Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05S3642
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FERNANDES CADILHA
Descritores: PROCESSO DE ACIDENTE DE TRABALHO
JUNTA MÉDICA
FIXAÇÃO DA INCAPACIDADE
Nº do Documento: SJ200512140036424
Data do Acordão: 12/14/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL ÉVORA
Processo no Tribunal Recurso: 989/05
Data: 05/30/2005
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Sumário : I - Tendo o sinistrado discordado do grau de incapacidade para o trabalho que lhe foi fixado por exame médico, na fase de conciliação do processo por acidente de trabalho, e requerido a abertura da fase contenciosa para realização de exame por junta médica, nada impede que, no termo dessa fase processual, e em resultado desta segunda perícia, o tribunal venha a proferir decisão judicial no sentido da inexistência de qualquer desvalorização funcional, recusando, em consequência, a atribuição de uma pensão;

II - No condicionalismo referido na proposição anterior, a apresentação do requerimento de junta médica implica a remissão da fixação da incapacidade para a fase contenciosa, que culminará com a correspondente decisão de mérito, pelo que não é possível repristinar o resultado do exame médico efectuado na antecedente fase conciliatória, como se sobre ele tivesse recaído o acordo das partes.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:


1. A Companhia de Seguros A, S.A. apresentou nos serviços do Ministério do Público do Tribunal de Trabalho de Évora participação pelo acidente de trabalho sofrido pelo sinistrado B, ocorrido quando este prestava a sua actividade profissional a favor de C, que havia transferido a sua responsabilidade infortunística para a participante.

Na fase de conciliação, o sinistrado não aceitou o grau de incapacidade permanente para o trabalho que lhe foi atribuído em exame médico, e que era correspondente a 7%.

Havendo discordância apenas quanto à questão da incapacidade, o sinistrado, com o patrocínio do Ministério Público, veio a requerer a submissão a junta médica, nos termos previstos no artigo 138º, n.º 2, do Código de Processo de Trabalho, assim se dando início à fase contenciosa do processo.

Na sequência, a junta médica considerou que o sinistrado não apresentava quaisquer sequelas do acidente, pelo que o juiz de primeira instância, considerando que o sinistrado não viu diminuída a sua capacidade geral de ganho, decidiu não haver lugar à atribuição de qualquer pensão.

O sinistrado, ainda representado pelo Ministério Público, interpôs recurso de apelação, sustentando que o pedido de junta médica apenas se destinava a obter uma incapacidade permanente para o trabalho superior à que lhe fora fixada na fase conciliatória, e interpretando o resultado obtido na fase contenciosa como uma reformatio in pejus.

A Relação considerou que, face às posições assumidas pelas partes na tentativa de conciliação, o litigio se circunscrevia à questão da existência ou não de um grau de desvalorização funcional superior a 7%, pelo que, dando provimento ao recurso, atribuiu ao autor uma pensão vitalícia, obrigatoriamente remível, correspondente a esse grau de incapacidade.

É contra esta decisão que se insurge a Companhia de Seguros A, S.A., mediante recurso de revista, formulando, na sua alegação, as seguintes conclusões:

