Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08S1982
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: VASQUES DINIS
Descritores: ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
CONTRATO DE TRABALHO
CONVALIDAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
REINTEGRAÇÃO
ABUSO DO DIREITO
INDEMNIZAÇÃO DE ANTIGUIDADE
TRÂNSITO EM JULGADO
Nº do Documento: SJ200811260019824
Data do Acordão: 11/26/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :
I – Quer de acordo com o Decreto-Lei n.º 184/89, de 2 de Junho, quer de acordo com o Decreto-Lei n.º 427/89, de 7 de Dezembro, não era permitido o estabelecimento de relações laborais entre o Estado e o trabalhador mediante a celebração de contrato de trabalho por tempo indeterminado, sendo de considerar nulos os contratos celebrados nestes termos (n.º 1 do artigo 43.º do Decreto-Lei n.º 427/89 e artigo 292.º do Código Civil).

I – Contudo, com a entrada em vigor da Lei n.º 23/2004, de 22 de Junho (maxime dos artigos 1.º, 28.º e 29.º), passou a existir a admissibilidade, genérica, de o Estado e outras pessoas colectivas públicas celebrarem contratos de trabalho por tempo indeterminado.

III – Tendo-se iniciado a relação de trabalho por tempo indeterminado ao abrigo dos Decretos-Leis n.º 184/89 e n.º 427/89, sendo, por isso, nula, mas mantendo-se, de facto, essa relação de trabalho aquando da entrada em vigor da Lei n.º 23/2004 (em 22 de Julho de 2004), deverá apurar-se, face aos normativos legais desta constantes, se a mesma poderia continuar, agora de forma válida, com as legais consequências.

IV – A contratação nos termos da Lei n.º 23/2004, exige que a celebração do contrato de trabalho por tempo indeterminado observe a forma escrita, sob pena de nulidade (artigo 8.º), que exista, para o efeito, por parte das pessoas colectivas públicas que contratam, um quadro de pessoal próprio e a contratação seja feita nos limites desse quadro (artigo 7.º), e que exista um processo prévio de selecção, de que se destaca a publicitação da oferta de trabalho e a decisão de contratação fundada em critérios objectivos de selecção (artigo 5.º).

V – Cabe ao trabalhador, como facto constitutivo do direito a ser considerado trabalhador por tempo indeterminado, a alegação e prova de que o acordo de vontades fonte da relação laboral que vigorou entre as partes foi reduzido a escrito, que houve o processo prévio de recrutamento e selecção com vista à sua contratação e que no organismo público que o contratou existia o referido quadro de pessoal próprio.

VI – Não tendo sido feita a prova desses factos, não pode o contrato de trabalho por tempo indeterminado, nulo, convalidar-se por força da entrada em vigor da Lei n.º 23/2004.

VII – Para que o exercício do direito seja considerado abusivo não basta que cause prejuízos a outrem; é necessário que o titular exceda, visível, manifesta e clamorosamente, os limites que lhe cumpre observar, impostos quer pelo princípio da tutela da confiança (boa fé), quer pelos padrões morais de convivência social comummente aceites (bons costumes), quer, ainda, pelo fim económico ou social que justifica a existência desse direito, de tal modo que o excesso, à luz do sentimento jurídico socialmente dominante, conduz a uma situação de flagrante injustiça.

VIII – A invocação de nulidade do contrato de trabalho, por parte do empregador, não configura abuso do direito, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 334.º do Código Civil, no circunstancialismo em que se apura que a relação profissional entre as partes, que se manteve durante cerca de sete anos, foi qualificada, posteriormente à sua cessação, como de trabalho por tempo indeterminado, nulo por inadmissibilidade legal, mas que, ainda durante a sua vigência, perante a alteração do quadro normativo legal (entrada em vigor da Lei n.º 23/2004), passou a ser admissível, desde que verificados os requisitos mencionados em IV., se estes não dependiam apenas da iniciativa e vontade do empregador.

IX – Em virtude da nulidade do contrato de trabalho que vigorou entre as partes, produzindo embora efeitos, como se fosse válido, em relação ao tempo em que esteve em execução, não é possível a reintegração do trabalhador.

X – Tendo o Réu se conformado com a decisão da 1.ª instância, na parte em que, apesar de declarada a nulidade do contrato, se reconheceu ao trabalhador o direito à indemnização de antiguidade, a sentença transitou em julgado nessa parte, não podendo, na revista, discutir-se tal direito, em face do disposto no n.º 4 do artigo 684.º do Código de Processo Civil.

X – Justifica-se uma indemnização ao trabalhador de trinta dias de retribuição base por cada ano de antiguidade, constatando-se que ele foi despedido sem precedência de qualquer procedimento adequado a permitir a extinção da relação laboral, mas que havia sido admitido a prestar a sua actividade, sob o regime de «prestação de serviço» – tendo permanecido a controvérsia sobre a natureza da relação estabelecida entre as partes até ser proferida a decisão da 1.ª instância que a caracterizou como relação de trabalho subordinado por tempo indeterminado –, subsistindo a execução do contrato cerca de sete anos.
Decisão Texto Integral:



I

1. AA intentou, no Tribunal do Trabalho de Braga em 9 de Maio de 2006, a presente acção declarativa de condenação, sob a forma comum, contra “Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte”, pedindo que seja reconhecido e declarado que com esta manteve um contrato de trabalho sem termo, que cessou em 30 de Junho de 2005 por iniciativa da demandada, de forma ilícita, uma vez que não foi precedido de processo disciplinar, devendo, consequentemente, a Ré ser condenada:
– A reintegrá-la no seu posto de trabalho;
– A pagar-lhe a quantia de € 27.162,36, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data do despedimento até integral pagamento, devida pelos dezoito meses que trabalhou sem que lhe fosse paga a correspondente retribuição (Janeiro de 2004 a Junho de 2005, inclusive);
– A pagar-lhe as retribuições mensais, com base no salário de € 1.509,02, desde a data do despedimento até ao trânsito em julgado da sentença;
– A pagar-lhe a indemnização por danos não patrimoniais que vier a ser liquidada em execução de sentença.

Alegou, para o efeito, em síntese, que:

– Foi admitida, em Outubro de 1998, para exercer funções na Direcção Regional do Ambiente e Ordenamento do Território (DRAOT) – de cuja fusão com a Comissão de Coordenação da Região Norte (CCRN) resultou a Ré –, em regime de prestação de serviços, pois, à data, a Administração Pública só podia admitir pessoal nesta modalidade;
– Porém, a relação assim estabelecida deve ser qualificada como contrato de trabalho, uma vez que trabalhava sob a autoridade, direcção e fiscalização da Ré, em horário por ela determinado e inserida na estrutura hierárquica da Ré, mediante o pagamento de uma quantia mensal média de € 1.509,02, que incluía o subsídio de férias e de Natal;
– Em 30 de Junho de 2005, foi despedida pela Ré sem precedência de processo disciplinar e sem que lhe tenha sido paga a remuneração referente ao trabalho que prestou no período de Janeiro de 2004 a Junho de 2005, inclusive, no montante de € 27.162,36;
– Em resultado do despedimento ficou psicologicamente afectada, sendo «graves e profundos» os danos de natureza não patrimonial sofridos.

Frustrada, na audiência de partes, a tentativa de conciliação, veio a Ré contestar, por excepção e por impugnação: por excepção invocou, por um lado, não ser dotada de personalidade judiciária e, por outro lado, para o caso de se concluir ter existido um contrato de trabalho, encontrarem-se prescritos os créditos reclamados (à excepção do montante de € 21.500,00 que confessou dever à Autora); por impugnação, sustentou que o contrato que manteve com a Autora foi de prestação de serviço e que, a admitir-se que foi um contrato de trabalho, o mesmo é nulo por falta de forma.

