Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1159/04.3TBACB.C1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: SEBASTIÃO PÓVOAS
Descritores: GRAVAÇÃO DA PROVA
NULIDADE PROCESSUAL
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 02/02/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Sumário : 1) O Supremo Tribunal de Justiça está limitado nos seus poderes sobre a matéria de facto, âmbito em que, de harmonia com o disposto nos artigos 26.º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais – Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro - e 722.º, n.º 2 e 729.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, só lhe é lícito intervir em questão de prova vinculada ou perante desrespeito de norma reguladora do valor legal das provas.

2) Tratam-se de questões de direito, já que, em tais hipóteses, não há que apreciar as provas segundo a convicção de quem julga (artigo 655.º, n.º 1 do Código de Processo Civil) mas apenas determinar se para a prova de certo facto a lei exige, ou não, determinado meio de prova insubstituível, ou de decidir se determinado meio de prova tem, ou não, face à lei, força probatória plena .

3) Fora do âmbito da prova vinculada, cuja apreciação é pura matéria de direito, o erro na apreciação das provas e a consequente fixação dos factos da causa, isto é, a decisão da matéria de facto, é de livre apreciação do julgador nas instâncias no seu papel de apuramento da factualidade relevante, cabendo à Relação a última palavra. E mesmo a Relação só pode censurar o respondido à base instrutória através do exercício dos poderes que lhe são conferidos pelo artigo 712.º do Código de Processo Civil.

4) E só se, na fase de julgamento do mérito, o Supremo Tribunal de Justiça deparar com insuficiência de matéria de facto para decidir de direito, ou se o acervo factual contiver contradições inviabilizadoras dessa decisão, é que deve devolver o processo ao tribunal recorrido para ampliar a decisão de facto, desde que nos limites da matéria alegada (artigo 729.º, n.º 3, ainda do Código de Processo Civil).

5) A Relação, ao reponderar as provas registadas, deve ter em conta o conteúdo das gravações, que, contudo, irá valorar com a liberdade que lhe é conferido pelo artigo 655.º, tendo a possibilidade de formar uma convicção diferente da alcançada pela instância que a precedeu, mau grado as limitações resultantes da ausência de verdadeira imediação.

6) A deficiência (ou mesmo a inexistência) de gravação constitui nulidade secundária (artigos 201.º, n.º 1 e 204.º, “a contrario”) a arguir mediante reclamação, nos termos dos artigos 205.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil e 9.º do citado Decreto-Lei n.º 39/95, de 15 de Fevereiro. E este último diploma que estabeleceu a possibilidade de documentação ou registo das audiências finais e da prova nelas produzida, dispôs naquele artigo que “se, em qualquer momento, se verificar que foi omitida qualquer parte da prova ou que esta se encontra imperceptível, proceder-se-á à sua repetição sempre que for essencial ao apuramento da verdade.”

7) A nulidade pode ser arguida nas alegações do recurso de apelação.

8) Dizer-se que o conteúdo dos depoimentos se apreende “com razoável segurança” fica aquém do exigível que seria a apreensão “com toda a segurança”, ou, pelo menos, “com segurança bastante”.

9) Contudo, importa saber se a parte imperceptível é essencial para o apuramento da verdade (de acordo com o citado artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 39/95) havendo que considerar que esse pressuposto deve ser afirmado pelo recorrente, que tem de aduzir razões para de tal convencer o Tribunal.

10) É da experiência comum que os esclarecimentos finais pedidos pelo julgador são essenciais para alicerçar a sua convicção e surgem para firmar, infirmar ou detalhar o que foi dito pela testemunha no decurso da inquirição e da instância.

11) Só depois de ouvir integralmente os depoimentos e proceder à sua análise critica, por forma a assegurar, verdadeiramente, um duplo grau de jurisdição em matéria de facto, é que a Relação pode optar com segurança pela manutenção ou alteração do julgado em 1.ª instância.

12) A omissão (não audição) da gravação de parte de um depoimento equivale à ausência do seu registo, com as consequências acima referidas, tratando-se de depoimento, ou segmento, essencial.