1 - Os autos não fornecem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão da 1ª instância sobre matéria de facto, nem havendo elementos que imponham decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas, nem foi apresentado novo facto superveniente que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou;
2 - Designadamente, o Tribunal da Relação não teve acesso ao contacto pessoal e directo com o sinistrado, sendo-lhe impossível formar uma convicção que pudesse ter posto em crise a da 1ª instância;
3 - Não estão, pois, reunidos os requisitos legais para que a Relação pudesse ter modificado a decisão da 1ª instância sobre matéria de facto;
4 - Esta questão impedia, pois, a Relação de ir mais além na apreciação do recurso interposto da decisão da 1ª instância, antecedendo a simples questão formal em que se baseia o mesmo recurso;
5 - Ao invés do pretendido pelo recorrido, e do sufragado pela Relação, a atribuição da IPP de 7% pelo perito singular, ainda que aceite pela Seguradora, não pode a questão da incapacidade ficar restringida à simples apreciação de uma IPP superior a 7%.
6 - Ao ser requerida Junta Médica, apenas pelo sinistrado, já que a Seguradora não tinha fundamento para o fazer, por ter mostrado estar convencida de que aquele estivesse com incapacidade, a questão tinha que ficar em aberto, podendo e devendo a Junta Médica pronunciar-se livremente sobre a situação clínica do sinistrado, assim como podia o Senhor Juiz decidir, como decidiu, apoiado na sua convicção livremente formada pelo contacto pessoal e directo com o sinistrado, com todos os elementos de prova carreados para o processo e, sobretudo, no parecer da Junta Médica, com unanimidade dos peritos seus componentes;
7 - Nos autos mostra-se irrelevante que a recorrente tivesse aceite a IPP atribuída pelo exame singular, pois que, mesmo que o não tivesse feito, a Junta teria sido requerida e o resultado prático teria sido o mesmo;
8 - Afigura-se à recorrente que a posição por si assumida, por respeitar a questão dependente de prova pericial, por serem necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, nunca poderia ser tida por confissão judicial;
9 - O artigo 112°, n° 1, do CPT estabelece a regra de que fiquem consignados os factos sobre os quais tenha havido, ou não, acordo, visando circunscrever o litígio na fase contenciosa às questões em relação às quais não tenha havido acordo;
10 - Para os efeitos dos presentes autos, as partes tomaram posições divergentes, e, como não houve acordo sobre a incapacidade, esta questão, na sua globalidade, ficou em aberto para ser discutida na fase contenciosa, como veio a suceder;
11 - Mesmo que tivesse havido acordo sobre tal questão, nunca poderia o Juiz ficar inibido de apreciar livremente a prova existente nos autos e de decidir conforme lhe parecesse mais adequado à descoberta da verdade material;
12 - A Relação, ao decidir como decidiu, postergou a descoberta da verdade, dando primazia a uma mera questão de forma, validando uma ficção, ao atribuir uma prestação a um sinistrado que não ficou afectado de qualquer incapacidade;
13 - O princípio da verdade material reclama do Julgador a indagação livre dos factos pertinentes. Neste caso, estando em causa saber se o sinistrado tinha alguma IPP, sendo a formulação de quesitos facultativa, não pode cingir-se a pesquisa da verdade aos factos quesitados, sendo que à Junta Médica foram formulados os quesitos de fls. 69.
14 - O douto Acórdão de fls. 119 e segs. violou, pois, as normas dos arts. 388° e 389° do C. Civil, 515°, 655°, n° 1, 712° do CPC, e fez errada interpretação do art° 112°, n° 1, e 139°, n° 6, do CPT, proferindo uma decisão injusta, em vez de manter a douta decisão da 1ª instância, que havia decidido em conformidade com os elementos que o processo fornecia,

Não houve contra-alegação.

Colhidos os vistos dos Juízes Adjuntos, cumpre apreciar e decidir.

2. Matéria de facto.

Os factos relevantes são os seguintes:

1. A Companhia de Seguros A, S.A. participou no Tribunal de Trabalho de Évora o acidente de trabalho sofrido pelo sinistrado B, ocorrido quando este prestava a sua actividade profissional a favor de C (fls 2);
2. Na respectiva tentativa de conciliação, estiveram presentes o sinistrado e a Companhia de Seguros A, S.A., que estiveram de acordo quanto à existência e caracterização do acidente de trabalho, o nexo causal entre a lesão e o acidente, a retribuição auferida pelo sinistrado e as indemnizações devidas pela incapacidade temporária (fls 65-67);
3. A tentativa de conciliação frustrou-se porque o sinistrado não aceitou o grau de incapacidade parcial permanente de 7% atribuído no exame médico (fls 65-67);
4. O sinistrado, representado pelo Ministério Público, requereu o exame por junta médica, nos termos previstos no artigo 138º do Código de Processo de Trabalho (fls 69);
5. Os peritos médicos responderam por unanimidade que o sinistrado não apresentava quaisquer sequelas do acidente (fls 73);
6. Em conformidade com o resultado do exame feito em junta médica, o Tribunal de Trabalho de Évora não atribuiu ao sinistrado qualquer pensão por acidente de trabalho (sentença de fls 77 a 79).

