Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07P3509
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SOUTO DE MOURA
Descritores: PRISÃO PREVENTIVA
APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO TEMPO
CUMPRIMENTO DE PENA
TRÂNSITO EM JULGADO
COMPARTICIPAÇÃO
ARGUIDO NÃO RECORRENTE
CASO JULGADO PARCIAL
CASO JULGADO REBUS SIC STANTIBUS
LIMITAÇÃO DO RECURSO
ÂMBITO DO RECURSO
Nº do Documento: SJ200709270035095
Apenso:
Data do Acordão: 09/27/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: INDEFERIMENTO
Sumário :

I - O arguido foi detido em 17-01-04; na 1.ª instância foi condenado pela prática, em co-autoria material e em concurso real e efectivo, dos crimes de burla qualificada, falsificação e associação criminosa, na pena única de 4 anos e 6 meses de prisão, confirmada na Relação e, contrariamente a vários co-arguidos, não interpôs recurso para o STJ, sendo certo que aqui a condenação foi confirmada, por Ac. de 21-06-07.
II - Um dos seus co-arguidos recorreu para o TC, mas como o recurso não foi admitido, reclamou do despacho, aguardando-se a decisão da reclamação da não admissão do recurso, nessa instância.
III - De acordo com o regime processual penal, anterior à entrada em vigor da Lei 48/2007, de 29-08, a medida de coacção de prisão preventiva teria que se extinguir passados que fossem 4 anos depois daquela data, não havendo decisão condenatória transitada em julgado, por força do art. 215.º, n.ºs 1, al. d), 2, al. a), e 3, do CPP.
IV - Em face da nova redacção do preceito, o prazo em questão passaria para 3 anos e 4 meses.
V - Vem sendo jurisprudência dominante deste Supremo Tribunal que em casos de comparticipação, e tendo em conta entre o mais o disposto na al. d) do n.º 2 do art. 403.º, forma-se caso julgado parcial em relação aos arguidos não recorrentes; estes passam a cumprir pena, sem prejuízo do recurso interposto por qualquer dos comparticipantes lhes poder aproveitar – Acs. de 07-07-05, 08-03-06, 07-06-06 e de 07-02-07, respectivamente nos Procs. n.ºs 2546/05 - 5.ª, 886/06 - 3.ª, 2184/06 - 3.ª e 463/07 - 3.ª.
VI - Daí se falar, em relação a eles, de caso julgado sob condição resolutiva, a partir da disciplina do art. 403.º – cf. Cunha Rodrigues, Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, pág. 388, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, pág. 335, e Simas Santos/Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, pág. 73.
VII - Tendo o arguido visto confirmada a sua condenação pelo Tribunal da Relação e não tendo interposto recurso, a mesma, quanto a si, transitou em julgado, encontrando-se em cumprimento de pena (arts. 677.º a 669.º do CPC, ex vi art. 4.º do CPP).
VIII - Ora, não se encontrando em prisão preventiva, falece o primeiro pressuposto da providência de habeas corpus, que assim é indeferida
Decisão Texto Integral:

A – PETIÇÃO


AA, presentemente recluso no Estabelecimento Prisional da Carregueira, e no pressuposto de que se encontra em prisão preventiva, veio requerer em documento por si subscrito a providencia de habeas corpus, com fundamento na ilegalidade da prisão. Fê-lo nos termos que se passam a transcrever:

“AA, actualmente detido no E. P. da Carregueira, arguido no processo acima identificado e à ordem do mesmo, vem requerer ao abrigo dos artº 13 e 31 da Constituição da República Portuguesa, e dos artº 222 e 223 do C. P. P. requer a providencia de HABEAS CORPUS em virtude de prisão ilegal.
O arguido, AA, encontra-se detido à ordem do mesmo desde 17/01/2004 em prisão preventiva.
Vem assim requerer a concessão da providencia excepcional de Habeas Corpus, invocando os artigos 222 nº1 e nº 2 al c e do artº 217 do C. P. P. pois neste momento verifica-se a situação de prisão ilegal por manter-se para além do prazo fixado por lei.
Por todo o exposto e em conclusão:
Venho requerer a extinção de prisão preventiva e a minha restituição à liberdade fazendo cumprir o artº 217 do C. P. P. e fazendo-se justiça.”


B – INFORMAÇÃO


Consultado o Pº 1022/07 da 5ª secção, à ordem do qual o requerente está preso e que pende presentemente neste Supremo Tribunal, constatou-se ter sido aí lavrado despacho, pelo Exmº Conselheiro Relator do processo, nos termos do qual o arguido AA não deve ser restituído à liberdade. A posição assumida em tal despacho, que consta de fls.5368 v. e 5369, foi a que, em síntese, se passa a referir:

O arguido AA não interpôs recurso da decisão que o condenou, pelo que , quanto a ele, tal decisão transitou em julgado. Configura-se uma situação de caso julgado parcial, nos termos do artº 403º, nº 1 e 2, al. e) do C. P. P., sujeito no entanto à condição resolutiva do nº 3. Ou seja, sujeito à eventualidade de consequências vantajosas, para o arguido AA, poderem resultar do decidido no recurso entretanto interposto pelo co-arguido BB, para o Tribunal Constitucional, caso, evidentemente, este recurso venha a ser admitido.


