Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
646/21.3T8VCD.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: AFONSO HENRIQUE
Descritores: PERFILHAÇÃO
FALSIDADE
TEMPESTIVIDADE
IMPUGNAÇÃO DE PATERNIDADE
CADUCIDADE DA AÇÃO
ASSENTO
PATERNIDADE BIOLÓGICA
Data do Acordão: 01/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
1 – O assento de nascimento do réu, no que se reporta à sua paternidade configura uma perfilhação daquele pelo autor.

II – Estando em causa a falsidade da mesma perfilhação a sua impugnação pode ser feita a todo o tempo.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NESTE SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (2ª SECÇÃO)

I - AA, identificado completamente nos autos, intentou a presente acção declarativa, sob a forma comum, para impugnação de paternidade contra, BB, também com os sinais completos nestes autos.

Pedindo que:

- Seja declarado que o Autor/A. não é o pai biológico do Réu/R. e decretada a anulação do acto de perfilhação, ordenando-se, em consequência, o cancelamento do averbamento constante do assento de nascimento do menor, a menção da paternidade do autor e seja eliminado do registo de nascimento do menor o apelido do autor.

Alegou, para tanto, que:

- Namorou, e posteriormente viveu em união de facto, com CC, mãe do Réu; na pendência dessa relação amorosa nasceu o réu, BB, em 03/09/2008, sendo que o autor nessa altura residia em união de facto com a mãe do réu, ambos solteiros, pensando ser o pai do BB e, por isso, perfilhou o mesmo; mais tarde, sem ter ainda nada a ver com a questão da perfilhação, o casal separou-se e procedeu à Regulação das Responsabilidades Parentais do BB – o que fez no âmbito do proc. 589/10.6... do então 3º Juízo Cível de ... (mais tarde J4 do Tribunal de Família e Menores de ...); estava convencido que era o pai do BB quando, em 14/06/2012, deu entrada de um incidente de incumprimento (apenso A), bem como do pedido de alteração das responsabilidades parentais na qual pedia a guarda do BB para si (apenso B), pois a mãe do BB tinha emigrado para ..., levando o réu consigo, sem que tivesse pedido autorização ao autor; entretanto, a mãe do réu regressou a Portugal, acabando ambos por chegar a acordo no apenso B no âmbito da conferência de pais realizada em 06/02/2012; quando perfilhou o Autor, no momento do seu nascimento, fê-lo voluntariamente e convicto de que era pai do mesmo; em 2015, já na companhia da sua nova companheira, ao relatar-lhe todo o sucedido, disse-lhe que no final de 2007 tinham discutido e a mãe do BB tinha saído de casa, indo temporariamente residir para o estrangeiro (...) onde tinha uns parentes/amigos a residir; afirmou que, entretanto, se reconciliaram e regressando aquela a Portugal refizeram a sua vida em comum, sendo que, logo de seguida, a mesma comunicou ao Autor que estava grávida, tendo então nascido o BB em 03/09/2008; alertado pela sua nova companheira de que essas contas temporais não faziam muito sentido (salvo se o BB fosse mesmo prematuro) levantou a suspeita ao Autor de que o mesmo poderia não ser seu filho, até porque tinha vindo a saber, por mera casualidade, que quando a referida CC fugiu para o ... nessa mesma altura estava lá a residir o seu ex-namorado; optou por efectuar um teste de ADN junto de um laboratório estrangeiro, mais precisamente “D... Diagnostics Center”, tendo remetido ao laboratório a sua recolha e a do BB, quando para sua estupefacção, em 15/04/2015, é enviado o resultado no qual se menciona que o BB não é seu filho, sendo 0% a probabilidade de o ser; confrontada com o resultado, a progenitora do réu admitiu que de facto se tinha envolvido com outra pessoa no ... e que seria ele o Pai do BB.

Concluiu pedindo que, a presente acção seja julgada procedente por provada e, consequentemente, declarar-se, nos termos do artº1859 do Código Civil, impugnada a perfilhação do Réu enquanto seu filho, dado não o ser e, consequentemente, provando-se, e declarando-se tal realidade, ordenar-se à Conservatória do Registo civil competente que retire o nome do aqui Autor enquanto pai do Réu.