Na sequência da posição assumida pela Ré, quanto à falta de personalidade judiciária, veio a Autora, na resposta à contestação, requerer a intervenção provocada do Estado, após o que foi proferido despacho que absolveu a Ré da instância, por falta de personalidade judiciária, e julgou sanada, por via do requerimento de intervenção do Estado, contra quem, representado pelo Ministério Público, os autos passaram a correr termos.

O Estado aderiu à contestação oportunamente apresentada pela entidade primitivamente demandada.

Em audiência preliminar, a Autora foi convidada a aperfeiçoar a petição inicial, o que cumpriu, na sequência do que foi proferido despacho saneador – onde se relegou para a sentença final o conhecimento da excepção da prescrição –, após o que foram fixados os factos assentes e elaborada a base instrutória.

Os autos prosseguiram termos, vindo a ser proferida sentença que, julgando parcialmente procedente a acção, decidiu:

“[...]

- declarar e reconhecer que a A. prestou a sua actividade profissional para o R., sob as suas ordens e direcção, mediante um contrato de trabalho sem termo;
- declarar e reconhecer que esse contrato cessou em 30-06-2005, por facto imputável ao R., que nessa data despediu a Autora, sem justa causa nem organização de procedimento disciplinar e, portanto, mediante ilícito despedimento;
- declarar nulo o mesmo contrato;
- condenar o R. a pagar à A. a quantia de € 8.914,34 a título de retribuições em dívida (salários e subsídios de férias e de Natal) respeitantes ao período compreendido entre Janeiro de 2004 e Junho de 2005, quantia esta acrescida de juros de mora à taxa de 4%, desde 30-06--2005 até 08-05-2007 sobre € 27.162,24 e, desde então até integral pagamento, sobre € 8.914,34;
- condenar o R. a pagar à A. a quantia de € 9.054,08 a título de indemnização por antiguidade;
- condenar o R. a pagar à A. a quantia de € 22.131,41 a título de retribuições que a A. deixou de auferir desde 30 dias anteriores à propositura da acção, deduzida dos montantes que a A. tenha comprovadamente obtido com a cessação do contrato e que não receberia se não fosse o despedimento e, ainda, do montante do subsídio de desemprego eventualmente auferido pela mesma;
- absolver o R. do restante pedido.

[...]”.

2. Inconformada com a decisão, na parte em que não condenou o Réu a reintegrá-la no posto de trabalho, a Autora interpôs recurso de apelação a pugnar pela condenação nesse sentido; solicitou, caso assim não viesse a entender-se, a fixação da indemnização substitutiva em € 13.581,12, calculada com base em 45 dias de trabalho por cada ano de antiguidade ou fracção.

O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 28 de Janeiro de 2008, concedeu provimento ao recurso, revogando a sentença no tocante à declaração de nulidade do contrato de trabalho e à condenação do Réu no pagamento à Autora da quantia de € 9.054,08 a título de indemnização por antiguidade, que substituiu pela condenação do Réu a reintegrá-la, de imediato, no posto de trabalho e nas funções que sempre exerceu, sem prejuízo da sua antiguidade, tendo, consequentemente, julgado prejudicado o conhecimento da questão relativa à base de cálculo da indemnização.

Irresignado, desta feita, o Réu vem pedir revista, terminando a alegação com as conclusões assim redigidas:

1. A Lei n.º 23/2004, de 22 de Junho, é inaplicável ao contrato dos autos;

2. Com efeito, no n.º 1 do seu artigo 26.º, ressalva-se a sua aplicação, nomeadamente, quanto às condições de validade;

3. Ora, o contrato em causa é inválido,

4. Porque o regime legal que lhe é aplicável é o decorrente do Decreto-Lei n.º 427/89, de 7 de Dezembro;

5. Acontece que este diploma legal não permitia a celebração de contratos individuais de trabalho por tempo indeterminado;

6. Logo, o contrato dos autos é nulo, não por falta de forma, mas por impossibilidade legal;

7. Daqui decorre que o mesmo não pode ser convalidado pela lei posterior, ou seja, pela Lei n.º 23/2004;

8. E não o pode ser porque se trata de um contrato inválido;

9. Por outro lado, inexiste, no caso concreto, abuso do direito;

10. Com efeito, admitindo-se que o contrato dos autos é admissível, por convalidação efectuada pela Lei n.º 23/24, de 22 de Junho, o mesmo é nulo por falta de forma, como decorre do seu artigo 8.º, n.os 1 e 3;

11. Na verdade, não constitui abuso de direito invocar a nulidade decorrente da inobservância da forma legalmente prescrita [existe impossibilidade de invocação do abuso de direito por inobservância da forma legalmente prescrita];

12. Acresce que a invocação de uma nulidade pela parte que dela aproveita não pode ter-se como abuso de direito, dado que apenas representa a sobreposição de regra processual ao direito substantivo, o que é legitimado pela norma que impõe um determinado procedimento em termos cominatórios;

13. Mas, mesmo que se admita essa possibilidade, ou seja, a de se invocar o abuso do direito em casos de nulidade por inobservância de forma, não se verifica ele no caso em apreço;

14. Com efeito, nestes casos específicos de pedido de declaração de nulidade de um negócio jurídico só excepcionalmente é que se pode admitir a invocação do abuso de direito, desde que, no caso concreto, as circunstâncias apontem para uma clamorosa ofensa do princípio da boa fé e do sentimento geralmente perfilhado pela comunidade, situação em que o abuso de direito servirá de válvula de escape no nosso ordenamento jurídico, tornando válido o acto formalmente nulo, como sanção do acto abusivo;

15. Ora, da factualidade provada inexiste qualquer facto que aponte para uma clamorosa ofensa do princípio da boa fé;

16. Igualmente da matéria de facto provada não resulta que se tenha verificado qualquer situação objectiva de confiança, isto é, não se provou que a Autora estava convicta da validade do seu contrato de trabalho e, também, não se provou que o réu tenha agido/procedido de modo a criar naquela a convicção de que não iria invocar a nulidade do contrato;

17. Não se apurou, pois, qualquer matéria de facto de onde se possa extrair tais conclusões/ilações;

18. A interpretação feita no acórdão recorrido do artigo 334.° do CC, conjugado com os artigos 8.º, n.º 1, e 26.º, n.º 2, estes da Lei n.º 23/2004, de 22 de Junho, é inconstitucional, por violação do artigo 47.°, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, pois permite a validação de contratos sem termo, nulos por falta de forma, sem haver qualquer procedimento de recrutamento e selecção de eventuais candidatos à contratação que garanta o acesso em condições de liberdade e de igualdade.

Finalizou, pedindo a revogação do acórdão recorrido e a manutenção da sentença da 1.ª instância.

A Autora contra-alegou para sustentar a confirmação do acórdão da Relação.

Depois de corridos os vistos, prevenindo a eventualidade de vir a ser concedida a revista e ter de conhecer-se da pretensão subsidiariamente formulada no recurso de apelação pela Autora, foram as partes notificadas, em obediência ao disposto n.º 3 do artigo 715.º do Código de Processo Civil, para sobre tal se pronunciarem.

