordado pela ré/apelante dispunha o autor de três meses de curso de prazo prescricional do seu direito para, diligentemente, o exercitar, e como se vê, não o fez.

Pois, “in casu” o prazo prescricional que, com o supra referido reconhecimento pela ré/apelante perante o autor não só do direito em apreço nestes autos, como da vontade por esta lhe transmitida de que após a venda da moradia lhe restituía o que entendia que o mesmo havia “investido” na sua aquisição, se interrompeu e/ou suspendeu – o que sucedeu por ocasião da ruptura da relação de facto ocorrida em Outubro de 2008. Tal prazo, todavia, recomeçou a correr a partir de 13.07.2017 – data da efectiva venda da moradia - nos restantes três meses do mesmo, ou dito de outro modo, quanto aos restantes três meses do mesmo. Pelo que, dúvidas não restam de que o referido prazo prescricional do direito do autor se completou a 13.10.2017. Logo, aquando da propositura da acção em 7.11.2018, e da citação da ré para os termos da acção, ocorrida em 21.12.2018, o direito que o autor pretendia fazer valer por via da presente acção encontrava-se prescrito, cfr. art.º 482.º do C.Civil.

Destarte, e neste particular, não se pode acompanhar o decidido em 1.ª instância”.

Porém, apesar de entender que se encontrava prescrito o direito do autor a ser ressarcido, o Tribunal da Relação também entendeu que se verificava abuso de direito por parte da ré, que lhe impedia a alegação da prescrição.

Diz o acórdão recorrido: “Não podemos olvidar que, além do mais, está provado nos autos que:

- Aquando da separação de ambos, (por volta de finais de 2008) a ré acordou restituir ao autor o montante correspondente à metade das prestações totais pagas por este, respeitantes entre Junho de 2004 e 30.12.2008, quando procedesse à venda da moradia.

- O autor tomou parte activa em várias diligências efectuadas para procurar vender a moradia. E, consequentemente:

- O autor, em princípios de 2009, passou novamente a pagar apenas metade da prestação do empréstimo à moradia em ... (€250,00) e pagou-o até Março de 2013 (inclusive).

- O autor continuou a fazer estes pagamentos de metade das prestações do empréstimo para a compra da moradia até Março de 2013, confiado no acordo verbal existente entre ele e a ré de que, se e quando vendesse a casa, seria dividido o preço entre ambos.

E, por isso:

- A partir de 27.01.2012, a ré começou a pagar, mensalmente, €300,00 ao autor para lhe restituir metade da quantia que aquele pagou entre Junho de 2004 e 30.12.2008, quando suportou a totalidade da prestação mensal de €600,00.

- Restituiu apenas €4.075,00 entre Janeiro de 2012 e Fevereiro de 2013. Finalmente:

- Por escritura de 13.07.2017, outorgada no Cartório Notarial ..., a ré, declarou vender a CC e mulher DD, pelo preço de € 127.500,00, que já recebeu, a moradia sita na Rua ..., freguesia ..., concelho ....

- e não cumpriu até hoje o supra referido acordo firmado com o autor, como ele esperava.

(…)

Assim, para a concretização do abuso e determinação dos limites da boa-fé, há “que atender de modo especial às condenações ético-jurídicas dominantes na colectividade. Para que haja abuso é necessária a existência de uma contradição entre o modo ou o fim com que o titular exerce o direito e o interesse ou interesses a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito”.

Verifica-se, por exemplo, uma situação de “venire contra factum proprium” quando uma pessoa, em termos que, especificamente, a não vinculem, manifeste a intenção de não ir praticar determinado acto e depois o pratique, ou quando uma pessoa, de modo a não ficar especificamente adstrita, declare avançar com certa actuação e depois se negue. O “venire contra factum proprium” é, assim, o assumir de comportamentos contraditórios que violam a regra da boa-fé e é dotado de carga ética, psicológica e sociológica negativa. Logo, o conflito de interesses e a subsequente necessidade de tutela jurídica apenas surgem quando alguém, estando de boa-fé, com base na situação de confiança criada pela contraparte, toma disposições ou organiza planos de vida de onde lhe resultarão danos se a sua legítima confiança vier a ser frustrada.