Citado o Réu, na pessoa da curadora, deduziu contestação, alegando que:

- O autor e a sua mãe, CC, namoraram durante algum tempo, viveram em união de facto, de forma estável, contínua e ininterrupta, desde o ano de 2005, até ao mês de Julho de 2009; a mãe do réu residiu com o autor, inicialmente na ... em ... e, posteriormente, a meio da gravidez do filho de ambos em ...; a ruptura definitiva do casal (autor e mãe do réu) se deu no mês de Julho de 2009 e na pendência da união de facto entre o autor e a mãe do réu, nasce o filho de ambos, BB no dia 3/9/2008; a sua mãe à data da gestação (ou seja, dentro dos primeiros 120 dias - ou seja, do dia 9/11/2007, inclusive, ao dia 6/3/2008 inclusive - dos 300 dias que precederam o nascimento do Réu, ou seja, 3/9/2008) mantinha uma relação amorosa, de forma exclusiva e contínua com o autor; em dias indeterminados dos primeiros 120 dias, ou seja, do dia 9/11/2007, inclusive, ao dia 6/3/2008) dos 300 que antecederam o nascimento do filho de ambos, a mãe do réu só teve relações sexuais de cópula completa com o autor, em consequência, a mãe do réu veio a engravidar e a dar à luz em 3/9/2008 o seu filho e também do autor, aqui réu, BB; a sua mãe sempre foi pessoa de bom porte, não havendo notícia de que, no período em causa, a mesma tenha acompanhado com qualquer outro homem; durante os primeiros 120 dias (ou seja, do dia .../.../2007, inclusive, ao dia 6/3/2008 inclusive) dos 300 que precederam ao nascimento do réu, vivia a mãe do réu com o autor em união de facto e de concubinato com este, já que dormiam na mesma cama, tomavam refeições juntos, passeavam juntos, repartiam as despesas; ao dia 6/3/2008, a sua mãe, CC, de comum acordo com o Autor, foi para o ... no início de Dezembro do ano de 2007, com a finalidade de conseguir trabalho para si, e, também, para o autor; durante o mês de Dezembro de 2007 a mãe do réu não teve nenhum relacionamento amoroso, nem teve relações sexuais de cópula completa com outro homem e quando regressou a Portugal no fim do mês de Dezembro de 2007, vinda do ..., comunicou ao autor que estava grávida antes de ter partido para o ..., ou seja, no mês de Novembro de 2007; a primeira ecografia obstétrica realizada à mãe do réu (datada de 23-1-2008) confirmou as suspeitas de gravidez que a mãe do réu tinha, ou seja, que tinha uma gestação intra-uterina, normalmente evolutiva para 8 semanas e 3 dias de amenorreia; e ambos decidiram prosseguir com a gravidez; a mãe do réu realizou nova ecografia obstétrica em 30/7/2008 cuja conclusão foi no sentido de que “gravidez com evolução favorável e compatível com 36 semanas e 3 dias de gestação, data provável do parto 24-8-2008”; em 3-9-2008 ocorreu o parto, o que significa que não foi um bebé prematuro, sendo o autor o seu pai biológico. esta presunção da paternidade do autor relativamente ao réu, prevista no art.º 1871.º, nº1, alínea c), do Código Civil, não pode ser afastada/ilidida pelo autor, já que o autor se funda num teste de ADN, datado de 15-4-2015, cuja autoria impugna, sendo o mesmo um documento forjado e inventado pelo autor; resultando de amostras cuja recolha não foi feita pela entidade que o realizou podendo a amostra entregue pelo autor não corresponder ao filho do réu.

- Deduziu ainda defesa por excepção dizendo estar verificada a excepção da caducidade da acção, prevista no nº3 do art.º 1860.º do Código Civil; isto porque o alegado exame de ADN, datado de 15-4-2015, junto pelo autor a ser verdadeiro permitiu, segundo o autor, saber em 15-4-2015 que não era o pai do réu; a ser assim, verifica-se que o autor perfilhou o réu e ao instaurar a presente acção em 3-5-2021 fê-lo muito mais de um ano (e até mais de 6 anos) depois de ter tido conhecimento dos factos que, alegadamente, lhe permitiram concluir ter, alegadamente, laborado em erro quando perfilhou o seu filho, aqui réu.

Concluiu pedindo que, a presente acção seja julgada totalmente improcedente, por não provada e que seja julgada procedente a excepção peremptória de caducidade da acção prevista no nº3 do art.º 1860.º do Código Civil.

O Ministério Público foi ouvido nos termos previstos no art.º 17º, nº5 do Código de Processo Civil.

Teve lugar uma audiência prévia no culminar da qual foi proferido despacho saneador onde se remeteu para decisão final a apreciação da excepção peremptória de caducidade do direito de accionar; bem como foi identificado o objecto do litígio e definidos os temas de prova.

Prosseguiram os autos com a realização da audiência de discussão e julgamento, na sequência do qual foi proferida sentença, na qual se julgou procedente a excepção da caducidade do direito à acção e, consequentemente, se julgou improcedente o pedido de impugnação de paternidade formulado nos autos pelo autor, dele se absolvendo o réu.

