Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | DINIS ALVES | ||
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Nº do Documento: | SJ200211280031025 | ||
Data do Acordão: | 11/28/2002 | ||
Votação: | UNANIMIDADE COM 1 DEC VOT | ||
Tribunal Recurso: | T REL PORTO | ||
Processo no Tribunal Recurso: | 512/02 | ||
Data: | 06/12/2002 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Sumário : | |||
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Decisão Texto Integral: | ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: I 1. - Na comarca da Maia, processo comum colectivo n.º 124/2001, 4º Juízo Criminal, e sob acusação do Ministério Publico, foram julgados diversos arguidos pela prática de crimes de diversa natureza, mas com maior incidência na prática ou cumplicidade de crimes de aborto, sendo, afinal, condenados alguns desses arguidos, conforme melhor consta de fls. 3695 e seguintes, e, entre eles, a arguida, ora recorrente, A, com os sinais dos autos, sendo absolvidos muitos outros arguidos.2. - No acórdão da 1ª instância, proferido em 18 de Janeiro de 2002, decidiu-se condenar esta arguida: 2.1. - Em autoria material, e em concurso real, pela prática de um crime de Aborto Agravado, p. e p. pelos artigos 141º, nº2, com referência ao artigo 140º, nº2, ambos do C. Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão; 2.2 - Pela prática de um crime de Peculato p. e p. pelo artigo 375º, nº1 do C. Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão; 2.3 - Pela prática, em autoria material, de um crime de Falsificação de Documento p. e p. pelo artigo 256º, n.º 1, al. a), do C. Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão; 2.4 - Pela prática, em autoria material, de um crime de Tráfico de Estupefacientes Agravado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 21º, n.º 1, 24º, alínea e), do Decreto - Lei n.º 15/93, de 22-01, com referência às tabelas I-A e IV, anexas a tal diploma, na pena de 6 (seis) anos de prisão; 2.5 - E absolveu a mesma arguida da prática de um crime de usurpação de funções previsto e punido pelo artigo 358º, al. b) do C. Penal. 2.6 - Condenou a dita arguida A, em cúmulo jurídico, na pena única de 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão. 3. - Foi ainda condenada a arguida B em autoria material, pela prática de um crime de aborto, p. e p. pelo artº 140º n.º 3 do C. Penal, na pena de quatro (4) meses de prisão, a qual, nos termos do artº 44º n.º 1 do C. Penal, foi substituída pela pena de 120 dias de multa á taxa diária de € 1, o que perfaz a quantia global de € 120. (Não recorreu para o TRP). 4. - A arguida C estava acusada e pronunciada pela prática, em co-autoria material, de um crime de aborto, previsto e punido nos termos do artº 140º n.º 3 do Cód. Penal, mas a respectiva acção penal foi julgada extinta por prescrição do procedimento criminal 5. - Ordenou-se também a restituição ao Hospital de S. João, do Porto, dos fármacos, objectos cirúrgicos, blocos de receitas, vinhetas do H.S.J. e restantes blocos desse Hospital. 5.1 - Declararam-se perdidos a favor do Estado os restantes fármacos e objectos cirúrgicos, nos termos do artigo 109º do C. Penal. 5.2 - Ordenou-se a restituição aos respectivos titulares das vinhetas de médicos, apreendidas. 5.3 - Declararam-se perdidas a favor do Estado as quantias apreendidas - artigo 111º, n.º 2 do C. Penal. 5.4 - Foram declaradas perdidas a favor do estado as substâncias estupefacientes apreendidas, e ordenada a destruição das mesmas. 6. - Ao abrigo do disposto no artigo 111º, n.º 2 e n 4º, do C. Penal e considerando que as quantias em dinheiro referidas em 2.69 - 3.186.080$00 e 3.676.404$00 - foram provenientes da actividade ilícita desenvolvida pela arguida A, condenou-se esta arguida a pagar ao Estado o valor correspondente à soma dessas quantias, o que equivale ao montante de € 34.229,93. II 1. - Inconformados com o decidido, interpuseram recursos, para o Tribunal da Relação do Porto, o Ministério Público, pedindo, no essencial, a agravação das penas aplicadas à arguida A, com fixação da pena única em doze (12) anos, e alguns dos arguidos condenados e, entre eles, a arguida A, apresentando motivação inserida a fls. 3964 e segs. (fax) e fls.4004 e segs. (original), cujas conclusões foram reproduzidas no acórdão, ora recorrido.2. - Nesse douto aresto, lembrando-se que são as conclusões do recorrente que fixam o objecto do recurso, considerou-se que, nelas, a arguida A: 2.1. - há erro notório na apreciação da prova já que se deu como provado a prática de abortos sem prova científica dos mesmos; 2.2- Que há contradição entre a própria matéria de facto dada como provada, que não permite concluir que se dedicava com habitualidade à prática de abortos, e com intenção lucrativa. 2.3 - Porque apenas resultou provado que fez dois abortos, não deveria ter sido condenada em pena de prisão superior a um ano, e pela prática de um crime p. e p. pelo art.º 148º, n.º 2 do C. Penal. A entender-se que o crime é agravado, a pena não deveria ser superior a dezoito meses de prisão. 2.4 - Não se verificam os elementos típicos do crime de peculato porque os objectos de que se apoderou não estavam à sua guarda e responsabilidade razão pela qual não tinha acesso fácil aos mesmos em razão das suas funções. Consequentemente, deveria ter sido condenada na pena de 1 ano de prisão pela prática de um crime de furto na forma continuada. 