Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4944/04.2TVPRT.P1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: MOREIRA ALVES
Descritores: USUCAPIÃO
DIREITO DE PROPRIEDADE
CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
PROMESSA UNILATERAL
TRADIÇÃO DA COISA
PREÇO
PAGAMENTO
POSSE
INVESTIDURA NA POSSE
POSSE DERIVADA
Data do Acordão: 06/05/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - DIREITOS REAIS
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - RECURSOS
Doutrina: - Manuel de Andrade, A Posse, 38.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 1251.º, 1260.º, N.ºS 1 E 2, 1263.º ALÍNEAS A) E B), 1296.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 668.º, N.º1, ALÍNEA B), 715.º, N.º1.
Sumário :

I - O contrato-promessa (bilateral ou unilateral), em princípio, não tem eficácia translativa da propriedade, visto tratar-se de um contrato de natureza meramente obrigacional cujo objecto não é o contrato prometido, mas a obrigação de o celebrar (obrigação de facere), daí que, em regra, não seja título de posse.
II - Mas a tradição da coisa, em função de um contrato-promessa, pode conferir a posse real e efectiva – posse em nome próprio – e não a mera detenção, como normalmente acontece, situação que se verifica, por exemplo, quando foi paga a totalidade do preço convencionado, ao mesmo tempo que o promitente-vendedor entrega a coisa ao promitente-comprador (ou ao beneficiário da promessa unilateral de venda) para ele agir sobre ela, como se fosse sua.
III - Provado que uma parcela de terreno foi objecto de promessa unilateral de venda datada de 11-05-1967, subscrita pela então sua proprietária, que a prometeu vender ao autor pelo preço de 9950$00, que dele recebeu integralmente, destinando-se a parcela a dar melhor caminho para as traseiras das propriedades do autor e logo lhe tendo sido entregue pela respectiva proprietária, constando do documento em causa que “o promitente comprador fica desde já na posse do referido terreno, podendo nele fazer as benfeitorias que assim o entenda” e considerando que os autores, desde 11-05-1967, transitam, a pé e em veículos, pela parcela referida, tendo-a transformado em caminho e utilizando-a como tal, no acesso aos seus prédios, assim procedendo à vista de todas as pessoas, sem oposição de ninguém, convencidos de que são donos dela, encontram-se provados actos de posse em nome próprio, o que, tendo-se prolongado por mais de 37 anos, pública e pacificamente, levou à aquisição da propriedade da parcela, por usucapião.
IV - Tendo os autores transformado a parcela de terreno em caminho de acesso às traseiras das suas propriedades, pelo qual transitam a pé e em veículos, praticaram reiteradamente e de forma duradoura, sobre a parcela, um dos poderes essenciais que integra o direito de propriedade, isto é, o poder de transformar, adaptando-a aos seus particulares interesses, a coisa possuída.
V - Os actos de transformação da parcela, cujo preço pagaram na totalidade à promitente-vendedora, em caminho de acesso às suas propriedades, e a sua posterior utilização para essa finalidade, consubstanciam, claramente, actos materiais de posse em nome próprio.
VI - Resulta, ainda, da promessa documentada, a própria investidura na posse, uma vez que, como dela consta “o promitente comprador fica desde já na posse do referido terreno, podendo nele fazer as benfeitorias que assim o entenda”, o que, aliado ao facto de a promitente-vendedora ter já recebido do autor o preço da venda, revela com toda a evidência, a sua intenção de o investir na posse real e efectiva da parcela em causa, sendo certo que a posse pode adquirir-se pela tradição material da coisa efectuada pelo anterior dono dela (art. 1263.º, al. b), do CC).
VII - Tendo adquirido a posse com a colaboração da anterior proprietária e promitente-vendedora, os autores adquiriram a posse de forma derivada.




Decisão Texto Integral:

Relatório

Nas Varas Cíveis da Comarca do Porto,

AA, (entretanto falecido e substituído nos autos pelos seus herdeiros, devidamente habilitados) e esposa

BB,

intentaram contra,

CC e esposa

DD, a presente acção declarativa, com processo ordinário, peticionando que seja declarado que o direito de propriedade sobre a parcela de terreno que faz parte da “Bouça de Seixinho” ou “Bouça da Porta do Tisso”, destinada a dar entrada ao A., para as suas propriedades, pertence aos AA. A referida parcela mede 34m de comprimento pelo Norte e pela frente, 6m, formando um bico.

Tem a área total de 199m2.


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Alegou em fundamento, e em síntese, que tal parcela de terreno foi objecto de promessa de venda, subscrita pela anterior proprietária, em 11/5/67. O preço estipulado foi de 9.950$00, que o A. logo pagou à promitente vendedora, e que esta recebeu integralmente, ficando o A., desde logo, na posse da referida parcela do terreno, nela podendo fazer as benfeitorias que entendesse.

Apesar de ter ficado estipulado que a escritura se realizaria “a todo o tempo que a vendedora avise o comprador por carta com a antecedência de oito dias” o certo é que não chegou a outorgar-se a dita escritura de compra e venda, não obstante os AA. sempre terem estado na posse da dita faixa de terreno, nela exercendo todos os poderes de facto, próprios de direito de propriedade, e na convicção de serem os titulares desse direito, pelo que, adquiriram a aludida parcela de terreno por usucapião.


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Os RR contestaram, alegando, em resumo, a sua própria ilegitimidade, porquanto, a referida parcela de terreno, fazia parte integrante de um prédio, sua propriedade, e que foi objecto de expropriação pelo ICOR (Instituto para Construção Rodoviária), no decurso de 2001.

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Os AA replicaram e solicitaram a intervenção principal provocada do ICOR, que veio a ser admitida, tendo a interveniente contestado.

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Os AA responderam à contestação da interveniente.

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Treplicaram os RR.

