Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 5.ª SECÇÃO | ||
Relator: | CARLOS ALMEIDA | ||
Descritores: | RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA CONTRA-ORDENAÇÃO COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL ADMISSIBILIDADE DE RECURSO OPOSIÇÃO DE JULGADOS MATÉRIA DE DIREITO REJEIÇÃO DE RECURSO | ||
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Data do Acordão: | 03/08/2018 | ||
Texto Integral: | N | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
Área Temática: | DIREITO PROCESSUAL PENAL – RECURSOS / RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS / FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA / FUNDAMENTAÇÃO DO RECURSO. | ||
Doutrina: | - Paulo Pinto Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4.ª Edição actualizada, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2011, p. 1193 ; Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2011, p. 304. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGO 437.º, N.ºS 1 E 2. REGIME GERAL DAS CONTRA-ORDENAÇÕES (RGCO): - ARTIGOS 73.º, N.º 2 E 75.º, N.º 1. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: - DE 21-09-2006, PROCESSO N.º 3200-06; - DE 21-12-2006, PROCESSO N.º 06P3201, IN WWW.DGSI.PT; - DE 10-01-2007, PROCESSO N.º 06P4042; - DE 31-10-2012, PROCESSO N.º 224/06.7TACBC.G2-A.S1; - DE 26-06-2014, PROCESSO N.º 1714/11.5GACSC.L1.S2; - DE 28-05-2015, PROCESSO N.º 44/14.5TBORQ.E1-A.S1, IN WWW.DGSI.PT. -*- ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA: - DE 26-10-2010, PROCESSO N.º 402/10.4TAPDL.L1. -*- ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO: - DE 23-05-2012, PROCESSO N.º 3497/07.4EAPRT.P1; - DE 27-06-2012, PROCESSO N.º 7402/11.5TBMAI.P1; - DE 21-03-2013, PROCESSO N.º 6334/11.1TBMAI.P1, TODOS IN WWW.DGSI.PT. -*- ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA: - DE 18-06-2013, PROCESSO N.º 715/12.0TBLSA.E1, IN WWW.DGSI.PT. -*- ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA: - DE 18-03-2015, PROCESSO N.º 304/14.5TBCVL.C1, IN WWW.DGSI.PT. | ||
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Sumário : | I - Alguma jurisprudência sustenta que o recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, previsto no art. 437.º e segs. do CPP, não tem aplicação no domínio do direito de mera ordenação social. Não se sufraga tal entendimento porque a irrecorribilidade das decisões proferidas em recurso pelos Tribunais da Relação (art. 75.º, n.º1, do RGCC) não exclui, em absoluto, a susceptibilidade de interposição de recurso dessas decisões, sendo pacificamente aceite que delas pode ser interposto para p TC. II - O art. 73.º, n.º 2, do RGCC tem uma função completamente diferente da que justifica a existência do recurso de fixação de jurisprudência. O recurso admitido nos termos do art. 73.º, n.º 2 do RGCC que traduz uma intervenção prévia que pretende evitar a falta de uniformidade da jurisprudência da 1.ª instância em determinados domínios, não desempenha a função própria do recurso de fixação jurisprudência, caracterizado por uma intervenção sucessiva do pleno das secções criminais do STJ que surge, grosso modo, quando se comprova não existir uniformidade da jurisprudência dos tribunais superiores. III - Não é o facto do RGCC atribuir aos Tribunais da Relação a competência para a apreciação dos recursos de revisão das decisões judiciais proferidas neste âmbito, em que a quebra do caso julgado assume menor relevância, que pode justificar a não aplicação do recurso para fixação de jurisprudência no campo do direito de mera ordenação social. Se é assim no domínio do RGCC, mais se justifica no âmbito da Lei da Concorrência. IV - A questão em confronto consistia em saber se a decisão condenatória de uma pessoa colectiva ou equiparada, proferida no termo da fase inicial de um processo de contra-ordenação por uma autoridade administrativa, tinha de conter, sob pena de nulidade, a narração dos factos que justificavam a responsabilização da arguida pelo comportamento descrito. V - O acórdão recorrido não se pronunciou sobre a nulidade da decisão administrativa mas sobre a nulidade da sentença da 1.ª instância, por sua vez, o acórdão fundamento pronunciou-se sobre a nulidade da decisão administrativa condenatória. Assim o acórdão recorrido e o acórdão fundamento não se pronunciaram sobre a mesma questão de direito, razão para rejeição do recurso. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça I – RELATÓRIO 1. As arguidas “AA, S. A.”, “BB, S. A.” e “CC, S. A.” foram condenadas, por decisão da Autoridade da Concorrência de 29 de Janeiro de 2015, pela prática de uma contra-ordenação dolosa p. e p. pelos artigos 9.º, n.º 1, alínea c), 67.º, 68.º, n.º 1, alínea a), e 69.º, n.º 2, da Lei n.º 19/2012, de 8 de Maio, e pelo artigo 101.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia em coimas cujo valor global ascendia a 9.290.000 euros. Tendo impugnado essa decisão, o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, por sentença de 4 de Janeiro de 2016, veio a condená-las pela prática daquela contra-ordenação, mas cometida por negligência, e a reduzir o montante das coimas aplicadas às recorrentes, fixando-as nos seguintes valores: ─ Quanto à arguida “AA, S. A.”, 3.900.000 euros; ─ Quanto à arguida “BB, S. A.”, 150.000 euros; ─ Quanto à arguida “CC, S. A.”, 40.000 euros. As arguidas interpuseram recurso dessa sentença para o Tribunal da Relação de Lisboa, o qual, por acórdão de 10 de Janeiro de 2017, negou provimento a esse recurso. Depois de terem recorrido para o Tribunal Constitucional e de o recurso ter sido rejeitado, decisão mantida em conferência após reclamação, as arguidas, no dia 9 de Novembro de 2017, invocando o disposto no artigo 437.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, interpuseram o presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência dizendo o seguinte: I. BREVE ENQUADRAMENTO. Por decisão administrativa de 29 de Janeiro de 2015, a Autoridade da Concorrência (doravante, "AdC") decidiu, nos termos conjugados dos artigos 67.º, 68.º, n.º 1, alínea a) e 69.º, n.º 2 da Lei n.