2.5 .- Há insuficiência da matéria de facto para a decisão no que concerne ao crime de falsificação. Se assim se não entender a pena deve ser fixada em seis meses de prisão. 2.6 - Os medicamentos apreendidos eram apenas para seu uso pessoal. Por outro lado, não se verifica a agravante qualificativa da alínea e) do art.º 24º do DL 15/93, de 22 de Janeiro. Consequentemente, não deveria ter sido condenada em pena superior a quatro anos de prisão. 2.7 - O cúmulo jurídico nunca deveria ultrapassar os 4 anos e 6 meses de prisão. 2.8 - Há insuficiência da matéria de facto para a decisão que a condenou a restituir as prestações pagas nos leasings dos dois automóveis, no montante de 34.229,93 €, já que apenas se provou que fez dois abortos, dos quais nunca poderia ter obtido aqueles proventos. 3. - o Venerando Tribunal da Relação do Porto, depois de uma minuciosa e proficiente dissecação de todas as questões postas, em todos os recursos interpostos e especificamente as suscitadas pela arguida A (únicas que ora interessa apreciar), por douto acórdão de 12 de Junho de 2002, decidiu: 1. Negar provimento aos recursos do M.º P.º e da arguida A, nesta parte confirmando o acórdão recorrido; 2. Julgar providos os recursos dos arguidos D, E, F, G e H, anulando a decisão recorrida na parte em que os condenou como cúmplices de um crime de aborto, que substituem por acórdão que os absolve da acusação que sobre eles impendia. 3. Condenar a Recorrente A nas custas dos autos, com 10 Ucs de tributação. III 1. - Ainda inconformada, a arguida A interpôs o presente recurso, em cuja motivação formulou as seguintes conclusões (que reproduzem as conclusões da motivação do recurso que a Relação apreciou e indeferiu, apenas com alteração da numeração a seguir ao artigo terceiro, por inclusão do actual artigo quarto, e com alguns acrescentos de pormenor, noutros artigos, conforme sublinhados a itálico na transcrição a que se vai proceder):1º - Foi a recorrente condenada pelos seguintes crimes e penas: a) Na pena de três (3) anos de prisão por um crime de aborto agravado p.e p. pelo Art° 141 n° 2, com referência ao Art° 140 n° 2 do C. Penal. b) Na pena de três (3) anos de prisão por um crime de peculato p.e p. pelo Art° 375 n° 1 do C. Penal. c) Na pena de um (1) ano de prisão por um crime de falsificação de documento p.e p. pelo Art° 256 n° 1 al. a) do C. Penal. d) Na pena de seis (6) anos de prisão por um crime de tráfico de estupefacientes agravado p.e p. pelo Artº 21º n° 1 e 24 alínea e) do D.L. 15/93 de 22/01. 2° Em cúmulo jurídico destas penas foi a recorrente condenada na pena unitária de oito (8) anos e seis (6) meses de prisão. 3° Foi ainda a arguida condenada a restituir ao Estado, nos termos do Art° 111 n° 2 e 4 do c. Penal, a importância de 34.229,93 Euros, correspondente ás prestações pagas no contrato de leasing de dois veículos automóveis. 4° Por douto Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto foi negado provimento ao recurso interposto pela arguida, confirmando-se o Acórdão condenatório. 5° Não há matéria de facto suficiente para fazer as qualificações jurídico - penais feitas, no douto Acórdão condenatório e houve erro notório na apreciação da prova e da matéria de facto dada como provada - o que constitui violação do disposto no Art° 410 n° 2 alínea a) e c) do C.P.P.. . 6° A recorrente foi condenada por um crime de aborto agravado, porque se dedicava habitualmente à prática de abortos. Não há, porém, nos autos matéria de facto suficiente para esta conclusão. 7° É que só foram dados como provados dois abortos: o da co-arguida B e C. E mesmo destes, prova científica da gravidez só temos a da B. Dizer que se abortou, sem ter a certeza da gravidez, é uma conclusão errada. 8° E não se pode concluir, como fez o Colectivo, que a recorrente se dedicava habitualmente ao aborto, porque os co-arguidos referidos nos pontos 2.34 e seguintes do Acórdão lhe enviavam clientes para abortar. Tanto mais, que o Venerando Tribunal da Relação do Porto absolveu tais co-arguidos, considerando que não se provou que as mulheres por eles enviadas tivessem praticado o aborto e como tal não se tendo provado o crime não há cumplicidade. 9° Mas, se todas as outras arguidas foram absolvidas e estes co-arguidos agora são também absolvidas. Em quem praticou a arguida o aborto? Há pois erro notório na apreciação da prova e insuficiência da matéria de facto dada como provada, para se poder concluir que a recorrente se dedicava com habitualidade à prática de abortos, e com intenção lucrativa, se não se identificou nenhuma das mulheres nas quais a arguida praticou o crime de aborto. 10° Assim, tendo a recorrente realizado, à luz da matéria de facto dada como provada, apenas dois abortos, o seu crime é apenas o de aborto p.e p. pelo Artº 140 n° 2 do C. Penal. E neste caso a pena não deveria ser superior a um ( 1) ano de prisão. 11º Mesmo que o crime fosse o de aborto agravado p.e p. pelo nº2 do Art° 141., porque só dois abortos estão provados nos autos, a pena não deveria ser superior a 18 meses de prisão., atento o disposto no Art° 71 do C. Penal. 