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Elaborou-se despacho saneador que julgou os RR partes legítimas, tendo-se fixado os factos assentes e organizado a base instrutória.

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Instruídos os autos e realizado o julgamento, foi proferida sentença final, que, na procedência parcial da acção, declarou que “... a A. EE, por si e, juntamente com sua filha, FF, sucessoras hereditárias do falecido AA (primitivo A), são titulares do direito de propriedade sobre a parcela destinada a dar caminho às traseiras das suas propriedades, tendo a forma aproximada de um rectângulo, cujo lado maior e perpendicular à Rua Pego Negro, mede de comprimento 34m e o menor, paralelo à mesma rua, mede 6m, parcela essa que desemboca num caminho antigo que entronca na Rua Pego Negro e que dela diverge para Sul, formando, nessa confluência com o leito de tal caminho, um «bico», tendo a área total aproximada de 199m2 e confrontando do Norte, com GG e AA (falecido A.), de Nascente com o referido caminho antigo e do Sul e Poente, com a referida HH – parcela essa, assinalada na planta de fls. 938 e visível na foto de fls. 941 e que fez parte do terreno identificado sob a verba 29 do documento junto a fls. 93 a 109 destes autos, inscrita na matriz sob o n.º 676, composto por quatro leiras de mato, denominados «Seixinho» ou «Porta do Tisso»”.

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Absolveu-se o interveniente ICOR.

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Os RR pediram a aclaração da sentença, aclaração que veio a ser julgada improcedente.

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Na sequência, apelaram os RR da sentença, impugnando a matéria de facto, restrita à resposta ao quesito 5º, que entendem merecer resposta negativa (não provado), face aos elementos provatórios produzidos.

Por outro lado, não estariam presentes todos os elementos ou pressupostos da aquisição por usucapião da parcela em questão, daí que a sentença padeça de falta de fundamentação, nomeadamente no que tange aos fundamentos de direito, sendo, pois, nula, nos termos da alínea b) do n.º 1 do Art.º 668º do CPC.


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Em sede de apelação, a Relação, reapreciando a prova produzida quanto à matéria de facto impugnada (quesito 5º), apenas eliminou a expressão “suas visitas” mantendo inalterada, no mais, a resposta impugnada, que, assim, passou a ter a seguinte redacção.

Q. 5º (correspondente ao ponto 11 dos factos provados):

“Desde 11 de Maio de 1967, os AA transitam, a pé e em veículos, pela parcela referida na resposta ao artigo 2º (q. 2º), tendo-a transformado em caminho e utilizando-a como tal no acesso aos seus prédios, assim procedendo à vista de todas as pessoas, sem oposição de ninguém, convencidos de que são donos dela”.


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Quanto à questão de nulidade por falta de fundamentação, lê-se no acórdão recorrido:

“Como é entendimento uniforme da doutrina e jurisprudência a falta de motivação a que alude a citada alínea b) do n.º 1 do art.º 668 é a total omissão dos fundamentos de facto e de direito em que assenta a decisão. Uma especificação apenas insuficiente não afecta o valor legal da sentença.

Ora, a sentença recorrida está devidamente fundamentada, sendo certo que nas acções reais e um particular na acção de reconhecimento do direito de propriedade, em que a forma de aquisição invocada é a usucapião, o que é determinante é a decisão da matéria de facto, como ocorreu no caso presente.”


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Quanto à questão de mérito, isto é, quanto à questão de saber se a factualidade provada integra ou não os elementos necessários para se julgar se as AA. adquiriram, por usucapião, o direito de propriedade sobre a questionada parcela de terreno, respondeu o acórdão positivamente, considerando estarem demonstrados actos de posse, indiscutivelmente integradores quer do “corpus” da posse, quer do “animus”.

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Consequentemente, julgou improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.

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Novamente inconformados, voltam a recorrer os RR., agora de revista e para este Supremo Tribunal de Justiça.



Conclusões

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Oferecidas tempestivas alegações, formulam os recorrentes as seguintes conclusões:

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“I) O presente recurso vem interposto da decisão que julgou improcedente a apelação:

"...estando provado que os AA, desde 1967 fruem a parcela de terreno em causa, à vista de todas as pessoas, sem oposição de ninguém, convencidos de que são donos dela, ou seja, exercem a posse pública e pacífica sobre a parcela em causa com animus de proprietário há mais de vinte anos, estão reunidos os elementos necessários para se decidir, como decidiu a sentença recorrida, que os AA adquiriram aparcela em causa por usucapião, atento o disposto nos artigos 1287.° e 1296.° do Código Civil

Improcedem ou são irrelevantes as doutas mas extensas conclusões dos Apelantes".

II) Entenderam os Venerandos Desembargadores do Tribunal a quo que, para efeitos do disposto no preceito supra referido, apenas a absoluta falta de fundamentos de facto e de direito é idónea a legitimar a nulidade da sentença, o mesmo não sucedendo com a deficiência ou carência parcial desses fundamentos.

III) Impõe o n.° 2 do art. 659.° do Código de Processo Civil ao Juiz, no cumprimento do dever de fundamentação das decisões judiciais, a obrigação de "discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes".  

IV) Não se pode olvidar que a doutrina que resulta do preceito supra citado (n.° 2 do art. 659.° do Código de Processo Civil) decorre da interpretação que é feita pelo legislador ordinário ao art. 205.°, n.° 1 da Constituição da República Portuguesa, tendo, mormente, por base, interesses que o legislador constituinte visou proteger com aquele preceito.

IV-A) Uma interpretação que considere só existir falta de fundamentação, para efeitos do art. 668.°, n.° 1, alínea b) do Código de Processo Civil, quando essa falta seja absoluta, será, por maioria de razão, desconforme à Constituição da República Portuguesa, por dessa forma violar o disposto no seu art. 205.°, n.°1.

V) A verdadeira interpretação a colher da alínea b) do n° 1, do art. 668° do Código de Processo Civil não pode ter por único parâmetro o seu teor literal.