II - O autor apelou daquela sentença, tendo a Relação proferido acórdão, cuja parte decisória é a seguinte:

“Decisão:

Pelo exposto, concede-se provimento ao presente recurso de apelação, revogando-se nos seguintes termos a decisão recorrida:

Julga-se procedente por provado o pedido de impugnação da perfilhação formulado pelo Autor, declarando-se que o réu, BB, não é filho do autor AA.

Mais se ordena à Conservatória do Registo Civil ... que no que toca ao Assento de Nascimento do Réu proceda às alterações que determina o antes decidido.

Custas a cargo do réu/apelado (cf. art.º 527º, nºs 1 e 2 do CPC).”

III - Do acórdão da Relação veio o réu interpor recurso para este Supremo Tribunal de Justiça de revista, alegando para o efeito com as seguintes CONCLUSÕES:

Primeira Questão:

- Saber se o assento de nascimento em causa (fls. 40) uma perfilhação ou uma mera declaração de nascimento.

- A resposta num ou no outro sentido determinará estarmos perante uma acção de impugnação de paternidade, sujeita ao prazo de caducidade do direito de acção, nos termos do art. 1842º, nº 1, al. a) do Código Civil, ou perante uma acção de impugnação de perfilhação, não sujeita ao prazo de caducidade do direito de acção, nos termos do art. 1859.º do Código Civil.

- O assento de nascimento n.º 5931 do ano de 2008, não traduz uma situação de perfilhação mas tão só a mera declaração de nascimento, uma vez que não consta do dito assento de nascimento qualquer averbamento de que a perfilhação tenha existido, e nos termos previstos no art. 1853.º do CC não houve qualquer declaração prestada perante funcionário do registo civil, testamento, escritura pública ou termo lavrado em juízo, conforme entendimento da decisão da 1.ª Instância, e do qual também partilhamos, e que o STJ também deve subscrever.

- Porquanto, são dois os fundamentos recursivos, relativamente à 1.ª questão a apreciar pelo STJ e que são fundamentos recursivos, respectivamente no art. 674.º nº 3 do CPC e no art. 672º nº 1 al. a) do CPC.

- Em primeiro lugar, relativamente ao fundamento recursivo ao abrigo do artigo 674.º n.º 3 do CPC.

- O acórdão recorrido proferido pelo Tribunal da Relação do Porto ofendeu expressamente as disposições previstas no art. 1853.º do Código Civil e no art. 130.º do Código do Registo Civil, cujo n.º 1 remete com as devidas adaptações, para o disposto nos artigos 125.º a 129.º do Código do Registo Civil, na medida em que não existe prova documental que sustente a acção de impugnação de perfilhação.

- O assento de nascimento junto aos autos traduz mera declaração de nascimento, uma vez que não existe qualquer averbamento ao referido assento de nascimento que prove inequivocamente que a declaração de perfilhação foi feita por alguma das formas previstas no artº 1835.º do CC, ou seja, perante funcionário do Registo Civil, por escritura pública, por testamento ou por termo lavrado em juízo.

- Inexiste qualquer averbamento da declaração de perfilhação, conforme o exigido no art. 1853.º do CC e nos artigos 130.º e 125.º a 129º do CRC.

- Não tendo existido perfilhação, não é aplicável o art. 1859.º do CC relativo à acção de impugnação de perfilhação que não está sujeita a prazo de caducidade tal como pretendido pelo Autor nos termos do art. 1842º nº 1 al. a) do CC, uma vez que estamos perante uma acção de impugnação de paternidade, e não de impugnação de perfilhação.

- Para a procedência da excepção da caducidade alegada pelo Réu/Recorrente a decisão do Tribunal de 1.ª Instância (que se perfilha e que o STJ deve acolher, revogando o Acordão recorrido) teve-se em conta os seguintes factos provado e não provados:

a) Que é o próprio autor quem refere ter tido conhecimento, em 15 de Abril de 2015, do resultado efectuado num laboratório, mais precisamente o “D... Diagnostics Center” e que o réu não era se filho;

b) A petição inicial deu entrada na secretaria, em 3-05-2021;

c) Não resultaram factos supervenientes nos anos subsequentes aos três anos posteriores a esse conhecimento (15-4-2015) que impedissem o autor de propor a acção, sendo certo que, a este propósito o autor nada logrou provar.

- Impõe-se, face ao exposto, que se conceda provimento ao presente recurso de revista interposto pelo recorrente/R., ordenando-se a eliminação do aditamento do novo ponto com a seguinte redacção:

“O Autor perfilhou o réu através do assento de nascimento n.º 5931 do ano de 2008 da Conservatória do Registo Civil ..., lavrado no dia 4 de Setembro do mesmo ano”;

Quer a manutenção do facto não provado com a seguinte redacção: “Com relevância para a boa decisão da causa não se provaram os seguintes factos: Da petição inicial: a) Que o autor tenha perfilhado o réu (art. 2).”

