Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
172/11.9TRPRT-A.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: PIRES DA GRAÇA
Descritores: RECURSO PENAL
ASSISTENTE
ADVOGADO
REPRESENTAÇÃO EM JUÍZO
CONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 04/18/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Área Temática: DIREITO PROCESSUAL PENAL - ASSISTENTE - PRODUÇÃO DE PROVA
DIREITO CONSTITUCIONAL - DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS
PROFISSIONAIS FORENSES - EXERCÍCIO DA ADVOCACIA
Doutrina: - Alberto dos Reis, CPC, anotado, V, p.156.
- Alfredo Gaspar, Estatuto da Ordem dos Advogados.
- Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, I, ed. Danúbio, 1986, pág. 156 e 157.
- Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, pág. 459.
- Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, pág. 316
- Maia Gonçalves, Código de Processo Penal, Anotado - Legislação Complementar, 17ª edição -2009, p. 217, nota 3.
- Manso Preto, in Pareceres do Ministério Público, págs. 323 e segs..
- Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, p. 209.
Legislação Nacional: CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 64.º, 68.º, N.º1, 69.º, 70.º, 346.º, N.º1.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 32.º.
ESTATUTO DA ORDEM DOS ADVOGADOS: - ARTIGOS 61.º, 64.º.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
- N.ºS 325/06 E 338/06.
ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:
- COL. JUR. 1995, I, PÁG. 57.
ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:
-DE 20/5/1998;
-DE 12/2/2004; PUBLICADOS, RESPECTIVAMENTE, NA CJ, 1998, TOMO III, PÁG. 147, E 2004, TOMO I, PÁG. 134.
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 23/5/2002, PROC. N.º 1382/02.
-DE 14-06-2006, PROC. N.º 2806/02 -3.ª,
-DE 21/5/2009, PROC. N.º 105/09.2.YFLSB.
Sumário : I  -   Os arts. 68.º, n.º 1, e 69.º do CPP referem-se à legitimidade para a constituição de assistente em processo penal e à respectiva posição processual e atribuições. Por sua vez, ao nível da representação judiciária dos assistentes, o art. 70.º, n.º 1, do mesmo Código, determina que os assistentes são sempre representados por advogado, acrescentando o n.º 3 que podem ser acompanhados por advogado nas diligências em que intervierem.

II -  A exigência de representação do assistente, por advogado, significa imediatamente a necessidade de haver pessoa idónea legalmente habilitada no conhecimento do direito – por via de regra o advogado –, que possa agir e zelar juridicamente pelos interesses do ofendido no processo, através do mandato judicial, uma vez que o processo se desenrola de harmonia com, e obedece, a regras jurídicas.

III - Em termos de lei penal adjectiva, contrariamente ao que vigora para a obrigatoriedade de assistência do arguido por defensor (art. 64.º do CPP), não existe norma excludente da auto representação do assistente, sendo advogado, pois que apenas existe a obrigação de o assistente estar representado por advogado. Efectivamente, se a assistência de defensor ao arguido no processo radica nas garantias do processo penal, decorrentes do disposto no art. 32.º da CRP, resultando óbvias limitações à actuação do defensor caso se permitisse a auto representação do arguido, tais limitações já não ocorrem se o sujeito processual for assistente, uma vez que a posição deste, apesar da sua relativa autonomia, é apenas a de colaborador do MP, a quem se encontra subordinado, nos termos do art. 69.º, n.º 1, do CPP.

IV - Há, por sua vez, uma distinção subjectiva e funcional – processual – entre o MP e o assistente, que não impede que este se auto represente judiciariamente quando advogado. Com efeito, o exercício do contraditório não deixa de ser efectuado plenamente, quer pelo MP quer pelo defensor do arguido, e quaisquer eventuais inconvenientes ou vicissitudes perturbadoras da instância serão sempre supridos pela intervenção pronta, atenta e legalmente pertinente do juiz, sendo que as declarações do assistente, em processo penal, são tomadas pelos julgadores (o juiz presidente, ou outros juízes do Colectivo, ou jurados) – art. 346.º, n.º 1, do CPP –, o que afasta qualquer conflito na falsa questão da (in)conciliação do auto patrocínio do assistente perante a tomada de declarações, em instrução ou julgamento, ao ofendido assim constituído.