12° A recorrente, pela matéria de facto dada como provada, não cometeu nenhum crime de peculato . O peculato pressupõe, à luz do Art° 375, n° 1 do C. Penal, que o agente tenha um especial dever de cuidado, vigilância ou cuidado em razão das funções do agente. É o caso típico dum tesoureiro da Fazenda Pública que se apropria de dinheiro que tem no cofre. 13° No caso concreto, os objectos e medicamentos de que a recorrente se apropriou, segundo a matéria de facto dada como provada, não lhe eram acessíveis, por causa da sua função de enfermeira. Porque a qualquer outro estavam igualmente acessíveis. Nem estavam à sua guarda e responsabilidade, sendo certo, como resulta da matéria de facto provada, que alguns nem sequer lhe estavam acessíveis, dado pertencerem ao Serviço de Urgência, Otorrino e Psiquiatria (ex: blocos receitas). 14° Logo, nesta parte, o crime cometido é o de furto simples, continuado, já que a apropriação foi ao longo do tempo, parcelar e o montante de cada apropriação não ultrapassou os 800.000$00 Escudos. E não se pode somar todos os valores dos bens apropriados, cujo valor total é de 848.195$00 Escudos - Cfr. Pontos 2.24, 2.28 e 2.29 do Acórdão condenatório - pois que o crime foi continuado.- Cfr. Artº 79 do C. Penal.. 15° Preenchendo nesta parte, os factos, apenas um crime de furto p.e p. pelo Art° 203 n° 1 do C. Penal., e independentemente de se apurar se o Hospital de S. João deduziu atempadamente queixa, a pena não deveria ultrapassar um (1) ano de prisão. 16º Foi a recorrente condenada pela falsificação de documento, p.e p. pelo art° 256 n° 1 alínea a) do C. Penal na pena de um (1) ano de prisão. Apenas se provou, no ponto 2.66 do Acórdão condenatório, que a recorrente falsificou uma receita. 17° A matéria de facto do ponto 2.33 do Acórdão condenatório é insuficiente para poder concluir-se que houve muitas falsificações e teria de ser a acusação a provar essas falsificações, e não a recorrente a provar que as não fez, como quase se pretende afirmar, a fls. 114 daquele Acórdão. 18° Seis (6) meses de prisão pelo crime de falsificação de uma receita seria pena ajustada à factualidade dada como provada. 19° A recorrente foi condenada na pena de seis (6) anos de prisão pelo crime de tráfico de estupefacientes agravado p. e p. pelo Art° 21 n° 1 e 24 alínea e) do D.L. 15/93 de 22/01. 20° Tinha na sua posse um total de 691 ampolas, de MIDAZOLAM, DIAZEPAM, PETIDINA e MORFINA., que são medicamentos estupefacientes, à luz dos critérios legais. 21º A MIDAZOLAM e a DIAZEPAM pertencem à tabela IV e deve ser punida a sua detenção à luz do Art° 21 n° 4. Os restantes são da tabela I-A., logo com qualificação jurídica diferente. 22º O facto da arguida ser enfermeira não deve qualificar este crime, à luz do Art° 24 alínea e ), pois que a sua profissão não serviu para ceder a terceiros, sem qualquer critério, ou órgão de ciência, estes medicamentos. 23° A recorrente usava-os na sua pessoa, na sua profissão liberal de enfermagem, mas com critérios técnicos de saúde e não com intenção de proporcionar a outrem um gozo, para além do fim terapêutico a que os mesmos se destinavam. 24° Assim sendo, a pena por este crime, que deve ser qualificado como crime único de tráfico de estupefacientes p.e p. pelo Art° 21 n° 1, não deve ultrapassar os quatro ( 4) anos de prisão . 25° Em pena unitária, e em cúmulo jurídico, a pena da recorrente deveria fixar-se nos quatro (4) anos e seis (6) meses de prisão, pelo que salvo o devido respeito, mal andou o Venerando Tribunal da Relação do Porto ao manter as molduras penais aplicadas pelo Tribunal Colectivo. 26° Não há também matéria de facto para se poder concluir que as prestações pagas nos leasings dos dois automóveis, no valor de 34.229,93 Euros fosse proveniente dos abortos, quando só se provou que fez apenas dois abortos, e pelo contrário, se provou que os rendimentos da arguida decorrem do seu vencimento do Hospital S. João e do auferido no exercício da profissão de enfermeira em regime liberal. 27° Nem o alcance jurídico da norma do Art° 111 n° 4 do C. Penal permite esta conclusão, por não ser aplicável ás situações do locatário no leasing, que se limitou a ter uma despesa e não qualquer vantagem. Tanto mais que, a final os contratos de leasing em apreço foram resolvidos. 28° Há pois insuficiência de matéria de facto dada como provada e erro notório na apreciação da prova feita e dessa factualidade, com violação das normas do Art° 410 n° 2 alínea a) e c) do C.P.P. e Msol41 n° 2,375 n° 1,256 n° I, III n° 2 e 4,71 e 79- todos do C.Penal e Artsº 21 n° 1 e 4., e 24 alínea e) - todos do D.L. 15/93 de 22/901. Nestes termos, procedendo o recurso e condenando-se a recorrente em pena unitária de prisão não superior a quatro ( 4) anos e seis ( 6) meses e revogando-se a sua condenação a restituir ao Estado a importância de 34.229,93 Euros, SERA FEITA JUSTIÇA! 2. - Na sua mui douta resposta, o Exmº Procurador-Geral Adjunto, na Relação do Porto, pronunciou-se pelo improvimento do recurso e pela confirmação do acórdão recorrido, destacando previamente que "a arguida A (no presente recurso) não faz mais nada do que repetir para o STJ o que já fez para a Relação, com ínfimas e irrelevantes alterações de pormenor" (sublinhados nossos) . 