Respondendo, o Réu, representado pelo Ministério Público, defendeu a alteração oficiosa da decisão proferida na 1.ª instância no sentido de não se “outorgar à A. qualquer montante quer a título de indemnização quer a título remuneratório”, ou, caso assim não se entenda, não haver, nem ter sido identificada no recurso de apelação, qualquer razão para a alteração da base de cálculo da indemnização fixada naquela decisão; por seu lado, a Autora disse não prescindir do pedido de indemnização na base de 45 dias por cada ano de trabalho.

Face ao teor das conclusões do recurso, a questão fundamental que vem proposta à apreciação deste Supremo é a de saber se o contrato de trabalho que vigorou entre as partes, nulo por inadmissibilidade legal, se convalidou por força da Lei n.º 23/2004, de 22 de Junho, e, por consequência, se a Autora tem direito a ser reintegrada ao serviço do Réu. Caso a resposta seja negativa, haverá que tomar posição sobre a questão relativa à indemnização de antiguidade.

Cumpre decidir.


II

1. Os factos materiais da causa foram, pelas instâncias, fixados nos seguintes termos:

1. A Autora é licenciada em Engenharia Biológica – Ramo de Controlo de Poluição, pela Universidade do Minho, de Braga.

2. A Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte – CCDRN é um serviço desconcentrado do Ministério das Cidades, Ordenamento do Território e Ambiente, dotado de autonomia administrativa e financeira, ao qual incumbe, a nível da respectiva área geográfica, executar, além do mais, as políticas de ambiente, de ordenamento do território, de conservação da natureza e da biodiversidade e que resultou da fusão da Comissão de Coordenação da Região Norte (CCRN) com a Direcção Regional do Ambiente e Ordenamento do Território (DRAOT), ocorrido em 24 de Maio de 2003.

3. A Autora foi admitida pela referida DRAOT, em Outubro de 1998, para exercer funções na Divisão Sub Regional de Viana do Castelo, onde se manteve durante um ano, transitando ao fim desse tempo para a Divisão Sub Regional de Braga da referida DRAOT, onde passou a desempenhar funções.

4. Desde a data referida em 3, a Autora passou a prestar serviço sob as ordens e direcção efectiva do respectivo Director e cadeia hierárquica.

5. Estando integrada numa cadeia hierárquica que tinha como seu superior imediato o Chefe de Divisão, em Braga, Dr. L...de O... e, logo a seguir, Directores de Serviço, nos Serviços Centrais no Porto, designadamente, entre outros, a Dr.ª R...N... e Dr. P...P..., para além dos Directores Regionais, como o Prof. M...D..., o Eng.º A...M... e a Eng.ª G...M....

6. Nessa cadeia hierárquica encontravam-se ao mesmo nível da Autora a Eng.ª M...J...M... e, como seus dependentes, os funcionários administrativos D.ª L...G..., D. F...F... e Sr. L...F... (contínuo ou recepcionista) e os vigilantes da natureza (ex-guarda-rios) Srs. A...R..., M...P... e A...C....

7. A Autora recebia ordens não só do referido superior imediato, como por vezes dos Directores de Serviço e até de Directores Regionais, como os referidos em 5, respectivamente.

8. Como dava ordens aos dependentes ou subordinados referidos em 6, sendo, por todos, considerada como hierarquicamente sua superiora.

9. Foi considerada pelos organismos referidos em 2. empregada/funcionária na distribuição da gestão de processos por grupos de concelhos, em igualdade com os demais funcionários, nomeadamente técnicos e encontrava-se sujeita ao cumprimento e respeito da disciplina imposta pelo regime disciplinar da função pública.

10. No dia 14 de Fevereiro de 2003, o chefe da divisão da DRAOT emitiu uma ordem de serviço dirigida a “todos os funcionários da Divisão Sub-Regional de Braga”, tendo como assunto “funcionamento dos serviços”, na qual foi estabelecido o seguinte: “A Sr.ª Eng.ª AA, o Técnico Sr. H...P... e a Sr.ª Eng.ª M...J...M... assegurarão a gestão dos processos referentes ao conjunto de Concelhos conforme lista anexa que em termos dos Srs. Vigilantes da Natureza são acompanhados, respectivamente pelos Srs. A. C..., M. P... e A. R.... O Sr. Dr. J... P... assegura a gestão dos processos de contra-ordenação e dá apoio jurídico aos restantes técnicos. (…) A referida gestão dos processos consiste, nomeadamente, na sua apreciação para criar as condições para o Despacho necessário do Chefe da Divisão. Nos casos de meros pedidos de esclarecimentos ou para complemento de informações pode o técnico respectivo assegurar a medida apropriada por documento por si mesmo assinado com referência “Pelo Chefe da Divisão”.

11. Na lista anexa a tal ordem de serviço mencionam-se os seguintes concelhos como sendo os da área afecta à Autora, como técnica responsável, nos termos já referidos: Felgueiras, Lousada, Paços de Ferreira, Santo Tirso, Trofa e Vila Nova de Famalicão.

12. A Autora sempre teve gabinete próprio, como os demais técnicos da Divisão, com uma extensão telefónica própria com o n.º 21.

13. Após a admissão da A. na Divisão Sub-Regional de Braga, foi emitida pelo respectivo Chefe da Divisão, Dr. A... L...de O..., uma declaração comunicando que a Autora “se encontra a prestar serviço na Divisão …” e que deve “ser-lhe prestado o apoio necessário nas acções…”.

14. Nos anos de 2002 e 2003 a Autora recebeu, ao serviço daquela divisão, um total ilíquido de € 36.216,41, pago mensalmente mediante transferências bancárias, cheque ou numerário e durante 12 meses por ano, quantia que já englobava subsídio de férias e de Natal.

15. A partir de Janeiro de 2004 a Autora nada mais recebeu da CCDRN, tendo sido autorizado pelo respectivo Vice-Presidente o pagamento à mesma da quantia de € 21.500,00 respeitante ao período de Janeiro a Dezembro de 2004.

16. A Autora sempre esteve sujeita a horário de trabalho, condizente com o horário de funcionamento dos respectivos serviços, entrando diariamente às 9 horas e saindo às 17,30 horas, com intervalo para almoço entre as 12,30 e as 14 horas.

17. A Autora sempre gozou 22 dias úteis de férias por ano, sendo gozados por altura da Páscoa entre 5 a 10 dias e os restantes dias no mês de Outubro, férias essas que eram combinadas com o Chefe da Divisão.

18. Nos anos de 2000, 2001 e 2002 a Autora substituiu o Chefe da Divisão na referida chefia, assim como o substituiu, diversas vezes, por ordem dele, em vários eventos, palestras e reuniões (p. ex., Concelhos de Bacias Hidrográficas), tendo o mesmo considerado a Autora e anunciado-a aos demais funcionários como sua Adjunta, substituindo-o sempre nas suas faltas/ausências.

19. Aliás, foi num período de substituição do referido Chefe da Divisão, por férias deste, que a Autora teve de intervir para solucionar e mesmo tomar medidas para punir um grave caso de poluição no Rio Cávado, o que lhe valeu um louvor, em Setembro de 2001, da Directora de Serviços de Gestão Ambiental, em substituição do Director Regional do Ambiente e do Ordenamento do Território – Norte.

20. A Autora conseguiu que centenas de processos pendentes, muitos deles, há vários anos, tivessem resolução graças à sua intervenção, tendo por via deste facto, como pela acção que desenvolveu no aconselhamento e acompanhamento prestado em processos de contra-ordenação, feito com que a receita da Divisão Sub-Regional tivesse tido um considerável acréscimo.

21. Desses processos de contra-ordenação foram muitos aqueles em que interveio e que tinham a ver com situações de poluição (rejeições, resíduos, emissões atmosféricas e ruído), tendo prestado inclusivamente assistência técnica ao jurista da Divisão, sendo muitas vezes testemunha importante em Tribunal em processos de violação de normas ambientais.