º 19/2012 de 8 de Maio, que aprova o Novo Regime Jurídico da Concorrência (doravante, "LdC" ou "NRJC"), condenar as Visadas (doravante, "Recorrentes") ao pagamento de uma coima global de cerca de 9 milhões de euros, porquanto considerou que as mesmas infringiram o disposto no artigo 9.º, n.º 1, alínea c) do NRJC e no artigo 101.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia. Mais tarde, por efeito de impugnação judicial apresentada pelas Recorrentes, o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão veio, em decisão proferida a 4 de Janeiro de 2016, a reduzir as coimas aplicadas para um valor global de cerca de 4 milhões de euros. Note-se desde já que, logo em sede de impugnação judicial, as Recorrentes pugnaram pela nulidade da decisão da AdC, por falta de fundamentação e omissão de pronúncia, porquanto "[q]ualquer interpretação do artigo 58.º do RGCO no sentido de que poderá ser aplicada uma coima a pessoas coletivas sem que, na decisão proferida pela autoridade administrativa, se explicite e concretize a identificação das concretas pessoas singulares cuja atuação e poderes lhes torna imputáveis os factos, em revelia do artigo 73.º, n.º 2 da Lei n.º 19/2012, é inconstitucional, por violar o princípio da legalidade previsto no artigo 29.º, n.º 1 da CRP, para além do disposto nos artigos 18.º, n.º 1 e 32.º, n.º 10 da CRP". Não obstante, o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão optou por não acolher tal argumentação, concluindo do seguinte modo: "[n]o que respeita à questão de constitucionalidade invocada, considera-se que a interpretação do artigo 58.º do RGCO, no sentido de que poderá ser aplicada uma coima a pessoas colectivas sem que, na decisão proferida pela autoridade administrativa, se explicite e concretize a identificação das concretas pessoas singulares cuja atuação e poderes lhes torna imputáveis os factos, não viola o disposto nos artigos 29.º/1, 18.º/1 e 32.º/1 todos da CRP, quando, como é o caso, a própria configuração da infracção e/ou o seu contexto não suscitam dúvidas no sentido de que a imputação dos factos assenta num dos critérios de conexão previstos no citado normativo legal" (sublinhado nosso). Não se conformando com tal desfecho, as Recorrentes interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, o qual veio, contudo, a confirmar a sentença do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, negando provimento ao recurso apresentado pelas Recorrentes. Na decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, na parte que diz respeito à quarta questão colocada pelas Recorrentes, rectius, à questão da nulidade da decisão recorrida por violação do disposto no artigo 58.º do RGCO, pode ler-se que "[i]nexiste, pois, qualquer nulidade da sentença recorrida seja por falta de fundamentação seja por omissão de pronúncia"[1]. De facto, concluíram os Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa que "(...) a perspectiva atrás enunciada acerca do estabelecimento do factor de conexão para afirmar a responsabilização da pessoa colectiva e para fundamentar a condenação das visadas recorrentes obedecem a todos os apontados requisitos, como impõem o artigo 1.º, n.º 1 do RGCO[2], com as adaptações necessárias da realidade do ilícito criminal para a realidade jurídica contraordenacional, nenhuma violação do invocado princípio da legalidade se mostra evidenciada". Por fim, tendo sido previamente suscitada questão de inconstitucionalidade, as Recorrentes interpuseram, do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa a 10 de Janeiro de 2017, recurso para o Tribunal Constitucional. Neste âmbito, tendo sido proferida a decisão sumária n.º 258/2017, nos termos da qual foi decidido não conhecer do recurso, apresentaram as Recorrentes reclamação para a Conferência, a qual foi indeferida, confirmando-se a decisão de não conhecimento do recurso. Ora, considerando que o acórdão do Tribunal Constitucional foi notificado às Recorrentes a 9 de Outubro de 2017, nos termos do artigo 80.º, n.º 4 da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro, na sua redacção actual), deve tomar-se por assente que o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, objecto do presente recurso extraordinário, veio a transitar em julgado. II. DA QUESTÃO DE DIREITO CONTROVERTIDA. Atento o que já se foi adiantando, deverá começar por se salientar que, segundo decorre expressamente do disposto no artigo 7.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 433/82 de 27 de Outubro, que institui o ilícito de mera ordenação social e respectivo processo (doravante, "RGCO"), "as pessoas colectivas ou equiparadas serão responsáveis pelas contra-ordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções" (sublinhado nosso). Por outro lado, dispõe o artigo 73.º, n.º 2 do NRJC: "As pessoas coletivas e as entidades equiparadas referidas no número anterior respondem pelas contraordenações previstas na presente lei, quando cometidas: a) Em seu nome e no interesse coletivo por pessoas que nelas ocupem uma posição de liderança; ou b) Por quem atue sob a autoridade das pessoas referidas na alínea anterior em virtude de uma violação dos deveres de vigilância ou controlo que lhes incumbem". Ora, muito embora a redacção dos normativos supra referidos não seja igual, é ponto assente na nossa Ordem jurídica que a imputação de responsabilidade contra-ordenacional às pessoas colectivas assenta sempre na prévia imputação de acto ou omissão a uma pessoa singular (titulares de órgãos sociais, pessoas investidas em posição de liderança ou outras que actuem sob a autoridade destas, em virtude de violação dos deveres de vigilância ou controlo que àquelas incumbam). Por conseguinte, a responsabilidade contra-ordenacional das pessoas colectivas só poderá ser legalmente desencadeada quando se apure a existência de actos ou omissões, tipificados como contra-ordenação, levados a cabo por pessoa ou pessoas singulares incluídas naquele círculo restrito, sob pena de, se assim não fosse, se estar em presença de responsabilidade contra-ordenacional objectiva. Ora, no que à decisão condenatória diz respeito, é de atentar no disposto no artigo 58.