2.1 - E acrescenta: " É incontestável o seu direito de recorrer, mas sempre se lhe pode dizer, com JOÃO CAUPERS: "...a justiça é mais penalizada por aquilo que lhe sobra do que por aquilo que lhe falta...Sobram, em primeiro lugar, processos....Sobram também recursos...já não há justiça que chegue para tantos juristas.....". O terceiro é o de que a recorrente, de forma implícita, acusa o tribunal de populismo na sua condenação, mas deliberadamente esquece a sua deontologia profissional e outras tantas questões que não deveria esquecer, tais como a apropriação de bens da sua entidade patronal, a exploração de quem se encontrava em graves dificuldades, a ostentação pública e provocatória da sua riqueza, donde que lhe não é legítimo agora vir "vitimizar-se" ante o STJ .Não foi o Ministério Público, nem foi o Tribunal que a acusou e julgou na praça pública, como refere, foi ela própria que se expôs à falta de pudor dos media. De tudo que decorre que o Acórdão da Relação se tenha de ter como absolutamente neutro, e é, no que respeita à penalização do aborto, tal como se encontra no C.Penal. ", Se a Recorrente vencia 500 contos e gastava só em carros 1.000 contos, donde lhe vinha o resto? O tribunal concluiu, e bem, que só da actividade da prática de abortos, não de dois, como diz, mas de inúmeros, que não foi possível concretizar. Prática aquela que perdurou, ao menos, durante cinco anos, a 70 contos por cada acto... Deste jeito, se pensar com todos os dados, sem se "esquecer" os que não nos interessam, já se vê que o tal artigo não foi assim tão mal aplicado como isso. ", 2.2. - Quanto à aplicação do artº 111º do Cod. Penal pormenorizou: "Sobre esta matéria, não se provou bem o que diz a arguida a fls. 4383/4384 e que levou às conclusões 26 e 27. Ou antes: também se provou, mas não só. Mas não há como voltar às origens, o que, no caso quer dizer voltar ao princípio da presente resposta. E lembrar que se provou que a recorrente, que vencia cerca de 500.000$00 mensais (!!!), tinha encargos, com carros de 1.000.000$00, igualmente mensais, que fazia movimentos bancários em numerário de dezenas de milhares de contos, era proprietária, pelo menos de dois imóveis. Que se dedicava à prática de abortos, pelo menos, Agosto de 1995, que cobrava 70.000$00 por cada acto abortivo. Isto não é invenção da resposta. É o que o Tribunal da Relação teve por provado." IV 1. Neste Supremo Tribunal, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta limitou-se a apor o seu visto.2. No exame preliminar, propendeu-se para a rejeição do recurso por se revelar como manifesta a sua improcedência (artº 420º n.º do Cod. Proc. Penal). 3.- Na conferência, não se conseguiu, porém, a unanimidade de votos, como é exigido no artº 420º nº 2 do Cód. Proc. Penal 3.1. Assim completados os vistos, procedeu-se à audiência, com observância do formalismo legal. Cumpre apreciar. 4. - Como nota prévia, pode-se sustentar que é irrecorrível (ex vi do disposto no artº 400º nº 1 al. s d) e f) do Cod. Proc. Penal) o acórdão da Relação, enquanto confirmativo da condenação da recorrente por aborto agravado (punível com prisão até 4 anos), peculato (punível com prisão até 8 anos) e falsificação (punível com prisão até 3 anos). 4.1. - Sobra, portanto e em tese, para rever, neste recurso, a condenação da recorrente por "tráfico agravado de drogas" (punível com prisão de 5,33 a 16 anos de prisão). 4.2. Quando é admissível um duplo grau de jurisdição em matéria de recursos (como no caso vertente: artº 400º n.º 1 al. f) e 432º al. b), ambos do Cod. Proc. Penal), a impugnação recursória para o Supremo Tribunal de Justiça de uma decisão da Relação, tomada na sequência de recurso de decisão de 1ª instância (que lhe negou provimento, confirmando tal decisão), não pode limitar-se a reproduzir a motivação (incluindo as respectivas conclusões) desse recurso. Na verdade, "os recursos são havidos pelo Código (de Processo Penal) como remédios jurídicos que não podem ser utilizados com o único objectivo de obter uma justiça melhor, só relevando a eventual injustiça, produto, de vício de julgamento, quando seja resultado de violação de direito material, tendo de ser indicados expressamente no recurso os erros in judicando ou in procedendo em que se traduzem os vícios de julgamento invocados, dentro de um critério orientados do regime de recursos a que já se chamou de lealdade processual. Pretendeu-se, assim, que os recursos não sejam um modo de entorpecimento da justiça, um monólogo com vários interpretes ou um jogo de sorte ou azar (Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 4ª edição, pág. 98). Nesta percepção, quando se impugna uma decisão já tomada em recurso de decisão anterior, o recorrente tem de invocar novos e específicos argumentos em que se corporize a sua discordância relativa à ultima decisão, pois o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, de um acórdão da Relação, prolatado em via de recurso, não pode ser (não é) um clone do recurso anterior: neste caso, impugna-se a decisão da Relação e jamais a decisão da 1ª instância. E com a certeza de que " a regra, neste domínio, e de acordo com o normativo do artº 434º (do Cod. Proc. Penal), é a de que o recurso para o Supremo tem exclusivamente como escopo o reexame de matéria de direito (obra citada, pág. 135). 