Ora, “in casu” é para nós manifesto que, em face da factologia provada nos autos, há que fazer apelo à tutela da confiança e à sua protecção através do princípio da boa-fé, ou seja, à figura do abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”. Ou seja, perante tal factologia, convictamente cremos que a ré/apelante ao arguir em sede de contestação a excepção da prescrição do direito do autor age em manifesto abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”.

Senão vejamos.

Está provado que aquando da separação de ambos, (por volta de finais de 2008) a ré/apelante acordou restituir ao autor o montante correspondente à metade das prestações totais pagas por este, respeitantes entre Junho de 2004 e 30.12.2008, quando procedesse à venda da moradia, daí que o autor, decerto confiando na “palavra” da ré/apelante até tomou parte activa em várias diligências efectuadas para procurar vender a moradia. Mais, o autor dentro do mesmo investimento que fez na “palavra” da ré/apelante, ou seja, confiado no acordo verbal existente entre ele e a ré de que, se e quando vendesse a casa, seria dividido o preço entre ambos, mesmo após a ruptura da união de facto, ou seja, em princípios de 2009, passou novamente a pagar apenas metade da prestação do empréstimo à moradia em ... (€250,00) e pagou-o até Março de 2013 (inclusive).

E ainda há que atentar ao facto de, como reafirmação da sua “palavra dada”, a ré/apelante, a partir de 27.01.2012, começou a pagar, mensalmente, ao autor a quantia de €300,00, para lhe restituir metade da quantia que aquele pagou entre Junho de 2004 e 30.12.2008, quando suportou a totalidade da prestação mensal de €600,00, o que totalizou a quantia de €4.075,00 (entre Janeiro de 2012 e Fevereiro de 2013) e foi neste contexto que, tendo a ré/apelante procedido à venda da sua moradia em 13.07.2017, pelo preço de € 127.500,00, que recebeu, não cumpriu até hoje o supra referido acordo firmado com o autor, como ele esperava e, tendo o mesmo intentado a presente acção contra ela, em 7.11.2018 para exercer os direitos a que se arroga e, tendo a mesma sido foi citada para os seus termos em 21.12.2018, veio em sede de contestação arguir, além do mais, a prescrição do direito do autor.

É evidente que “in casu” se verificam todos os pressupostos de instituto do abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”, ou seja, i) uma situação de confiança, traduzida numa boa-fé subjectiva; ii) uma justificação para essa confiança, consistente no facto de a confiança ser fundada em elementos razoáveis; iii) um investimento de confiança, consistente no facto de a destruição da situação de confiança gerar prejuízos graves para o confiante, em virtude de ele ter desenvolvido actividades jurídicas em virtude dessa situação; e iv) a imputação da situação de confiança criada a outrem, levando a que este possa ser considerado responsável pela situação.

Desde logo, da actuação da ré/apelante resultam provados dois comportamentos lícitos em si e diferidos no tempo, mas contraditórios entre si. Ou seja, a ré/apelante ao acordar com o autor, aquando da separação de ambos, em restituir-lhe o montante correspondente à metade das prestações totais pagas por este, respeitantes entre Junho de 2004 e 30.12.2008, quando procedesse à venda da moradia e posteriormente, na sequência desse acordo, a ré/apelante ter, a partir de 27.01.2012, começado a pagar, mensalmente, ao autor a quantia de €300,00 para lhe restituir metade da quantia que aquele pagou entre Junho de 2004 e 30.12.2008, quando suportou a totalidade da prestação mensal de €600,00, manifestamente criou e manteve no autor uma situação de confiança justificada, traduzida numa boa-fé subjectiva, fundada em elementos razoáveis e credíveis, tendo o autor investindo nessa confiança, tendo até e, por isso, tomado parte activa em várias diligências efectuadas para procurar vender a moradia, crente em que consumado tal negócio, a ré/apelante cumpriria e honraria a sua “palavra”, daí não ter sequer congeminado intentar uma qualquer acção judicial contra a ré/apelante para fazer valer os seus direitos. Mas o certo é que a ré/apelante ao vender a moradia e ao não cumprir o que havia acordado com o autor, ou seja, ao destruir aquela situação de confiança gerou prejuízos graves para o confiante/autor, dando azo a que o mesmo se visse na situação de ter de intentar contra ela a presente acção e nas circunstâncias em que tal ocorreu.