Daí que o arguido AA se deva considerar em cumprimento de pena e não em prisão preventiva. Mais é ordenado, subsequentemente, o envio de translado à primeira instância “ para lá se fazer o acompanhamento da respectiva execução da pena”.

Resulta ainda dos autos que:
- O requerente foi detido a 17/1/04 (fls. 499), após o que foi interrogado como arguido, sendo-lhe aplicada a medida de coacção de prisão preventiva (fls. 510 a 517).
- Por despacho de fls. 1857 e 1858 foi declarada a excepcional complexidade do processo.
- O arguido foi condenado em primeira instância pelo Tribunal Colectivo de Oeiras, na pena única, em cúmulo, de 4 anos e 6 meses de prisão, pela prática de vários crimes de burla qualificada e de falsificação, e ainda pela prática do crime de associação criminosa, p. e p. pelo artº 299º, nºs 1 e 2 do Código Penal.
Considerou-se que todos os crimes pelos quais o arguido foi condenado foram praticados em co-autoria material e em concurso real e efectivo.
- Recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, que negou provimento ao recurso e manteve, a 19/12/06, na íntegra, a decisão da primeira instância.
- Ao contrário do que ocorreu com os seus co-arguidos DD , BB, FF, eEE, o requerente não interpôs recurso para este Supremo Tribunal de Justiça. Os referidos co-arguidos recorrentes veriam a sua condenação mais uma vez confirmada, por acórdão deste Supremo Tribunal, de 21/6/07.
- Os co-arguidos BB, CC, DD e EE, porque o recurso por si interposto para este S. T. J. fora parcialmente rejeitado, apresentaram reclamação dessa rejeição parcial. Trata-se de reclamações de que se não conheceu (fls 7 do apenso A, e fls. 6 do apenso B destes autos).
- BB recorreu ainda para o Tribunal Constitucional, do acórdão condenatório deste Supremo Tribunal (fls. 5345), não tendo o recurso sido admitido (fls. 5353 e 5354).
Pretende com esse recurso que o Tribunal Constitucional aprecie a inconstitucionalidade da norma do artº 400º nº1 al. f) do C. P. P., na interpretação acolhida por este S. T. J., no seu acórdão, nos termos da qual, a decisão da Relação é irrecorrível, quando estejam em causa crimes puníveis singularmente com pena não superior a oito anos, e aquele tribunal tenha confirmado a condenação da primeira instância, (a chamada dupla conforme), e isto também em caso de concurso de infracções.
O recurso não foi admitido porque, segundo o Exmo Relator, a inconstitucionalidade invocada pelo arguido BB “não foi suscitada durante o processo para que pudesse ser encarada na decisão de recurso” (fls. 5353).
Veio então reclamar do despacho de não admissão do recurso para o Tribunal Constitucional, após o que, ficou pendente nesse Tribunal o Apenso C, do Pº 1022/07 da 5ª Secção, a seu tempo desentranhado, e aguardando decisão.



C – DISCUSSÃO


Convocada a secção criminal, notificados o Mº Pº e a defesa, teve lugar a audiência (artº 223º nº 3 e 435º do C.P.P.)
Cumpre dar nota da apreciação que se fez da pretensão do requerente.

A Constituição da República prevê ela mesma a providencia de que foi lançada mão:

“Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.” (nº 1 do artº 31º).

O nº 2 do artº 222º do C.P.P. faz depender a procedência da petição de “habeas corpus” em virtude de prisão ilegal, do facto de, a prisão,

“a) Ter sido ordenada ou efectuada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.”

Face ao peticionado pelo arguido, a única justificação para que a sua pretensão fosse atendida teria que se enquadrar na última das alíneas referidas: ultrapassagem dos prazos fixados na lei para a prisão preventiva. No pressuposto obviamente necessário de que o requerente se encontrasse em prisão preventiva

Encaremos então a situação do arguido admitindo que se encontra em prisão preventiva.

