Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05B431
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FERREIRA DE ALMEIDA
Descritores: HOSPITAL
SERVIÇO NACIONAL DE SAÚDE
PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
ACTO DE GESTÃO PRIVADA
COMPETÊNCIA MATERIAL
Nº do Documento: SJ200503170004312
Data do Acordão: 03/17/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 4099/04
Data: 07/01/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I - As despesas com prestações de serviços (cuidados médicos) efectuadas por um hospital público a um hospital SA, ambos integrados no Serviço Nacional de Saúde, devem ser custeadas pelo hospital requisitante, uma vez que não passam de normais e correntes prestações de serviços, inseridas no comércio jurídico privado, como tais regulados pela lei civil comum - conf. arts. 1155 e 1156 e ss do C. Civil.
II - As entidades públicas ou para-públicas podem exercer as suas atribuições em pleno pé de igualdade com outras pessoas físicas ou jurídicas de escopo congénere, portanto desprovidas do poder de supremacia que em princípio lhes adviria da sua qualidade de ente público administrativo. Os actos assim praticados serão de qualificar como de "gestão privada".
III - O verdadeiro "distinguit" - para efeitos da apreciação / avaliação de um certo acto, facto ou contrato gerador de responsabilidade civil para com terceiros numa ou noutra das categorias (gestão privada / gestão pública) reside em saber se as concretas condutas alegadamente ilícitas e danosas se enquadram numa actividade regulada por normas comuns de direito privado (civil ou comercial) ou antes numa actividade especificamente disciplinada por normas de direito público administrativo.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. O Hospital de Santa Marta, com sede na Rua de Santa Marta, em Lisboa, intentou, com data de 25-9-02, acção ordinária de condenação contra o Hospital Amadora-Sintra, Sociedade A, com sede no Hospital Prof. Dr. Fernando da Fonseca, Amadora, solicitando a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de 74.505,94 € e respectivos juros, a título de serviços de saúde prestados a pacientes admitidos no hospital da Ré, a pedido desta, e não oportunamente pagos.

2. Contestou a Ré alegando que, por se encontrarem ambos os hospitais integrados no Serviço Nacional de Saúde, não seriam devidos à A. pagamentos dos serviços por esta prestados.

3. Respondeu a A., sustentando o alegado na petição inicial.

4. Por despacho-saneador sentença de 3-6-03, o Mmo Juiz da 8ª Vara Cível da Comarca de Lisboa julgou a acção procedente e, consequentemente, condenou a Ré a pagar à A. a quantia de € 74.505,94, acrescida de € 9.917,39 de juros vencidos até à data de propositura da acção, e de juros, à taxa legal, sobre o primeiro montante desde tal data e até integral pagamento.

5. Inconformada apelou a A., mas o tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 1-7-04, negou provimento ao recurso.
6. De novo irresignada, desta feita com tal aresto, dele veio a mesma Ré recorrer de revista para este Supremo Tribunal, em cuja alegação formulou as seguintes conclusões:

A- A questão controvertida e suscitada pelas partes consiste em saber se à luz do determinado no Despacho no 4/89, e tendo presente o estipulado no contrato de gestão do Hospital do Professor Doutor Fernando Fonseca, deve a recorrente pagar à recorrida o custo dos cuidados de saúde prestados por esta aos doentes identificados nos autos e referenciados pela recorrente;

B- O Venerando Tribunal a quo não se pronunciou sobre esta questão, que lhe foi suscitada, pelo que violou o disposto no artº 660° nº 2 do Código de Processo Civil;

C- A decisão sobre o mérito da causa tem de assentar sobre a interpretação de um acto administrativo - o Despacho n. 4/89 - e de um contrato administrativo - o contrato de gestão do Hospital do Professor Doutor Fernando Fonseca;

D - E tanto assim é que, tanto o pedido deduzido pela Hospital de Santa Marta, SA como o acórdão recorrido se estribam naqueles instrumentos jurídico-legais;

E- Sucede que a competência para conhecer de litígios emergentes de tais instrumentos é dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal - artº 4° n. 1 alíneas c) e f) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais aprovado pela Lei 13/2002,de 19/2;