V - A dimensão interpretativa da norma do art. 70.º, n.º 1, do CPP, pelo TC nos seus Acs. n.ºs 325/06 e 338/06 [que firmaram jurisprudência no sentido de não julgar inconstitucionais as normas constantes do art. 70.º, n.º 1, do CPP, no segmento em que determina que os assistentes são sempre representados por advogado e na interpretação segundo a qual esta representação tem de ser assegurada mediante emissão de procuração a favor de advogado que não o advogado ofendido com direito a ser constituído assistente nos termos dos arts. 68.º, n.º 1, al. a), e 68.º do mesmo Código], não invalida o entendimento que sufragamos, uma vez que não colide com o disposto no art. 32.º, n.º 1, da CRP. Aliás, entendimento de encontro à decisão do Comité des Droits de L’Homme das Nações Unidas, apreciada no Ac. do STJ de 14-06-2006, Proc n.º 2806/02-3.ª, no sentido de que o Estado Português deveria «modificar a sua legislação a fim de assegurar a conformidade com o artigo 14.º, alínea d), do n.º 3 do Pacto de Nova Iorque sobre os Direitos Civis e Políticos, em ordem a que ao requerente (advogado) assistisse o direito absoluto de se defender a si próprio em todos os estádios do procedimento penal».

Decisão Texto Integral:   Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

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Nos autos de inquérito com o nº. 172/11.9TRPRT (actos jurisdicionais) do Tribunal da Relação de Guimarães, foi proferido despacho em 12/12/2011, do seguinte teor:

“Por ter legitimidade, estar em tempo, admito a intervir nos autos como assistente AA.”


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Inconformado com esse despacho, veio o Ministério Público interpor recurso concluindo a respectiva motivação da seguinte forma:

“1.  O despacho que admitiu o participante como assistente no processo não verificou, de forma expressa, se se mostrava preenchido o requisito previsto no art. 70, n.°1 do CPPenal -assistente obrigatoriamente representado por advogado.

2.    Todavia, ao admiti-lo como assistente, e porque o mesmo é advogado em causa própria, pressupõe, então, que tal circunstância se apresenta verificada.

3.   Ora, apesar da manifesta divisão da jurisprudência sobre o assunto, perseguimos o entendimento de que o advogado que, em processo-crime, figure como ofendido, não pode intervir como assistente, devendo, para esse efeito, fazer-se representar por outro advogado.

4.   São razões de natureza psicológica, orgânica e funcional que justificam o afastamento da advocacia em causa própria em processo penal, quando em causa esteja a constituição de assistente.

5.   O despacho em causa violou, então, o disposto no art. 70, n.°1 do CPPenal acima indicado.

Esta é a nossa posição.

Vs. Ex.as, com ponderação e saber, farão

JUSTIÇA”


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Respondeu o Assistente à motivação de recurso, concluindo:

1ª  - O despacho em causa não violou o disposto no dado que o aqui assistente, também tem a qualidade artigo 70°, n.° 1 do C.P.P., de advogado.

2ª - Os acórdãos dos Venerandos Tribunais das Relações não uniformizam jurisprudência, tal desiderato está-lhes vedado.           

3ª - Por razões de ponderação e justiça, deverá este Supremo Tribunal de Justiça uniformizar jurisprudência quanto à participação de um advogado em causa própria, em processo-crime, quando se tenha constituído assistente, vedando a sua actividade, enquanto advogado, apenas na audiência de discussão e julgamento da causa.

É esta a posição do aqui assistente, enquanto advogado, V. Exas., com sabedoria e ponderação, farão inteira e sã JUSTIÇA.


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Admitido o recurso por despacho de 23 de Janeiro de 2012, e após sustentação do despacho recorrido, subiram os autos ao Supremo Tribunal.