O arguido foi detido a 17/1/2004.
De acordo com o regime processual penal, anterior à entrada em vigor da Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto, a medida de coacção de prisão preventiva a que o requerente poderia ser sujeito, teria que se extinguir, passados que fossem 4 anos depois daquela data, não havendo decisão condenatória transitada em julgado. Isto por força das disposições combinadas dos artº 215º nº 1 al.d), nº 2 al.a) e nº 3 do C. P. P..
Em face da nova redacção dada aos preceitos pela referida Lei nº 48/2007, o prazo em questão passaria no entanto para 3 anos e 4 meses.
De acordo com o artº 5º nº 1 e nº 2 al. a) do C. P. P., a lei processual nova não será de aplicação imediata, se dela resultar “Agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa “. Porque não seria manifestamente o caso, haveria que ter em conta o novo regime, na determinação do prazo máximo de prisão preventiva até ao trânsito em julgado da decisão condenatória. Nessa hipótese, o arguido AA poderia ter ficado em prisão preventiva até 17/5/2007, ao que acresceria eventualmente, ainda, o prazo de 6 meses, por força do actual nº 5 do artº 215º do C. P. P., que contempla as situações em que tiver havido recurso para o Tribunal Constitucional. Como se viu, o Pº 1022/07 da 5ª Secção, ainda está pendente neste S. T. J., exactamente por ter sido interposto recurso para o Tribunal Constitucional, aguardando-se a decisão da reclamação de não admissão do recurso, nessa instância.

Importa porém verificar se o requerente se encontra em prisão preventiva, ou, pelo contrário, se se deve considerar em cumprimento de pena.

Diz-nos o artº 402º do C. P. P.:

“1. Sem prejuízo do disposto no artigo seguinte, o recurso interposto de uma sentença abrange toda a decisão.
2. Salvo se for fundado em motivos estritamente pessoais, o recurso interposto:
a) Por um dos arguidos em caso de comparticipação, aproveita aos restantes;
b) Pelo arguido, aproveita ao responsável civil;
c) Pelo responsável civil aproveita ao arguido, mesmo para efeitos penais.
3. O recurso interposto apenas contra um dos arguidos, em casos de comparticipação, não prejudica os restantes.”

Refere a seu turno o artº 403º do mesmo Código:

“1. É admissível a limitação do recurso a uma parte da decisão quando a parte recorrida puder ser separada da parte não recorrida, por forma a tornar possível uma apreciação e uma decisão autónomas.
2. Para efeito do disposto no número anterior, é nomeadamente autónoma a parte da decisão que se referir:
a) A matéria penal, relativamente àquela a que se referir a matéria civil;
b) Em caso de concurso de crimes, a cada um dos crimes;
c) Em caso de unidade criminosa, à questão da culpabilidade, relativamente àquela que se referir à questão da determinação da sanção;
d) Em caso de comparticipação criminosa, a cada um dos arguidos, sem prejuízo do disposto no artº 402º, nº 2, alíneas a) e c);
e) Dentro da questão da determinação da sanção, a cada uma das penas ou medidas de segurança.
3. A limitação do recurso a uma parte da decisão não prejudica o dever de retirar da procedência daquele as consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão recorrida.”

Vem sendo jurisprudência dominante deste Supremo Tribunal que em casos de comparticipação, e tendo em conta entre o mais o disposto na alínea d) do nº 2 do artigo 403º citado, forma-se caso julgado parcial em relação aos arguidos não recorrentes. Estes passam a cumprir pena, sem prejuízo de o recurso interposto por qualquer dos comparticipantes lhes poder aproveitar (v.g. Pº de Habeas Corpus nº 2546/05, 5ª secção, de 7/7/05, nº 888/06, 3ª secção de 8/3/06, nº 2184/06,3ª secção de 7/6/06, ou 463/07, 3ª secção de 7/2/07). Daí se falar em relação a eles de caso julgado sob condição resolutiva, a partir exactamente da disciplina do artº 403º focado (Cfr. Cunha Rodrigues, in “Jornadas de Direito Processual Penal. O Novo Código de Processo Penal”, pag.388, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, III, pag.335, Simas Santos e Leal Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, pag. 73).
Como se referiu, o arguido viu confirmada a sua condenação por decisão do Tribunal da Relação de Lisboa a 19/12/06. Não interpôs dela recurso, nem pediu qualquer aclaração, pelo que, quanto a si transitou em julgado, nos termos antes referidos, dez dias depois (artº 677º, 668º, e 669º do C. P. C., ex vi do artº 4º do C. P. P., e artº 153º do C. P. P.).

Face ao que se vem afirmando, fica claro que o arguido já se encontra em cumprimento de pena desde 29/12/06.
Falece assim o pressuposto primeiro para que a providência de Habeas Corpus pudesse ser atendida, que seria o de o arguido se encontrar em prisão preventiva ( afastada evidentemente a hipótese de mera detenção que não vem ao caso).



D – DELIBERAÇÃO


Pelo exposto, e tudo visto, delibera-se neste S. T. J. indeferir, porque manifestamente infundado o pedido de Habeas Corpus apresentado por AA.

Taxa de justiça: 2 UCS

Sanção processual do artº 223º nº 6 do C. P. P. – 6 UCS



Lisboa, de Setembro de 27 de Setembro de2007

Souto de Moura (relator)

Carmona da Mota
Gonçalves Pereira