Decisão Texto Integral:

Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça


AA intentou acção, com processo ordinário, contra BB, pedindo se declare que é o dono do prédio urbano constituído por casa de habitação (com rés do chão amplo e 1.º andar com sete divisões) com área coberta de 76m2 situado em Maiorca – Alcobaça, condenando-se o Réu a reconhecer esse domínio e a restituir-lhe o logradouro com cerca de 216m2 que abusivamente ocupa.

O Réu contestou e, deduzindo pedido reconvencional, pediu a condenação do Autor a reconhecer a propriedade do seu prédio confinante com maior parte do logradouro em litígio.

No Círculo Judicial de Alcobaça a acção foi julgada parcialmente procedente declarando-se o Autor dono do prédio acima referido e condenando o Réu a reconhecer tal direito, mas absolvendo-o do mais pedido.

A reconvenção foi julgada procedente.

O Autor apelou para a Relação de Coimbra, que confirmou o julgado.

Pede, agora, revista assim concluindo a sua alegação:
- O Acórdão do Tribunal da Relação enferma de vícios que determinarão a sua revogação;
- O acórdão recorrido decidiu que, apesar de algumas partes dos depoimentos serem imperceptíveis e algumas partes mesmo inexistentes, não se verifica a nulidade, porque este facto não impede a percepção da generalidade do depoimento em causa;
- Conforme o Autor, ora Apelante, alegou em sede de recurso, quando elaborava as suas alegações de recurso, a partir do dia 10 de Dezembro de 2008, viu-se confrontado com o facto de a gravação dos depoimentos de algumas testemunhas se encontrar deficiente, concretamente de frases completas, tanto de perguntas dos mandatários quanto das respostas integrais de algumas testemunhas o que lhe impossibilitou a indicação global e total de todos os depoimentos.
- Tal facto impediu em primeiro lugar porque não se conhecendo a integralidade do depoimento de uma testemunha, prestado em audiência de julgamento, nos seus aspectos particulares, não se pode, com razoável segurança, fazer uma análise crítica do mesmo, actividade exigida por um lado para a fundamentação da sentença, e por outro para o exercício do direito do duplo grau de jurisdição pelas partes, em sede de recurso.
- O douto acórdão incorre em erro de interpretação quanto diz que estas omissões não constituem obstáculo ao exercício do direito de impugnar a matéria de facto pelo Recorrente, ora Apelante.
- É que tais deficiências na gravação da prova podem ter, alterado, ou são susceptíveis de alterar, qualquer resposta, em concreto, à matéria de facto fixada.
- O Autor, ora Apelante, impugnou a matéria de facto através da audição e transcrição da parte do registo que existe do depoimento de cada testemunha, indicando as partes inaudíveis e imperceptíveis, não o podendo fazer de todo o conteúdo do mesmo, podendo até acontecer, que, casa todo o depoimento fosse audível a impugnação da matéria de facto poderia seguir outros contornos, apresentar outras conclusões.
- E o Autor, ora Apelante alegou em sede de recurso, que quanto a essas partes des depoimentos inaudíveis se encontrava impedido de em toda a sua extensão, impugnar a decisão sobre a matéria de facto.
- Esta impossibilidade, aliás, impede o exercício do direito do segundo grau de jurisdição no âmbito da matéria de facto, conforme consagrado pelo D.L. 329-A/95, entendimento que resulta da letra da lei e da unanimidade da jurisprudência dos tribunais superiores;
- E a arguição desta nulidade foi tempestiva já que o prazo para arguir tal nulidade terá de ser o que está a decorrer para a prática do acto de que a regularidade do acto omitido é condição necessária e cuja regularidade igualmente pressupõe, ou seja, o prazo para a apresentação das alegações;
- Verificando-se que a gravação de parte da prova testemunhal não se encontra registada, é inaudível ou imperceptível, equivale à sua omissão, e é um facto que pode alterar ou é susceptível de influir no exame e na decisão da causa, podendo determinar uma alteração da resposta à matéria de facto.
- Pelo que, verifica-se o vício de gravação da prova, o que determina a anulação da decisão da matéria de facto e da sentença proferida, bem como deverá ordenar-se a repetição da audiência de julgamento.