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Neste Supremo, o Ex,mo Magistrado do Ministério Público emitiu douto Parecer onde assinala:

1 – A qualidade e clareza da argumentação apresentada, na motivação do recurso que interpôs, pelo Ex.mo magistrado do MP junto da Relação, que consta da peça processual de fls. 4 a 7 e que integralmente subscrevemos, permitiria que nos limitássemos a reproduzi-la aqui, fundamentando nos seus precisos termos a justeza da sua pretensão.
Permitimo-nos no entanto, “ex abundanti”, aditar-lhe ainda uma breve nota para dizer que, reconhecendo embora não ser pacífica a orientação, da jurisprudência e da doutrina, a propósito da questão controvertida, pela nossa parte e com o muito devido respeito, continuamos a sufragar o entendimento de que é de manter a dimensão normativa – que cremos ser maioritária – no sentido de que um advogado, para assumir o estatuto de assistente, carece, tal como a generalidade das pessoas, de estar representado por (um outro) advogado, tal como parece estabelecer, claramente, o n.º 1 do artigo 70.º do Código de Processo Penal[1].
É que, e como doutamente se consigna também na fundamentação do Acórdão da Relação de Lisboa, proferido no Processo n.º 1778/03, 3.ª Secção[2], esta «solução assenta em três tipos de argumentos que, quando conjugados, apontam claramente nesse sentido.
Em primeiro lugar, há que ter em conta a natureza dos poderes processuais que a qualidade de assistente atribui, especialmente o de participar na audiência (e noutros actos processuais) e de aí intervir na produção de prova, interrogando ou contra-interrogando as testemunhas, sugerindo a formulação de perguntas ao arguido, ao assistente e às partes civis e analisando, durante as alegações, a prova produzida (artigo 340º e segs. do Código de Processo Penal). Por outro lado, não se pode descurar que, na generalidade dos casos, existe o dever de o assistente prestar declarações, com a inerente incompatibilidade do seu cumprimento com o exercício daqueles poderes (artigos 346º e 145º do mesmo diploma). Por fim, há que assegurar as condições que permitam o respeito pelos deveres deontológicos dos advogados, em especial o de isenção, que a confluência das posições de assistente e seu “representante” na mesma pessoa facilmente podem pôr em causa (artigo 76º e segs. do E.A.O.).
Tudo, por isso, aponta para a necessidade de representação do assistente (assim como a do arguido e a das partes civis) por advogado, meio de se alcançar a serenidade, o distanciamento e a isenção necessários à assunção plena do patrocínio técnico, que não é garantido apenas pela preparação jurídica e profissional que o próprio assistente, enquanto profissional do foro, eventualmente possua.
Esses mesmos requisitos constituem um factor de impedimento de condutas deontologicamente censuráveis que o E.O.A. pretende impedir.
Nada nesta posição afecta, antes pelo contrário, o direito ao patrocínio forense consagrado no artigo 208º da Constituição da República Portuguesa ou impede o exercício do mandato judicial e da representação por advogado, consagrados no artigo 54º do E.A.O.».
Ademais, e noutra perspectiva, enfatizar-se-á também que a apontada dimensão normativa dos preceitos legais ao caso convocáveis foi já apreciada pelo Tribunal Constitucional, pelo menos pelo Acórdãos n.º 325/06, publicado no DR. II Série, de 29-06-2006, e n.º 338/06, publicado no DR, II Série de 30-06-2006, tendo em ambos sido firmada jurisprudência no sentido de não julgar inconstitucionais as normas constantes do artigo 70.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, no segmento em que determina que os assistentes são sempre representados por advogado e na interpretação segundo a qual esta representação tem de ser assegurada mediante emissão de procuração a favor de advogado que não o advogado ofendido com direito a ser constituído assistente nos termos dos artigos 68.º, n.º 1, alínea a), e 69.º do mesmo código.

*

2 – Em conformidade com o exposto, e remetendo no mais para os fundamentos aduzidos, na motivação, pelo Ex.mo magistrado do Ministério Público, emite-se parecer no sentido da procedência do recurso.”