º do RGCO, onde se pode ler que: "1. A decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter: a. A identificação dos arguidos; b. A descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas; c. A indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão; d. A coima e as sanções acessórias. 2. (…) 3. (...)„ Da norma supra transcrita resulta claro que a decisão condenatória, sob pena de nulidade, deverá incluir na descrição dos factos imputados menção expressa à identidade, qualidade e poderes dos concretos agentes singulares que permita a imputação de responsabilidade à pessoa colectiva. Ora, na matéria de facto dada como provada nos presentes autos, manifestamente não se vislumbra de que modo podem os ilícitos em apreço ter sido praticados pelos órgãos das Recorrentes, no exercício das suas funções, o que impede que se estabeleça, no caso em concreto, um nexo de imputação subjectiva apto a permitir a condenação das mesmas ao pagamento de uma coima. Note-se, aliás, que a decisão da AdC, subsequentemente confirmada pelas posteriores decisões judiciais, nem sequer é clara quanto a qual das alíneas do artigo 73.º, n.º 2 da LdC fundamenta, no caso concreto, a imputação da responsabilidade contra-ordenacional às Recorrentes, não fazendo sequer qualquer referência à actuação "em seu nome" e "no seu interesse". Assim, quer a decisão da AdC quer as subsequentes decisões judiciais que, nessa parte, a confirmaram, limitaram-se a proceder à imputação directa da responsabilidade à pessoa colectiva sem identificar uma única pessoa singular que fosse susceptível de constituir o ponto de partida dessa imputação às pessoas colectivas. O entendimento que vem de se defender é sustentado pelos Ilustres Professores Doutores Figueiredo Dias e Nuno Brandão, em parecer que se encontra junto aos autos. Em tal parecer pode ler-se que "(...) a decisão condenatória proferida pela Autoridade da Concorrência é omissa quanto à intervenção de qualquer pessoa singular que sirva de fundamento à imputação dos respectivos comportamentos às sociedades visadas". Mais adiante, acrescentam os Ilustres Professores que "(...) no art. 73.º do NRJC, encontra-se expressamente prevista e definida a questão da atribuição de responsabilidade contra-ordenacional fundada nesses ilícitos às pessoas singulares, às pessoas colectivas, às associações e às associações sem personalidade jurídica. A formulação que nele divisamos não deixa margem para quaisquer dúvidas sobre o seu alcance normativo: trata-se de um regime que vale para a prática das «contraordenações previstas na presente lei» da concorrência (art. 73.º-1); e estando em causa a responsabilização de empresas que assumam a forma de pessoas colectivas por essas mesmas «contraordenações previstas na presente lei» (art. 73.º-2), está ela dependente da verificação de uma das duas condições alternativamente previstas nas alíneas a) e b) do n.º 2 desse art. 73.º (...)„ Assim, "[o] denominador comum destes dois modos de imputação constantes do n.º 2 do artigo 73.º do NRJC é a realização, em nome do ente e no interesse colectivo, de um facto consubstanciador de uma prática restritiva da concorrência tipificada no artigo 68.º do diploma por pessoa com determinado estatuto dentro da empresa, designadamente, por alguém que ocupe uma posição de liderança ou, em alternativa, por alguém que actue sob a autoridade de quem detenha essa posição". Mais, "[a]tenta essa função constitutiva do ilícito-típico da pessoa colectiva assumida pela conduta da pessoa singular, a responsabilização daquela mostra-se estritamente vinculada, desde logo e além do mais, à verificação de que houve uma conduta anticoncorrencial levada a cabo por determinado agente individual e que essa pessoa é alguém que integra o catálogo subjectivo constante das alíneas a) e b) do n.º 2 do art. 73.º do NRJC. Não que seja necessário lograr a responsabilização desse sujeito individual para viabilizar a imputação do facto ao ente (cf. artigo 73.º do NRJC) ou sequer identificá-lo concretamente pelo seu nome. Será suficiente, mas também indispensável, comprovar que se trata de um sujeito que, aquando da prática do facto, assumia uma dada posição na estrutura da empresa, seja detendo um estatuto de liderança (cf. art. 73.º-3 do NRJC), seja ocupando um posto subalterno, sob a dependência de quem se encontrasse provido num lugar de liderança. Sem uma tal demonstração não será possível imputar o facto ao ente colectivo, pela razão singela, mas decisiva e definitiva, de que não estará reunido um elemento que constitui conditio sine qua non para o perfeccionamento do ilícito-típico do ente" (sublinhado nosso). Concluem, assim, os Ilustres Professores que "[é] patente a imprescindibilidade da concretização do estatuto dentro da empresa das pessoas individuais que actuando em nome e no interesse do ente colectivo atentaram contra a concorrência através de uma conduta tipificada como ilícito contraordenacional anticoncorrencial. Não sendo embora exigível a sua identificação pelo nome, é indispensável a verificação do seu estatuto funcional. E sê-lo-á pelo relevo detido por esse estatuto para vários planos da questão da imputação do facto à pessoa colectiva, todos eles sistematicamente referidos ao ilícito-típico da infracção". E, continuando na senda dos Ilustres Pareceristas, em particular quanto à questão de direito que aqui nos ocupa, qual seja a da violação do disposto no artigo 58.º, n.º 1, alínea b) do RGCO, "[a]o não incluir na matéria de facto provada qualquer concreto ato de algum agente individual pertencente aos quadros das sociedades visadas, a decisão condenatória omitiu um circunstancialismo fáctico essencial ao preenchimento da infracção que lhes imputa". III. DA OPOSIÇÃO DE JULGADOS ENTRE O ACÓRDÃO RECORRIDO E O ACÓRDÃO FUNDAMENTO. Muito embora o acórdão recorrido tenha adoptado a posição supra referida, a verdade é que a jurisprudência das Relações, e inclusive do próprio Supremo Tribunal de Justiça, já se pronunciou, por diversas vezes, em sentido oposto[3]. Contudo, considerando que as Recorrentes devem apenas apresentar um único acórdão fundamento em contradição com o acórdão recorrido, elege-se para o efeito o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Dezembro de 2006[4]. No acórdão fundamento pode então ler-se, logo no sumário, que "I - A indicação dos factos imputados com menção das provas obtidas é uma exigência do artigo 58.