Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
01A3987
Nº Convencional: JSTJ00042882
Relator: LOPES PINTO
Descritores: ERRO DE ESCRITA
RECTIFICAÇÃO DE ERROS MATERIAIS
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Nº do Documento: SJ200203050039871
Data do Acordão: 03/05/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 4247/01
Data: 05/24/2001
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: DIR PROC CIV - RECURSOS.
Legislação Nacional: CPC95 ARTIGO 265 N2.
CCIV66 ARTIGO 249.
Sumário : I - Pela reforma de 1995/96 do CPC cometeu-se ao julgador a missão de evitar, sempre que possível, devendo privilegiar a de mérito, a decisão de forma.
II - Constitui regra de direito, aplicável a todo o ramo jurídico e plasmada no art. 249 CC, a rectificação do erro de cálculo ou de escrita revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita.
III - Embora eliminado, como regra, o despacho liminar, o princípio da estabilidade da instância não impede que, findos os articulados, e havendo erro ostensivo na definição da parte ré operado na petição inicial e revelado no seu contexto e no contrato de agência que com os autores a ré celebrou, seja ordenada a rectificação do erro.
IV - Cabe às instâncias determinar qual a consequência que, em concreto, resultará do reconhecimento do erro ostensivo e da sua relevância
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

A e B propuseram acção declarativa de condenação contra C, Lda., fundamentando o pedido na indevida resolução do contrato de agência com eles celebrado pela ré na sequência do anterior com o seu (dos autores) pai, entretanto falecido, juntando ao articulado inicial 4 documentos.
Contestando, a ré, após aceitar parte dos factos e excepcionou a sua ilegitimidade por a causa de pedir respeitar à sociedade D, S.A., herdeira da actividade comercial da ré uma vez que esta, em 1992, foi desactivada deixando de comercializar ao público.
Respondendo, os autores requereram a rectificação do lapso manifesto de escrita, que a ré, representada pelo mesmo gerente que desta é administrador, bem compreendeu.
No saneador, foi indeferido o pedido de rectificação e julgada procedente a excepção de ilegitimidade.
Agravaram, sem êxito, os autores, os quais juntaram documento demonstrativo de que a D, S.A., representada pelo esse mesmo administrador, depois de ter recebido a carta a reclamar a indemnização e já depois de a ré ter sido citada, accionou, com base exactamente nos mesmos factos os autores, deles se reclamando credora.
Novo agravo dos autores, a cuja admissibilidade a ré se opõe (invocando ter a Relação confirmado o saneador, sem voto de vencido), concluindo, pela existência de erro ostensivo e sem que a peticionada rectificação envolva violação do princípio da estabilidade da instância.
Colhidos os vistos.

Decidindo: -

1.- O despacho, confirmado pelo acórdão recorrido, põe termo a este processo, o que constitui uma das situações (a prevista pelo art. 734-1 a) CPC) ressalvadas pelo nº 3 do art. 754 CPC.
Insuficiente, portanto, alegar que a Relação confirmou, sem voto de vencido, a decisão proferida na primeira instância.
Improcede a questão prévia.
2.- A actual redacção do CPC prescindiu, na generalidade dos casos, do despacho quer de indeferimento liminar quer de aperfeiçoamento, privilegiando, ao alargar o seu âmbito, os poderes do juiz na fase de saneamento do processo.
É discutível a bondade da opção mesmo em termos de celeridade processual. Todavia, isso em nada pode prejudicar o uso dos poderes que lhe estão cometidos, devendo ler-se uma codificação de normas no seu todo e procurar obter a harmonia jurídica que foi seu desiderato.
Ao estudar o processo após os articulados deve o juiz providenciar pelo suprimento de excepções dilatórias, nos termos do nº 2 do art. 265 (CPC- 508,1 a)).
A ilegitimidade constitui uma das excepções dilatórias consagradas na nossa lei (CPC- 494 e) e 288-1 d)).
O juiz providenciará, mesmo oficiosamente, pelo suprimento da falta de pressupostos processuais susceptíveis de sanação, determinando a realização dos actos necessários à regularização da instância ou, quando estiverem causa alguma modificação subjectiva da instância, convidando as partes a praticá-los (CPC- 265,2).
Cometeu-se ao julgador a missão de evitar, sempre que possível, devendo privilegiar a de mérito, a decisão de forma e para tal elencaram-se duas situações - as excepções dilatórias susceptíveis de sanação e a definição das partes.
Se ao falar em modificação subjectiva da instância tem a lei presente os incidentes de intervenção de terceiros (CPC- 269 a 271 e 325 e segs), já na previsão anterior se incluiu o litisconsórcio subsidiário, a chamada pluralidade subjectiva subsidiária (CPC- 31-B).
Novamente a ideia de eliminar, sempre que possível, obstáculos à justiça de mérito.
Ainda no domínio da definição das partes manteve a redacção de 1995/6 do CPC o que sobre a identidade do réu já vinha de trás - arts. 194 a) e 195 b).
Constitui regra de direito, aplicável a todo o ramo jurídico e plasmada no art. 249 CC, a rectificação do erro de cálculo ou de escrita revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita.
Como de há muito (v.g., RLJ 109/313) acentua a nossa doutrina e a jurisprudência, a petição inicial é uma declaração de vontade e, enquanto tal, um negócio jurídico.
O destinatário dessa declaração (o réu) tem de ser citado e, conquanto a lei continue a falar em ser pessoal a citação, o certo é a lei configurar como tal a citação pela via postal, por meio de carta registada com aviso de recepção (CPC- 233-2 a), 236 e 238).
Quando ela assim se verifique, será relativamente a este modo que a problemática da definição da parte se terá de colocar.
Expostos os princípios e sem esquecer que cada uma das sociedades tem a sua própria personalidade, há que os aplicar aos factos, independentemente de a estratégia traçada pelo mandatário dos autores poder não revelar a utilidade prática, maxime em termos de economia de tempo, que obteria se tivesse logo abandonado a presente acção e logo propondo outra (não compete ao tribunal imiscuir-se em tal matéria).