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Cumpriu-se o disposto no artº 417º nº 2 do CPP.

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Colhidos os vistos legais cumpre decidir:

Respiga-se dos autos que o Senhor Advogado Dr. AA, na qualidade de Participante e Advogado em causa própria, participou criminalmente contra um Magistrado Judicial, imputando-lhe um crime de difamação, um crime de denúncia caluniosa e um crime de denegação de justiça e prevaricação.

E requereu então a sua constituição como Assistente, tendo pago, para o efeito, a correspondente taxa de justiça devida.

O Exmo Procurador-Geral Adjunto junto daquele Tribunal da Relação, após ter em conta:

 - O artº 70º nº 1 do CPP: - “Os assistentes são sempre representados por advogado”. O participante/ofendido não constituiu mandatário.”

- A jurisprudência encontra-se dividida “sobre o preenchimento desta circunstância quando o participante é simultaneamente ofendido e advogado, pleiteando este, portanto, em causa própria.”:

- A Relação do Porto orienta-se para a não exigência do cumprimento daquela circunstância (…) acórdão de 13/0472005

- A Relação de Coimbra tem-se norteado por sentido adverso ao citado – por exemplo, o recente acórdão de 30/03/2011 (….)

- A Relação de Lisboa acha-se dividida, sendo que é a orientação dominante a referida no acórdão da Relação de Coimbra acabada de citar. Como exemplo desta posição veja-se o acórdão de 12/02/2004 (….)

Aderiu a esta última posição no sentido de que “As duas figuras de ofendido/assistente e de Advogado/assistente são incompatíveis entre si por razões de natureza psicológica, orgânica e funcional. O queixoso Advogado que queira constituir-se assistente tem necessariamente de constituir mandatário um outro colega”

E manifestou o entendimento de que “ a solicitação do ofendido participante não deverá ser deferida”,

O Mmo Juiz, porém, admitiu o ofendido a intervir nos autos como assistente, e, no despacho de sustentação, considera que “não existe norma que proíba ou restrinja o direito do recorrido e, como advogado, tem a capacidade de «entender e aferir a actividade levada a cabo» pelo MºPº e a «conveniência ou necessidade de prática de outras diligências ou actos processuais, susceptíveis de ocorrer em processo penal», a actividade do assistente está subordinada ao MºPº, do qual é um mero colaborador -artº 69º, nº 1do C.P.P.), pese embora as competências que lhe são asseguradas, designadamente, pelos nº 2 do artº 69º, nº 1, al. d), do artº 287º e 401º, nº 1, al. d), todos do C.P.P.”

Analisando:

1. O despacho questionado não questiona a necessidade ou desnecessidade de o requerente enquanto advogado dever fazer-se representar por outro advogado, e assim poderia dizer-se que inexiste sequer caso julgado formal sobre a questão.  

Mas se o ofendido efectuou a participação na qualidade de advogado, o mesmo despacho terá implícita a consideração de que por ser advogado, o ofendido está legitimado a auto patrocinar-se nos autos que se iniciaram pela sua queixa, e sendo decisão que afecta a relação processual penal pelo reconhecimento do ofendido como sujeito processual na veste de assistente, poderia concluir-se que se estabeleceu por esse despacho caso julgado formal, na esteira do ensinamento de Alberto dos Reis, CPC, anotado , V, p.156.

Porém, a natureza rebus sic stantibus do caso julgado face à provisoriedade da definição do objecto do processo durante a fase de inquérito, (v. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, p, 209) corrobora o afastamento do caso julgado formal, o que é corroborado também pela interposição de recurso, como no caso presente.

2. Como se sabe, o TÍTULO IV do Livro I do CPP, ao referir-se ao assistente, começa por dizer no Artigo 68.º

      1 - Podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito:

      a) Os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos;

Por sua vez, o artigo 69.º aludindo à posição processual e atribuições dos assistentes refere:

      1 - Os assistentes têm a posição de colaboradores do Ministério Público, a cuja actividade subordinam a sua intervenção no processo, salvas as excepções da lei.