3. Fundamentação de direito.

A única questão a decidir é a de saber se o tribunal poderia ter atribuído a pensão vitalícia correspondente ao grau de incapacidade permanente parcial de 7%, fixado em exame médico na fase conciliatória do processo, tendo em consideração que a discordância relativamente à questão da incapacidade - e que conduziu ao pedido de junta médica que deu como resultado a inexistência de qualquer desvalorização funcional - foi apenas manifestada pelo sinistrado.

A análise da questão impõe uma ainda que breve resenha sobre o quadro processual ao caso aplicável, tendo em conta que, à data do acidente (13 de Junho de 2002), estava já em vigor o Código de Processo de Trabalho aprovado pelo Decreto-Lei n.º 480/99, de 9 de Novembro.

O processo emergente de acidente de trabalho é caracterizado como um processo especial que se inicia por uma fase conciliatória dirigida pelo Ministério Público, tendo por base a participação do acidente (artigo 99º, n.º 1, do Código de Processo de Trabalho). Para além de outras diligências instrutórias, destinadas a verificar a veracidade dos elementos constantes do processo e das declarações das partes, o Ministério Público, no caso de ter resultado do acidente incapacidade permanente, designa data para exame médico, seguido de tentativa de conciliação (artigos 101º e 104º).

O exame médico é, em regra, efectuado no tribunal pelo respectivo perito médico, que considerará, em resultado da observação e do interrogatório do sinistrado e dos elementos constantes do processo, a lesão, a natureza da incapacidade e o grau de desvalorização correspondente (artigo 105º).

À tentativa de conciliação são chamadas, além do sinistrado ou dos beneficiários legais, as entidades patronais ou seguradoras, competindo ao Ministério Público promover o acordo das partes, de harmonia com os direitos consignados na lei, tomando por base os elementos fornecidos pelo processo, designadamente o resultado do exame médico e as circunstâncias que possam influir na capacidade geral de ganho do sinistrado (artigo 109º).

Realizado o acordo, este é imediatamente submetido ao juiz que o homologa por simples despacho exarado no próprio auto, mediante a prévia verificação da conformidade dos elementos com as normas legais, regulamentares e convencionais (artigo 114º).

Se se frustrar a tentativa de conciliação, no respectivo auto são consignados os factos sobre os quais tenha havido acordo, referindo-se expressamente se houve ou não acordo acerca da existência e caracterização do acidente, do nexo causal entre a lesão e o acidente, da retribuição do sinistrado, da entidade responsável e da natureza e grau de incapacidade atribuída (artigo 112º).

A ausência de acordo determina, por sua vez, a passagem do processo à fase contenciosa a qual se inicia ou com a petição inicial, em que o sinistrado ou os respectivos beneficiários formulam o pedido expondo os seus fundamentos, ou com o pedido de junta médica, quando estiver apenas em causa a questão da incapacidade para trabalho, e que é formulado "pelo interessado que se não conformar com o resultado do exame médico realizado na fase conciliatória do processo" (artigo 117º).

Quanto ao requerimento de junta médica, o artigo 138º explicita o seguinte:

"1. Quando não se conformar com o resultado do exame realizado na fase conciliatória do processo, a parte requer na petição inicial ou na contestação exame por junta médica.
2. Se na tentativa de conciliação apenas tiver havido discordância quanto à questão da incapacidade, o pedido de junta médica é deduzido em requerimento a apresentar no prazo a que se refere o n.º 1 do artigo 119.°; se não for apresentado, o juiz profere decisão sobre o mérito, fixando a natureza e grau de desvalorização e o valor da causa, observando-se o disposto no n.º 3 do artigo 73.°".

Ainda neste caso, o juiz, realizados os exames por junta médica, profere decisão de mérito, fixando a natureza e grau de desvalorização (artigo 140º).

4. No caso vertente, na tentativa de conciliação só não houve acordo quanto à questão do grau de desvalorização, e apenas por parte do sinistrado, que entendia que se encontrava afectado por uma incapacidade permanente parcial superior à indicada no exame médico.

Por conseguinte só este veio a requerer a realização de exame por junta médica, sendo esse requerimento que determinou a abertura da fase contenciosa (fls 69).