3.- Na petição, os autores, após historiarem o começo e desenvolvimento das relações comerciais de agência, alegaram que, durante a vigência do contrato, a ré adquiriu uma empresa E e que os seus produtos passaram a fazer parte do elenco das mercadorias que eles, autores, comerciavam no arquipélago dos Açores, nas mesmas condições do contrato.
É na denúncia deste contrato, não operada atempadamente e indevidamente tida como resolução, aliada à alegação de danos que os autores alicerçam o seu pedido.
Comprovando o contrato, juntaram à petição inicial os docs. de fls. 21-22, provindo da ré o primeiro e o segundo a ela dirigido pelos autores.
Referindo-se à ‘resolução’ ou, na óptica dos autores, à ‘denúncia’ precisamente desse contrato, juntaram os docs. de fls. 23-24, ambos da sociedade D, S.A..
Quer a doutrina quer a jurisprudência têm por válida e relevante a articulação através de documentos juntos com o respectivo articulado em que a alegação de factos seja possível.
A diversa articulação assim revelada patenteia que as relações comerciais passaram a ser assumidas, pela D, S.A. (constituísse ela uma nova sociedade ou apenas uma alteração da denominação) e que os autores aceitaram essa assunção. Segundo os autores, com eles apenas um único contrato foi celebrado (é aos autores que cabe colocar a causa de pedir, só a eles).
4.- Confirmando este erro e que ele é evidenciado pelo próprio contexto da declaração, há a explicação para ele fornecida pela própria ré na sua contestação.
Após aceitar o historiar do início e desenvolvimento das alegadas relações comerciais com os autores, e a ter adquirido aquela outra empresa, é a própria ré a dar a «explicação» para o erro -
em 88, adquiriu essa empresa e, em Janeiro de 92, deixou de comercializar ao público os seus produtos, passando a ré a vendê-lo, «unicamente, à D, S.A., sociedade ‘herdeira’ da actividade comercial daquela» e, daí em diante, os negócios foram realizados e os contratos de contratos de compra e venda nos Açores celebrados «em nome da D, S.A., e não da comercialmente desactivada, C, Lª» (esta alegação não implica que necessariamente tenha havido novo contrato, embora a ré nele fale).
Administrador desta e gerente da ré a mesma pessoa, quem conferiu ao Exº mandatário os poderes para intervir nesta acção.
É sobre uma contestação deste teor e em que a ré excepcionou a sua ilegitimidade, que os autores expressamente pedem a rectificação do erro ostensivo e as consequências daí decorrentes.
Quando foi proferido o saneador, eram estes os factos conhecidos.

5.- Agravando para a Relação, juntaram os autores, às suas alegações, um documento que não foi impugnado e que o tribunal manteve no processo.
Trata-se da petição inicial da acção proposta por D, S.A., em momento posterior da ré na presente acção, em que são historiados os mesmos factos (só os a partir de Janeiro de 92), agora aditados de outros relativos ao pedido que formula de um crédito sobre os aí réus e aqui autores.
Quando foi proferido o acórdão, conhecia a Relação este documento e sobre ele não se pronunciou no aresto, onde se defendeu que uma solução contrária, violaria o princípio da estabilidade da instância.

6.- Duas realidades ressaltam - há um erro ostensivo na definição da parte ré operado na petição inicial e revelado no seu contexto e, no contrato de agência que com os autores a ré celebrou, o principal foi, em 1992, substituído por D, S.A..
Na medida em que o despacho liminar anterior desapareceu, como regra, a questão que ora se coloca é a de saber se o princípio da estabilidade da instância impede a rectificação do erro.
Se do reconhecimento do erro ostensivo e da sua relevância dever resultar, ainda que indirectamente, a anulação do processado (para, inclusívè, o contraditório poder ser observado em toda a sua extensão) implica que a instância ainda se não tenha estabilizado.
Se do reconhecimento do erro ostensivo e da sua relevância dever resultar o convite ao incidente da habilitação de adquirente, pode, se aceite o convite e ao caso convier esse incidente, haver uma válida e admissível modificação subjectiva da instância.
As instâncias privilegiaram a solução de forma, quando havia todos os elementos para se reconhecer, pelo contexto do articulado inicial, a existência de erro ostensivo, tal como os autores, na resposta que produziram, afirmavam.
Cabe ao Supremo Tribunal de Justiça reconhecê-lo e determinar a rectificação; cabe às instâncias retirar as consequências que julgarem pertinentes e proferirem a decisão adequada às mesmas.

Termos em que se indefere a questão prévia e, no provimento do agravo, se ordena que seja proferido despacho a operar à rectificação do erro.
Custa pela recorrida.

Lisboa, 5 de Março de 2002.
Lopes Pinto,
Ribeiro Coelho,
Garcia Marques.