- E por força de tal alteração deve ser revogada a decisão proferida pelo Tribunal da Relação do Porto na parte em que, por considerar que estando em causa uma acção de impugnação de perfilhação e não uma acção de impugnação de paternidade, julgou improcedente a excepção peremptória da caducidade do direito de acção suscitada pelo réu na sua contestação.

- Por conseguinte, deve o acórdão recorrido ser substituído por outro deste STJ que julgue procedente a excepção peremptória de caducidade do direito de acção suscitada pelo Réu, por estar em causa uma acção de impugnação de paternidade.

- Em segundo lugar, relativamente ao fundamento recursório, ao abrigo do art. 672.º n.º 1, al. a) do CPC, o que está em causa é uma questão cuja apreciação, pela sua relevância é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, em face do caracter complexo da questão em discussão que é susceptível, in casu, de fundar um interesse jurídico que justifica a intervenção do STJ, e que é: Saber se é necessário averbar ao assento de nascimento a declaração de perfilhação por parte do progenitor pai.

- Tal questão assume relevância jurídica susceptível de ser transponível para vários casos futuros e análogos, para ser seguida pela Conservatórias do Registo Civil.

Segunda Questão:

Saber se os factos alegados pelo Autor na P.I., conjugados com a factualidade em 9) e 18) dos factos provados consubstanciam fundamentos para a anulação da perfilhação por erro ou coacção previsto no art. 1860º do CC, sujeita ao prazo de caducidade, ou se consubstanciam acção de impugnação de perfilhação não sujeita ao prazo de caducidade do direito de acção, nos termos do art. 1859.º do Código Civil.

- O fundamento recursório relativamente à 2ª questão a apreciar pelo STJ é o fundamento previsto no artº 674º nº 1, a) e b) do CPC.

- O exame de ADN, datado de 15-4-2015 (cfr. factualidade apurada em 9 dos factos provados), junto pelo autor na petição inicial, permitiu segundo o autor saber, em 15-4-2015, que não era o pai do réu.

- Ao instaurar a presente acção, em 2-5-2021 ( cfr. factualidade provada em 18 dos factos provados), o autor fê-lo, muito mais de um ano (até mais de 6 anos) depois de ter conhecimento dos factos que entende ter-lhe permitido concluir ter laborado em erro quando perfilhou o réu

- Não resultaram provados factos supervenientes nos anos subsequentes aos três anos posteriores a esse conhecimento (15-4-2015) que impedissem o autor de propor a acção.

- O autor fê-lo, portanto, quando estava há muito caducado o seu direito para intentar a presente acção.

Pelo que se impõe que se conceda provimento ao presente recurso, julgando-se improcedente a acção e procedente a excepção peremptória da caducidade do direito de acção, nos termos do art. 1860º, nº 3, do CC.

Contra-alegou o recorrido/A. pugnando pela confirmação do acórdão recorrido.

IV - O recurso foi devidamente admitido como sendo de revista, a subir nos próprios autos e com efeito suspensivo e não, cumulativamente, como de revista excepcional como também era indevidamente pretendido pelo recorrente.

V - APRECIANDO E DECIDINDO

Thema decidendum

- Em função das conclusões do recurso/revista, há que dirimir as seguintes questões:

1 – O assento de nascimento em causa (doc. junto a fls. 40) consubstancia uma perfilhação, ou uma mera declaração de nascimento, sendo que no primeiro caso, estaríamos perante uma acção de impugnação de perfilhação, e na segunda hipótese na presença duma acção de impugnação de paternidade, podendo a primeira ser proposta a todo o tempo, e a segunda sujeita a prazo de caducidade – cfr. artº 1859º nº 2 e artº 1846º nº 1 c), ambos do CC.

2 – Se o mesmo assento constituir uma perfilhação, a sua impugnação tem como fundamento a falsidade da declaração do autor ou, com defende o recorrente, é anulável por erro ou coacção moral, sujeita ao prazo do artº 1860º nº3, do CC.

A) - DOS FACTOS

- Factos Provados:

1. BB, nascido a ...-9-2008, foi registado como sendo filho do autor, AA, e de CC - cfr. teor de fls. 40 e 41 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

2. No Serviço de Genética e Biologia Forense do I.N.M.L. – Delegação d. ..... foi efectuada perícia de investigação biológica de paternidade, com colheitas de sangue e zaragatoas bucais ao Autor e ao Réu, tendo-se concluído, de acordo com os resultados obtidos, que o autor, AA, é excluído da paternidade de BB.