VI) O legislador achou por bem consagrar este princípio, em matéria de interpretação da lei, no artigo 9.° do Código Civil.

VII) Dispõe o n.° 1 daquele preceito:

"a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstruir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é elaborada".

VIII)   A conjunção copulativa "e" localizada entre as expressões "fundamentação de facto" e "fundamentação de direito" da alínea b) do n.° 1 do art. 668.° do Código de Processo Civil não pode, por si só, significar uma exigência por parte do legislador de absoluta falta de fundamentação para se cominar a nulidade aí prescrita.

IX) É peremptório que a interpretação a retirar da alínea b) do n.° 1 do art. 668.° do Código de Processo Civil tem que apresentar relativa correspondência com o seu teor literal - e não uma correspondência absoluta (!) (cfr. o n.° 1 do art. 9.°, do Código Civil, designadamente a parte em que se refere ao "mínimo de correspondência").

X) A própria lei admite que o legislador se pode ter expressado mal (cfr. n.° 2 do artigo. 9.° do Código Civil, in fine).

XI) A fundamentação da Sentença, como a de qualquer outra decisão judicial, tem actualmente assento constitucional, já que, segundo o artigo 205.°, n.° 1 da CRP, "as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei".

XII) O legislador ordinário consagrou o dever de fundamentação para as decisões judiciais em geral no art.0 158.° do CPC, onde se prescreve:

"1. As decisões judiciais sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas.

2. A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição";

XIII) A fundamentação da Sentença tem regulamentação específica no art. 659.° do Código de Processo Civil, o qual dispõe que:        

1.A sentença começa por identificar as partes e o objecto do litígio, fixando as questões que ao tribunal cumpre solucionar.

2.Seguem-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar,  interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes,concluindo pela decisão final.

3. Na fundamentação da sentença, o juiz tomará em consideração os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito e os que o tribunal colectivo deu como provados, fazendo o exame crítico das provas de que lhe cumpre conhecer (sublinhado nosso).

XIV) Como decorre do preceito normativo citado, a Sentença assenta numa dupla fundamentação: de facto e de direito (Neste sentido, cfr. FERNANDO MANUEL PINTO DE ALMEIDA, Fundamentação da Sentença Cível, acção de formação do CEJ para Juízes Estagiários, 2008, in www.trp.pt.).

XV) O legislador exige claramente uma fundamentação dupla, isto é, uma fundamentação quer quanto aos factos, quer quanto ao direito.

XVI) Os Recorrentes entendem que a alínea b) do n.° 1 do art. 668.° do Código de Processo Civil se aplica aos casos de deficiência de fundamentação, ou seja, a carência de fundamentação de facto ou de direito, e não apenas de ambas, apresentando-se, por isso, em evidente sintonia com a interpretação que se pode retirar da exigência constitucional da fundamentação das decisões judiciais.    

XVII) A fundamentação da decisão deve permitir o exercício esclarecido do direito ao recurso e assegurar a transparência e a reflexão decisória, convencendo e não apenas impondo!

XVIII) Como diria ALBERTO DOS REIS {Comentário ao Código de Processo Civil, Vol.  II, p.  172), "mal vai à força quando se não apoia na justiça e os fundamentos destinam-se precisamente a convencer que a decisão é justa".

XIX)   O Acórdão proferido pelo Tribunal a quo confirma uma decisão que padece de nulidade, porquanto se mostra omissa no que tange aos fundamentos de direito, pressuposto que o legislador reprova e sanciona com o efeito referido [cfr. art. 668.°, n.° 1, alínea b), do Código de Processo Civil] (sublinhado nosso).

XX) Sendo que, o facto de o douto Acórdão recorrido não sofrer do mesmo vício, não sana a irregularidade da Sentença proferida em primeira instância, não assistindo propriedade para invocar o velho adágio "utile per inutile non viciatur".

XXI)   Pelo que, deverá a mesma (Sentença) ser declarada nula, nos termos da alínea b) do n° 1 do art. 668° do Código de Processo Civil.

XXII)  Não se encontram preenchidos os requisitos constitutivos da posse.

XXIII) Porquanto, outras pessoas, tal como resulta dos factos tidos por provados, também utilizavam a parcela de terreno em causa nos autos.

XXIV)            O que revela a inexistência de uma relação de domínio entre os Recorridos (AA.) e o prédio visado.

XXV)  O poder de supremacia configurador do domínio de facto dos Recorridos (AA.) sobre a parcela de terreno em causa, mostra-se abalado pela prática de iguais actos materiais, sobre o mesmo, por parte de outras pessoas.

XXVI)            Uma vez provada a utilização do terreno em crise nos autos por outras pessoas, para além dos Recorridos (AA.), seguindo o entendimento preconizado por aquela instância, teríamos a aquisição da compropriedade por usucapião, mas nunca da respectiva propriedade !

XXVII) Os Recorridos (AA.) não são titulares de um domínio de facto sobre a res, cuja propriedade é discutida nos autos, exercendo, tão-somente, uma mera utilização da mesma.

XXVIII) O que não se reputa bastante para concluir pela existência do corpus.

XXIX)            São insuficientes para a verificação do corpus, enquanto elemento da posse, os actos materiais praticados pelos Recorridos (AA.), quando destituídos de uma conjuntura social da qual decorra inequivocamente – o mesmo é dizer por consenso público –, que aqueles não detêm um domínio sobre o prédio.

XXX)  A prova constante dos autos de que outras pessoas utilizavam a parcela do terreno em causa, constitui entrave bastante, imposto pela correcta aplicação do direito aos factos, para que se possa considerar que os Recorridos (AA.) têm algum domínio sobre o mesmo.