º, n.º 1, do RGCO, em tributo aos mais elementares princípios que devem reger um direito de carácter sancionatório e que têm a ver sobretudo com garantias mínimas relacionadas desde logo com o direito de defesa, por muito sumário e expedito que se apresente o processo contra-ordenacional, pois a própria Constituição estende a este tipo de processos essas garantias (artigo 32.º, n.º 10). II - Entre essas garantias mínimas de defesa, avulta, a de "serem conhecidos os factos que são imputados ao arguido, pois sem que os mesmos estejam estabelecidos não é possível avaliar a justiça da condenação, fica inviabilizado o direito ao recurso e não há salvaguarda do ne bis in idem" - cf. Ac. deste STJ de 21-09-2006, Proc. n.º 3200/06 – 5.ª. III - Nesse aspecto, a decisão condenatória em matéria contra-ordenacional, apresentando alguma homologia com a sentença condenatória em processo penal, tem uma estrutura semelhante a esta última, se bem que mais concisa, por menos exigente devido à sua menor incidência na liberdade das pessoas, devendo conter a identificação dos arguidos, a descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas, a indicação das normas aplicáveis e a fundamentação da decisão. IV - Na fase de recurso, valendo a apresentação dos autos ao juiz pelo MP como acusação (artigo 62.º, n.º 1, do RGCO), torna-se necessário, no que toca aos elementos imprescindíveis a que nos vimos reportando, o recurso ao art. 283.º, n.º 3, al. b), do CPP, aplicável subsidiariamente ao processo das contra-ordenações (art. 41.º, n.º 1, do mesmo diploma legal). E segundo este dispositivo, a acusação contém, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada. V - A sanção para o incumprimento da al. b) do n.º 1 do referido art. 58.º do RGCO é a nulidade da decisão impugnada, nos termos dos arts. 283.º, n.º 3, 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, al. a), do CPP, aplicável subsidiariamente. VI - Tal nulidade é sanável e pode ser suprida pela autoridade que inicialmente tramita o processo – no caso a CNE –, inclusive com recurso a diligências probatórias indispensáveis para apuramento dos elementos em falta" (sublinhado nosso). Na fundamentação de direito pode ler-se o seguinte: "(...) nos termos do regime estabelecido pelo RGCO (DL 433/82, de 27/10, alterado pelo DL 244/95, de 14/9), as coimas podem aplicar-se tanto às pessoas singulares, como às pessoas colectivas, estas sendo responsáveis pelas contra-ordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções (artigo 7.º). Ora, em primeiro lugar, não se vê no número dos factos provados que factos é que um qualquer órgão do PS, no exercício das respectivas funções, nomeadamente um órgão local, agindo por intermédio de determinadas pessoas físicas integradoras desse órgão, tenha praticado e que pudessem ser imputadas à pessoa colectiva que é o referido partido. Designadamente, não se sabe quem é que contratou o quê com a empresa proprietária do avião para utilização em serviço de propaganda política a favor da candidatura do Partido AA à Câmara Municipal de ..., com recurso à modalidade de reboque de manga. Assim, não se pode imputar ao Partido AA um acto que não se sabe por quem foi praticado. Não basta o referido partido ter sido supostamente beneficiado para estabelecer por aí o nexo de imputação do facto constitutivo de contra-ordenação à pessoa colectiva" (sublinhado nosso). Conclui-se então que, "[c]omo vimos, a decisão impugnada não contém esses elementos imprescindíveis, devidamente adaptados a este tipo de processo e que são tendentes a caracterizar uma acção ou omissão, um nexo psicológico de ligação do facto ao agente e uma imputação desse mesmo facto a título de dolo ou negligência, quando esta seja especialmente prevista. Sem esses pressupostos não pode ser aplicada a respectiva coima" (sublinhado nosso). Ao invés, no acórdão recorrido, proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, considerou-se que o facto de não constar da decisão condenatória qualquer referência à conexão entre o acto da pessoa singular e a responsabilidade da pessoa colectiva, não configura a violação do disposto no artigo 58.º, n.º 1, alínea b) do RGCO e que, por conseguinte, a decisão não padecia de nulidade. Consequentemente, é patente e manifesta a contradição entre acórdão recorrido e acórdão fundamento, ambos transitados em julgado, sendo certo que, em ambos os arestos, se discute a mesma questão de direito, em torno da interpretação e aplicação da norma constante do artigo 58.º, n.º 1, alínea b) do RGCO e suas consequências jurídicas. Ambos os acórdãos, recorrido e fundamento, são proferidos no domínio da mesma legislação, a qual se mantém inalterada entre a prolação de um e outro. Sem prejuízo de mais sábia opinião, tal oposição de julgados carece de decisão que, a bem da certeza e segurança jurídicas, uniformize e fixe jurisprudência quanto à questão de direito controvertida. Termos em que se mostram preenchidos os requisitos constantes dos artigos 437.º e 438.º e seguintes do CPP, os quais são conditio sine qua non do prosseguimento do presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência. Nestes termos e nos mais de Direito, requer-se a esse Venerando Tribunal que admita o presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, por tempestivo e por se mostrarem preenchidos todos os pressupostos legais, determinando-se os ulteriores termos do recurso de harmonia com o disposto no artigo 442.º do Código de Processo Penal. Depois de ter sido notificada para o efeito, a magistrada do Ministério Público junto do tribunal recorrido respondeu à motivação das recorrentes sustentando que o recurso devia ser rejeitado (fls. 165 a 168), o mesmo defendendo a Autoridade da Concorrência (fls. 175 a 184). Remetido a este Supremo Tribunal, o processo foi com vista ao Ministério Público, tendo o Sr. Procurador-Geral Adjunto defendido também a rejeição do recurso (fls. 195 a 200). Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, vieram as recorrentes defender a sua posição (fls. 222 a 231). II – FUNDAMENTAÇÃO Os requisitos do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência 2. O Código de Processo Penal admite, nos n.