22. Participou e interveio em actos de inspecção e em processos judiciais por crimes de poluição praticados por terceiros.

23. Por despacho de 2000, do Director Regional do Ambiente do Norte, Prof. M...D..., foi conferida à Divisão Sub-Regional de Braga, com a colaboração da Autora, autonomia no licenciamento de rejeição de efluentes, tendo as respectivas licenças de rejeição de efluentes passado a poder ser emitidas pela Divisão Sub-Regional sem já precisarem de ser submetidas a decisão da Direcção Regional.

24. Também a Autora sensibilizou e formou os Vigilantes da Natureza, ao serviço da referida Divisão, os quais, por via disso, passaram a desempenhar mais cabalmente e com melhor qualidade as suas funções.

25. E foi ainda chamada a formar agentes da GNR para a criação das Brigadas de Serviços Especiais de Protecção da Natureza, em acção conjunta do ICN – Instituto de Conservação da Natureza e da ex--DRAOT.

26. A Autora leccionou a componente técnica dos módulos de formação no Curso de Formação “Domínio Hídrico, Resíduos, Ar e Ruído”, que teve lugar no Gerês entre Abril e Junho de 2002, assim como participou como Oradora nas “Jornadas de Engenharia Têxtil”, em Abril de 2000, organizadas pelo Departamento de Engenharia Têxtil da Universidade do Minho.

27. Sempre com o intuito e preocupação de enriquecer os seus conhecimentos para melhor desempenhar as suas tarefas profissionais, frequentou diversas acções de formação, relacionadas com a área do Ambiente.

28. Em 19-04-2000, a Eng.ª R...S..., Técnica Superior da DSNEAC, solicitou superiormente a nomeação de um técnico da Divisão Sub-Regional de Braga para integrar a Comissão de Acompanhamento da obra de ampliação da suinicultura da Porseara, tendo a Directora do Serviço da Água, Dr.ª Maria do R...N..., proferido, em 27-04-2000, despacho a nomear a Autora para integrar a referida comissão.

29. A Autora manteve, ainda, estreitos contactos com Câmaras Municipais da área da referida Divisão Sub-Regional (como sucedeu, por exemplo, com as Câmaras Municipais de Terras de Bouro e de Barcelos) quer informando, quer aconselhando, sempre com manifesta e reconhecida competência técnica.

30. Participou em vistorias como representante da CCDR, como foi o caso das efectuadas às empresas “A...B...B..., S.A.” e “R... – Cerâmica de Arte & Design, Ld.ª” .

31. No dia 23.06.2005 foi passada uma licença de rejeição de águas residuais, conforme ordem dessa data, dada e manuscrita pela Autora à administrativa D. F... para a elaborar.

32. Em 30.05.2005 foi dirigido um ofício à divisão Sub-Regional de Braga do Réu em resposta a um outro ofício da autoria da Autora, de 27.04.05;

33. Em 31.05.2005 foi dirigido um ofício ao Presidente da Câmara Municipal de Lousada pelo Chefe da Divisão, redigido pela Autora.

34. A CCDR dispensou os serviços da A. no dia 30 de Junho de 2005, altura em que do respectivo gabinete já tinha sido retirada a sua mesa de trabalho.

2. A decisão proferida sobre a matéria de facto não vem impugnada e não ocorre qualquer das situações previstas no artigo 729.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, que permitiriam ao Supremo Tribunal sobre ela exercer censura.

O acórdão recorrido, em consonância com a sentença da 1.ª instância, concluiu que, à data da celebração do contrato de trabalho (Outubro de 1998) se encontravam em vigor os Decretos-Leis n.os 184/89, de 2 de Junho, e 427/89, de 7 de Dezembro – que proibiam o estabelecimento de relações laborais entre o Estado e o trabalhador mediante a celebração de contrato de trabalho por tempo indeterminado –, pelo que ao abrigo de tais normativos legais, o contrato de trabalho seria nulo.

Mas entendeu também o mesmo acórdão que, encontrando-se o contrato de trabalho (nulo) em execução quando entrou em vigor a Lei n.º 23/2004, de 22 de Junho (diploma que aprova o regime jurídico do contrato individual de trabalho da Administração Pública), o mesmo convalidou-se, por força desta lei, assim divergindo, nesta parte, do decidido na 1.ª instância.

Para tanto considerou que não tendo, durante mais de seis anos, a nulidade do contrato da Autora sido impeditiva para o Réu de este receber a prestação, levando a que aquela confiasse que o contrato seria plenamente válido, o Réu incorreu em abuso do direito ao invocar a referida nulidade por falta de forma, considerando-se o mesmo válido, não obstante não ter obedecido ao preceituado no artigo 8.º, n.º 1, da referida Lei.

O recorrente sustenta, em suma, que o regime aplicável ao caso é o que decorre do Decreto-Lei n.º 427/89, de 7 de Dezembro, regime que não permitia a celebração de contratos individuais de trabalho por tempo indeterminado, pelo que o contrato em apreço é nulo por impossibilidade legal, não podendo ser convalidado por lei posterior, concretamente pela Lei n.º 23/2004.

Acrescenta que da matéria de facto que assente ficou não resulta que, ao invocar a nulidade, tenha actuado com abuso do direito, rematando que diferente interpretação deve ter-se por inconstitucional por violação do disposto no artigo 47.º n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, pois, por essa via, permitia-se a validação de contratos sem termo, nulos por falta de forma, sem haver qualquer procedimento de recrutamento e selecção de eventuais candidatos à contratação que garanta o acesso em condições de liberdade e igualdade.

3. Nos termos do Decreto-Lei n.º 184/89, de 2 de Junho, diploma que estabelece os princípios gerais em matéria de salários e gestão de pessoal na função pública, a relação de emprego na Administração pública constitui-se com base em nomeação ou em contrato (artigo 5.º), devendo esta efectuar-se por contrato administrativo de provimento ou contrato de trabalho a termo certo [artigo 7.º, n.º 2, alíneas a) e b)].

O Decreto-Lei n.º 427/89, de 7 de Dezembro, regulamenta os princípios a que deve obedecer a relação jurídica de emprego na Administração Pública e foi editado pelo Governo em desenvolvimento do regime jurídico estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 184/89, de 2 de Junho (alterado pelas Leis n.os 30-C/92, de 28 de Dezembro, 25/98, de 26 de Maio, 10/2004, de 22 de Março, e 23/2004, de 22 de Junho).

Segundo o regime do Decreto-Lei n.º 427/89, a relação jurídica de emprego na Administração Pública constitui-se por nomeação e contrato de pessoal (artigo 3.º), podendo esta última revestir as modalidades de contrato administrativo de provimento e de contrato de trabalho a termo certo [alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 14.º], sendo que, a partir da entrada em vigor do diploma legal em referência, ficou vedada ao Estado a constituição de relações de emprego com carácter subordinado por forma diversa das previstas no seu artigo 14.º, com responsabilização dos funcionários e agentes que tal possibilitassem (artigo 43.º), salvaguardando-se, todavia, a existência de um regime especial em relação ao pessoal dos institutos públicos que revistam a forma de serviços personalizados ou de fundos públicos abrangidos pelo regime aplicável às empresas públicas ou pelo contrato individual de trabalho (n.º 1 do artigo 44.º) – no mesmo sentido, quanto à salvaguarda deste regime especial, era já a previsão do n.º 4 do artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 189/89, de 2 de Junho.