É assim manifesto que “in casu” existe um caso de inalegabilidade da excepção da prescrição do direito do autor, que impede a ré/apelante de obter a declaração da prescrição desse direito. Ou seja, a invocação da prescrição nas circunstâncias provadas nos autos, por parte da ré/apelante excede, manifestamente, os limites impostos pela boa-fé, configurando o abuso de direito, sendo pois, ilegítimo o seu exercício nos termos do art.º 334.º do C.Civil. Finalmente, dir-se-á ainda que esta excepção, ou seja, a questão do abuso do direito, é de conhecimento oficioso, e não está sujeita ao princípio da preclusão consagrado, quanto aos meios de defesa, por isso, ainda que se possa entender que o autor a não invocou ao responder à contestação da ré/apelante, sendo uma questão que não depende de expressa invocação das partes, e fundada em matéria de interesse e ordem públicas, é de conhecimento oficioso, cfr. Acs. do STJ de 11.12.2012 e 12.07.2018, ambos in www.dgsi.pt, desde que dos autos resultem os factos necessários para o efeito. Logo, resta-nos confirmar a decisão recorrida, apesar de, com fundamentação em parte diversa”.

O autor/recorrido alega que não se verifica a prescrição do seu direito, nessa parte não concordando com o acórdão da Relação.

Porque, nessa parte, o acórdão lhe era desfavorável, pretendendo o autor fazer valer o seu entendimento tinha de o fazer por via do recurso, ou independente, ou subordinado – art. 633º, nº 1, do CPC.

Recorrendo a ré e alegando a não verificação do abuso de direito que foi impedimento de a prescrição do direito do autor produzir efeitos, a este restava interpor recurso subordinado, no sentido de pugnar pela não verificação da prescrição do seu direito.

Não o fazendo, transitou a decisão que determinou se verificava a prescrição do direito do autor.

Também o facto de a 1ª Instância se não ter pronunciado sobre o abuso de direito, não era causa impeditiva do pronunciamento pelo Tribunal da Relação, pois que, o abuso do direito é de conhecimento oficioso e deve ser objeto de apreciação e decisão, ainda que não invocado. É entendimento pacífico da doutrina e jurisprudência e, resulta da parte final do nº 2, do art. 608º, do CPC.

E pode ser apreciada a questão, ex novo, em qualquer instância. Neste sentido, o Ac. do STJ de 04-04-2002, no Proc. nº 02B749, que decidiu, “A excepção de abuso do direito é do conhecimento oficioso e pode ser levantada ex-novo perante o S.T.J. em sede de recurso da revista”.

Assim, a questão relevante a analisar respeita à verificação ou não da exceção do abuso de direito por parte da ré/recorrente.

Entre outros factos encontra-se provado:

1. Por escritura de 13.07.2017, outorgada no Cartório Notarial ..., BB, divorciada, declarou vender a CC e mulher DD, pelo preço de €127.500,00, que já recebeu, o seguinte prédio urbano de sua propriedade:

- Prédio urbano, composto de rés-do-chão, 1.º andar, sótão, anexos, logradouro e jardim, destinado a habitação, sito na Rua ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz sob o artigo ...66, descrito na Conservatória do Registo Predial ..., inscrito a favor da vendedora pela Ap. ...20 – fls. 489/493 (A).