- Quanto à reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, o Autor, ora Apelante, interpôs recurso da decisão sobre a matéria de facto, pedindo a sua reapreciação, dando, para o efeito, cumprimento ao estipulado no artigo 690-A, do C.P.C., o que é reconhecido pelo douto acórdão, ou seja, especificou os concretos pontos de facto que considerou incorrectamente julgados, como os concretos meios de prova constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizado, que impunham decisão diversa da matéria de facto impugnada.
- O douto acórdão recorrido ao julgar, nesta parte, o recurso improcedente, por entender que a sentença do tribunal de primeira instância, ter assento correcto na prova documental e testemunhal produzida, não descortinando qualquer erro na sua apreciação, nem, consequentemente, haver motivo para alterar a decisão da matéria de facto impugnada, violou o principio do duplo grau de jurisdição e da reapreciação da prova;
- É que, o Autor, ora Apelante, indicou como meio de prova para sustentar a reapreciação, alguns depoimentos objecto de gravação em sede de audiência de julgamento.
- A reapreciação da prova pelo Tribunal de segunda instância obriga a que se proceda à audição dos depoimentos gravados, o que o Tribunal recorrido não fez;
- O acórdão recorrido limitou-se a aderir à fundamentação e conclusões proferidas pelo tribunal de primeira instância, sem formar uma convicção própria através da audição dos depoimentos, que permite de forma mais directa a percepção da prova testemunhal, não sendo suficiente a leitura da transcrição;
- Resulta da lei que a reapreciação da prova passa pela audição dos registos dos depoimentos das testemunhas, e análise critica de tais depoimentos, a fim de verificar se a convicção do Tribunal tem suporte razoável naquilo que consta da gravação.
- Ao fundar a aceitação da sua convicção com base na análise da coerência, lógica da decisão proferida pelo Tribunal de primeira instância, não fazendo a análise critica da audição da gravação dos depoimentos das testemunhas, violou o douto acórdão recorrido o disposto no artigo 712°, n.° 1 alínea a), pelo que deve ser o processo remetido ao Tribunal da Relação em ordem à formação de convicção própria.
- Também a sentença fez uma errónea aplicação do direito, não contendo suporte fáctico suficiente para a condenação do Autor, ora Apelante, no reconhecimento do direito de propriedade dos Réus, ora Apelados;
- O Autor, ora Apelante, foi condenado a reconhecer que o Réu é dono do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcobaça com o n.° 00647, condenando-se o Autor a reconhecer e a respeitar esse direito de propriedade do Réu sobre o aludido prédio, tal como se encontra delimitado, não perturbando a posse do Réu sobre tal prédio.
- No entanto, nenhum dos factos provados indica, nem que a favor do Réu se encontra aquele prédio descrito, nem quanto a este, ficou provado qualquer elemento de identificação do mesmo, quanto a áreas, limites, confrontações, apenas que confronta com uma estrada, não se sabendo de que lado.
- Face à matéria de facto dada como provada pelo Tribunal de primeira instância, não se pode condenar o Autor, nos termos em que o foi.
- A presunção do registo predial (que não resulta dos factos provados quanto ao prédio do réu) não abrange os elementos de identificação do prédio constante da sua descrição física, limitando-se ao direito inscrito, apenas a pág. 10 da sentença se refere o numero da descrição predial do prédio do Réu.
- Não foram, pois, dados como provados quaisquer outros elementos, nem a área, nem confrontações, nem limites, em relação com o prédio do Autor, ou sequer com a estrada que se refere também existir.
- E estes elementos constituem matéria de facto relevante para a decisão proferida, e que, não existindo e não se tendo dado como provada não podem sustentar a decisão, nos termos em que esta foi proferida pelo Tribunal de primeira instância.
- Pelo que, deverá a sentença ser declarada nula e de nenhum efeito.
- Violadas, foram pois, entre outras, as disposições dos artigos 2° e 9° do Decreto-Lei n° 39/95, de 15 de Fevereiro, artigos 522°-A, 522°-B e 522°-C, 712°, n.° 1 alínea a) e 11.04, e 7° do C.R.P.