XXXI)            Conquanto que o corpus consiste no poder de facto, no exercício, na prática ou possibilidade de prática de actos materiais, virados para o exterior, visíveis por toda a gente, fica demonstrado que os actos materiais levados a cabo pelos Recorridos (AA.) não são idóneos a satisfazer as exigências impostas por aquele carácter da posse.

XXXII) Ao ter o Tribunal recorrido retirado do thema decidendum a expressão "e suas visitas", não poderia considerar ter existido corpus.

XXXIII) E, por conseguinte, não poderia ter dado por verificada a figura da usucapião.

XXXIV) A simples passagem por um prédio rústico, não legitima a invocação da posse do direito de propriedade.

XXXV) Não logra, igualmente, qualquer demonstração cabal, o elemento do animus, atento o comportamento dos Recorridos (RR.), cuja pretensa., convicção de agirem como proprietários do terreno de que versam os autos, resulta seriamente posta em causa.

XXXVI) A eliminação da expressão "suas visitas" da base instrutória pelo Tribunal a quo, acaba por colocar, igualmente, em crise, a existência de animus por parte dos Recorridos (AA.) no caso subjudice.

XXXVII) O facto dos Recorridos (AA.), arrogando-se proprietários, não aconselharem os seus convidados ou visitantes a entrar na sua habitação através daquela que é a sua entrada habitual há décadas (!), coloca em dúvida a realidade da convicção dos Recorridos em serem os proprietários da parcela de terreno discutida no caso vertente, necessária para perfazer a exigência do animus, um dos caracteres da posse.

XXXVIII) O que, deixa transparecer, que o seu acesso ao prédio em causa, é realizado a título de mera tolerância e já não ao abrigo do direito de propriedade.

XXXIX) Ainda que se reconheça que os Recorridos (AA.) têm uma intenção de agir como titulares do direito de propriedade sobre a parcela de terreno em causa, nunca se poderá dizer que eles têm animus.

XL) Embora tenham uma intenção em comportar-se como titulares de um direito, esse direito não é correspondente aos actos materiais praticados pelos Recorridos (AA.).

XLI) Aos Recorridos está, igualmente, vedada a possibilidade de invocar a presunção do animus.

XLII) Ainda que se reconhecesse que os actos materiais praticados pelos Recorridos sobre o prédio em questão fundamentam o elemento do corpus, a inexistência do animus, no caso vertente, conduzirá tão-somente a uma situação de mera detenção, situação essa que não é objecto de tutela jurídica para fins usucapíveis.

XLIII) Acresce que, a posse seja de boa fé, ou seja, que seja acompanhada da convicção de que se não lesam direitos alheios, conforme dispõe o art. 1260° do Código Civil, o que não se verificou com os Recorridos (AA.).

XLIV) Para que a dita usucapião pudesse suceder no caso vertente dos autos, os Autores teriam que utilizar a descrita parcela de terreno, há mais de 20 anos, publicamente, sem oposição e "sem a consciência ou intenção de lesar direitos de terceiro", o que na realidade não aconteceu (sublinhado nosso) - no sentido que acima foi dito discorrem os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 21.03. 2011 (Proc. 1904/04.7 TBPNF.P1), do Tribunal da Relação de Lisboa de 12.04. 2011 (Proc. 2302/08.9 TBOER.L1-1), e do Tribunal da Relação de Coimbra de 28.09. 2010 (Proc. 239/08.0 TBALB.C1), todos in www.dgsi.pt.

XLV) A manter-se a decisão ora em crise, e resultando ela numa interpretação que considere só existir falta de fundamentação, para efeitos do art. 668.°, n.° 1, alínea b) do Código de Processo Civil, quando essa falta seja absoluta, poderá estar em sentido contrário aos preceitos consagrados nos artigos 205.°, n.° 1, da Constituição da República Portuguesa, 158.°, 659.°, 668.°, n.° 1, alínea b), do Código de Processo Civil, e 9.°, 1251.°, 1253.°, 1259.°, 1260°, 1261.°, 1263.°, 1289.°, do Código Civil.

TERMOS EM QUE,

a) Deve o douto Acórdão ser revogado, na medida em que confirma uma decisão nula, nos termos dos artigos. 158.°, 659.° e da alínea b) do n.° 1 do art. 668.° do Código de Processo Civil, e na medida em que é omissa quanto aos fundamentos de direito.

Caso assim não se entenda,

b) Deve ser dado provimento ao presente Recurso de Revista, nos termos e com os fundamentos supra expostos, revogando-se a douta sentença, na parte em que deu como provada a alegada existência de usucapião, com as legais consequências.

Caso ainda assim se não entenda, o que, por mera cautela em direito sempre é de admitir,

c) A manter-se a decisão ora em crise, e resultando ela numa interpretação que considere só existir falta de fundamentação, para efeitos do art. 668.°, n.° 1, alínea b) do Código de Processo Civil, quando essa falta seja absoluta, poderá estar em sentido contrário aos preceitos consagrados nos art. 205.°, n.° 1 da Constituição da República Portuguesa, 158.°, 659.°, 668.°, n.° 1, alínea b), do Código de Processo Civil, e 9.°, 1251.°, 1253.°, 1259.°, 1260°, 1261.°, 1263.°, 1289.°, do Código Civil.




Nas suas contra-alegações, defendem os recorridos, a confirmação do acórdão sob censura.



Os Factos

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A Relação, considerando já a alteração introduzida na resposta ao q. 5º (ponto 11º da matéria de facto provada), fixou a seguinte factualidade:

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1.- Os Réus foram donos de um prédio rústico denominado "Mato do Seixinho" ou "Bouça da Porta do Tisso" sito na Rua de Pego Negro, freguesia de Campanha e descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n°. 731/170790, que haviam adquirido através de sucessão por morte de HH [alínea A), da Especificação].

2.- O Autor pagou o imposto da sisa com referência à compra que pretendia fazer a HH - documento junto a fls. 13 cujo teor se dá por reproduzido [alínea B), da Especificação].