Ou seja, quer de acordo com o Decreto-Lei n.º 184/89, quer de acordo com o Decreto-Lei n.º 427/89, não era permitido o estabelecimento de relações laborais entre o Estado e o trabalhador mediante a celebração de contrato de trabalho por tempo indeterminado: logo, no caso em apreço, tendo sido a relação entre as partes reconhecida, sem a discordância destas, como configurando um contrato de trabalho por tempo indeterminado, seria este de considerar nulo (n.º 1 do artigo 43.º do Decreto-Lei n.º 427/89 e artigo 292.º do Código Civil).

Sucede, porém, que, ainda na vigência da relação de trabalho, foi publicada a Lei n.º 23/2004, de 22 de Junho, que entrou em vigor em 22 de Julho seguinte (artigo 31.º).

Dispõe o n.º 1 do artigo 26.º deste diploma legal: «Ficam sujeitos ao regime da presente lei os contratos de trabalho e os instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho celebrados ou aprovados antes da sua entrada em vigor que abranjam pessoas colectivas públicas, salvo quanto às condições de validade e aos efeitos de factos ou situações totalmente passados anteriormente àquele momento».

E o n.º 2 do mesmo preceito prescreve que «[o] disposto no n.º 4 do artigo 1.º (…) não prejudica a imediata aplicação da presente lei, designadamente quanto aos contratos de trabalho já em execução».

Refira-se que este normativo legal – o n.º 4 do artigo 1.º – veda a celebração de contratos de trabalho por tempo indeterminado quando estejam em causa actividades que impliquem o exercício directo de poderes de autoridade ou o exercício de poderes de soberania.

O n.º 1 do artigo 26.º da Lei n.º 23/2004, procede, pois, à determinação do âmbito temporal da lei, em termos coincidentes com o que dispõe o artigo 8.º, n.º 1, da Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, que aprovou o Código do Trabalho.

Como se escreveu no Acórdão deste Supremo Tribunal de 2 de Maio de 2007 (Documento n.º SJ200705020043684, em www.dgsi.pt), a propósito da interpretação e aplicação no tempo do disposto no artigo 8.º, n.º 1, da Lei n.º 99/2003, a norma acolhe o regime comum de aplicação das leis no tempo contido no n.º 2 do artigo 12.º do Código Civil, que no Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República n.º 238/77, de 21 de Dezembro de 1997 (publicado no Diário da República, II Série, n.º 74, de 30 de Março de 1978, e no Boletim do Ministério da Justiça, 280, 184) foi definido nos seguintes termos: «Nesse n.º 2 estabelece-se a seguinte disjuntiva: a lei nova ou regula a validade de certos factos ou os seus efeitos (e neste caso só se aplica aos factos novos) ou define o conteúdo, os efeitos de certa relação jurídica independentemente dos factos que a essa relação deram origem (hipótese em que é de aplicação imediata, quer dizer, aplica-se, de futuro, às relações jurídicas constitutivas e subsistentes à data da sua entrada em vigor)».

Isto é, como, de modo impressivo, observa João Baptista Machado (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 11.ª Reimpressão, Almedina, Coimbra, 1999, pág. 233), trata-se de uma norma que exprime o princípio da não retroactividade nos termos da teoria do facto passado, nele se distinguindo «dois tipos de leis ou de normas: aquelas que dispõem sobre os requisitos de validade (substancial ou formal) de quaisquer factos (1.ª parte) e aquelas que dispõem sobre o conteúdo de certas relações jurídicas e o modelam sem olhar aos factos que a tais situações deram origem (2.ª parte). As primeiras só se aplicam a factos novos, ao passo que as segundas se aplicam a relações jurídicas (melhor: Ss Js [situações jurídicas]) constituídas antes da LN [Lei Nova] mas subsistentes ou em curso à data do seu IV [início de vigência]».

E, mais adiante [(pp. 233-234), sintetizando a teoria da aplicação das leis no tempo], distingue «(…) entre constituição e conteúdo das Ss JS [situações jurídicas]. À constituição das Ss Js (requisitos de validade, substancial e formal, factos constitutivos) aplica-se a lei do momento em que essa constituição se verifica; ao conteúdo das Ss Js que subsistam à data do IV [início de vigência] da LN [Lei Nova] aplica-se imediatamente esta lei, pelo que respeita ao regime futuro deste conteúdo e seus efeitos, com ressalva das situações de origem contratual relativamente às quais poderia haver uma como que “sobrevigência” da LA [Lei Anterior]».

Também Pires de Lima e Antunes Varela escrevem a propósito do n.º 2 do artigo 12.º do Código Civil (Código Civil Anotado, Volume I, Coimbra Editora, 1967, em anotação ao artigo 12.º, pp. 18-19): «[p]revinem-se no n.º 2, em primeiro lugar, os princípios legais relativos às condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos, ou referentes aos seus efeitos. Assim, por exemplo, as condições de validade de um contrato (capacidade, vícios de consentimento, forma, etc.), bem como os efeitos da respectiva invalidade, têm de aferir-se pela lei vigente ao tempo em que o negócio foi celebrado (…). Se, porém, tratando-se do conteúdo do direito, for indiferente o facto que lhe deu origem, a nova lei é já aplicável. Assim, para fixar o conteúdo do direito de propriedade, ou de qualquer outro direito real, é aplicável a lei nova e não a lei da data da sua constituição. Não interessa, na verdade, saber qual foi o título constitutivo, nem qual foi, por consequência, a data da formação do direito (…). O mesmo acontece, geralmente, com os direitos de natureza perpétua, como os relativos ao estado de casado, de filho, de adoptado, etc. […]».

No caso em apreço, quanto à validade ou não do contrato de trabalho por tempo indeterminado (requisitos de validade formal e substancial), já se afirmou a sua nulidade, por, no momento da sua constituição (Outubro de 1998), quer ao abrigo do Decreto-Lei n.º 427/89 quer do Decreto-Lei n.º 184/89 não ser admissível a celebração de tais contratos.

Todavia, do que se trata agora é de apurar as consequências jurídicas da entrada em vigor da Lei n.º 23/2004 sobre a relação, de facto, de trabalho que vinha vigorando, tendo presente que esta se iniciou em Outubro de 1998 e cessou em 30 de Junho de 2005 – pontos 3 e 34 da decisão da matéria de facto).

Ou seja, o que está agora em causa é apurar o regime dos direitos e deveres emergentes para as partes da relação de trabalho, definido pelas normas em vigor no momento dos factos ou efeitos relevantes que estejam concretamente em apreço.

Importa, para este efeito, atender também ao que dispõe o n.º 1 do artigo 118.º do Código do Trabalho: «Cessando a causa de invalidade durante a execução do contrato, este considera-se convalidado desde o início».

Nesta perspectiva, subsistindo a relação de trabalho no momento da entrada em vigor da Lei n.º 23/2004, há que analisar, face aos normativos legais dela constantes, se a mesma poderia continuar, agora de forma válida, com as legais consequências.

Como resulta do que se deixou explanado supra, a causa de invalidade do contrato de trabalho era a proibição legal estabelecida pelos Decretos-Leis n.º 427/89 e 184/89, pelo que cessando a proibição ficariam convalidados os contratos anteriormente celebrados.

Resulta da Lei n.º 23/2004, de 22 de Junho (maxime do seu artigo 1.º e da alteração introduzida pelo seu artigo 28.º ao artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 184/89 e pelo seu artigo 29.º ao artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 427/89), a admissibilidade, genérica, de o Estado e outras pessoas colectivas públicas celebrarem contratos de trabalho por tempo indeterminado.