3. O autor teve uma relação amorosa com a mãe do réu, CC, com quem viveu como marido e mulher.

4. Na pendência dessa relação amorosa nasceu o Réu, BB, em ...-9-2008.

5. Após a separação do autor e da mãe do réu, por decisão datada de 28-10-2011, transitada em julgado, foi homologado o acordo de regulação do exercício das responsabilidades parentais quanto ao réu, no âmbito do proc. 589/10.6... do então 3º Juízo Cível de ....

6. O autor, em 14-6-2012, propôs incidente de incumprimento com o nº 589/10.6...-A contra a mãe do réu, tendo sido declarada extinta a instância por inutilidade superveniente da lide por decisão datada de 17 de Janeiro de 2013, transitada em julgado.

7. O autor, em 14-6-2012, propôs acção de alteração do exercício das responsabilidades parentais com o nº 589/10.6...-B contra a mãe do réu, tendo sido homologado por decisão datada de 06 de Dezembro de 2012, transitada em julgado, o acordo constante da acta junta aos autos com o requerimento ref. 3852950, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

8. No final de 2007 a mãe do réu foi residir para o ....

9. O autor efectuou um teste de ADN junto de um laboratório estrangeiro, mais precisamente “D... Diagnostics Center”, a si remetido em 15/04/2015, no qual é concluído que o autor é excluído como pai biológico do réu - cfr. teor de fls. 25 e tradução ao mesmo junto com o requerimento datado de 14/11/2022, cujos teores se dão aqui por integralmente reproduzidos para todos os efeitos.

10. Foi instaurada pela mãe do réu contra o autor execução para cobrança de alimentos no estrangeiro nº1138/17.0... a correr termos em ... na Direcção Geral da Administração da Justiça com vista à penhora de alimentos no valor global de € 13.312,50 à data de 8/11/2018, cfr. documento junto de fls. 68 a 97 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

11. A mãe do réu foi para o ... no início de Dezembro do ano de 2007, com a finalidade de ali trabalhar.

12. Acabaria por regressar no fim do mês de Dezembro de 2007 a Portugal, porque não conseguiu arranjar trabalho.

13. Durante o mês de Dezembro de 2007 e enquanto estava no ... a mãe do Réu teve relações sexuais de cópula completa com outro homem.

14. A mãe do Réu, CC, quando regressou a Portugal, no fim do mês de Dezembro de 2007, vinda do ... comunicou ao Autor que estava grávida antes de ter partido para o ....

15. A primeira ecografia obstétrica realizada à mãe do réu (datada de 23-1-2008) confirmou que tinha uma gestação intra-uterina, normalmente evolutiva para 8 semanas e 3 dias de amenorreia.

16. A mãe do réu comunicou ao autor que as suas suspeitas foram confirmadas com a ecografia obstétrica datada de 23-1-2008 e de comum acordo entre a mãe do Réu e o Autor decidiram prosseguir com a gravidez.

17. A mãe do Réu realizou nova ecografia obstétrica em 30-7-2008 cuja conclusão se passa a citar: “gravidez com evolução favorável e compatível com 36 semanas e 3 dias de gestação, data provável do parto 24-8-2008”.

18. A presente acção foi instaurada em 3/05/2021.

- Factos Não Provados:

a) “Que o autor tenha perfilhado o réu” - vide infra alteração da decisão de facto pela Relação.

b) A mãe do BB tenha emigrado para ..., levando o réu consigo, sem que tivesse pedido autorização ao autor.

c) Tendo regressado a Portugal e acabando-se por chegar a acordo no apenso B, em conferencia de pais, de 06/02/2012.

d) Em 2015, já na companhia da sua nova companheira, certo dia ao relatar-lhe todo o sucedido com a sua ex-companheira, mãe do BB, explicou-lhe que no final de 2007 tinham discutido e a mãe do BB tinha saído de casa, indo temporariamente residir para o estrangeiro (...) onde tinha uns parentes/amigos a residir.

e) Entretanto reconciliaram-se e regressando a mesma a Portugal refizeram a sua vida em comum – sendo que logo de seguida a mesma comunicou ao autor que estava grávida.

f) Dada a proximidade de datas o autor nessa altura não questionou as mesmas, sempre tendo achado que o BB tinha nascido levemente prematuro no tempo de concepção.

g) Alertado pela sua nova companheira de que essas contas temporais não faziam muito sentido (salvo se o BB fosse mesmo prematuro) levantou a suspeita ao Autor de que o BB poderia não ser seu filho, até porque, entretanto, tinha vindo a saber, por mera casualidade, que quando a referida CC fugiu para o ... nessa mesma altura estava lá a residir o seu ex-namorado.

h) Tendo remetido ao laboratório a sua recolha e a do BB.

i) Confrontou a mãe do BB com o resultado mencionado em 9) da factualidade provada.