Não foram produzidas contra alegações.

A Relação deu por assente a seguinte matéria de facto:
1. O A. é dono do prédio urbano “casa de habitação, que se compõe de rés do chão amplo e 1° andar com sete divisões, com a área coberta de 76 metros quadrados, inscrita sob o artigo n° 854 da matriz predial urbana da freguesia de Maiorga, com o valor patrimonial de 99,47 euros, descrita na Conservatória do Registo Predial de Alcobaça, sob o número 00115/ Maiorga.
2. Tal prédio urbano esta inscrito a favor do A. na dita Conservatória do Registo Predial de Alcobaça, desde 21.03.2003, sob a inscrição G 1, por sucessão de M... G... C....
3. AA declarou através da habilitação de herdeiros que a sua mãe M… G… C… faleceu no dia dois de Fevereiro de 1978, na freguesia e concelho da Nazaré, no estado de divorciada de E… R… da R…, sem ter feito testamento ou qualquer outra disposição de última vontade e que deixou como seu único herdeiro AA.
4. Por decisão transitada em julgado no Proc. N.° 32/87, da 4.ª Secção do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Alcobaça, os réus AA e CC foram absolvidos do pedido de reconhecimento de que os autores V… P… S… e M… G… de O… são donos de um prédio urbano destinado a habitação que se compõe de rés do chão amplo e 1 .° andar, com sete divisões e logradouro, confrontando do norte com estrada, do nascente e sul com herdeiros de H… S… e do poente com J… de A… C…, inscrito na respectiva matriz sob o artigo n.° 854, da freguesia da Maiorga, e do pedido de restituição do referido prédio.
5. Os pais do réu, A… M… e mulher, L… P… M…, casados sob o regime da comunhão geral de bens e residentes em Bemposta, Maiorga alegando serem donos e legítimos possuidores de um prédio rústico, sito em Bemposta, freguesia de Maiorga, desta comarca, composto de terra de semeadura com oliveiras, com a área de 1.800 metros quadrados, inscrito na matriz predial rústica sob o art.° 1719 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcobaça sob o n° 647/Maiorga e ai registado a seu favor sob a inscrição G 1, vieram, por notificação judicial avulsa de 04 de Maio de 1998, e invocando que o ora A. havia colocado abusivamente lixo, peças soltas de sucata desperdícios vários, sem qualquer autorização dele e contra a sua manifesta vontade, requerer que ora A. se abstivesse de colocar na dita propriedade do Réu quaisquer objectos de lixo e para, no prazo de 15 dias, proceder à remoção do lixo depositado e objectos que se encontrassem no terreno e que impedissem a limpeza e amanho da terra.
6. Em data anterior a essa notificação, o Autor colocou sucata no terreno dos avós do Réu.
7. Em data não concretamente apurada, a M… G… C… passou a ter a sua residência no prédio urbano identificado em 1), dormindo nele, tornando nele as refeições diárias, guardando no mesmo os seus haveres e recebendo as pessoas amigas ou aquelas que a procuravam, no que era acompanhada pelo filho, ora Autor.
8. Após a morte da sua mãe, o A. continuou a ter neste prédio a sua residência, a dormir nele, a tornar as refeições diárias e a guardar os seus haveres e a receber as pessoas amigas ou aquelas que o procuravam, nomeadamente para lhe prestar trabalhos como electricista.
9. Os factos referidos em 7) e 8), foram praticados pela M… G… C… e, após a morte dela, pelo Autor, de forma continua e ininterrupta desde data não concretamente apurada, mas desde há, pelo menos, vinte anos, até hoje,
10. A vista de toda a gente; nomeadamente do Réu que é seu vizinho, e dos habitantes do lugar de Bemposta,
11. Sem oposição de ninguém,
12. Na convicção de que era seu dono.
13. Há cerca de dois anos, o Réu começou a preparar o terreno para nele construir a sua casa.
14. O Autor enviou ao Presidente da Câmara Municipal de Alcobaça uma carta cuja cópia consta de fls. 47, e que aqui se dá por reproduzida.
15. O terreno no qual o réu construiu a sua casa e logradouros foi sempre dos seus avós, que cuidavam, cultivavam e daí retiravam frutos.
16. A pretensão do autor conduziria a que o prédio do réu ficasse sem qualquer acesso à via pública,
17. Acesso esse que sempre teve, por com ela confinar.
18. O réu, por si e através dos antepossuidores, irá mais de trinta anos que cultiva o prédio e lhe colhe os frutos,
19. Sem que ninguém se opusesse,
20. Com o conhecimento e reconhecimento por todos de que aquele prédio, a confinar com a via pública, era e sempre foi dos avós do réu e depois seu.
21. O réu construiu um muro de vedação.