Porém, o contrato de trabalho encontra-se sujeito à observância de determinadas formalidades.

Desde logo, no âmbito da referida lei, a celebração de contrato por tempo indeterminado exige que seja precedida de um processo prévio de selecção, a observar nos termos prescritos no seu artigo 5.º.

Procura-se salvaguardar, com aquela imposição legal, o princípio da igualdade de oportunidades no acesso ao emprego, a igualdade de condições no acesso ao emprego, através da publicitação da oferta de emprego e da garantia de imparcialidade na apreciação dos candidatos.

Atente-se que nos termos do n.º 2 do artigo 47.º, da Constituição da República Portuguesa, «[t]odos os cidadãos têm o direito de acesso à função pública, em condições de igualdade e liberdade, em regra por via de concurso».

Sobre este preceito, pronunciou-se o Tribunal Constitucional nos seguintes termos (Acórdão n.º 683/99, Diário da República, II Série, n.º 28, de 3 de Fevereiro de 2000):

«Entre nós, retira-se do artigo 47.º, n.º 2, da Constituição, como concretização do direito de igualdade no acesso à função pública, um direito a um procedimento justo de recrutamento e selecção de candidatos à função pública, que se traduz, em regra, no concurso (embora não um direito subjectivo de qualquer dos candidatos à contratação – assim, v. recentemente o Acórdão n.º 556/99).

Este não pode, por outro lado, ser procedimentalmente organi­zado, ou decidido, em condições ou segundo critérios discriminatórios, conducentes a privilégios ou preferências arbitrárias, pela sua previsão ou pela desconsidera­ção de parâmetros ou elementos que devam ser relevantes (…).

É certo que o direito de acesso previsto no artigo 47.º, n.º 2, não proíbe toda e qualquer diferenciação, desde que fundada razoavelmente em valores com relevância constitucional – como exemplos pode referir-se a preferência no recrutamento de deficientes ou na colocação de cônjuges um junto do outro (assim G. Canotilho/V. Moreira, Constituição..., cit., pág. 265). Poderá dis­cutir-se se do princípio consagrado no artigo 47.º, n.º 2, resulta, como concretização dos princípios de igualdade e liberdade, que os critérios de acesso (em regra, de decisão de um concurso) tenham de ser exclusivamente meritocráticos, ou se pode conceder-se preferência a candidatos devido a características diversas das suas capacidades ou mérito, desde que não importem qualquer preferência arbitrária ou discriminatória – assim, por exemplo, o facto de serem oriundos de uma determinada região, ou de terem outra característica (por exemplo, uma deficiência) reputada relevante para os fins prosseguidos pelo Estado.

Seja como for, pode dizer-se que a previsão da regra do concurso, associada aos princípios da igualdade e liberdade no acesso à função pública, funda uma preferência geral por critérios relativos ao mérito e à capacidade dos candidatos (…).

E o concurso é justamente previsto como regra por se tratar do procedimento de selecção que, em regra, com maior transparência e rigor se adequa a uma escolha dos mais capazes – onde o concurso não existe e a Administração pode escolher livremente os funcionários não se reconhece, assim, um direito de acesso (Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. e loc. cits., anotação XI; sobre o fundamento do procedimento concursal, v. também Ana Fernanda Neves, Relação jurídica de emprego público, cit., págs. 147 e seguintes).

Assim, para respeito do direito de igualdade no acesso à função pública, o estabelecimento de excepções à regra do concurso não pode estar na simples discricionariedade do legislador, que é justamente limitada com a imposição de tal princípio. Caso contrário, este princípio do concurso – fundamentado, como se viu, no próprio direito de igualdade no acesso à função pública (e no direito a um procedimento justo de selecção) – poderia ser inteiramente frustrado. Antes tais excepções terão de justificar-se com base em princípios materiais, para não defraudar o requisito constitucional (assim Gomes Canotilho/Vital Moreira, loc. cit.; Ana F. Neves, ob. cit., págs. 153-4).».

Em idêntico sentido, podem ver-se, entre outros, os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 368/2000 (Diário da República, I Série-A, n.º 277, de 30 de Novembro de 2000, p. 6886, e n.º 409/07, de 11 de Julho de 2007, em www.tribunalconstitucional.pt).

Voltando ao caso que nos ocupa, a contratação nos termos da Lei n.º 23/2004, visando a salvaguarda de oportunidades no acesso ao emprego no Estado e noutras pessoas colectivas públicas, reitera-se, exige a observância de um processo prévio de selecção, de que se destaca a publicitação da oferta de trabalho e a decisão de contratação fundamentada em critérios objectivos de selecção (5.º).

Ora, desconhece-se se houve processo de recrutamento e selecção com vista à contratação da Autora, ainda que sob a denominação de prestação de serviço, sendo certo que como facto constitutivo do direito pela Autora invocado, a esta competia a alegação e prova dos referidos factos (artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil) – neste sentido o Acórdão desde Supremo de 26 de Setembro de 2007 (Documento n.º SJ200709260044704, em www.dgsi.pt).

Mas a lei (artigo 7.º) faz também depender a celebração de contratos de trabalho por tempo indeterminado, por parte das pessoas colectivas públicas, da existência, para o efeito, de um quadro de pessoal próprio, e nos limites desse quadro.

Dos autos não decorre a existência do referido quadro próprio no organismo público que contratou a Autora, sendo que também quanto a este requisito, competia à Autora a alegação e prova da sua existência.

Mais exige a Lei n.º 23/2004 que a celebração de contrato de trabalho por tempo indeterminado observe a forma escrita (n.º 1 do artigo 8.º), sendo que a não redução a escrito determina a nulidade do contrato (n.º 3 do mesmo artigo).

Ora, não constando dos autos que o acordo de vontades fonte da relação laboral que vigorou entre a Autora e o Réu foi reduzido a escrito, sempre faltaria um pressuposto para se considerar válido (convalidado) o contrato em causa.

Por isso, a questão que agora se impõe analisar consiste em saber se, tendo em conta a conduta do Réu, não lhe pode aproveitar a consequência (nulidade) da inobservância dos referidos requisitos do contrato.

De acordo com o aresto recorrido, a conduta do Réu, ao invocar a nulidade do contrato por falta de forma, é abusiva, pois «(…) ao longo de seis anos e oito meses, “aproveitou-se” do trabalho da Autora sendo certo que o mesmo não podia desconhecer que a contratação com a referida trabalhadora ocorreu “à margem” da lei e dos preceitos legais vigentes (a Autora sempre prestou a actividade para que foi contratada ao abrigo de um contrato de trabalho por tempo indeterminado)».

Ou seja, no entendimento do Tribunal da Relação, uma vez que o Réu durante mais de seis anos recebeu o trabalho da Autora, apesar da nulidade do contrato, criando na Autora a convicção da validade do mesmo, deverá concluir-se que agiu em abuso do direito e, como tal, não lhe pode aproveitar a nulidade do contrato com fundamento em falta de forma.

Decorre do artigo 334.º do Código Civil que o abuso do direito consiste no exercício ilegítimo de um determinado direito, traduzindo-se a ilegitimidade em actuação, por parte do respectivo titular, que manifestamente exceda os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social desse direito.

Para que o exercício do direito seja considerado abusivo, não basta, pois, que cause prejuízos a outrem; é necessário que o titular exceda, visível, manifesta e clamorosamente, os limites que lhe cumpre observar, impostos quer pelo princípio da tutela da confiança (boa fé), quer pelos padrões morais de convivência social comummente aceites (bons costumes), quer, ainda, pelo fim económico ou social que justifica a existência desse direito, de tal modo que o excesso, à luz do sentimento jurídico socialmente dominante, conduz a uma situação de flagrante injustiça.