      2 - Compete em especial aos assistentes:

      a) Intervir no inquérito e na instrução, oferecendo provas e requerendo as diligências que se afigurarem necessárias e conhecer os despachos que sobre tais iniciativas recaírem;

      b) Deduzir acusação independente da do Ministério Público e, no caso de procedimento dependente de acusação particular, ainda que aquele a não deduza;

      c) Interpor recurso das decisões que os afectem, mesmo que o Ministério Público o não tenha feito, dispondo, para o efeito, de acesso aos elementos processuais imprescindíveis, sem prejuízo do regime aplicável ao segredo de justiça.

A nível da representação judiciária dos assistentes o artº 70º nº 1 determina que: Os assistentes são sempre representados por advogado. Havendo vários assistentes, são todos representados por um só advogado. Se divergirem quanto à escolha, decide o juiz.

Ressalva-se do disposto na segunda parte do número anterior o caso de haver entre os vários assistentes interesses incompatíveis, bem como o de serem diferentes os crimes imputados ao arguido. Neste último caso, cada grupo de pessoas a quem a lei permitir a constituição como assistente por cada um dos crimes pode constituir um advogado, não sendo todavia lícito a  cada pessoa ter mais de um representante. (nº2 do preceito)

O nº 3 do mesmo preceito dispõe: Os assistentes podem ser acompanhados por advogado nas diligências em que intervierem.

3. A exigência de representação do assistente, por advogado, significa imediatamente a necessidade de haver pessoa idónea legalmente habilitada no conhecimento do direito – por via de regra o advogado -, que possa agir e zelar juridicamente pelos interesses do ofendido no processo, através do mandato judicial , uma vez que o processo se desenrola de harmonia com, e obedece a, regras jurídicas.

         Referia Maia Gonçalves, Código de Processo Penal, Anotado - Legislação Complementar, 17ª edição -2009, p. 217, nota 3:

         “A exigência de os assistentes serem representados por advogado fundamenta-se em razões de ordem técnica, de que só um jurista está dotado. Não vemos, assim, obstáculo legal a que um advogado, que seja ofendido e pretenda constituir-se assistente, possa advogar em causa própria. Esta é também a solução implícita nos arts 77º e 78º, da Lei nº 15/2005, de 26 de Janeiro (Estatuto da Ordem dos Advogados), dispositivos onde se não descortina qualquer impedimento de os advogados advogarem em causa própria. A jurisprudência é, porém, divergente sobre esta questão.”

4. O TÍTULO II do Estatuto da Ordem dos Advogados pronuncia-se sobre o Exercício da advocacia, dispondo no CAPÍTULO I , sobre Disposições gerais


Artigo 61.º

Exercício da advocacia em território nacional


1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 198.º, só os licenciados em Direito com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados podem, em todo o território nacional, praticar actos próprios da advocacia, nos termos definidos na Lei n.º 49/2004, de 24 de Agosto.

2 –(…).

3 - O mandato judicial, a representação e assistência por advogado são sempre admissíveis e não podem ser impedidos perante qualquer jurisdição, autoridade ou entidade pública ou privada, nomeadamente para defesa de direitos, patrocínio de relações jurídicas controvertidas, composição de interesses ou em processos de mera averiguação, ainda que administrativa, oficiosa ou de qualquer outra natureza.  (bold , itálico, e sublinhado, nosso)


Artigo 64.º

Liberdade de exercício


Os advogados e advogados estagiários com inscrição em vigor não podem ser impedidos, por qualquer autoridade pública ou privada, de praticar actos próprios da advocacia.

5. Inexistem impedimentos ou incompatibilidades legais ao auto patrocínio de ofendido advogado como assistente, quer no Estatuto da Ordem dos Advogados, quer na lei processual penal.