Foram colhidos os vistos.

Conhecendo,
1. Impugnação da matéria de facto.
2. Nulidade secundária.
3. Conclusões.


1. Impugnação da matéria de facto

O recorrente insurge-se contra o segmento do Acórdão que reapreciou a matéria de facto baseado em registo fonográfico que, na sua perspectiva, era deficiente, por parcialmente inaudível.

Ora, essas deficiências impediram o exercício do seu direito de obter /aceder a um segundo grau de jurisdição na parte em que se julga a matéria de facto “ex novo”.

De outra banda, imputa ao Tribunal “a quo” a não audição dos depoimentos gravados, e o ter-se limitado a aderir à fundamentação e conclusões da primeira instância sem que pudesse ter formado uma convicção própria, e assim violando a alínea a) do n.º 1 do artigo 712.º do Código de Processo Civil.

Antes de mais, cumpre enfatizar que o Supremo Tribunal de Justiça está limitado nos seus poderes sobre a matéria de facto, âmbito em que, de harmonia com o disposto nos artigos 26.º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais – Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro - e 722.º, n.º 2 e 729.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, só lhe é lícito intervir em questão de prova vinculada ou no desrespeito de norma reguladora do valor legal das provas.

Tratam-se de questões de direito, já que, em tais hipóteses não há que apreciar as provas segundo a convicção de quem julga (artigo 655.º, n.º 1 do Código de Processo Civil) mas apenas determinar se para a prova de certo facto a lei exige, ou não, determinado meio de prova insubstituível, ou de decidir se determinado meio de prova tem, ou não, face à lei, força probatória plena de facto.

Fora do âmbito da prova vinculada, cuja apreciação é pura matéria de direito, o erro na apreciação das provas e a consequente fixação dos factos da causa, isto é, a decisão da matéria de facto, é de livre apreciação do julgador nas instâncias (no seu papel de apuramento da factualidade relevante) cabendo à Relação a última palavra.

E mesmo a Relação só pode censurar o respondido à base instrutória através do exercício dos poderes que lhe são conferidos pelo artigo 712.º do Código de Processo Civil.

E quando tal acontece, o Supremo Tribunal de Justiça só pode sindicar esse uso nos estritos limites de verificar se a Relação desrespeitou os pressupostos exigidos por aquele artigo.

Mas então está apenas a sindicar erros de direito.

E só se, na fase de julgamento do mérito, o Supremo Tribunal de Justiça deparar com insuficiência de matéria de facto para decidir de direito, ou se o acervo factual contiver contradições inviabilizadoras dessa decisão, é que deve devolver o processo ao tribunal recorrido para ampliar a decisão de facto, desde que nos limites da matéria alegada (artigo 729.º, n.º 3, ainda do Código de Processo Civil).