j) Tendo a mesma primeiro reagido negativamente pensando que o autor estaria a fazer essas considerações sem qualquer suporte, mas de seguida, confrontada com o resultado, admitiu que de facto se tinha envolvido com outra pessoa no ... e que seria ele o pai do BB.

k) Nunca mais viu o BB, tendo-se afastado e, naturalmente, deixado de pagar pensão de alimentos.

l) Disse à mãe do BB que diligenciasse junto das entidades competentes “que o seu nome fosse retirado enquanto pai do BB” – ficando ciente de que a mesma iria diligenciar nesse sentido – pois perante tudo o que descobrira caberia à mesma essa tarefa evitando assim o autor ter ainda mais despesas do que todas as que teve com alguém que afinal não era seu filho.

m) Entretanto emigrou para ... e refez a sua vida.

n) Pensando que apesar de tudo o que sucedeu a mãe do BB tivesse, ou estivesse, a diligenciar no sentido de retirar o nome do autor enquanto alegado pai, que afinal não era, do réu BB.

o) O autor, AA e a mãe do réu, CC, namoraram durante algum tempo e viveram em união de facto de forma ininterrupta desde o ano de 2005 até ao mês de Julho de 2009.

p) A mãe do réu residiu com o autor, inicialmente na Travessa ... em ... e, posteriormente, a meio da gravidez do filho de ambos -aqui réu, em ....

q) A ruptura definitiva do casal deu-se no mês de Julho de 2009.

r) A mãe do réu à data da gestação do dia 9-11-2007 ao dia 6-3-2008, dos 300 dias que precederam o nascimento do Réu, ou seja, ...-9-2008 mantinha uma relação amorosa, de forma exclusiva e contínua com o Autor.

s) Em dias indeterminados desde 9-11-2007 ao dia 6-3-2008 e que antecederam o nascimento do filho de ambos, a mãe do réu só teve relações sexuais de cópula completa com o Autor, AA.

t) Em consequência, veio a engravidar e a dar à luz em ...-9-2008 o seu filho, BB.

Na Relação alterou-se a decisão de facto, dando-se como provado que:

- O Autor perfilhou o Réu através do Assento de Nascimento nº5931 do ano de 2008 da Conservatória do Registo Civil ..., lavrado no dia 4 de Setembro do mesmo ano (documento de fls. 40).

B) DO DIREITO

O nosso sistema jurídico, no que ao estabelecimento da filiação diz respeito, privilegia a verdade biológica, ou seja, que a mãe e o pai juridicamente reconhecidos devem ser os pais biológicos – vide, Guilherme de Oliveira, in Estabelecimento da Filiação, 2019, em especial pags.35 e 142 a 147; ainda do mesmo autor, “Critério Jurídico da Paternidade”, 1998, nomeadamente, pag.443.

A perfilhação deve ser entendida como uma “declaração de ciência” e corresponde a um dever jurídico, de assunção da paternidade pelo progenitor.

E estamos no domínio de direitos fundamentais, o direito ao conhecimento das origens genéticas, o direito a desenvolvimento da personalidade em respeito pela sua identidade pessoal – artºs 25º e 26º da CRP.

A jurisprudência e a doutrina apontam estas razões distintivas, da impugnação de paternidade do marido da mãe, e da perfilhação: - existência da presunção de paternidade (artº 1796º nº 2 do CC); a tutela da correspondência entre a filiação jurídica e a verdade biológica.

A perfilhação, como se disse, corresponde a uma confissão de paternidade, responsabilizante para o perfilhante, só ilidível com a demonstração da falsidade da mesma.

Previamente ao tratamento das questões identificadas supra – thema decidendum –importa registar que o recorrente/R. começa por contestar a alteração da decisão de facto feita pela Relação, dando como provado que:

- O Autor perfilhou o Réu através do Assento de Nascimento nº5931 do ano de 2008 da Conservatória do Registo Civil ..., lavrado no dia 4 de Setembro do mesmo ano.

Como sabemos, “o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso, salvo havendo ofensa duma disposição expressa de lei que exija certo certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinada de determinado meio de prova” – cfr. artºs 674 nº 3 e 683º nº 2 do CPC.

Importa, contudo, esclarecer que documento de fls. 40 explicita a conclusão no sentido da perfilhação, deste modo: “No dia 4 de Setembro de 2008 foi lavrado pelo escriturário DD da Conservatória do Registo Civil ... o Assento de Nascimento nº5931 do ano de 2008; consta como Registando, BB, nascido no dia ... de Setembro de 2008; como Pai, AA e como Mãe, CC; e como Declarantes: O Pai; A Mãe; Menções especiais: Declaração prestada perante oficial público.”