F- Pelo que são os tribunais cíveis absolutamente incompetentes, em razão da matéria, para decidir da presente acção, o que é de conhecimento oficioso - artºs 494º nº 1 e 495º do Código de Processo Civil;

G- Abstendo-se de se pronunciar sobre esta questão o Venerando Tribunal a quo violou, uma vez mais, o disposto no artº 660º do Código de Processo Civil;

H- O Despacho no 4/89 encontra-se revogado pela Base XXXIIl da Lei 48/90, de 24/8, na sua actual redacção;

I- No entanto, a não se entender assim, tem de concluir-se que o mesmo não tem aplicabilidade no caso vertente e isto porque a recorrida é remunerada pelo Ministério da Saúde, mediante um contrato-programa, em função dos cuidados de saúde prestados aos utentes do Serviço Nacional de Saúde, todos referenciados por outros hospitais, dados os circunstancialismo a atrás descritos - artºs 20, nº 2, do DL 292/2002 e 240 nº 1 dos Estatutos;

J - A recorrente, por seu lado, tem o dever, por cujo cumprimento não pode ser onerada, de referenciar a outras instituições e serviços de saúde os doentes para cujo tratamento o Hospital do Professor Doutor Fernando Fonseca não se encontre habilitado em termos de diferenciação e capacidade técnicas - cláusula 8ª, nºs 1 e 2 do contrato de gestão;

L - Atento tudo quanto fica exposto, devem as instâncias declarar-se incompetentes em razão da matéria, absolvendo-se a recorrente da instância;

M - Ou, quando assim se não entenda, do pedido;

N- Para o que deverá ser revogada a decisão recorrida e concedido provimento ao presente recurso.

7. Não foram produzidas contra-alegações.

8. Colhidos os vistos legais, e nada obstando, cumpre apreciar e decidir.

9. Em matéria de facto, vêm provados os seguintes pontos:

1º- A entidade A. é um hospital público integrado no Serviço Nacional de Saúde.

2º- A entidade Ré é foi constituída em 11-9-95, com vista à celebração de um acordo de gestão com a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, relativo à gestão privada do Hospital Professor Doutor Fernando da Fonseca, na Amadora;

3º- Por acordo celebrado em 10-10-95 entre a ARSLVT e a Ré, esta assumiu a gestão integral do Hospital Professor Doutor Fernando da Fonseca, devendo garantir a prestação de cuidados de saúde globais, correspondentes ao exercício, em urgência, internamento e ambulatório, de diversas valências, incluindo o respectivo apoio das especialidades de meios auxiliares de diagnóstico e terapêutica, assim como os necessários serviços de apoio geral, conforme documentado a fls. 7 a 28;

4º- A Ré ficou obrigada a garantir o acesso aos cuidados de saúde prestados no Hospital Professor Doutor Fernando da Fonseca a todos os utentes do Serviço Nacional de Saúde (SNS) de acordo com a capacidade instalada e com o disposto no clausulado do acordo;

5º- A Ré vinculou-se a assegurar a continuidade dos cuidados de saúde para os quais o Hospital Professor Doutor Fernando da Fonseca não estivesse habilitado em termos de diferenciação e capacidade técnicas, recorrendo para o efeito a outras instituições de saúde;

6º- Por requisição da Ré, a entidade A. prestou a utentes daquela os cuidados de saúde discriminados nas facturas de fls. 29 a 34;

7º- A A. assistiu B, a que se reporta a factura nº 901047, datada de 30-9-99, no valor de 4.300$00;

8º- C, a que se reporta a factura nº 901170, datada de 31-10-99, no valor de 4.300$00;

9º- B, a que se reporta a factura 901319, datada de 30-11-99, no valor de 4.300$00;

10º- "D", E, F, G e H, a que se reporta a factura n° 901412, datada de 31-12-99, no valor de 21.500$00;

11º- E "I", a que se reporta a factura n° 170, de 31-8-00, no valor de 14.902.700$00;

12º- A A. enviou à Ré as facturas indicadas, solicitando o respectivo pagamento, mediante os ofícios n° 1559, de 12 -11- 99, 1732, de 21 -12-99,45, de 6-1-00, 228, de 7-2-00 e 1437, de 24-10-00, respectivamente, conforme documentos de fls. 35 a 39.