Dito de outro modo: para determinar os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes, há que atender de modo especial às concepções ético-jurídicas dominantes na colectividade; quando esses limites decorrem do fim económico e social do direito impõe-se apelar para os juízos de valor positivo consagrados na própria lei (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 2.ª Edição, Volume I, Livraria Almedina, Coimbra, 1973, p. 423).

A manifestação mais evidente do abuso do direito é a chamada conduta contraditória (venire contra factum proprium) em combinação com o princípio da tutela da confiança (exercício de um direito em contradição com uma conduta anterior em que a outra parte tenha confiado, vindo esta com base na confiança gerada, e de boa fé, a programar a sua vida e a tomar decisões). Como figuras próximas, encontra-se a renúncia (acto de disposição jurídico-negocial que pressupõe a vontade de abdicar do direito, de o extinguir) e a neutralização do direito, esta correspondendo, nas palavras de João Baptista Machado (Obra Dispersa, Vol. I, Scientia Ivridica, Braga, 1991, p. 421), à «inadmissibilidade do exercício serôdio e desleal de um direito» – o direito é «desactivado» pelo decurso do tempo.

Segundo o mesmo Professor (obra e local citados), esta última figura é considerada, em geral, como uma modalidade especial da proibição do venire contra factum proprium e ocorre quando se verificam cumulativamente as seguintes circunstâncias: (a) o titular de um direito deixa passar longo tempo sem o exercer; (b) com base neste decurso do tempo e com base ainda numa particular conduta do dito titular ou noutras circunstâncias, a contraparte chega à convicção justificada de que o direito já não será exercido; (c) movida por esta confiança, essa contraparte orienta em conformidade a sua vida, tomando medidas ou adoptando programas na base daquela confiança, pelo que o exercício tardio e inesperado do direito lhe acarretará uma desvantagem maior do que o seu exercício atempado.

Como se disse, no caso que nos ocupa, o acórdão recorrido ancorou-se, para fundamentar o abuso do direito por parte do Réu, na existência de um contrato de trabalho entre as partes, ainda que não válido, durante mais de seis anos, em que o Réu sempre recebeu o trabalho por parte da Autora, criando nesta a (legítima) expectativa de que o contrato seria válido.

Também já se referiu que resulta da factualidade provada que a Autora foi admitida pela Direcção Regional do Ambiente e Ordenamento do Território (DRAOT), em Outubro de 1998, em regime de prestação de serviços, tendo-se mantido a prestação do trabalho até 30 de Junho de 2005.

A Autora intentou a presente acção com vista, entre o mais, a ver reconhecida como de trabalho subordinado, sem termo, a relação profissional que manteve com o Réu, com as consequências daí decorrentes, maxime a sua reintegração ao serviço do Réu.

O Réu, por sua vez, pôs em causa a existência de um contrato de trabalho válido com a Autora.

Por decisão judicial, já transitada em julgado, foi declarado e reconhecido que, naquele período (de Outubro de 1998 a 30 de Junho de 2005), a Autora prestou a actividade profissional para o Réu em regime de contrato de trabalho sem termo.

Ora, do factualismo apurado – relação profissional entre as partes durante mais de seis anos, qualificada, posteriormente, como de contrato de trabalho por tempo indeterminado –, não parece que se possa concluir que o titular do direito (o Réu) tenha deixado passar longo tempo sem o exercer e que tal circunstância, aliada ao comportamento do mesmo Réu, tenha criado na contraparte (a Autora) a convicção justificada de que o direito já não seria exercido.

Na verdade, não pode deixar de ter-se presente que as partes não haviam qualificado a relação profissional como de contrato de trabalho sem termo e que o empregador fez cessar aquela (através da dispensa dos serviços da Autora) antes da sua qualificação como de contrato de trabalho.

Isto é, e concretizando: a referida factualidade não permite concluir que o Réu desde o início da relação profissional que manteve com a Autora agiu no pressuposto de que se tratava, efectivamente, de um contrato de trabalho, nulo, que podia fazer cessar o mesmo e, bem assim, que ao não proceder desse modo (fazendo cessar o contrato durante esse período de tempo) criou a convicção na Autora de que aquele (contrato) se manteria.

Quanto a este último aspecto, não pode deixar de atentar-se na correspondência, junta aos autos com a petição inicial, trocada entre a Autora e diferentes organismos/entidades (fls. 64 e segs.), a partir de 6 de Setembro de 2004, em que se surpreende a manifestação, por parte da Autora, do inconformismo pela situação originada pelo facto de ter sido «verbalmente, contratada em regime de prestação de serviços (recibos verdes), ou seja, com vínculo absolutamente precário», solicitando a «legalização ou adaptação à legalidade da [sua] situação laboral, pela constituição de uma relação jurídica de emprego»; e, por parte das entidades envolvidas, o entendimento, àquela comunicado, da inviabilidade da satisfação daquela pretensão, face rigidez das atinentes normas legais.

Assim, não se pode concluir que o empregador ao fazer cessar a relação profissional (através da dispensa dos serviços da Autora), antes da qualificação da mesma como de contrato de trabalho, tenha excedido manifestamente os limites da boa fé.

Sublinhe-se que o facto de o empregador sustentar a invalidade do contrato com base na inobservância de determinados requisitos, também, não é decisivo para que se possa consubstanciar a existência de abuso do direito, quando, como é sabido, o tribunal não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 664.º do Código de Processo Civil), sendo certo que a nulidade do contrato, além de invocável a todo o tempo por qualquer interessado, pode ser declarada oficiosamente (artigo 286.º do Código Civil).

Acresce que a eventual convalidação do contrato nulo, por efeito da vigência de nova legislação, não se encontrava apenas dependente da vontade e iniciativa do Estado, agindo na veste de empregador.

Isto, porquanto, prévia à, eventual, celebração por escrito (ao abrigo da Lei n.º 23/2004) do contrato de trabalho por tempo indeterminado, era necessária a verificação de determinados requisitos legalmente impostos: (i) que, para esse efeito, houvesse no organismo público em causa (Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte) um quadro de pessoal que o permitisse (artigo 7.º) e (ii) que, no processo de selecção, a Autora fosse a candidata escolhida (artigo 5.º).

A verificação destes requisitos não dependia da mera vontade do empregador: na verdade, não seria legalmente possível celebrar o contrato de trabalho nos termos em análise se, por exemplo, o organismo público onde a Autora prestava actividade profissional não dispusesse de um quadro para esse efeito; ou, ainda que dispusesse desse quadro, não seria possível contratar a Autora se, em processo prévio de selecção de candidatos, tivesse(m), por exemplo, sido outro(s) o(s) candidato(s) escolhido(s).

Não se pode olvidar que, na situação em apreço, ao empregador/Estado não era possível, sem mais, e de imediato, perante a entrada em vigor de um novo quadro normativo (Lei n.º 23/2004) celebrar um contrato de trabalho com a Autora: na prossecução do interesse público, o Réu/Estado encontrava-se obrigado a observar determinados princípios de ordem pública, como sejam o princípio da igualdade de oportunidades no acesso ao emprego e, enfim, o princípio da legalidade.

Por isso, não podemos acompanhar o acórdão recorrido, quando conclui ser mais censurável a conduta do Réu por, perante a convalidação do contrato por força da entrada em vigor da Lei n.º 23/2004, nada ter feito para «remediar» o facto, limitando-se a «dispensar» os serviços da Autora.