Escreveu-se no acórdão recorrido: “(…) Como é sabido por todos designa-se por estabelecimento da paternidade a determinação legal de quem é o pai de uma dada pessoa. No estabelecimento da paternidade, a nossa lei distingue consoante se trate de um filho de mulher casada ou de mulher não casada (solteira, viúva, divorciada, mesmo vivendo em união de facto). Quando uma mulher casada tem um filho, e estabelece a maternidade relativamente ao mesmo, a lei presume que o pai daquela criança é o marido da mãe. Se é uma mulher não casada a ter um filho, a paternidade estabelece-se por reconhecimento, que pode ser um reconhecimento voluntário ou um reconhecimento judicial. O reconhecimento voluntário corresponde à perfilhação que é um acto através do qual um homem declara que uma pessoa é sua filha, e que se encontra regulado nos artigos 1849.º e seguintes do Código Civil. Trata-se de um acto formal, podendo ser feito por declaração perante o funcionário do registo civil, por testamento, por escritura pública e por termo lavrado em juízo. Exige-se a idade de 16 anos para se poder perfilhar e admite-se que a perfilhação se faça mesmo antes de o filho nascer, desde que este já esteja concebido e se identifique a mãe. Do mesmo modo, é possível a perfilhação de filho já falecido, mas neste caso os efeitos da filiação apenas beneficiam os descendentes do filho, não podendo o pai, nomeadamente, vir reclamar direitos sucessórios. Quanto à perfilhação de filhos maiores ou emancipados, a lei condiciona a produção de efeitos da mesma ao respectivo assentimento o que quer dizer que se alguém apenas vier a saber que é pai biológico de uma pessoa que já atingiu a maioridade ou se emancipou e quiser perfilhar, pode não conseguir fazê-lo se houver oposição do filho. A perfilhação é irrevogável e mesmo que seja feita em testamento não é afectada pela revogação deste. Todavia pode ser anulada, designadamente por erro ou coacção. Sendo assim se alguém perfilhou uma criança no pressuposto de que era filha de uma mulher com quem tinha mantido relações sexuais e depois descobre que tal não corresponde à verdade, pode pedir em tribunal a anulação da perfilhação. Por último, de referir que a perfilhação pode também ser judicialmente impugnada sempre que não corresponda à verdade, ou seja, nos casos em que o perfilhante não é o pai biológico. Com particular relevo para a questão em análise cabe chamar à colação o disposto no art.º130 do Código de Registo Civil, cuja redacção é recorde-se a seguinte: “1 - Ao registo de perfilhação é aplicável, com as devidas adaptações, o disposto nos artigos 125.º a 129.º; 2 - O assento de perfilhação deve mencionar ainda o assentimento do perfilhado, se for maior ou emancipado, ou dos seus descendentes, se for pré-defunto.” E também o que dispõe o art.º 125º e que é o seguinte: “1 - A declaração de maternidade que não conste do assento de nascimento do filho, quando realizada perante o funcionário do registo civil, é registada por meio de assento. 2 - É competente para lavrar o assento qualquer conservatória do registo civil.” A este propósito releva também o previsto na alínea a) do art.º 1853º do Código Civil, a saber: “A perfilhação pode fazer-se: a) Por declaração prestada perante o funcionário do registo Civil.” Ora nos autos o que se verifica do documento junto a fls. 40 é o seguinte: No dia 4 de Setembro de 2008 foi lavrado pelo escriturário DD da Conservatória do Registo Civil ... o Assento de Nascimento nº5931 do ano de 2008. Do mesmo Assento Consta como Registando, BB, nascido no dia ... de Setembro de 2008, como Pai, AA e como Mãe, CC. Do mesmo Assento constam também as seguintes referências: Declarantes: “O Pai; A Mãe; Menções especiais: Declaração prestada perante oficial público.” Face ao acabado de expor, o nosso entendimento é pois, o de que o referido Assento traduz uma perfilhação e não apenas uma “mera declaração de nascimento”. Nestes termos impõe-se, pois, que se conceda provimento ao recurso da decisão de facto interposto pelo Autor. Assim sendo altera-se o que ficou decidido relativamente à matéria alegada pelo mesmo Autor no art.º 4º da sua petição inicial, aditando aos factos provados um novo ponto com a seguinte redacção: “O Autor perfilhou o Réu através do Assento de Nascimento nº5931 do ano de 2008 da Conservatória do Registo Civil ..., lavrado no dia 4 de Setembro do mesmo ano.” E por força de tal alteração haverá pois, que revogar a decisão proferida na parte em que por considerar que estando em causa uma acção de impugnação de paternidade e não de impugnação de perfilhação, tinha que proceder a excepção peremptória da caducidade do direito de acção suscitada pelo Réu na sua contestação. Tudo por força do que decorre do disposto no nº2 do art.º 1859º do Código Civil, cuja redacção é, recorde-se, a seguinte: “1. (…). 2. A acção pode ser intentada, a todo o tempo, pelo perfilhante, pelo perfilhado, ainda que haja consentido na perfilhação, por qualquer outra pessoa que tenha interesse moral ou patrimonial na sua procedência ou pelo Ministério Público. 3. (…).” Estamos, pois, perante um regime de impugnação menos exigente, quando confrontado com o que sucede relativamente à paternidade presumida, o que se traduz, desde logo, na ausência de prazo para a correspondente acção de impugnação, na possibilidade de impugnação mesmo depois da morte do perfilhado. Com esta norma o legislador quis, de forma clara, afastar a paternidade biologicamente falsa (…)”