Em termos de lei penal adjectiva, contrariamente ao que vigora para a obrigatoriedade de assistência do arguido por defensor (artº 64º do CPP) não existe norma excludente da auto representação do assistente, sendo advogado., pois que apenas existe a obrigação de o assistente estar representado por advogado.

         A assistência de defensor ao arguido no processo, - por mandato judicial, ou de forma oficiosa - , radica nas garantias de defesa do processo criminal, decorrentes do disposto no artº 32º da Constituição da República Portuguesa.

         Como refere Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, pág. 459: “…O fundamento da prática, pelo defensor, de actos processuais, não deve ver-se na procuração forense ou nos poderes representativos concedidos pelo arguido, Deve sim encontrar-se directamente no poder-dever que a lei confere ao defensor de exercício da sua função – ufficio, lhe chamam com razão os autores italianos! – de defesa, que não fica ligado às instruções ou à vontade do arguido, Neste sentido pode  deve afirmar-se que a função da defesa pública, tem o seu assento no direito público e não no instituto jurídico-privado da representação”

         Por isso se distingue o arguido, ainda que advogado não pode auto representar-se em processo penal, face à incompatibilidade daí advinda decorrente das limitações constantes do estatuto do arguido e da liberdade necessária de actuação do defensor para o livre e adequado exercício do direito de defesa.

         Porém tais limitações já não ocorrem se o sujeito processual for assistente, uma vez que a posição deste, apesar da sua relativa autonomia, é apenas a de colaborador do Ministério Público, a quem se encontra subordinado no processo, nos termos do artº 69º nº 1 do CPP.

         Há, por sua vez, uma distinção subjectiva e funcional – processual - entre o Ministério Público e o Assistente, que não impede que este se auto represente judiciariamente quando advogado.

         6. É certo que já houve quem chamasse a atenção para as evidentes dificuldades, em conciliar as qualidades simultâneas de assistente e mandatário em causa própria, tendo em conta o lugar a ocupar na sala de audiências, o uso do traje profissional, as formalidades referentes às procurações, às instâncias, inquirição de testemunhas e até possíveis acareações, acrescendo o facto de veste dupla do ofendido em que teria de desdobrar-se em audiência geradora de risco de entendimento salutar e digno pela opinião pública, face à transparência exigida e à eventual confusão daí advinda.(v.v. g. já Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 20 de Maio de 1998)

         Ou, como salientou o Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, Col. Jur. 1995, I, pág. 57: - “Às partes falta a necessária serenidade para a boa condução no pleito, pelo que a reunião daquelas qualidades imprimiria o risco de se manifestar uma exacerbada paixão na defesa do ponto de vista do assistente, em prejuízo da garantia do bom funcionamento da justiça, razão pela qual a doutrina, em regra – cfr. Prof. Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, I, ed. Danúbio, 1986, pág. 156 e 157; Manso Preto in Pareceres do MºPº, págs. 323 e segs; e Germano Marques da Silva, para quem a necessária representação judiciária dos assistentes permite obstar a muitos dos inconvenientes da sua intervenção como sujeito processual (cfr. Curso de Processo Penal, I, pág. 316) – rejeita a dispensa pretendida pelo recorrente. Em contrario, no entanto, cfr. Estatuto da Ordem dos Advogados, comentado pelo Dr. Alfredo Gaspar)”

Todavia, também é certo, como bem se observa no douto despacho de sustentação, de 16 de Fevereiro de 2012, “que o interesse pessoal do ofendido se reflecte sempre na forma como o processo é conduzido e, por isso, seja natural que no caso de advogar em causa própria haja um maior envolvimento emocional e, consequentemente, uma menor serenidade. Porém, lá está o MºPº, de quem o assistente é «colaborador» e cuja actividade está «subordinado» (cfr. nº 1 do artº 69º do C.P.P.) para a atenuar”

7. Também em processo civil, não resulta do artº 32º do CPC, nos casos em que obriga à constituição de advogado, que um advogado se agir em causa própria seja obrigado a constituir mandatário judicial outro advogado.