13º- A Ré nada pagou ao A.

Direito aplicável.

10. Competência material.
Invoca a recorrente, "ex-novo", em sede da sua alegação de revista, a excepção de incompetência do tribunal comum "rationae materiae" para a dirimência do litígio, propugnando simultaneamente a competência dos tribunais administrativos.
Uma vez que a questão da competência é de ordem pública e pode ser suscitada por qualquer das partes em qualquer estado do processo enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa, passa-se ao seu conhecimento imediato (artsº 102º e 103º do CPC).

A acção foi proposta em 25-9-02, em pleno domínio da LOFTJ99 e do ETAF84, sendo que a novo ETAF apenas entrou em vigor em 1-1-04 (conf. artº 3º da L 13/02 de 19/2 com as alterações introduzidas pela L 4-A/2003 de 19/2).

Ora, nos termos do artº 4º, nº 1, al. f), do ETAF84 (DL 129/84 de 27/4) encontravam-se excluídos da jurisdição administrativa as acções que tivessem por objecto "questões de direito privado, ainda que qualquer das partes seja pessoa de direito público" (sic).

Tudo depende, pois, da qualificação da relação jurídica estabelecida entre as partes processuais e do regime legal aplicável, sabido que a questão substantiva dirimenda se reportava a uma prestação de serviços por banda da A. por cujo pagamento esta pretenderia responsabilizar a Ré.

É certo que se tratava e trata de uma prestação de serviços hospitalares pelo Hospital de Sta Marta ao Hospital Amadora Sintra, aquela uma entidade pública e esta um "hospital SA", mas em todo o caso de um negócio jurídico não regulado por normas de direito público.

Tal como os autos mostram, o Hospital Amadora-SA. por vezes não possui condições para prestar determinados serviços médico/hospitalares (a que a montante se vinculou contratualmente a assegurar perante o Estado) com regularidade e continuidade, pelo que, nessa eventualidade, tem de recorrer a outras entidades, entre estas o Hospital de St. Marta, ora recorrido.

E essas relações negociais (inter-institucionais), não obstante integradas numa pré-determinada política de saúde, cujo escopo último é assegurar uma boa assistência aos doentes, não passam de normais e correntes prestações de serviços, inseridas no comércio jurídico-privado, como tais regulados pela lei civil comum - conf. artºs 1155 e 1156º e ss do C. Civil.

Perante uma conduta atribuível a um dado órgão público, há, desde logo, que saber se o mesmo exerce ou não um poder público enquanto entidade integrada na Administração directa ou indirecta do Estado, ou se age despido dessa qualidade "status" tal como se fosse uma entidade privada.

Mas as entidades públicas ou para-públicas podem exercer as suas atribuições em pleno pé de igualdade com outras pessoas físicas ou jurídicas de escopo congénere, portanto desprovidas do poder de supremacia que em princípio lhes adviria da sua qualidade de ente público administrativo. Os actos assim praticados serão de qualificar como de "gestão privada" - cfr Marcelo Caetano, in "Manual de Direito Administrativo", Tomo I, 10ª ed, Almedina, pág 430.

Nos actos de gestão privada o Estado ou a pessoa colectiva pública intervêm como simples particulares, despidos da sua "potestas" ou "auctoritas, ao passo que nos actos de gestão pública o Estado ou a pessoa colectiva pública agem munidos do seu "jus imperii " - conf., neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, in "Código Civil Anotado ", vol II, 4ª ed. Pág 443.

O verdadeiro "distinguit" - para efeitos da apreciação/avaliação de um certo acto, facto ou contrato gerador de responsabilidade civil para com terceiros numa ou noutra das aludidas categorias (gestão privada / gestão pública) reside em saber se as concretas condutas alegadamente ilícitas e danosas se enquadram numa actividade regulada por normas comuns de direito privado (civil ou comercial) ou antes numa actividade especificamente disciplinada por normas de direito público administrativo - cfr Freitas do Amaral, "Direito Administrativo" III, 88/89, pág 487.