ºs 1 e 2 do seu artigo 437.º, a interposição de recurso para fixação de jurisprudência «[q]uando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas», sendo também admissível esse recurso «quando um tribunal da relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça». De acordo com o n.º 3 deste mesmo preceito legal, «[o]s acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida». O recurso, que deve ser interposto «no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar» (artigo 438.º, n.º 1), deve indicar, como fundamento, um acórdão anterior transitado em julgado (artigo 437.º, n.º 4), devendo o recorrente justificar a oposição que origina o conflito de jurisprudência (artigo 438.º, n.º 2). O Ministério Público, o arguido, o assistente e as partes civis têm legitimidade para a interposição deste recurso (artigo 437.º, n.º 5), exigindo-se ainda que estes três últimos tenham interesse em agir (artigos 448.º e 401.º, n.º 2), o que se traduz «na possibilidade de a decisão que resolver o conflito ter uma repercussão favorável ao recorrente no processo em que o recurso foi interposto, por força do disposto no artigo 445.º, n.º 1»[5]. «A estes requisitos legais, o Supremo Tribunal de Justiça, de forma pacífica, aditou a incontornável necessidade de identidade de factos, não se restringindo à oposição entre as soluções de direito» (Acórdãos do STJ de 10 de Janeiro de 2007, relativo ao processo 06P4042, e de 31 de Outubro de 2012, proferido no processo n.º 224/06.7TACBC.G2-A.S1) entendida esta, contudo, «não como uma identidade absoluta entre dois acontecimentos históricos mas que eles se equivalham para efeitos de subsunção jurídica a ponto de se poder dizer que, pese embora a solução jurídica encontrada num dos processos assente numa factualidade que não coincide exactamente com a do outro processo, esta solução jurídica continuaria a impor-se para o subscritor mesmo que a factualidade fosse a do outro processo» (Acórdão do STJ de 26 de Junho de 2014, proferido no processo n.º 1714/11.5GACSC.L1.S2). A questão da admissibilidade do recurso de fixação de jurisprudência no âmbito do direito de mera ordenação social 3. Alguma jurisprudência[6], secundando a posição de Paulo Pinto de Albuquerque[7], sustenta que o recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, previsto no artigo 437.º e ss. do Código de Processo Penal, não tem aplicação no domínio do direito de mera ordenação social. Uma tal posição fundamenta-se no facto de, no artigo 75.º, n.º 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações (RGCO), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Setembro, se estabelecer que não cabe recurso das decisões do tribunal de 2.ª instância, o que abrangeria tanto os recursos ordinários, como os extraordinários; de aquele regime geral «prever instrumentos que têm proximidade ou se identificam com os recursos extraordinários previstos no âmbito do processo criminal», como seja a previsão da possibilidade de a Relação aceitar o recurso que não reúna os requisitos necessários para a sua admissibilidade quando «tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito e à uniformidade da jurisprudência»; e de aquele regime geral atribuir ao próprio Tribunal da Relação a competência para apreciar os recursos de revisão das decisões judiciais (artigos 80.º e 81.º, n.º 4), do que resultaria a conclusão de que «a lei geral das contra-ordenações contém o seu próprio regime de recursos especiais e extraordinários, não sobra[ndo] espaço para a aplicação subsidiária no âmbito do direito de mera ordenação social dos recursos extraordinários previstos no processo penal, tal como aí se encontram regulados». Não nos parece, salvo o devido respeito, que, mesmo tendo apenas em consideração o regime geral do ilícito de mera ordenação social, se deva sufragar um tal entendimento. Desde logo, porque a irrecorribilidade das decisões proferidas em recurso pelos Tribunais da Relação não exclui, em absoluto, a susceptibilidade de interposição de recurso dessas decisões, sendo pacificamente aceite que delas pode ser interposto recurso para o Tribunal Constitucional. Não se trata, portanto, do estabelecimento de uma irrecorribilidade absoluta, assemelhando-se o regime estabelecido neste diploma ao que na altura se encontrava previsto na redacção originária do Código de Processo Penal, que apenas admitia um grau de recurso. Das decisões do juiz singular recorria-se para o Tribunal da Relação, não sendo as respectivas decisões susceptíveis de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. Não era por isso que, na versão originária do Código de Processo Penal, não se admitia o recurso de fixação de jurisprudência quando um tribunal da relação proferia um acórdão que estivesse em contradição com outro proferido pela mesma ou por diferente relação. Em segundo lugar, a nosso ver, o n.º 2 do artigo 73.º do RGCO tem uma função completamente diferente da que justifica a existência do recurso de fixação de jurisprudência. Estabelecendo o n.º 1 do artigo 73.º desse regime os requisitos da admissibilidade do recurso da decisão da 1.ª instância para o Tribunal da Relação, limitando-o, nomeadamente, em função da gravidade e da medida das sanções aplicadas ou aplicáveis, importava abrir a possibilidade de virem a ser apreciados recursos de decisões que, em princípio, seriam irrecorríveis, sob pena de a aplicação do direito em certos domínios ficar confinada às decisões da 1.ª instância. Não se mostrando adequado admitir neste âmbito, sem qualquer restrição, todos os recursos dessas decisões para o Tribunal da Relação, estabeleceu-se o critério, sujeito a ponderação judicial, de apenas admitir os recursos quando tal se afigurasse «manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência». Estes recursos, se admitidos, virão a ser apreciados pela conferência, com a sua actual composição e não por qualquer composição alargada do Tribunal da Relação. E mesmo que estivesse previsto algum alargamento, o sentido da jurisprudência poderia variar consoante o tribunal que viesse a apreciar o recurso, sabendo-se que existem cinco Tribunais da Relação. O recurso admitido nos termos do artigo 73.