2. Este imóvel fora adquirido, para habitação própria permanente, por BB, por escritura de compra e venda e mútuo com hipoteca de 28.07.1995, lavrada no Cartório Notarial ..., à Sociedade “C..., Ld.ª, pelo preço de 14.600.000$00, já pagos – fls. 240/244 (B).

3. Para o efeito, o Banco 2..., S.A., emprestou, mediante hipoteca, à compradora, ora ré, 16.500.000$00, sendo 14.600.000$00 para habitação e 1.900.000$00 para obras de beneficiação – fls. 242 (C).

4. O empréstimo foi concedido pelo Banco à compradora, ora ré, sob a forma de abertura de crédito nos termos das cláusulas de fls. 245/252 que não adianta transcrever (D).

11. Autor e ré viveram em união de facto, pelo menos entre 1996 e 2008 (K).

12. A ré liquidou, junto do Banco 1..., em Março de 2014, o remanescente do empréstimo da moradia no montante de € 23.270,00 (L).

13. Após a venda da moradia, a ré não mais contactou o autor. (M).

15. No início de 1996 passaram a residir na moradia sita na Rua ..., ....

22. O autor pagou:

a) desde o início e até Maio de 2004, metade da prestação mensal do empréstimo referido em 3 e 4 dos Factos Provados; e

b) a partir de Junho de 2004 até 31.12.2008, pagou a totalidade da prestação mensal no montante de €600,00, a pedido da ré, por esta estar a ter dificuldades em suportar este crédito e o crédito da habitação do imóvel sito na Rua ....

23. O autor, em princípios de 2009, passou novamente a pagar apenas metade da prestação do empréstimo à moradia em ... (€250,00) e pagou-o até Março de 2013 (inclusive).

24. O autor continuou a fazer estes pagamentos de metade das prestações do empréstimo para a compra da moradia até Março de 2013, confiado no acordo verbal existente entre ele e a ré de que, se e quando vendesse a casa, seria dividido o preço entre ambos.

25. Aquando da separação de ambos, a ré acordou restituir ao autor o montante correspondente à metade das prestações totais pagas por este, respeitantes entre Junho de 2004 e 30.12.2008, quando procedesse à venda da moradia.

26. O autor tomou parte activa em várias diligências efectuadas para procurar vender a moradia.

27. A partir de 27.01.2012, a ré começou a pagar, mensalmente, €300,00 ao autor para lhe restituir metade da quantia que aquele pagou entre Junho de 2004 e 30.12.2008, quando suportou a totalidade da prestação mensal de €600,00.

28. Restituiu apenas €4.075,00 entre Janeiro de 2012 e Fevereiro de 2013.

Como refere Menezes Cordeiro in https://portal.oa.pt, Revista Ano 2005, vol. II, Set. 2005, “I. “Abuso do direito” é, como temos repetido, uma mera designação tradicional, para o que se poderia dizer “exercício disfuncional de posições jurídicas”. Por isso, ele pode reportar-se ao exercício de quaisquer situações e não, apenas, ao de direitos subjetivos. De facto e em boa hora, cada vez menos surgem afirmações de inaplicabilidade do regime do abuso do direito … por não haver um direito subjetivo. Esta figura foi, todavia, paradigmática na elaboração do instituto: donde o discurso sempre usado.

II. A aplicação do abuso do direito depende de terem sido alegados e provados os competentes pressupostos — salva a hipótese de se tratar de posições indisponíveis. Além disso, as consequências que se retirem do abuso devem estar compreendidas no pedido feito ao Tribunal, em virtude do princípio dispositivo.

Verificados tais pressupostos, o abuso do direito é constatado pelo juiz, mesmo quando o interessado não o tenha expressamente mencionado: é, nesse sentido, de conhecimento oficioso. O Tribunal pode, por si e em qualquer momento, ponderar os valores fundamentais do sistema, que tudo comporta e justifica. Além disso, não fica vinculado às alegações jurídicas das partes.