O recorrente/R. começa por contestar (1ª questão) que o assento de nascimento corresponda a um acto de perfilhação, antes traduz, na sua opinião, uma mera declaração de nascimento, o que afastaria a aplicação do artº 1859º (impugnação) do CC, segundo o qual:

“1 – A perfilhação que não corresponde à verdade é impugnável em juízo mesmo depois da morte do perfilhado.

2 – A acção pode ser intentada, a todo o tempo, pelo perfilhante, pelo perfilhado, ainda que haja consentido na perfilhação, por qualquer outra pessoa que tenha interesse moral ou patrimonial na sua procedência ou pelo Ministério Público.

3 – A mãe ou o filho, quando autores, só terão de provar que o perfilhante não é o pai se este demonstrar ser verosímel que coabitou com a mãe do perfilhado no período da concepção.

A perfilhação é um acto pessoal e livre de reconhecimento dum filho nascido ou concebido fora do matrimónio - artºs. 1849º e 1847º do CC.

E, nos termos do artº 1853º (forma) do CC, pode fazer-se:

a) Por declaração prestada perante o funcionário do registo civil;

b) Por testamento;

c) Por escritura pública;

d) Por termo lavrado em juízo.

Ora, como devidamente é dito na fundamentação do acórdão recorrido a declaração do A. foi feita perante funcionário do registo civil, conforme o estipulado nos artºs. 130º e 125º a 129º do CRC.

Donde se conclui que o assento de nascimento referente ao R. constitui uma verdadeira perfilhação.

Há duas excepções ao princípio da irrevogabilidade da perfilhação consagrado no artº 1858º do CC:

1. impugnação por falsidade;

2. anular-se por erro ou coacção.

Passamos a apreciar a 2ª questão, na verdade uma sub questão, suscitada pelo mesmo recorrente/R. para a hipótese concretizada do assento de nascimento configurar uma perfilhação.

Defende o recorrente/R. que, se assim for, verifica-se a caducidade do prazo para intentar a acção de anulação por erro ou coação, por força do disposto no nº 3 do artº 1860º do CC.

Isto porque também se apurou que o autor, por iniciativa própria, “efectuou um teste de ADN junto de um laboratório estrangeiro, mais precisamente “D... Diagnostics Center, a si remetido em 15/04/2015, no qual é concluído que o autor é excluído como pai biológico do réu”.

Para além desse teste ter sido contestado nesta acção, a impugnação da perfilhação, tendo em atenção a sua natureza, pode ocorrer a todo o tempo, como o previsto no anteriormente enunciado artº1859º do CC.

Nesta última hipótese não está em causa o erro ou a coacção, mas a própria falsidade da perfilhação.

E provou-se definitivamente, nestes autos, que:

- No Serviço de Genética e Biologia Forense do I.N.M.L. – Delegação ... foi efectuada perícia de investigação biológica de paternidade, com colheitas de sangue e zaragatoas bucais ao Autor e ao Réu, tendo-se concluído, de acordo com os resultados obtidos, que o autor, AA, é excluído da paternidade de BB.

Perante esta prova irrefutável da falsa paternidade atribuída ao autor, deve prevalecer a verdade biológica.

Finalmente, consigna-se que os factos assentes não permitem equacionar um quadro de abuso de direito à luz do artº 334º do CC.

Tudo visto não merece qualquer censura o acórdão objecto de recurso.

Sumariando:

1 – O assento de nascimento do réu, no que se reporta à sua paternidade configura uma perfilhação daquele pelo autor.

II – Estando em causa a falsidade da mesma perfilhação a sua impugnação pode ser feita a todo o tempo.

DECISÃO

- Assim e pelos fundamentos expostos, improcede a revista.

- Custas pelo recorrente/R., sem prejuízo de beneficiar de apoio judiciário.

Lisboa, 25-1-2024

Afonso Henrique (relator)

Ana Paula Lobo

Catarina Serra