5 - Ora, a recorrente, neste recurso que é de revista, olvidando aquela regra e aquele normativo, insiste em questionar a matéria de facto provada, sabendo que do texto da decisão ora recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, não resultam os vícios que imputou à decisão da 1ª instância e que o acórdão ora recorrido, justificadamente e com fundamentação adequada repudiou (artº 410º, n.º 2 do Cod. Proc. Penal). 5.1. - É certo e sabido que o STJ, como órgão de revista que é, tem, em principio, de acatar como intocável a prova exarada no acórdão apelado, cumprindo-lhe apenas a tarefa de aplicar o direito aos factos apurados, nos termos do artº 434º do Cod. Proc. Penal (cfr. Jurisprudência enumerada na obra citada, a pág. 138). 5.2. - Acontece, porém, que no campo da aplicação do direito, a recorrente se limita a reiterar, pura e simplesmente (com algumas e implícitas nuances de pormenor, que infra abordaremos) o somatório dos preceitos que visionou como violados no recurso anterior, sem concretizar as razões pelas quais o acórdão ora recorrido os terá violado, por interpretação errada ou deficiente, e sem contrapor a interpretação que se lhe afigura correcta. V 1. - Apesar da nota prévia consignada, na apreciação das questões alinhadas neste recurso e que alguma envolvência podem revestir no campo da aplicação do direito, no que concerne à matéria de que nos cabe conhecer, seguiremos a ordem por que foram seriadas, começando pelo acrescento constante do artº 8º das conclusões.1.1. - Efectivamente, não há cumplicidade se não houver autoria do crime (artº 27º n.º 1 do Cód. Penal), mas a inversa não é verdadeira: a autoria é, por definição, independente, autónoma, da cumplicidade (artº 26º do mesmo diploma). 1.2. - (Artº 9º). Resulta inequivocamente da matéria de facto provada que a arguida, ora recorrente, praticou o aborto, pelo, menos, nas pessoas das arguidas B e C (como a própria reconhece na conclusão 26º) e com fins lucrativos. 1.3. - ( Artº 13º). Neste ponto, o acórdão recorrido, apreciando e rebatendo idêntica questão posta no recurso anterior, especificou: " Resultou provado que a arguida A, enfermeira no Hospital de São João no Porto e, por isso, funcionária pública, agindo de forma voluntária e consciente, apoderou-se de diverso material e medicamentos a este pertencente. Bem sabia que os mesmos não lhe pertenciam. Mais se provou que tinha acesso aos mesmos por força das funções que exercia no Hospital S. João. Aliás, não é um qualquer cidadão que entra no Hospital, vai ao departamento de obstetrícia, onde os objectos se encontram, e aí se apodera, por diversas vezes, do referido material. O que vale por dizer que o material só lhe estava acessível por força das funções que exercia, não sendo necessário que estivesse à sua guarda e responsabilidade. Verificam-se, pois, todos os elementos do tipo" .(Artº 375º n.º 1 do Cód. Penal). 1.3.1. - Ora, se alguns dos objectos e medicamentos de que a recorrente se apropriou, pertenciam ao Serviço de Urgência, Otorrino e Psiquiatria (ex. blocos receitas), é aspecto irrelevante (e por sinal não discutida no recurso anterior) para a perfectibilidade do crime de peculado por que a arguida foi condenada. 1.4. - (Artº 25º). Entende a Recorrente que mal andou o Venerando Tribunal da Relação do Porto ao manter as molduras penais aplicadas pelo Tribunal Colectivo". 1.4.1. - O acórdão da Relação ponderou, com o pormenor indispensável e exigível, esta questão, concluindo haver de manter-se as penas aplicadas (as penas parcelares e pena única), tidas por ajustadas no acórdão então recorrido, com a seguinte explanação e justificação: " Nos termos do art.º 71º do CP, a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra aquele, enumerando-se nesse preceito exemplificativamente alguns desses factores. E a pena não pode ultrapassar a medida da culpa - art.º 40º, n.º 2, do mesmo código. O modelo de determinação da medida da pena que melhor combina os critérios da culpa e da prevenção é, como ensina o Prof. Figueiredo Dias, "aquele que comete à culpa a função (única, mas nem por isso menos decisiva) de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração) a função de fornecer uma «moldura de prevenção», cujo limite máximo é dado pela medida óptima de tutela dos bens jurídicos - dentro do que é consentido pela culpa - e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico; e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exacto de pena, dentro da referida «moldura de prevenção», que melhor sirva as exigências de socialização (ou, em casos particulares, de advertência ou de segurança) do delinquente" (Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 3, Abril - Dezembro 1993, páginas 186 e 187). Analisando a decisão recorrida, crê-se que o tribunal colectivo ponderou devidamente todas as circunstâncias a ter em conta na aplicação da pena. As penas parcelares, bem como o cúmulo jurídico, obedecem ao critério estabelecido na lei. A culpa e a prevenção foram correctamente conjugadas e, por isso, a pena é justa, adequada e proporcional. O tribunal colectivo salientou, de forma correcta, a acessoriedade dos restantes crimes relativamente ao crime de aborto agravado, embora se trate de concurso efectivo. No que toca ao crime de tráfico de estupefacientes, apesar da elevada ilicitude do facto, não se pode olvidar que não estamos em presença de heroína, cocaína ou substâncias similares, antes de produtos farmacêuticos, de uso terapêutico que, apesar disso, só podem ser detidos por quem está habitado a fazê-los. Nenhuma razão se encontra - pese os doutos argumentos do M.