Os peritos responderam por unanimidade que não havia quaisquer sequelas do acidente de trabalho, pelo que o tribunal de primeira instância, em consonância com esse resultado, não arbitrou qualquer pensão por incapacidade permanente.

A Relação revogou a sentença, considerando que, em face do exame da junta médica, haveria que atribuir uma pensão correspondente ao grau de desvalorização funcional fixado na fase conciliatória, visto que a discordância quanto à questão da incapacidade foi suscitada apenas pelo sinistrado e circunscrevia-se apenas à possível existência de um incapacidade superior a 7%. Nesta linha de entendimento a Relação assevera que qualquer outra solução seria premiar a passividade da seguradora, que não questionou a incapacidade de 7% fixada no exame médico realizado na fase conciliatória.

Semelhante interpretação não tem qualquer cabimento.

Como decorre com evidência das disposições conjugadas dos artigos 117º e 138º, a abertura da fase contenciosa do processo quanto à questão da incapacidade pode ser requerida por qualquer das partes que tenha manifestado na tentativa de conciliação o seu desacordo quanto a esse aspecto da causa.

No caso, a empresa seguradora aceitou o resultado do exame médico efectuado na fase de conciliação, pelo que não tinha de requerer a junta médica. E só o sinistrado, que discordou desse resultado, é que o poderia ter feito.

Por outro lado, a consequência processual que decorre da apresentação do requerimento de junta médica é a de remeter para a fase contenciosa a fixação da incapacidade. Pelo que a decisão de mérito a proferir quanto à natureza e ao grau de desvalorização haveria de ter em conta, tal como decorre do disposto no artigo 140º do Código de Processo de Trabalho, os novos elementos carreados para os autos nessa fase do processo e, em especial, a prova coligida através do exame feito pela junta médica.

O facto de o sinistrado não ter obtido um resultado mais favorável no exame efectuado na fase contenciosa não implica que se repristine o resultado da perícia realizada na antecedente fase conciliatória. Na verdade, a tentativa de conciliação terminou com um acordo quanto à existência e caracterização do acidente, ao nexo causal entre a lesão e o acidente, à retribuição do sinistrado e à determinação da entidade responsável, mas não quanto ao grau de incapacidade para o trabalho. Não tendo havido acordo sobre este último aspecto, por o sinistrado não ter aceite o grau de desvalorização funcional fixado no exame médico, o que sucede é que o juiz ficou impedido de emitir, na fase conciliatória, uma decisão judicial sobre essa matéria, a qual passou a estar dependente do exame a realizar por junta médica, como fora requerido.

Neste contexto, para a empresa seguradora não poderia advir qualquer consequência processual desvantajosa apenas pelo facto de não ter requerido ela própria a realização de exame por junta médica. A seguradora não requereu o exame por junta médica porque estava de acordo com o grau de incapacidade fixado na fase conciliatória. A passividade da seguradora é perfeitamente consentânea com a sua posição na tentativa de conciliação: manifestou a sua concordância com o resultado do exame médico, logo não lhe competia requerer a junta médica.

O sinistrado é que suporta o risco de ter preferido remeter a questão da incapacidade para a fase contenciosa, sabendo-se que o exame feito pela junta médica poderia dar um resultado diverso do que fora obtido na fase de conciliação e que um e outro são livremente apreciados pelo tribunal (artigo 591º do Código de Processo Civil).

Como logo se entrevê, não há aqui qualquer violação da proibição da reformatio in pejus. Na tentativa de conciliação não houve acordo das partes quanto à questão da incapacidade, pelo que não foi proferida qualquer decisão homologatória do juiz sobre essa matéria. A apreciação da questão foi, por isso, relegada para a fase contenciosa, pelo que a decisão final que veio a ser emitida, nessa fase processual, não representa um agravamento da posição processual do sinistrado e constitui antes a única decisão de mérito que foi prolatada em primeira instância.

5. Decisão.

Nestes termos, acordam em conceder a revista e revogar a decisão recorrida, mantendo a decisão proferida em primeira instância.

Sem custas.

Lisboa, 14 de Dezembro de 2005
Fernandes Cadilha, - relator
Mário Pereira,
Laura Leonardo.