1.1. A parte pode, porém, impugnar perante a Relação, as respostas dadas aos quesitos devendo, então, indicar os pontos que considera incorrectamente julgados e os elementos probatórios vertidos nos autos que justificam essa diferença de pontos de vista (artigo 690-A do Código de Processo Civil, aqui aplicável; actualmente, e para as acções intentadas após 1 de Janeiro de 2008, vale o artigo 685-B que, no essencial, tem a redacção daquele).

2- Nulidade secundária

A Relação, ao reponderar as provas registadas, deve ter em conta o conteúdo das gravações, que, contudo, irá valorar com a liberdade que lhe é conferido pelo artigo 655.º, tendo a possibilidade de formar uma convicção diferente da alcançada pela instância que a precedeu, mau grado as limitações resultantes da ausência de verdadeira imediação.

Acontece, “in casu”, que o recorrente na sua alegação de recurso de apelação – e para além de imputar à 1.ª Instância deficiências no exame critico da prova – afirmou que a gravação era deficiente e que tal constituía nulidade conducente à repetição do julgamento.

De seguida, louvou-se no artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 39/95, de 15 de Fevereiro para concluir que não existe prazo para “arguição das anomalias ocorridas na gravação”.

Vejamos,

A deficiência (ou mesmo a inexistência) de gravação constitui nulidade secundária (artigos 201.º, n.º 1 e 204.º, “a contrario”) a arguir mediante reclamação, nos termos dos artigos 205.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil e 9.º do citado Decreto-Lei n.º 39/95, de 15 de Fevereiro.

E este último diploma que estabeleceu a possibilidade de documentação ou registo das audiências finais e da prova nelas produzida, dispôs naquele artigo que “se, em qualquer momento, se verificar que foi omitida qualquer parte da prova ou que esta se encontra imperceptível, proceder-se-á à sua repetição sempre que for essencial ao apuramento da verdade.”

A nulidade foi tempestivamente arguida, aqui aderindo ao Acórdão deste Supremo Tribunal de 23 de Outubro de 2008 – 08B2698 – que decidiu estar em tempo a arguição operada nas alegações de recurso de apelação (cf., ainda, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Janeiro de 2010 – 4323/05.4TBVIS.C1.S.1, de 15 de Maio de 2008 – 08B1099 e de 13 de Janeiro de 2009 – 08 A3741).

E compreende-se que assim seja pois é da normalidade da vida forense que as partes não vão pedir a audição de todo o material áudio para verificar da perfeição técnica da gravação, a não ser no momento da elaboração da sua alegação para dela fazerem constar os concretos meios probatórios em que fundam a sua discordância, já que só, então, tem de identificar (ou transcrever) os pontos controvertidos. (Não se desconhece, em sentido contrário, arguição em dez dias contados da entrega da cópia do registo, o Acórdão de 16/9/2008 – P.º 2261/08 – 7.ª).

Concluindo pela tempestividade da arguição do vício resta saber se ocorreu e se pode “influir no exame ou na decisão da causa” por ser “essencial ao apuramento da verdade” (cf., respectivamente, os artigos 201.º n.º 1 do Código de Processo Civil e 9.º do Decreto-Lei n.º 39/95).

2.1. No Acórdão recorrido, a Relação de Coimbra assim ponderou:

“Todavia, no caso em análise, se é certo que uma ou outra palavra esparsa do depoimento das testemunhas J… F… da C… A… e M… V… de J… e uma ou outra passagem mais extensa da parte final do depoimento da testemunha A… de O… I…, concretamente a parte respeitante ao interrogatório conduzido pela Sra. Juiz, se apresenta imperceptível, isso não impede, todavia, de apreender com razoável segurança, a generalidade do seu conteúdo e de se ficar a conhecer a sua versão sobre a factualidade a que depuseram. E a prova de que essa deficiência de gravação não foi obstáculo ao exercício do direito de impugnar a matéria de facto pelo ora recorrente está na junção dos autos, com as suas alegações de fls. 346 e segs, da transcrição do depoimento de todas as testemunhas ouvidas e de que se socorre para impugnar a decisão de toda a matéria da base instrutória. Por tal motivo, concluímos não ocorrer a invocada nulidade processual de omissão de formalidade prescrita na lei, a impor a anulação do julgamento e a sua consequente repetição.”