º, n.º 3, do RGCO, que traduz uma intervenção prévia que pretende evitar a falta de uniformidade da jurisprudência da 1.ª instância em determinados domínios, não desempenha a função própria do recurso de fixação de jurisprudência, caracterizado por uma intervenção sucessiva do pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça que surge, grosso modo, quando se comprova não existir uniformidade da jurisprudência dos tribunais superiores. Note-se que, nem mesmo no processo civil, em que se admite o julgamento ampliado da revista (artigos 686.º e 687.º do Código de Processo Civil), que é apreciada pelo pleno das secções cíveis, se exclui o recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência. E não será o facto de o RGCO atribuir aos Tribunais da Relação a competência para a apreciação dos recursos de revisão das decisões judiciais proferidas neste âmbito, em que a quebra do caso julgado assume menor relevância, que pode justificar a não aplicação do recurso de fixação de jurisprudência no campo do direito de mera ordenação social. 4. Se isto é, a nosso ver, assim no domínio do RGCO, mais se justifica que o seja no âmbito da Lei da Concorrência (LdC), em que o recurso da sentença ou do despacho que apreciar a impugnação judicial da decisão condenatória da Autoridade da Concorrência é admissível sem as restrições previstas no artigo 73.º, n.º 1, do RGCO. É o que estabelece o n.º 1 do artigo 89.º da Lei n.º 19/2012, de 8 de Maio (NRJC). A admissibilidade do presente recurso 4. No caso destes autos, as recorrentes vieram interpor o presente recurso extraordinário de fixação de jurisprudência sustentando que, relativamente a uma determinada questão de direito, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10 de Janeiro de 2017 assentava numa solução oposta à que tinha sido defendida pelo Supremo Tribunal de Justiça no acórdão proferido em 21 de Dezembro de 2006 no processo 06P3201. Essa questão consistia em saber se a decisão condenatória de uma pessoa colectiva ou equiparada, proferida no termo da fase inicial de um processo de contra-ordenação por uma autoridade administrativa, tinha de conter, sob pena de nulidade, a narração dos factos que justificavam a responsabilização da arguida pelo comportamento descrito. Segundo as recorrentes, o Tribunal da Relação de Lisboa ter-se-ia pronunciado no sentido de que tal não era necessário, ao passo que o Supremo Tribunal de Justiça, no indicado acórdão, ter-se-ia pronunciado em sentido contrário. Se assim fosse, não obstaria ao prosseguimento do recurso, a nosso ver, o facto de, no acórdão fundamento, a responsabilização da pessoa colectiva estar dependente da verificação dos pressupostos exigidos pelo artigo 7.º, n.º 2, do RGCO e de, no acórdão recorrido, essa responsabilização estar dependente do preenchimento dos pressupostos constantes do artigo 73.º, n.º 2, do NRJC. Trata-se, em ambos os casos, da determinação, se bem que em moldes diferentes, dos pressupostos da responsabilidade contra-ordenacional das pessoas colectivas. Porém, não é isso que se verifica. O acórdão recorrido, na parte em que se pronunciou sobre a questão suscitada pelas recorrentes nos pontos 33 a 42 das conclusões da motivação do recurso interposto da sentença da 1.ª instância, disse o seguinte: Como quarta questão, invocam as recorrentes a nulidade da sentença, com violação do disposto no art.º 58º do RGCO, falta de fundamentação e de omissão de pronúncia nos termos do art.º 379º n.º 1 al. c) CPP, por falta de indicação das pessoas singulares que legitimam a imputação de responsabilidades às visadas, argumentando que em parte alguma da mesma sentença se vislumbra referência a algum facto que especificasse um qualquer acto de natureza anticoncorrencial, praticado por uma pessoa física ligada às pessoas colectivas visadas, e que, nesse sentido e em estrita obediência aos critérios legais estatuídos no art.º 73.º, n.º 2 da LdC, admitisse a imputação de responsabilidade pelo ilícito às ora Recorrentes. Mais consideram as recorrentes que na decisão, ora sob recurso, o tribunal vem: (i) reconhecer que só mediante a verificação dos factores de conexão previstos no art.º 73.º, n.º 2 da LdC existe fundamento para imputação de responsabilidade às Recorrentes e; (ii) entender que se mostra admissível concluir pelo preenchimento desses factores de conexão, sem que dos factos provados conste menção quanto aos respectivos pressupostos de facto, em particular no que tange a qualquer referência, por mínima que seja, às pessoas físicas cuja acção ou omissão esteve em causa. Chamam ainda em abono da sua tese o teor de parecer que fizeram juntar aos autos em fase de recurso de impugnação judicial da decisão administrativa no sentido de ser exigido que na decisão conste a identificação de quem foi individualmente responsável pela acção ou omissão em causa, entendimento que se mostra vertido em decisões jurisprudenciais da Relação de Lisboa de 26.10.2010 e de Coimbra de 18.03.2015. Relembrando o que se mencionou na sentença recorrida acerca desta questão, o tribunal a quo entendeu ser de dispensar essa menção “No que respeita à não concretização, em termos factuais, dos critérios de conexão previstos no art. 73º/2, da LdC, aceita-se, como não poderia deixar de ser, que a imputação dos factos às recorrentes, enquanto pessoas coletivas, pressupõe a verificação de um dos fatores de conexão estipulados no citado preceito. Contudo, isso não significa necessariamente que o substrato de facto imputado tenha de identificar as pessoas singulares respetivas. Com efeito, o que se considera ser essencial, sem prejuízo de melhor entendimento, é que não haja dúvidas quanto à verificação de um dos fatores de conexão. E isso, no plano da imputação factual, pode ser extraído da própria configuração da infração ou do seu contexto. O caso presente é paradigmático nesse sentido, pois a prática restritiva da concorrência que é imputada às recorrentes traduz-se em cláusulas inseridas em contratos, contratos estes que as próprias recorrentes juntaram aos autos. Ora, isso significa que as recorrentes aceitam a sua participação enquanto sujeito negocial, o que pressupõe um vínculo que apenas podia ser assumido e mantido pelos seus administradores ou por pessoas cuja atividade, neste plano específico, estava necessariamente compreendida na esfera de vigilância e controlo daqueles (cfr. art. 409.