º P.º em 1ª Instância - para alterar a decisão." 1.4.1 - O Tribunal Colectivo fundamentara a condenação da arguida A, em termos completos e exemplares, justificando a dosimetria das penas correspondentes aos crimes praticados e a pena única que, no caso se impunha, atento o conjunto dos factos e a personalidade de quem os praticou. Assim: "O artº. 40º., nº.s. 1 e 2, do C. Penal, refere que a aplicação das penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Por sua vez, o art. 71º., n.º. 1, estabelece que a determinação da medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo, ainda, conforme o seu n.º. 2, atender-se às circunstâncias que deponham a favor do agente ou contra ele, nomeadamente as aí enumeradas. A culpa traduz-se no grau de censura ético-jurídica merecida pelo agente pela violação do dever-ser jurídico-penal. Como refere o Prof. Figueiredo Dias, «Culpa e prevenção são os dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo de medida (em sentido estrito, ou de "determinação concreta"...) da pena». E, continua este Professor: «As finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida possível, na reinserção do agente na comunidade. A pena, por outro lado, não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa». Ao crime de Aborto Agravado corresponde a pena de 40 dias de prisão a 4 anos de prisão (artigos 140, nº2 e 141º, nº2 do C.P). Quanto ao crime de Peculato, é punível com pena de prisão de 1 a 8 anos. Quanto ao crime de Falsificação de Documentos previsto pelo artigo 256º, nº1, al. a), do C. Penal corresponde a pena de prisão até 3 anos ou pena de multa. Quanto ao crime de Tráfico de Estupefacientes Agravado previsto pelos artigos 21º, n.º 1 e 24º, alínea e), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22-01, corresponde a pena de 5 anos e 4 meses de prisão a 16 anos de prisão; No que concerne ao crime de Aborto Agravado, tendo em conta o bem jurídico não respeitado (vida humana intra-uterina), o modo de execução do mesmo, entende-se que o grau de ilicitude é elevado. Quanto ao crime de Peculato, considerando o bem jurídico violado - honestidade e lisura no exercício da função pública - o modo de execução do mesmo, a natureza, a quantidade e valor dos produtos de que a arguida se apropriou (sendo certo que, nesta parte, presume-se que a acção da arguida foi facilitada por uma aparente falta de controlo por parte do serviço público onde exercia as suas funções de enfermeira), entende-se que é elevado o grau de ilicitude. Quanto ao crime de Falsificação de documentos, considerando o bem jurídico violado - segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório no que respeita à prova documental - e considerando o título profissional da arguida que não a habilita a emitir receitas, a violação de deveres deontológicos inerentes à sua profissão - entende-se que é elevado o grau de ilicitude da conduta da arguida. Quanto ao crime de Tráfico de Estupefacientes Agravado, considerando o bem jurídico violado - saúde pública - , a circunstância de a arguida ser enfermeira, o que faz presumir que ela tinha um certo domínio na administração de tais fármacos, que não existe notícia de criação de situações concretamente perigosas verificadas na sequência da actuação da arguida, que se trata de "um tráfico peculiar" atenta a natureza das substâncias e as circunstâncias (e finalidades) em que as mesmas eram ministradas, entendemos que não é elevado o grau de ilicitude. O dolo da arguida nos vários segmentos da sua actuação é intenso. Para tanto, basta atentar nas circunstâncias envolventes da prática dos vários crimes, as quais traduzem toda um suporte material, físico e de recursos humanos previamente organizado pela arguida e mantido ao longo de um vasto período de tempo em que se estendeu a sua actuação. Quanto aos fins manifestados no cometimento dos crimes, traduzem uma personalidade vincada, em que se revela a tenacidade da arguida em prosseguir os seus objectivos - a arguida não demonstra sensibilidade ao dever-ser jurídico-penal, apresentando ostensivamente versões absurdas perante factos evidentes. Acresce que a arguida não mostrou qualquer arrependimento. São elevadas as exigências de prevenção geral, considerando que a prática de Aborto Clandestino é uma realidade e, normalmente tem consequências a nível da saúde das mulheres grávidas que recorrem a tal intervenção, constituindo uma das principais causas de óbitos maternos. Também são elevadas as exigências de Prevenção geral no que respeita à detenção ilícita de substâncias estupefacientes. Como circunstâncias que depõem a favor da arguida, atender-se-á: à inexistência de antecedentes criminais da arguida; à circunstância de ser uma profissional competente e estimada por colegas de profissão e por clientes, desconhecendo-se a existência de qualquer queixa relativamente aos serviços prestados pela arguida. Tudo ponderado, o Tribunal entendeu como legais, necessárias, proporcionais