III. O abuso do direito, nas suas múltiplas manifestações, é um instituto puramente objetivo. Quer isto dizer que ele não depende de culpa do agente nem, sequer, de qualquer específico elemento subjetivo. Evidentemente: a presença ou a ausência de tais elementos poderão, depois, contribuir para a definição das consequências do abuso”.

E acrescenta que, “o abuso do direito e a boa fé a ele subjacente representam, assim, uma válvula do sistema: permitem corrigir soluções que, de outro modo, se apresentam contrárias a vetores elementares”.

Para a não verificação de confusão entendemos não dever utilizar a expressão “inalegabilidade” porque esta respeita a uma das formas abusivas de exercício de direitos, definindo-a Menezes cordeiro como “a situação da pessoa que, por exigências do sistema, não se possa prevalecer da nulidade de um negócio jurídico causada por vício de forma”.

Embora a inalegabilidade possa consistir numa concretização do venire contra factum proprium, tem por base uma nulidade formal ou um negócio nulo.

Mas quer numa quer noutra das modalidades do abuso de direito há uma grosseira violação da confiança com a qual o sistema jurídico não pode pactuar.

No caso, os factos provados configuram o “venire contra factum proprium”, já que a ré teve uma conduta (por ação ou omissão) contrária ao que o factum proprium deixaria esperar.

- O facto de a ré acordar restituir ao autor o montante correspondente à metade das prestações totais pagas por este antes da separação;

- O facto de o autor durante um período ter pago a prestação na totalidade em período de dificuldade da ré, tendo eta amortizado parte;

- O facto de o autor pagar metade da prestação entre 2009 e 2013;

- O facto de estes pagamentos resultarem de acordo verbal existente entre autor e ré de que, quando a casa fosse vendida, seria dividido o preço entre ambos;

- O facto de o autor também ter diligenciado para ser encontrado comprador da moradia;

-São factos que contraiam o que se lhes seguiu de, por escritura de 13.07.2017, a ré ter vendido a moradia sem comunicar ao autor.

- Assim não dando cumprimento ao acordo firmado com o autor, como este esperava.

Traindo a confiança que o autor depositava face ao acordado entre ambos, configurando a atuação da ré um comportamento contraditório.

Como bem diz o acórdão recorrido, “Verifica-se, por exemplo, uma situação de “venire contra factum proprium” quando uma pessoa, em termos que, especificamente, a não vinculem, manifeste a intenção de não ir praticar determinado acto e depois o pratique, ou quando uma pessoa, de modo a não ficar especificamente adstrita, declare avançar com certa actuação e depois se negue. O “venire contra factum proprium” é, assim, o assumir de comportamentos contraditórios que violam a regra da boa-fé e é dotado de carga ética, psicológica e sociológica negativa. Logo, o conflito de interesses e a subsequente necessidade de tutela jurídica apenas surgem quando alguém, estando de boa-fé, com base na situação de confiança criada pela contraparte, toma disposições ou organiza planos de vida de onde lhe resultarão danos se a sua legítima confiança vier a ser frustrada”.

Conforme Ac. do STJ de 12-11-2013, no Proc. nº 1464/11.2TBGRD-A.C1.S1, “O princípio da confiança é um princípio ético fundamental de que a ordem jurídica em momento algum se alheia; está presente, desde logo, na norma do art. 334.º do CC, que, ao falar nos limites impostos pela boa fé ao exercício dos direitos, pretende por essa via assegurar a protecção da confiança legítima que o comportamento contraditório do titular do direito possa ter gerado na contraparte”.

O comportamento contraditório fundamento do abuso de direito, na modalidade  - venire contra factum proprium – tem como pressupostos:

- A existência dum comportamento anterior do agente suscetível de basear uma situação objetiva de confiança;

- A imputabilidade das duas condutas (anterior e atual) ao agente;

- A boa fé do lesado (confiante);

- A existência de relação de confiança, resultante duma atividade com base no factum proprium;

- Que da contradição resulte dano para o confiante.