º do Código das Sociedades Comerciais – CSC). É também a configuração da infração que torna indubitável uma atuação em nome e no interesse das visadas. Com efeito, as cláusulas sancionadas estavam inseridas em contratos celebrados em seu nome ou das suas antecessoras e que as recorrentes assumiram e que regulavam as suas relações com os distribuidores, pelo que necessariamente conectadas com a organização, funcionamento e realização dos fins das visadas. Consequentemente, quando no plano dos factos se imputam os mesmos às recorrentes, tendo por referência cláusulas contratuais, é com incontornável clareza que se percebe que subjacente a essa imputação está a assunção de que os factos, quer por via da assinatura dos contratos (celebrados após 2000), quer por via da sua manutenção (quanto aos contratos anteriores), foram praticados, em última instância, pelos seus administradores (diretamente ou por pessoas cuja atividade estava compreendida na sua esfera de vigilância e controlo). Por conseguinte, pese embora o muito respeito que nos merecem o Professor Figueiredo Dias e o Professor Nuno Brandão e se concorde com uma parte significativa das asserções gerais que tecem no parecer junto aos autos, não se partilha a sua conclusão final no sentido de que “ao não especificar nos factos provados qualquer concreta conduta de alguma pessoa física integrada na organização das sociedades visadas e, do mesmo passo, abstendo-se de precisar o estatuto funcional de quem terá atuado por sua conta, a decisão condenatória omitiu uma matéria de facto essencial à realização do ilícito-típico”. Nos termos do art.º 73º da Lei da Concorrência, na parte relevante para a questão posta: “1 - Pela prática das contraordenações previstas na presente lei podem ser responsabilizadas pessoas singulares, pessoas coletivas, independentemente da regularidade da sua constituição, sociedades e associações sem personalidade jurídica. 2 - As pessoas coletivas e as entidades equiparadas referidas no número anterior respondem pelas contraordenações previstas na presente lei, quando cometidas: a) Em seu nome e no interesse coletivo por pessoas que nelas ocupem uma posição de liderança; ou b) Por quem atue sob a autoridade das pessoas referidas na alínea anterior em virtude de uma violação dos deveres de vigilância ou controlo que lhes incumbem. 3 - Entende-se que ocupam uma posição de liderança os órgãos e representantes da pessoa coletiva e quem nela tiver autoridade para exercer o controlo da sua atividade. …”. Como bem refere a resposta da Autoridade da Concorrência, estão em causa nos autos cláusulas inseridas em contratos escritos, fornecidos pela própria visada Galp, como estando em vigor, sendo que a manifestação de vontade das Recorrentes se encontra expressa pela assinatura dos seus legais representantes (ou por quem os represente) nos contratos celebrados com os distribuidores. Tais contratos mostram-se assim assumidos pelas visadas e foi com base nos mesmos que manteve o relacionamento comercial com os distribuidores, assumindo as obrigações que para si decorriam dos mesmos, ou seja, assumindo-os como sendo da sua autoria. Não tendo sido postos em causa, pelas visadas, a veracidade e autenticidade dos documentos ou das assinaturas nos mesmos apostas e, na medida em que foi a Galp Energia quem voluntariamente forneceu cópia dos contratos em questão à AdC como sendo os contratos que se encontravam em vigor no âmbito da rede de distribuição de GPL da Galp, inexiste a necessidade de fazer intervir qualquer outro factor de conexão na medida em que os mesmos foram celebrados em seu (da visada) nome e no seu interesse. De resto, em momento algum dos autos e do processado as visadas põem em causa a qualidade e poderes de intervenção das pessoas singulares que subscreveram em seu nome tais contratos. Diremos mesmo mais: a exigência que as visadas fazem notar da indicação da qualidade/estatuto funcional dos intervenientes na elaboração dos contratos não se mostra correspondentemente exigida para a validade dos contratos perante a outra parte contraente na medida em que não se mostra indicada essa qualidade junto das assinaturas respectivas. Por outra via, a invocação da jurisprudência das Relações trazida na motivação de recurso não consegue abalar o que acima vimos mencionando na medida em que, em ambos os casos tratados, em tais decisões era posta em causa a concreta competência funcional da pessoa singular em questão para intervir como representante da pessoa colectiva, o que manifestamente não sucede no caso de que nos ocupamos. Inexiste, pois, qualquer nulidade da sentença recorrida seja por falta de fundamentação seja por omissão de pronúncia. Se bem que exista alguma confusão entre uma eventual nulidade da decisão condenatória proferida pela autoridade administrativa, a que será aplicável o disposto no artigo 58.º, n.º 1, alínea b), do RGCO e no artigo 283.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, e a nulidade da sentença de 1.ª instância que apreciou a impugnação judicial da decisão administrativa, a que se referem os artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, alínea a), daquele mesmo Código, há que dizer, antes de mais, que o Tribunal da Relação de Lisboa não se pronunciou sobre a nulidade da decisão administrativa mas sobre a nulidade da sentença da 1.ª instância. Para além disso, e mais importante, o Tribunal da Relação não considerou dispensável a menção nos factos provados do factor de conexão entre o comportamento individual de determinadas pessoas e a responsabilização do ente colectivo. Tendo aceitado essa necessidade, considerou que no caso concreto e para tanto bastava a referência à existência de contratos escritos assinados por representantes das arguidas e por elas executados ao longo dos anos, o que permitia inferir a existência da conexão exigida pelo artigo 73.