Crê-se que, neste segmento, o Acórdão recorrido é de censurar.

Reconhece serem imperceptíveis “uma ou outra palavra esparsa” de dois depoimentos, e “uma ou outra passagem mais extensa da parte final” do depoimento de outra testemunha, esta referente à parte da inquirição feita pela Senhora Juiz.

Mas, não obstante essas deficiências, a Relação considerou-se habilitada a proceder à reapreciação pedida.

Daí que, ou se considera que essa opção se insere no âmbito dos poderes de reapreciação da matéria de facto o que só a tornaria sindicável por este Supremo Tribunal na ocorrência de violação dos respectivos pressupostos legais, ou se entende que a Relação considerou irrelevantes, por não essenciais para o apuramento da verdade, as frases em falta.

Desde logo, é de ponderar a menos feliz redacção da parte acima transcrita pois dizer-se que o conteúdo dos depoimentos se apreende “com razoável segurança” fica aquém do exigível que seria a apreensão “com toda a segurança” ou, pelo menos, “com segurança bastante”.

Contudo, importa saber se a parte imperceptível é essencial para o apuramento da verdade (de acordo com o citado artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 39/95) havendo que considerar que tal pressuposto deve ser afirmado pelo recorrente, que tem de aduzir razões para de tal convencer o Tribunal (cf., neste sentido, o já citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Janeiro de 2010: “Deveria o recorrente ter aduzido razões para convencer o Tribunal de que assim é “.).

Ora, o recorrente, mau grado tenha procedido à transcrição dos depoimentos, fê-lo por forma a deixar em branco as partes imperceptíveis, ou inaudíveis, sendo que alegou que a ausência de tais pontos o impedem de impugnar a matéria de facto em toda a sua extensão, o que, no fundo, se traduz em afirmar a essencialidade do omisso.

E o que mais perturba não é tanto o não alcance de “uma ou outra palavra esparsa” mas sim a “passagem mais extensa da parte final do depoimento da testemunha A… de O… I…, concretamente a parte respeitante ao interrogatório conduzido pela Sra. Juiz, (que) se apresenta imperceptível.”

É da experiência comum que os esclarecimentos finais pedidos pelo julgador são essenciais para alicerçar a sua convicção e surgem para firmar, infirmar ou detalhar o que foi dito pela testemunha no decurso da inquirição e da instância.

Assim sendo, não basta uma “razoável segurança” do que foi afirmado, devendo a Relação poder aceder com “toda a segurança” ao que foi dito, “maxime”, nessa parte crucial do depoimento, para poder exercer plenamente a sua função de reapreciação da prova.

Só depois de ouvir integralmente os depoimentos e proceder à sua análise critica, por forma a assegurar, verdadeiramente, um duplo grau de jurisdição em matéria de facto, é que o Tribunal “a quo” pode optar com segurança pela manutenção ou alteração do julgado em 1.ª instância.

A omissão (não audição) da gravação de parte de um depoimento equivale à ausência do seu registo, com as consequências acima referidas, tratando-se de depoimento, ou segmento, essencial.

Procede, assim, a nulidade arguida quanto ao depoimento da testemunha A… O… I…, já não sendo relevantes (por, como diz a Relação, se tratar da não audição de “uma ou outra palavra esparsa” e, esta afirmação ser insindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça, por se situar na estrita apreciação fáctica) as omissões no registo dos depoimentos das testemunhas J… F… da C… A… e M… de V… de J….