A proibição do "venire contra factum proprium" reconduz-se à doutrina da confiança, pressupondo, como elemento subjetivo, que o confiante adira realmente ao facto gerador de confiança.

Dos factos provados resulta que era legítimo ao “homem médio”, ao “bonus pater familiae”, ou seja, a uma pessoa de normal entendimento, colocado na posição do autor, que pudesse formar a convicção e confiança de que a ré não iria deduzir defesa por exceção alegando a prescrição, se alegada a prescrição age em abuso de direito.

Perante a matéria de facto provada, nomeadamente a referida, temos que o comportamento da ré, em termos jurídicos, integra um venire contra factum proprium, proibido pelo artº 334º do Cód. Civil.

Como bem se pondera no acórdão recorrido, “Ora, “in casu” é para nós manifesto que, em face da factologia provada nos autos, há que fazer apelo à tutela da confiança e à sua protecção através do princípio da boa-fé, ou seja, à figura do abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”. Ou seja, perante tal factologia, convictamente cremos que a ré/apelante ao arguir em sede de contestação a excepção da prescrição do direito do autor age em manifesto abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”.

(…)

É evidente que “in casu” se verificam todos os pressupostos de instituto do abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”, ou seja, i) uma situação de confiança, traduzida numa boa-fé subjectiva; ii) uma justificação para essa confiança, consistente no facto de a confiança ser fundada em elementos razoáveis; iii) um investimento de confiança, consistente no facto de a destruição da situação de confiança gerar prejuízos graves para o confiante, em virtude de ele ter desenvolvido actividades jurídicas em virtude dessa situação; e iv) a imputação da situação de confiança criada a outrem, levando a que este possa ser considerado responsável pela situação”.

Situação que não se verifica apenas ao período em que autor e ré viveram em união de facto, mas com aplicação a todas as prestações pagas pelo autor pois que, conforme provado no ponto 24, “O autor continuou a fazer estes pagamentos de metade das prestações do empréstimo para a compra da moradia até Março de 2013, confiado no acordo verbal existente entre ele e a ré de que, se e quando vendesse a casa, seria dividido o preço entre ambos” (sublinhado nosso).

Em resumo: o autor/recorrido podia fundadamente confiar que, face ao factum proprium (acordo entre autor e ré de que aquele receberia as prestações que pagou quando a moradia fosse vendida), a ré/recorrente não deduziria defesa por exceção invocando a prescrição do direito do autor;

Pelo que se tem como inadmissível e, sem dúvida, contrário à boa-fé a conduta pela ré assumida, na exata medida em que trai a confiança gerada no autor pelo seu comportamento anterior.

Assim que é de manter o acórdão recorrido.


*


Sumário elaborado nos termos do art. 663 nº 7 do CPC:

I - O princípio da boa-fé exprime a relevância que a ordem jurídica confere às considerações éticas e diretrizes morais presentes numa sociedade, sendo transversal a todas as áreas do Direito.

II - A proibição do "venire contra factum proprium" reconduz-se à doutrina da confiança, pressupondo, como elemento subjetivo, que o confiante adira realmente ao facto gerador de confiança.

III - Resultando dos factos provados que era legítimo ao “homem médio”, ao “bonus pater familiae”, ou seja, a uma pessoa de normal entendimento, colocado na posição do autor, que pudesse formar a convicção e confiança de que a ré não iria deduzir defesa por exceção alegando a prescrição, se alegada a prescrição age a ré em abuso de direito.

Decisão:

Face ao exposto, acordam no Supremo Tribunal de Justiça e 1ª Secção em julgar o recurso improcedente e nega-se a revista, mantendo-se o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.


Lisboa, 21-06-2022


Fernando Jorge Dias – Juiz Conselheiro relator

Jorge Arcanjo - Juiz Conselheiro 1º adjunto

Isaías Pádua - Juiz Conselheiro 2º adjunto