E, de igual forma quanto aos assistentes em processo civil – artº 335º do CPC - intervenientes para auxiliar qualquer das partes, nada impede que litigando em causa própria se patrocinem a si memos, e não se vê que esse auto patrocínio prejudique o normal funcionamento, a transparência e a imagem pública da Justiça.

Como se referiu no Ac. deste Supremo, e desta Secção, de 21 de Maio de 2009, proc.nº 105/09.2.YFLSB, que seguimos de perto: “As razões pelas quais o artigo 70º nº 1 do CPP, exige a representação do assistente, [por lapso escreveu-se arguido] por advogado, e o artigo 32º do Código de Processo Civil exige a constituição de advogado, são razões de natureza técnica, respeitantes à necessidade de uma preparação jurídica para a prática de determinados actos processuais, designadamente para dedução de acusação ou para a interposição de recurso.”        

         “Donde que outro alcance – que não o de, por estritas (mas compreensíveis) razões de ordem técnica, a assistência ao MºPº se faça exclusivamente por advogado ou por seu intermédio – se não possa atribuir à existência legal de que os assistentes sejam sempre representados por advogado “.- Ac- deste Supremo de 23 de Maio de 2002, Proc. 1382/02.

         8. O exercício do contraditório não deixa de ser efectuado plenamente, quer pelo MºPº quer pelo defensor do arguido, e quaisquer eventuais inconvenientes ou vicissitudes perturbadoras da instância serão sempre supridos pela intervenção pronta, atenta e legalmente pertinente do juiz, sendo que as declarações do assistente, em processo penal, bem como o depoimento de parte em processo civil, são tomadas pelos julgadores (o juiz presidente, ou outros juízes do Colectivo, ou jurados ) – artºs 346º- 1 do CPP e 552º, 560º e 562º, do CPC), o que afasta qualquer conflito na falsa questão da (in)conciliação do auto patrocínio do assistente perante a tomada de declarações, em instrução ou julgamento, ao ofendido assim constituído.

         A dimensão interpretativa da norma do artº 70º nº 1 do CPP, pelo Tribunal Constitucional (TC) no seus Acs nºs 325 e 338/06, não invalida o entendimento que aqui sufragamos, uma vez que não colide com o disposto no artº 32º nº 1 da Constituição da República Portuguesa, e nem o TC se pronunciou sobre o mesmo,

         Entendimento este, aliás, que conforme referiu o Ministério Público no seu douto Parecer proferido nos referidos autos nº 105/09.2YFLSB, deste Supremo, vai “…ao encontro da decisão do Comité des Droits de L´Homme das Nações Unidas (conexionada com processo que correu termos no STJ, apreciada no Ac. S.TJ. de 14 de Junho de 2006, processo nº 2806/02-3ª, no sentido de que o Estado Português deveria «modificar a sua legislação a fim de assegurar a conformidade com o artigo 14º, alínea d), do nº 3 do Pacto de Nova York sobre os direitos Civis e Políticos, em ordem a que ao requerente» (advogado) «assistisse o direito absoluto de se defender a si próprio em todos os estádios do procedimento penal»”


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         Termos que decidindo:

         Acordam os deste Supremo – 3ª Secção – em negar provimento ao recurso, e, confirmam o despacho recorrido.

         Sem custas

Supremo Tribunal de Justiça, 18 de Abril de 2012

Elaborado e revisto pelo relator


Pires da Graça (relator)
Raul Borges



[1] - Assim, e entre outros, os Acórdãos da Relação de Lisboa, de 20 de Maio de 1998 e de 12 de Fevereiro de 2004, publicados, respectivamente, na CJ, 1998, Tomo III, pág. 147, e 2004, Tomo I, pág. 134. Por outro lado, no mesmo sentido se pronunciaram já, em sede doutrinária, os Professores Cavaleiro de Ferreira, In “Curso de Processo Penal”, I, ed. Danúbio, 1986, pág. 156, e Germano Marques da Silva, In “Curso de Processo Penal”, I, pág. 316. 
[2] - Relatado pelo Ex.mo Desembargador, Dr. Carlos de Almeida.