Na sequência do que se deixa referido, é mister concluir que a invocação de nulidade do contrato de trabalho, por parte do empregador, não consubstancia abuso do direito, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 334.º do Código Civil, num circunstancialismo em que se apura que a relação profissional entre as partes, que se manteve durante mais de seis anos, foi qualificada, posteriormente à sua cessação, como de contrato de trabalho por tempo indeterminado, nulo por inadmissibilidade legal, mas que, ainda durante a sua vigência, perante a alteração do quadro normativo legal, passou ser admissível, desde que verificados determinados requisitos, se estes não dependiam apenas da iniciativa e vontade do empregador.

Deste modo, em virtude da afirmada nulidade do contrato de trabalho que vigorou entre as partes, produzindo embora efeitos, como se fosse válido, em relação ao tempo em que esteve em execução, não é possível a reintegração da Autora.

4. A sentença 1.ª instância concluiu pela invalidade do contrato determinante da não produção de efeitos para além do tempo em que esteve em execução e, consequentemente, pela improcedência do pedido de reintegração da Autora.

Entendeu, todavia, que a declaração de nulidade do contrato posterior à sua cessação não afecta outros efeitos legais desta, aplicando-se o regime geral previsto no Código do Trabalho, também, quanto aos efeitos da cessação, designadamente no que respeita ao direito a uma eventual indemnização por despedimento ilícito.

E, considerando que, ao dispensar a Autora, o Réu incorreu em despedimento ilícito, concluiu ter a Autora direito à indemnização prevista no artigo 439.º, n.º 1, do Código do Trabalho, tendo fixado o respectivo montante em € 9.054,08, correspondente a 30 dias de retribuição base por cada ano de antiguidade (€ 1.293,44 X 7).

Da sentença apenas a Autora apelou para ver reconhecido o direito à reintegração ou, tal não procedendo, aumentada a base de cálculo da indemnização para 45 dias de retribuição por cada ano de antiguidade.

O Réu, que não interpôs recurso da sentença, defendeu, na resposta à apelação da Autora, a confirmação da decisão da 1.ª instância nos seus precisos termos, tendo, na alegação de recorrente na presente revista, propugnado no mesmo sentido.

Deste modo, porque o Réu se conformou com segmento decisório em que, apesar de declarada a nulidade do contrato, se reconheceu à Autora o direito à indemnização de antiguidade, a sentença transitou nessa parte, não podendo, agora, discutir-se tal direito, em face do disposto no n.º 4 do artigo 684.º do Código de Processo Civil.

Está-nos, pois, vedado atender ao propugnado pelo Réu, na resposta que produziu ao abrigo do n.º 3 do artigo 715.º do Código de Processo Civil, no sentido de, alterando aquele segmento da sentença, não se outorgar à Autora qualquer montante a título de indemnização.

É, pois, mister, em obediência ao comando do n.º 1 do citado artigo 715.º, apreciar a pretensão relativa ao aumento da base de cálculo da indemnização de antiguidade, deduzida, subsidiariamente, no recurso de apelação pela Autora e cujo conhecimento o Tribunal da Relação julgou prejudicado, em face do reconhecimento do direito à reintegração.

No recurso de apelação, para sustentar que a indemnização deveria ser fixada com base em 45 dias de retribuição, a Autora alegou que tal “o impõe todo o condicionalismo e circunstancialismo que rodeou o caso dos autos”.

Na fixação da indemnização de antiguidade, manda o artigo 439.º, n.º 1, do Código do Trabalho, atender ao valor da retribuição e ao grau de ilicitude decorrente do disposto no artigo 429.º.

Neste último preceito, consigna-se que é ilícito qualquer tipo de despedimento se: (a) não tiver sido precedido do respectivo procedimento; (b) se fundar em motivos políticos, ideológicos, étnicos ou religiosos, ainda que com invocação de motivo diverso; (c) forem declarados improcedentes os motivos justificativos invocados para o despedimento.

No Acórdão deste Supremo Tribunal de 18 de Maio de 2006 (Documento n.º SJ200605180002914, em www.dgsi.pt), pode ler-se, a propósito da graduação da indemnização, a que se referem as citadas normas:

“[...]

Ao fazer intervir na medida da indemnização o grau de ilicitude do despedimento, por referência às situações descritas no artigo 429.º, o legislador parece ter pretendido distinguir o índice de censurabilidade que a conduta da entidade empregadora possa ter revelado, quer no que se refere à observância dos direitos processuais, quer no que se refere ao respeito pela dignidade social e humana do trabalhador visado. Neste contexto, afigura-se que assume maior relevância o despedimento que é imposto como medida discriminatória, em clara violação do princípio da igualdade e dos direitos fundamentais dos cidadãos, ou que tenha sido adoptado sem qualquer justificação e sem precedência de processo disciplinar, daquele outro que, seguindo os procedimentos legalmente previstos e respeitando o direito de defesa do trabalhador, acaba por ser julgado ilícito por insubsistência dos motivos que foram indicados como determinantes da decisão disciplinar.

A referência à retribuição parece, por outro lado, funcionar como um factor de equidade na fixação do montante indemnizatório, de modo a evitar que a natural variação dos níveis de remuneração dos trabalhadores, em função da categoria, qualificação e responsabilidade profissional, possa introduzir desequilíbrios e desvirtuar o carácter ressarcitório da obrigação, que, por regra, deverá ter em conta também a situação económica do lesado (artigo 494.º do Código Civil).

[...]”.

Na mesma linha de orientação, observou-se no Acórdão, também deste Supremo, de 6 de Fevereiro de 2008 (Documento n.º SJ200802060026214, em www.dgsi.pt), que a indemnização, «para além de um cariz reparador ou ressarcitório, associado à ideia geral de obtenção pelo trabalhador de uma compensação pela perda do emprego, que o acautele e prepare para o relançamento futuro da sua actividade profissional, assume uma natureza sancionatória ou “penalizadora” da actuação ilícita do empregador».

No caso, e no que respeita ao grau de ilicitude do despedimento, nada na factualidade disponível aponta para existência de motivos discriminatórios na origem da decisão do Réu de fazer cessar a relação profissional estabelecida com a Autora.

É certo que a declaração de dispensa da Autora, que traduziu o despedimento, não foi precedida de qualquer procedimento adequado a permitir a extinção da relação laboral por iniciativa do empregador.

Todavia, há que ponderar, para efeito de determinar o grau de ilicitude, que a Autora fora admitida a prestar a sua actividade, sob o regime de “prestação de serviço”, e que a controvérsia sobre a natureza da relação estabelecida entre as partes permaneceu até ser proferida a decisão da 1.ª instância que a caracterizou como relação de trabalho subordinado por tempo indeterminado.

Trata-se de uma situação em que a censurabilidade pela inexistência de procedimento prévio à declaração de cessação do contrato não atinge grau tão elevado como sucederia caso fosse líquido, para ambas as partes, desde o início do contrato, o seu carácter laboral não precário, caso este em que, tendencialmente, se justificaria apontar para o limite máximo da moldura da base de cálculo da indemnização (45 dias de retribuição).

Neste contexto, ponderando o valor da retribuição (€ 1.293,44) e o tempo de execução do contrato (cerca de 7 anos), afigura-se não haver motivo para alterar a indemnização arbitrada na sentença da 1.ª instância.


III

Em face do exposto, decide-se conceder a revista, com a repristinação da decisão da 1.ª instância.

Custas, nas instâncias e no Supremo, a cargo de Autora e Réu, na proporção do decaimento.

Lisboa, 26 de Novembro de 2008.

Vasques Dinis (Relator)

Bravo Serra

Mário Pereira