e adequadas as seguintes penas: - a pena de 3 anos de prisão, quanto ao crime de Aborto Agravado ; - a pena de 1 ano de prisão quanto ao crime de Falsificação de Documentos, (por tal espécie de pena privativa da liberdade se optando, nos termos do artº. 70º do C.P., uma vez que, no quadro circunstancial fáctico apurado, nenhum sentido teria, em termos de realização das finalidades da punição, dar preferência à multa ); - a pena de 3 anos de prisão quanto ao crime de Peculato e - a pena de 6 anos de prisão, quanto ao crime de Tráfico de Estupefacientes Agravado. Operando o cúmulo jurídico entre as quatro penas parcelares aplicadas à arguida A, cujos valores determinam uma moldura abstracta para o efeito de 6 anos de prisão a 13 anos de prisão, o Tribunal, terá em conta os critérios do artº. 77º., do C. Penal, nos termos também entendidos pela Doutrina, ou seja, em conjunto os factos e personalidade do agente, em que avulta estreita e próxima conexão entre os crimes e a relação de acessoriedade entre o crime dominante (crime de Aborto) e os restantes. Efectivamente, o limite mínimo da Moldura do Concurso já é significativamente elevado, porquanto tem por base o crime de Tráfico de Estupefacientes na forma Agravada, o qual, como já referido, é subordinado ao crime Dominante (Crime de Aborto Agravado). Os crimes de Peculato e de Falsificação de Documentos apresentam uma ligação intensa com a referida prática de abortos, sendo que, é este segmento da conduta criminosa, aquele que presidiu à actuação global e que, por isso, domina. Quanto à Personalidade da Arguida, esta demonstra uma efectiva indiferença ou mesmo propensão para a prática de crimes protectivos de bens jurídicos diversos, tudo em ordem à consecução de um plano global criminoso, com inerente ultrapassagem das barreiras que se lhe iam colocando. Face a tudo o exposto, entende-se ajustada a pena única de 8 anos e 6 meses de prisão". 1.4.2 - Rememorados todos estes profícuos e extensos fundamentos, impõe-se apenas rever (e por proposta) apresentada na conferência de 14/11/2002), a condenação da recorrente por tráfico agravado de estupefacientes. E, a este respeito, o que o recurso põe, fundamentalmente, em causa é a agravante específica da alínea e) do art. 24º do dec. Lei 15/93 («(...) se o agente for técnico de saúde e o facto for praticado no exercício da sua profissão»). Ora, foi no exercício (ainda que «abusivo») da sua profissão que a arguida desencaminhou do hospital público - onde trabalhava como enfermeira obstetra - o vasto arsenal de «medicamentos estupefacientes» encontrados na sua clinica particular. E foi no exercício (igualmente «abusivo») da sua profissão que a arguida os utilizou ou se preparava para utilizar na prática (clandestina) de abortos. Acontece, porém, que a «boa prática» (médica) de um aborto (sem dor) exige a administração à paciente de medicamentos como os que a arguida administrava no exercício (particular) da sua «clinica». Repare-se, por isso, que o «desvio» operado pela arguida de «medicamentos» do hospital público onde trabalhava para a sua clinica particular integra, simultaneamente, o tipo legal de crime de «tráfico de estupefacientes» e o de «peculato». E a utilização destes na sua clinica particular, enquanto exigência instrumental de uma «boa prática» do «aborto», também implica a duplicação típica de uma mesma conduta. Dir-se-ia que a censura relativa ao meio utilizado na boa prática dos abortos levados a cabo pela arguida não caberia (enquanto «tráfico ilícito de estupefacientes», e, dai, a punição autónoma deste) na censura do tipo legal de crime de aborto. Mas a verdade é que a prática ilícita de abortos não é compatibilizável (porque fora do circuito legal) com a administração lícita (isto é, dentro do circuito legal) dos «medicamentos» exigidos pela sua «boa prática». Aceita-se, por outro lado, que não caiba, na punição típica do «peculato», a censura devida ao «funcionário» que subtrai (ao Estado) bens de «trânsito condicionado» (que lhe sejam acessíveis em razão das suas funções) e os coloque, em resultado da subtracção/apropriação, em «regime livre». Mas é, por isso mesmo, que o art. 375.1 do CP prevê para o autor do peculato, em casos que tais, a «pena mais grave que lhe couber por força de outra disposição legal». A questão que deve por isso colocar-se é a de saber se, perante a concreta punição dos crimes de «peculato (de drogas ilícitas)» e de «aborto» (cuja «boa prática» exige, como já se viu e é óbvio, a administração de analgésicos, sedativos e anestésicos), a penalização autónoma do tráfico agravado de estupefacientes não implicará um injusto «bis in idem». Por outras palavras, o que se pergunta é se, afinal, a norma punitiva do «tráfico ilícito» não concorrerá tão só aparentemente com as normas típicas dos demais crimes (designadamente o de «peculato», que, na hipótese de concurso de normas, adopta, justamente, a «pena mais grave que lhe couber por força de outra disposição legal»). Ora, no caso, é a própria lei que, ao punir o peculato, condiciona expressamente a eficácia da pena genericamente prevista para esse crime à não aplicabilidade, pelo mesmo facto (complexo), de pena mais grave (subsidiariedade expressa). O que quer dizer que, sendo de trânsito ilícito