3.- Por testamento lavrado em 20 de Março de 1973, o Réu adquiriu de HH, falecida em 25 de Julho de 1974, todo o remanescente da sua herança da qual fazia parte o prédio supra identificado [alínea C), da Especificação].

4.- Por declaração de utilidade pública publicada no DR n°. 183 II Série, 2º  Suplemento de 9 de Agosto de 2002 foi decretada a expropriação com carácter de urgência da parcela 65/65S tendo por objectivo a construção do IC 29 - Via Rápida de Gondomar [alínea D), da Especificação].

5.- Essa parcela expropriada está inscrita na matriz rústica sob o n°. 668, tem uma área de 1.054 m2 e confronta do norte com o Réu, do sul com a Rua Pego Negro, da nascente com o Autor e do poente com II - documento de fls. 146 a 150 [alínea E), da Especificação].

6.- No dia 24 de Janeiro de 2003 foi assinado o auto de expropriação amigável junto a fls. 162 a 165 cujo teor se dá por reproduzido [alínea F), da Especificação].

7.- No dia 11 de Maio de 1967, o falecido Autor AA celebrou com HH um acordo, escrito no documento constante de fls. 11 e que aqui se dá por reproduzido, nos termos do qual esta prometeu vender-lhe, pelo preço de Esc. 9.950S00, nessa data pago por aquele a esta, uma parcela de terreno em tal documento descrita e fazendo parte de um prédio, prédio este aí por ela (promitente vendedora) identificado com o nome de "Bouça do Seixinho" ou "Bouça da Porta do Tisso" e com o artigo matricial 668°, da freguesia de Campanha [resposta ao quesito 1°.].

8.- Tal parcela destinava-se a dar melhor caminho para o Autor às traseiras das suas propriedades, tendo a forma aproximada de um rectângulo, cujo lado maior e perpendicular à Rua Pego Negro mede de comprimento 34 metros e o menor, paralelo à mesma rua, mede 6 metros, parcela essa que desemboca num caminho antigo que entronca na Rua Pego Negro e que dela diverge para Sul, formando, nessa confluência com o leito de tal caminho, um "bico", tendo a área total aproximada de 199 metros e confrontando do Norte com GG e AA (falecido Autor), de Nascente com o referido caminho antigo e do Sul e Poente com a referida HH - parcela essa assinalada na planta de fls. 938 e visível na foto de fls. 941 [resposta ao quesito 2°.].

9.- A dita parcela de terreno faz parte do terreno identificado sob a verba 29 do documento junto a fls. 93 a 109, inscrito na matriz sob o art°. 676, composto por quatro leiras de mato denominadas "Seixinho" ou "Porta do Tisso" [resposta ao quesito 3°.].

10.- A promitente-vendedora HH identificou o prédio de que fazia parte a parcela como inscrito na matriz sob o artigo 668°., por erro [resposta ao quesito 4o.].

11.- Desde 11 de Maio de 1967, os Autores transitam, a pé e em veículos, pela parcela referida na resposta ao art. 2º, tendo-a transformado em caminho e utilizando-a como tal no acesso aos seus prédios, assim procedendo à vista de todas as pessoas, sem oposição de ninguém, convencidos de que são donos dela [resposta ao quesito 5º .].




Fundamentação



Como se alcança das conclusões, são duas as questões suscitadas.

A primeira, tem a ver com a invocada nulidade da sentença de 1ª instância, por falta de fundamentação de direito. A segunda, consiste em saber se estão provados os factos suficientes para se concluir, como concluíram as instâncias, terem os AA. adquirido a propriedade da parcela de terreno em causa, por usucapião, já que, entendem os recorrentes, não se encontrarem preenchidos os requisitos constitutivos da posse.




Vejamos.

1ª Questão

Nulidade.

Interpretação do n.º 1, alínea b) do Art.º 668º do C.P.C.

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Antes de mais deve referir-se que, no âmbito do recurso de revista, o que o S.T.J. vai sindicar é o acórdão da Relação e não a sentença de 1ª instância.

Ora, as recorrentes não imputam ao acórdão recorrido qualquer vício de nulidade, nomeadamente, a falta de fundamentação de direito, razão porque não pode este S.T.J. apreciar a invocada (e imaginada) nulidade da decisão de 1ª instância.

Se o acórdão recorrido não sofre de vício de falta de fundamentação de direito, como reconhecem as recorrentes (conf. Conclusões XX), é porque terá sanado esse vício que os recorrentes assacam à sentença que ele confirmou, isto é, apesar de não ter anulado a sentença (caso em que teria de conhecer, mesmo então, da apelação, sanando o vício – Art.º 715º n.º 1 C.P.C. – ), fundamentou a decisão de confirmação, alinhando as razões de direito que a justificam, assim sanando a alegada falta de fundamentação da sentença recorrida, tal como faria se a tivesse anulado.

Portanto, não só não há razão alguma para anular o acórdão recorrido, o que, aliás, não vem pedido, como não é possível anular a sentença de 1ª instância, que não é o objecto da revista.


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De qualquer modo, repetindo à exaustão que a sentença de 1ª instância sofre do vício de falta de fundamentação de direito, em parte alguma da alegação os recorrentes identificam tal vício, limitando-se, conclusivamente, a afirmar que o acórdão “confirmou uma decisão que padece de nulidade, porquanto se mostra omissa no que tange aos fundamentos de direito”, sem indicar em que consistiu, concretamente, tal omissão.

Aliás, também da alegação da apelação, nada consta, de concreto, quanto à omissão de fundamentação, limitando-se a referir que não estariam devidamente explicitados os pressupostos da aquisição por usucapião da parcela em lide.