º, n.º 2, do NRJC. O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Dezembro de 2006, por sua vez, pronunciou-se sobre a nulidade da decisão administrativa condenatória, não por dela não constarem especificamente os factores de conexão mencionados, mas por dela não constarem quaisquer factos imputados ao arguido. É o que resulta claramente da parte da fundamentação desse acórdão que se transcreve: «… é preciso descrever o facto, dizendo em que consistiu, designadamente que actos concretos é que consubstanciam a prática da infracção, no caso, provavelmente, o sobrevoo do espaço aéreo em determinada localidade por avião que rebocava uma manga contendo a tal mensagem publicitária a favor da candidatura do PS à Câmara de Baião (se é que as coisas se passaram assim). Ora, a decisão impugnada, para além de não conter a descrição do facto típico, também omite as circunstâncias da sua prática, nomeadamente de tempo e lugar, pois nada diz sobre a data em que os factos se passaram, de forma a poder saber-se se foi ou não em período de proibição de propaganda política com características comerciais. E nada refere sobre o local em que os factos se desenrolaram. Ora, a indicação dos factos imputados com menção das provas obtidas é uma exigência do art. 58.º, n.º 1 do RGCO, em tributo aos mais elementares princípios que devem reger um direito de carácter sancionatório e que têm a ver sobretudo com garantias mínimas relacionadas desde logo com o direito de defesa, por muito sumário e expedito que se apresente o processo contra-ordenacional, pois a própria Constituição estende a este tipo de processos essas garantias (art. 32.º, n.º 10). Entre essas garantias mínimas de defesa, avulta, como se refere no Acórdão deste STJ de 21/9/2006, Proc. n.º 3200-06, da 5.ª Secção, de que o presente relator foi um dos adjuntos, a de “serem conhecidos os factos que são imputados ao arguido, pois sem que os mesmos estejam estabelecidos não é possível avaliar a justiça da condenação, fica inviabilizado o direito ao recurso e não há salvaguarda do ne bis in idem”. Nesse aspecto, a decisão condenatória em matéria contra-ordenacional, apresentando alguma homologia com a sentença condenatória em processo penal, tem uma estrutura semelhante a esta última, se bem que mais concisa, por menos exigente devido à sua menor incidência na liberdade das pessoas, devendo conter a identificação dos arguidos, a descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas, a indicação das normas aplicáveis e a fundamentação da decisão. Ora, na fase de recurso, valendo a apresentação dos autos ao juiz pelo Ministério Público como acusação (art. 62.º, n.º 1 do RGCO), torna-se necessário, no que toca aos elementos imprescindíveis a que nos vimos reportando, o recurso ao art. 283.º, n.º 3, alínea b) do CPP, aplicável subsidiariamente ao processo das contra-ordenações (art. 41.º, n.º 1 do mesmo diploma legal). E segundo este dispositivo, a acusação contém sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada. Como vimos, a decisão impugnada não contém esses elementos imprescindíveis, devidamente adaptados a este tipo de processo e que são tendentes a caracterizar uma acção ou omissão, um nexo psicológico de ligação do facto ao agente e uma imputação desse mesmo facto a título de dolo ou negligência, quando esta seja especialmente prevista. Sem esses pressupostos não pode ser aplicada a respectiva coima. Assim sendo, há que concluir que o acórdão recorrido e o acórdão fundamento não se pronunciaram sobre a mesma questão de direito, razão pela qual o recurso para fixação de jurisprudência deve ser rejeitado. A responsabilidade pelo pagamento de custas 5 – Uma vez que as recorrentes decaíram totalmente no recurso que interpuseram são responsáveis pelo pagamento da taxa de justiça e dos encargos a que a sua actividade deu lugar, taxa de justiça que, de acordo com o disposto o n.º 9 do artigo 8.º do Regulamento das Custas Processuais e a Tabela III a ele anexa, pode variar entre 1 e 5 UC. Tendo em conta a complexidade do processo, julga-se adequado fixar essa taxa, para cada uma delas, em 4 UC. III – DISPOSITIVO Face ao exposto, acordam os juízes da 5.ª secção deste Supremo Tribunal em: a) Rejeitar o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência interposto pelas arguidas “AA, S. A.”, “BB, S. A.” e “CC, S. A.” b) Condenar cada uma das recorrentes no pagamento das custas do recurso, com taxa de justiça que se fixa em 4 (quatro) UC. ² Supremo Tribunal de Justiça, 8 de Março de 2018 Carlos Almeida Souto de Moura -------------------- [1] Cfr. página 139 do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa. [2] Considerando que o normativo não consta do diploma legal, a referência ao mesmo só pode tratar-se de manifesto lapso, devendo considerar-se que o douto Tribunal pretendia referir-se ao artigo 58.º, n.º 1 do RGCO. [3] Vide, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26 de Outubro de 2010 (Processo n.º 402/10.4TAPDL.L1-5), Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23 de Maio de 2012 (Processo n.º 3497/07.4EAPRT.P1), Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27 de Junho de 2012 (Processo n.º 7402/11.5TBMAI.P1), Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21 de Março de 2013 (Processo n.º 6334/11.1TBMAI.P1), Tribunal da Relação de Évora de 18 de Junho de 2013 (Processo n.º 715/12.0TBLSA.E1) e Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18 de Março de 2015 (Processo n.º 304/14.5TBCVL.C1), todos disponíveis em www.dgsi.pt. [4] Proferido no âmbito do Processo n.º 06P3201 e disponível em www.dgsi.pt. [5] ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, in «Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem», 4.ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2011, p. 1193, ponto 11. [6] Nomeadamente o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Maio de 2015, proferido no processo n.º 44/14.5TBORQ.E1-A.S1, consultável em www.dgsi.pt/jstj. [7] ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, in «Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem», Universidade Católica Editora, Lisboa, 2011, anotação n.º 27 ao artigo 73.º, p. 304. |