os bens subtraídos ao Estado, haja o correspondente peculato de ser penalizado com a pena mais grave que couber ao trânsito ilícito desses bens. Daí que, devendo afinal aplicar-se ao peculato a pena (mais grave) do tráfico agravado de estupefacientes, a norma assim aplicada passe a consumir - «em concreto» (1) - a protecção visada pela outra (consunção). Não haverá, pois, que punir autonomamente o peculato e o tráfico ilícito de drogas, mas, simplesmente, que punir aquele com a pena (agravada) (2). deste. Unificando-se, assim, estes (aparentemente, dois) ilícitos e concretizando-se a respectiva pena em 5,5 anos de prisão, a pena conjunta correspondente a este crime e aos de «aborto agravado» e de «falsificação» (cujas penas parcelares foram definitivamente fixadas pelas instâncias em, respectivamente, 3 anos de prisão e 1 ano de prisão) será de fixar a pena única, em 7 anos de prisão. 1.5. - (Artº 26º). - A recorrente continua a questionar a legalidade da decisão na parte em que a condenou a pagar ao Estado a quantia de € 34.229,93. Dispõe o art.º 111º do C. Penal, nos seus n.ºs 1, 2 e 4 do C. Penal: "1. Toda a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico, para eles ou para outrem, é perdida a favor do Estado. 2. São também perdidos a favor do Estado, sem prejuízo dos direitos do ofendido ou de terceiro de boa fé, as coisas, direitos ou vantagens que, através do facto ilícito típico, tiverem sido directamente adquiridos, para si ou para outrem, pelos agentes e representem uma vantagem patrimonial de qualquer espécie. 4. Se a recompensa, os direitos, coisas ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respectivo valor" 1.5.1. - O douto acórdão, ora recorrido, depois de transcrever estes normativos e de lembrar aquilo de que nos dá conta o Dr. Maia Gonçalves, no "Código Penal Português, 13ª edição, pág. 385 (" o termo recompensa constante dos números 1 e 4, tem um sentido amplo de qualquer vantagem dada ou prometida aos agentes do facto ilícito típico. Do projecto inicial constava o termo preço, o qual foi considerado demasiado restritivo pela Comissão Revisora"), abona-se na matéria de facto provada (item 2.69), de onde resulta que todas as quantias em dinheiro apreendidas nos autos e os montantes das prestações pagas relativamente aos veículos apreendidos nos presentes autos - BMW 320 D, matrícula OH e Renault Laguna, matrícula LD - nos montantes de Esc.: 3.186.080$00 e Esc.: 3.676.404$00, respectivamente, são provenientes da actividade de prática de abortos desenvolvida durante vários anos, pela arguida A. O art.º 111º, transcrito, determina a perda a favor do Estado dessas quantias porque provenientes de actividade ilícita típica, no caso até resultante do preço dos serviços praticados. E conclui: Como as mesmas serviram para pagar rendas a sociedade de leasing, a recorrente terá de entregar agora ao Estado importância equivalente. 1.5.2. - É o que efectivamente consta do item factológico referido ("todas as quantias em dinheiro apreendidas nos autos e montantes das prestações pagas relativamente aos veículos apreendidos nos presentes autos ... (...) são provenientes da actividade de pratica de abortos, pela arguida A" ...) o que, por sinal, não invalida nem contradiz o facto de a arguida auferir o seu vencimento no Hospital de São João (Porto) e até de auferir rendimentos no exercício da profissão de enfermeira em regime liberal (como se consignou nos itens 2.79 a 2.83). 1.5.3. - E os encargos astronómicos que suportava, como se destaca na douta resposta do Ministério Público e se enumeraram nos itens 2.100, 2.101 e 2.102 do acervo fáctico provado não contam ? 1.5.4. - Seja como for, isso não põe em causa o facto tido por provado no item 2.69, pois, apesar de coisas distintas, até se revelam coadjuvantes ... 1.6. - (Artº 27º). Os contratos de leasing em apreço, foram resolvidos. Quando? 1.6.1. - A este respeito apenas sabemos (e interessa) o que consta do item 2.102 da matéria de facto provada: "Possui 4 (quatro) viaturas ao seu serviço e do seu agregado familiar e, pelo menos três, foram adquiridas mediante contratos de leasing, vigente à data de 25 de Fevereiro de 2000, data da detenção da arguida." 1.6.2. -Neste ponto, o acórdão recorrido é imerecedor de qualquer reparo. VI - Custas pela Recorrente, fixando-se em sete (7) Uc’s a taxa de justiça, pelo decaimento parcial. Lisboa, 28 de Novembro de 2002. Dinis Alves (Aderi à posição proposta e revi a posição anteriormente assumida). Carmona da Mota Pereira Madeira Simas Santos (com a declaração de que tenho dificuldade em aderir à construção do douto acórdão que antecede, pois que, na óptica de que parte, então se deveria efectivar a punição no quadro do peculato e do tráfico simples, não se valorando duplamente a qualidade profissional da arguida). ---------------------------- (1) «Daí que, ainda com fundamento na regra ne bis in idem, se tenha de concluir que lex consumem derogat legi consumtae. O que, porém. ao contrário do que sucede com a especialidade, só em concreto se poderá afirmar, através da comparação dos bens jurídicos violados» (EDUARDO CORREIA, Direito Criminal, II, Almedina, 1965, p. 205) (2) Já que foi no exercício (abusivo) da sua profissão de técnica de saúde que a arguida praticou o «facto |