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Porém, uma coisa é a fundamentação de direito de uma decisão, o mesmo é dizer, as razões jurídicas, as normas e sua interpretação, de que se serviu o julgador, como premissa para chegar a determinada conclusão (decisão), outra, completamente diferente, é o acerto, a correcção dessas razões ou a oportunidade de aplicação das normas jurídicas chamadas à colação, isto é, os pressupostos normativos que justificam o direito que a decisão reconheceu a uma das partes.

Só a omissão daquelas razões constitui a nulidade prevista no n.º 1 b) do Art.º 668º do CPC.

A incorrecta aplicação da norma ou normas, a inconcludência ou a utilização errada das razões em que assenta a decisão ou a falta de prossupostos normativos, erradamente tidos por presentes, determinarão erro de julgamento, mas nunca falta de fundamentação geradora de nulidade.

É que a fundamentação, mesmo errada ou deficiente, existe na realidade, só que não justifica juridicamente a decisão.

Ora, apesar de não ser a sentença de 1ª instância o objecto do recurso de revista, como se disse, sempre se referirá que, compulsada tal decisão, logo se verifica que, depois de descrever a factualidade tida por provada, o julgador aplicou-lhe o direito, qualificando juridicamente os actos materiais praticados pelos AA  sobre a parcela de terreno em lide, como actos de posse, integrando o respectivo corpus, complementado com o animus, e, admitindo que se tratasse de posse de má-fé, entendeu que, mesmo assim, dava lugar à aquisição do direito de propriedade, por usucapião, atento o lapso de tempo entretanto decorrido, tudo estribado nos correspondentes preceitos legais que expressamente referiu.

Quer isto dizer que, claramente, fundamentou a decisão, daí que nunca a sentença podia sofrer do vício de nulidade do n.º 1 b) do Art.º 668º do CPC.


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Portanto, a falta de explicitação dos pressupostos da aquisição da parcela por usucapião, a que aludem os recorrentes, apenas podia ter a ver com erro de julgamento, que não se confunde com a nulidade por falta de fundamentação.

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E foi isto mesmo que o acórdão recorrido decidiu, sem merecer censura, tal é a evidência da situação.

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Porém, a respeito do alegado vício de nulidade, o acórdão recorrido referiu ser entendimento uniforme da doutrina e jurisprudência que a falta de motivação, a que alude a alínea b) do n.º 1 do Art.º 668º, é a total omissão dos fundamentos de facto e de direito em que assenta a decisão, sendo que uma especificação apenas insuficiente não afecta o valor legal da sentença, isto é, não gera nulidade.

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Insurgem-se os recorrentes contra tal interpretação, partindo do princípio, ao que parece, que com ela se pretendeu defender que, apesar do preceito em causa impor uma dupla fundamentação (de facto e de direito), só comina com a sanção da nulidade, a falta conjunta de fundamentação, ou seja, só se verificaria nulidade, quando ocorra ausência absoluta dos fundamentos de facto e de direito, daí que, omitindo-se apenas uma das referidas fundamentações, existindo a outra, já não ocorreria a nulidade cominada no n.º 1 b) do Art.º 668º do CPC.

Colocada nesta perspectiva, a discussão é inútil, porquanto nunca foi esse o sentido com que a doutrina e a jurisprudência interpretam o preceito, ao menos que seja do nosso conhecimento.


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Na verdade, é de todo evidente que a lei exige que o juiz fundamente de facto a sentença, descriminando os factos que teve por provados, seguindo-se a fundamentação de direito, no âmbito da qual, determina as normas que julga serem as adequadas à factualidade assente, interpretando-as e aplicando-as.

A omissão absoluta de qualquer uma destas fundamentações, gera, obviamente, a nulidade da decisão, não sendo necessário a omissão conjunta da fundamentação de facto e a de direito.


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Nunca foi outro o sentido da doutrina e jurisprudência uniforme a que se refere o acórdão recorrido, pelo que é legítimo inferir que será, também, nesse sentido, que há-de interpretar-se a observação que dele consta e que os recorrentes, aparentemente, interpretaram indevidamente.

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Portanto, o que o acórdão recorrido quis dizer, ao remeter para jurisprudência e doutrina uniformes, não foi que só a falta conjunta dos dois tipos referidos de fundamentação gerava nulidade, mas que a falta de qualquer delas, desde que absoluta ou total, tem esse efeito.

O que é necessário é que a referida omissão (da fundamentação de facto ou de direito) seja total, e não meramente deficiente (quer essa deficiência, se traduza numa fundamentação sumária, quer numa fundamentação errada).


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Acontece que não tem o menor interesse discutir-se, aqui e agora, se uma fundamentação meramente deficiente é também ela geradora de nulidade, porquanto, o acórdão recorrido, não imputou à sentença que sindicou, qualquer deficiente fundamentação, seja a respeito da matéria de facto, seja sobre a motivação de direito, que, todavia, não provocaria nulidade, por, no caso concreto, não haver omissão total de fundamentação.

O que o acórdão refere é que a sentença “... está devidamente fundamentada ...” e, como também já observamos, não há, na verdade, qualquer deficiência de fundamentação, designadamente em sentido quantitativo (fundamentação muito sumária), uma vez que o raciocínio jurídico que levou à decisão, se mostra perfeitamente claro e suficiente.


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De resto, se a fundamentação da decisão deve permitir o exercício esclarecido do direito ao recurso, como dizem as recorrentes e se aceita, sem reservas, não haverá quaisquer dúvidas que eles entenderam perfeitamente a decisão contida na sentença de 1ª instância, designadamente, a sua fundamentação de direito, que, por isso mesmo, atacaram na apelação sem restrição alguma, demonstrando claramente, tal como agora demonstram na revista, que o que está em causa é que, na sua opinião, o que se verifica, é um erro de julgamento, por má aplicação dos conceitos normativos que disciplinam a aquisição do direito de propriedade por usucapião.

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2ª Questão

Pressupostos de usucapião.