3- Conclusões

Pode concluir-se que:

a) O Supremo Tribunal de Justiça está limitado nos seus poderes sobre a matéria de facto, âmbito em que, de harmonia com o disposto nos artigos 26.º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais – Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro - e 722.º, n.º 2 e 729.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, só lhe é lícito intervir em questão de prova vinculada ou perante o desrespeito de norma reguladora do valor legal das provas.

b) Tratam-se, então, de questões de direito, já que, em tais hipóteses não há que apreciar as provas segundo a convicção de quem julga (artigo 655.º, n.º 1 do Código de Processo Civil) mas apenas determinar se para a prova de certo facto a lei exige, ou não, determinado meio de prova insubstituível, ou de decidir se determinado meio de prova tem, ou não, face à lei, força probatória plena.

c) Fora do âmbito da prova vinculada, cuja apreciação é pura matéria de direito, o erro na apreciação das provas e a consequente fixação dos factos da causa, isto é, a decisão da matéria de facto, é de livre apreciação do julgador nas instâncias no seu papel de apuramento da factualidade relevante, cabendo à Relação a última palavra. E mesmo a Relação só pode censurar o respondido à base instrutória através do exercício dos poderes que lhe são conferidos pelo artigo 712.º do Código de Processo Civil.

d) E só se, na fase de julgamento do mérito, o Supremo Tribunal de Justiça deparar com insuficiência de matéria de facto para decidir de direito, ou se o acervo factual contiver contradições inviabilizadoras dessa decisão, é que deve devolver o processo ao tribunal recorrido para ampliar a decisão de facto, desde que nos limites da matéria alegada (artigo 729.º, n.º 3, ainda do Código de Processo Civil).

e) A Relação, ao reponderar as provas registadas, deve ter em conta o conteúdo das gravações, que, contudo, irá valorar com a liberdade que lhe é conferida pelo artigo 655.º, tendo a possibilidade de formar uma convicção diferente da alcançada pela instância que a precedeu, mau grado as limitações resultantes da ausência de verdadeira imediação.

f) A deficiência (ou mesmo a inexistência) de gravação constitui nulidade secundária (artigos 201.º, n.º 1 e 204.º, “a contrario”) a arguir mediante reclamação, nos termos dos artigos 205.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil e 9.º do Decreto-Lei n.º 39/95, de 15 de Fevereiro. E este último diploma que estabeleceu a possibilidade de documentação ou registo das audiências finais e da prova nelas produzida, dispôs naquele artigo que “se, em qualquer momento, se verificar que foi omitida qualquer parte da prova ou que esta se encontra imperceptível, proceder-se-á à sua repetição sempre que for essencial ao apuramento da verdade.”

g) A nulidade pode ser arguida nas alegações do recurso de apelação.

h) Dizer-se que o conteúdo dos depoimentos se apreende “com razoável segurança” fica aquém do exigível que seria a apreensão “com toda a segurança”, ou, pelo menos, “com segurança bastante”.

i) Contudo, importa saber se a parte imperceptível é essencial para o apuramento da verdade (de acordo com o citado artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 39/95) havendo que considerar que tal pressuposto deve ser afirmado pelo recorrente, que tem de aduzir razões para de tal convencer o Tribunal.

j) É da experiência comum que os esclarecimentos finais pedidos pelo julgador são essenciais para alicerçar a sua convicção e surgem para firmar, infirmar ou detalhar o que foi dito pela testemunha no decurso da inquirição e da instância.

k) A Relação só depois de ouvir integralmente os depoimentos e proceder à sua análise critica, por forma a assegurar, verdadeiramente, um duplo grau de jurisdição em matéria de facto, é que pode optar com segurança pela manutenção ou alteração do julgado em 1.ª instância.

l) A omissão (não audição) da gravação de parte de um depoimento equivale à ausência do seu registo, com as consequências acima referidas, tratando-se de depoimento, ou segmento, essencial.

Nos termos expostos, acordam conceder a revista, anulando o Acórdão recorrido, por procedência da nulidade arguida quanto à apreciação da matéria de facto na parte referente ao depoimento da testemunha A… de O… I….

Custas pelo vencido, a final.

Lisboa, 2 de Fevereiro de 2010

Sebastião Povoas (Relator)

Moreira Alves

Alves Velho