Sendo que a "pedra de toque" para efeitos de determinação da competência material dos tribunais administrativos não reside propriamente na dicotomia "actos de gestão pública - actos de gestão privada", mas sim no critério constitucional plasmado no artº 212º, nº 3, da Lei Fundamental, ou seja compete aos tribunais dessa jurisdição especial o "julgamento de acções que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas ".

Âmbito assim definido com apelo ao mesmo critério na legislação infra-constitucional (conf. artºs 3º do ETAF84 e 1º do ETAF 2002).

No presente caso, não só as duas entidades agiram em pleno pé de igualdade como ainda as relações negociais entre si estabelecidas não são regidas por normas de direito público.

Fora, pois, de dúvida a competência material dos tribunais comuns de jurisdição ordinária para o conhecimento do objecto da questão "ex-vi" do artº 18º da LOFTJ99 (L 3/99 de 13/1).
11. Mérito substantivo.
Foram operadas requisições de serviços e a correlativa prestação, o que sempre tornaria, em princípio, a Ré responsável pelo respectivo pagamento, como resulta do artº 1167º, alíneas b) e c), aplicáveis por força do artº 1156º, ambos do C. Civil.

Sustentou, entretanto, a Ré, ora recorrente, que, integrando-se ambos os hospitais no Serviço Nacional de Saúde, serviço financiado pelo Orçamento Geral do Estado, não teria que pagar os serviços requisitados, uma vez que se encontraria revogado o despacho nº 4/89, da Ministra da Saúde, de 13-1-99. Ademais, a recorrente só teria que garantir os cuidados de saúde incluídos nas valências do Anexo V do contrato de gestão - cl. 5 n. 2.

Não vem, porém, demonstrado que o Despacho 4/89 do Ministro da Saúde se encontre expressamente revogado ; e uma hipotética revogação tácita não resultaria do simples facto de ambos os hospitais integrarem na rede do Serviço Nacional de Saúde, tal como bem entenderam as instâncias.

Esse despacho, publicado no DR, II Série, de 1-3-89, é, aliás, taxativo a este respeito:tais encargos/serviços seriam imputados às entidades que procedessem à respectiva requisição, neste caso também, pois, à Ré, ora recorrente, Hospital Amadora-Sintra SA, o que não surpreende se se atender à autonomia económica e financeira de que gozam as entidades envolvidas.

Ademais, a Base XXXIIl da Lei 48/90, de 24/8, na sua actual redacção, limita-se a proclamar o princípio (genérico) de que o S.N.S. é financiado pelo OGE (isto é claro na perspectiva dos respectivos utentes) - mas sem embargo de acordos pontuais entre unidades desse Serviço - como é o caso.

De resto, a não ser assim, estaria encontrada a fórmula para a Ré se subtrair às suas responsabilidades em tal domínio:bastar-lhe-ía invocar (com maior ou menor frequência) uma hipotética "difficultas praestandi" (falta de condições de ordem técnica para o tratamento dos doentes) ou excessiva onerosidade do mesmo, para se decidir soberanamente a "transferir" ou "remover" os seus doentes para os hospitais públicos, ou para "requisitar" a estes os respectivos cuidados, e assim se subtrair aos respectivos encargos.

Tal representaria como que uma interpretação "leonina" do contrato-programa de concessão, como bem sugere a Relação.
É verdade que pelo aludido "Contrato de Gestão", a Ré se obrigou à prestação de "cuidados de saúde globais" - valência do Anexo V... - Valências médicas... cirúrgicas e mat/inf. (f. 26) e que, em sede das alegações da sua apelação, veio alegar que os serviços requisitados extravasavam das tais valências.

O certo é, contudo, que tal alegação se revelou como extemporânea (matéria nova) tal como a Relação bem considerou, para tanto louvada no disposto no artº 489º do CPC.
Nada, pois, a censurar à decisão condenatória das instâncias.

11. Decisão:
Em face do exposto, decidem:
- negar a revista;
- confirmar, em consequência, o acórdão recorrido.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 17 de Março de 2005
Ferreira de Almeida,
Abílio Vasconcelos,
Duarte Soares.