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Assim, o que realmente interessa, no caso concreto, é verificar se o acórdão recorrido fez boa aplicação da lei, isto é, se se verificam ou não os requisitos ou pressupostos da usucapião.

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Com interesse para a resposta a esta questão, recorde-se a factualidade descrita nos pontos 7, 8, 9, 10 e 11 da matéria de facto provada.

Sabemos, assim, que a parcela de terreno aqui em causa, com a área de 199m2 e, perfeitamente identificada nos autos, foi objecto de uma promessa unilateral de venda (datada de 11/5/1967), subscrita por HH (então sua proprietária), que a prometeu vender ao falecido A., AA, pelo preço de 9.950$00, que dele recebeu integralmente.

Como resulta do doc. de fls. 11 (promessa de venda) e da resposta ao quesito 2º, tal parcela destinava-se a dar melhor caminho para o referido autor, às traseiras das suas propriedades e foi logo a ele entregue pela HH.

No dizer do citado documento “o promitente comprador fica desde já na posse do referido terreno, podendo nele fazer as benfeitorias que assim o entenda”.

Na sequência, provou-se igualmente que, desde 11/5/67, os AA. transitam, a pé e em veículos, pela parcela referida, tendo-a transformado em caminho e utilizando-a como tal, no acesso aos seus prédios, assim procedendo à vista de todas as pessoas, sem oposição de ninguém, convencidos de que são donos dela.


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Ora, perante esta matéria de facto, parece-nos evidente que estão provados actos de posse em nome próprio, que, tendo-se prolongado por mais 37 anos, pública e pacificamente, levou à aquisição da propriedade da parcela, por usucapião.

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Como se sabe, a posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito real (Art.º 1251º do CC).

Tal poder, analise-se em dois elementos essenciais.

O “corpus”, que se traduz na actuação material do possuidor em relação à coisa possuída e o “animus”, elemento espiritual ou psicólogo, traduzido na intenção de exercer esse poder de facto como se fora o titular do direito correspondente, no caso, como se fosse o titular do direito de propriedade (animus possidendi ou animus domini).

Sendo a relação possessória uma relação permanente e duradoura entre o possuidor e a coisa, é claro que os actos materiais praticados, que incidam directamente sobre a coisa, devem revelar a intenção de exercer o poder de facto correspondente ao direito real em causa, de forma reiterada (Art.º 1263º, a) CC).

Não chega, por isso, um simples acto material isolado, mas também não é necessária a prática de todos os poderes que integram o conteúdo do direito correspondentes à posse exercida.

Como ensinava Manuel de Andrade (A Posse, n.º 38) “O carácter permanente, duradouro, de aquisição da posse não exige, pois, necessariamente, a prática repetida de actos de uso e de gozo, mas exige ... a prática de um acto ou de uma série de actos que, no consenso público, sejam considerados como meio de criar uma relação duradoura ...

O proprietário não é obrigado a usar, fruir e transformar continuamente e simultaneamente.

Para se adquirir a posse do direito de propriedade basta, por isso, praticar actos materiais que correspondam a algum daqueles poderes ...”


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Ora, aplicando estes princípios gerais ao caso concreto, não será difícil entender que, tendo os AA transformado a parcela de terreno em causa, em caminho de acesso às traseiras das suas propriedades, pelo qual transitam a pé e em veículos, praticaram e praticam reiteradamente e de forma duradoura, sobre a parcela, um dos poderes essenciais que integra o direito de propriedade, isto é, o poder de transformar, adaptando-a aos seus particulares interesses a coisa possuída, o que se nos afigura indiscutível, tanto mais que foi com essa finalidade que a então proprietária da parcela lhes prometeu vendê-la, tendo logo recebido o preço integral do negócio prometido, e lhes cedeu imediatamente a posse dela.

Portanto, os actos de transformação da parcela, cujo preço pagaram na totalidade à promitente vendedora, em caminho de acesso às suas propriedades, e a sua posterior utilização para essa finalidade, consubstanciam, claramente, actos materiais de posse em nome próprio.


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É certo que, em princípio, o contrato-promessa (bilateral ou unilateral) não tem eficácia translativa da propriedade, visto tratar-se de um contrato de natureza meramente obrigacional cujo objecto não é o contrato prometido, mas a obrigação de o celebrar (obrigação de facere).

Daí que, em regra, não seja título de posse.

Mas, por outro lado, também não há dúvida nenhuma que a tradição da coisa em função de um contrato-promessa, pode conferir a posse real e efectiva – posse em nome próprio – e não a mera detenção, como normalmente acontecerá.

Verifica-se uma tal situação, por exemplo, quando foi pago a totalidade do preço convencionado, ao mesmo tempo que o promitente vendedor entrega a coisa ao promitente comprador (ou ao beneficiário da promessa unilateral de venda) para ele agir sobre ela, como se fosse sua.


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Como resulta manifestamente dos autos, foi esta última situação que ocorreu, visto que o falecido A. marido logo pagou à promitente vendedora o preço estipulado e recebeu a parcela para a transformar em acesso às traseiras dos seus prédios, podendo nela realizar as obras que entendesse, sem restrição alguma, como, de facto, veio a fazer.

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Acresce que, para além da tradição da coisa, resulta ainda da promessa documentada nos autos, a própria investidura na posse, uma vez que, como dela consta “o promitente comprador fica desde já na posse do referido terreno, podendo nele fazer as benfeitorias que assim o entenda”, o que, aliado ao facto de a promitente vendedora ter já recebido do falecido A. marido, o preço da venda, revela com toda a evidência, a sua intenção de o investir na posse real e efectiva da parcela em causa, sendo certo, que a posse pode adquirir-se pela tradição material da coisa efectuada pelo anterior dono dela – Art.º 1263º b) CC. – .

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Vê-se, assim, que os AA praticaram sobre a parcela de terreno em lide, verdadeiros actos materiais de posse em nome próprio, encontrando-se presentes os dois elementos em que a posse se analisa, ou seja o corpus e o animus, sendo que este último elemento, nem sequer tem de presumir-se, visto que está provado directamente.

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Adquiriram assim, unilateralmente, a posse verdadeira e própria sobre o terreno identificado nos autos, exercendo pública e pacificamente os referidos poderes de facto, com a intenção de serem os proprietários da parcela, durante mais de 37 anos, podendo mesmo dizer-se que adquiriram a posse, com as características referidas, de forma derivada, isto é, com a colaboração da anterior proprietária e promitente vendedora, como parece resultar inequivocamente da promessa de venda documentada nos autos.

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Apesar do que acaba de dizer-se, alegam as recorrentes, no entanto, que resulta dos factos tidos por provados, que a parcela em questão também era utilizada por outras pessoas, pelo que não existiria uma relação de domínio sobre a coisa, por parte dos AA (confr. Conclusões XXIII, XXIV, XXV, XXVI e XXX).

Só que, ao contrário do que dizem as recorrentes, não consta da matéria de facto fixada pela Relação (e que aqui não está em causa), qualquer factualidade que, mesmo indirectamente, revele a utilização da parcela de terreno em lide, por quaisquer outras pessoas, sendo certo que o S.T.J., só pode ter em consideração os factos fixados definitivamente pelo tribunal a quo.

Como tal, a questão suscitada não tem o menor fundamento.


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Por outro lado, o que referem as recorrentes nas conclusões XXVII, XXVIII, XXIX e XXXI, porventura relacionadas com a matéria anteriormente aludida, não tem sentido nenhum face à factualidade provada e já acima descrita e qualificada.

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A Relação, na reapreciação da matéria de facto impugnada, eliminou da resposta ao quesito 5º, a expressão “e suas visitas”, por excessiva.

Na verdade, da resposta dada na 1ª instância constava “Desde 11 de Maio de 1967, os Autores e suas visitas, transitam, a pé e em veículos, pela parcela ...”.

Eliminada a referida expressão, deixa de poder considerar-se que, pela parcela, circulavam as visitas das AA., circunstância, aliás, de todo irrelevante.

Seja como for, afigura-se-nos incompreensível a argumentação que os recorrentes pretendem retirar daquela eliminação, sobretudo, a ilação, completamente despropositada, porque manifestamente infundada, que verteram nas conclusões XXXVII e XXXVIII.

Já se deixou referido que a factualidade provada, revela a prática de actos de posse em nome próprio por pate dos AA, estando presente o elemento material “corpus” quer o elemento psicológico “animus”, situação que não sofre qualquer alteração, se, pela parcela em questão circulassem ou não visitas das AA, sendo evidente que, como observou e bem, o acórdão recorrido, a referência às visitas dos AA (que veio a ser eliminada, por excessiva, como se disse), no contexto da prova, pretendeu apenas significar que os terceiros que utilizavam a parcela, transformada pelos AA., em caminho de acesso às suas propriedades, o faziam, não por estarem a exercer um direito próprio, mas para se dirigirem ao prédio dos AA.


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Portanto, provados os dois elementos caracterizadores da posse em nome próprio, nunca se estaria perante uma simples detenção, e por outro lado, o “animus” que se provou, foi o de exercer o direito de propriedade e não o direito de passagem, pelo que improcedem as conclusões XXXII a XLII.

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Quanto às conclusões XLIII e XLIV, há que referir o seguinte:

A posse diz-se de boa-fé, quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem, presumindo-se de boa-fé a posse titulada e de má-fé a não titulada (Art.º 1260º n.º 1 e 2 do CC).      

Resulta, assim, do preceito que, apesar de intitulada, a posse pode ser tida de boa-fé, bastando ilidir-se a dita presunção legal. Por outro lado, para se provar a boa-fé, não tem de alegar-se que se ignorava, ao adquirir a posse, que se lesava o direito de outrem, isto é, não tem de repetir-se as palavras da lei, que, de resto, exprimem uma conclusão que deve ser integrada pela necessária factualidade concreta.

Por outras palavras, o que o interessado há-de alegar e provar para ilidir aquela presunção legal, é a factualidade da qual resulte a aludida ignorância.

Ora, no caso concreto, está provada a promessa unilateral de venda por parte da então proprietária do terreno em questão, o pagamento pelo falecido A. do preço correspectivo, a entrega da parcela pela promitente vendedora ao beneficiário da promessa, investindo-o, directamente, na posse da parcela, os actos materiais de posse exercidos desde então, sem oposição de ninguém, à vista de todas as pessoas e a convicção de agir na qualidade de verdadeiro dono do terreno.

Assim, deste acervo factual, afigura-se-nos evidente, a prova inequívoca da posse de boa-fé, pois o A. marido, perante tal factualidade, não podia senão ignorar que ao adquirir a posse, nas condições referidas, estava a lesar o direito da proprietária ou de quem quer que fosse.


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Consequentemente, a aquisição da propriedade da parcela por usucapião, exigia o decurso do prazo de 15 anos sobre o início da posse.

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Porém, mesmo que não pudesse ter-se por provada a posse de boa-fé, o prazo de usucapião, sendo de má-fé a posse, seria, então de 20 anos. (Art.º 1296º do CC).

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Á data da instauração da acção (Setembro de 2004) havia já decorrido, desde o início da posse, mais de 37 anos, tempo suficiente para fazer funcionar o instituto da usucapião, seja a posse de boa ou de má-fé.

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Não tem, pois, sentido, o que se diz nas conclusões agora em análise.

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Improcedem, por isso, todas as conclusões  da revista.



Decisão

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Termos em que acordam neste S.T.J. em negar revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

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Custas pelas recorrentes.

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Lisboa, 5 de Junho de 2012

  
Moreira Alves (Relator)

Alves Velho

Paulo Sá