Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
258/2002.G1.S1
Nº Convencional: 1. ª SECÇÃO
Relator: GARCIA CALEJO
Descritores: CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
PRINCÍPIO DA EQUIPARAÇÃO
VENDA DE COISA DEFEITUOSA
DIREITO A REPARAÇÃO
SUBSTITUIÇÃO
ANULAÇÃO
REDUÇÃO DO PREÇO
INDEMNIZAÇÃO
ERRO VICIO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 06/29/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Doutrina: - Almeida Costa, In Obrigações, 3ªedição.
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 9ª edição.
- Calvão da Silva , In Compra e Venda de Coisas Defeituosas,.
- Calvão da Silva, In Sinal de Contrato-Promessa, 1988.
- Carvalho Fernandes, In Teoria Geral de Direito Civil, Vol. II, 2ª edição.
- Castro Mendes, Direito Civil, Teoria Geral, Vol. III, 1973.
- Mota Pinto, In Teoria Geral do Direito Civil.
- Pedro Martinez, In Cumprimento Defeituoso, Em Especial Na Compra e Venda e Empreitada.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 207.º, 287.º, N.º2, 252.º, N.º 2, 342.º, N.º2, 410º, N.º1, 442.º, 437.º, 830.º, 905.º, 911.º, 913.º, 914.º E 917.º .
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 511º, 646º Nº 2 E 653º Nº 2.
Jurisprudência Nacional: - ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, DE 27-4-2006, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT/JSTJ.NSF.
Sumário : I - Num contrato-promessa de compra e venda não se produz o efeito translativo da propriedade. Este efeito só se concretizará com a realização do contrato prometido. O contrato-promessa, ao desencadear a obrigação de contratar, gera o correspondente do direito de crédito da contraparte de exigir o seu cumprimento; produz, assim, mero efeito obrigacional de realizar o contrato prometido.
II - O art. 410.º, n.º 1, do CC, estabelece o princípio da equiparação, afastando as regras relativas à forma e as que pela sua razão de ser, não se devam considerar extensivas ao contrato-promessa.
III - Se o promitente-comprador, após a assinatura do contrato-promessa, passou a residir no prédio urbano prometido vender, vindo a constatar que o mesmo apresentava defeitos (existência de humidades e infiltrações), deve aplicar-se à situação as regras atinentes à venda de coisa defeituosa.
IV - A coisa será defeituosa quando for imprópria para o uso concreto destinado pelo contrato ou quando não satisfaça a função normal das coisas da mesma categoria ou tipo. No presente caso, o vício que haverá de ponderar será o que impede a coisa da “realização do fim a que é destinada”, visto que as deficiências verificadas provocam uma redução da aptidão da casa para o seu uso comum, que é a de proporcionar aos que a habitam uma vivência satisfatória.
V - Deve ser reconhecido ao comprador, em primeira linha, o direito de exigir do devedor a reparação da coisa ou, se for necessário e esta tiver natureza fungível, a substituição dela – art. 914.º do CC. Para além deste direito, deve-se reconhecer ao mesmo o direito de anulação do contrato, de redução do preço e da indemnização (pelo interesse contratual negativo).
VI - No caso vertente, o autor tinha o direito de exigir do vendedor a reparação da coisa. Não poderia contudo, dado que o bem tem a natureza de coisa infungível (cf. art. 207.º do CC), pedir a substituição do bem. Poderia, também, face à remissão para as normas de venda de bens onerados, pedir a anulação do contrato (por erro ou dolo), a redução do preço (quando as circunstâncias do contrato mostrarem que, sem erro ou dolo, o comprador teria igualmente adquirido os bens, mas por preço inferior – cf. art. 911.º do CC) e a indemnização pelo interesse contratual negativo (traduzido no prejuízo que sofreu pelo facto de ter celebrado o contrato).
VII - Ao pretender-se adquirir uma habitação nova para aí se viver, ambiciona-se um local com boas condições de habitabilidade e conforto, não passando pela cabeça do pretendente à aquisição que a nova casa não possa reunir as mais elementares condições de habitabilidade, sendo que, se tal pudesse supor, certamente não realizaria o negócio.
VIII - Sabendo-se que, nos termos dos arts. 252.º, n.º 2, e 437.º, n.º 1, ambos do CC, o interessado tem o direito à anulação do negócio se as circunstâncias em que fundou a decisão de contratar sofrerem uma alteração anormal (e desde que a exigência da obrigação por ele assumida afecte gravemente os princípios da boa fé e não esteja coberto pelos riscos do negócio), é evidente que o fundamento de anulação do contrato se verifica no caso dos autos.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I- Relatório:
1-1- AA, residente na Rua P... H... de M..., Porto, propôs a presente acção com processo ordinário contra BB- I...B... Imobiliária, Ldª, com sede na Rua C... L..., ..., ...º ...º, Braga pedindo que a R. seja condenada pagar-lhe a quantia de € 124.699,47, a título de indemnização pelo incumprimento do contrato promessa em causa nos autos ou, caso assim se não entenda, deverá o mesmo contrato ser declarado anulado, condenando-se a R. a restituir-lhe a quantia de € 24.939,89, que este lhe entregou, acrescida de capitalização.
Fundamenta este pedido, em síntese, dizendo que em 7/05/98, celebrou com a R., por escrito, um contrato promessa, nos termos do qual esta última prometeu vender ao A. o prédio urbano identificado no artigo 1º da petição inicial, pelo preço de € 99.759,58, dos quais já foram pagos € 24.939,89, como sinal e principio de pagamento, devendo o restante ser pago no acto de celebração da escritura. Após ter passado a residir na aludida habitação, constatou que na mesma se verificava a existência de humidades e de infiltrações de águas das quais, de imediato deu conhecimento à A., que as reconheceu, sendo que, a reparação de todos os defeitos de construção que essa habitação apresentava orçava em € 22.445,91. A R., perante a existência de tais defeitos, limitou-se a fazer obras pontuais sem, contudo, efectuar as que se revelava, necessárias à erradicação de todos esses defeitos.
Existe incumprimento do contrato por parte da R. e caso assim se não entenda, ocorre uma situação de venda de coisa defeituosa, podendo o A. arguir, atendendo que o negócio não foi cumprido, a anulação do negócio a todo o tempo
A R. contestou e após impugnar os factos invocados pelo A., alegou não ter entregado a chave da habitação a este último a fim de que ele para aí ir habitar, mas tão somente, por este lha ter solicitado com a exclusiva finalidade de mostrar o apartamento a pessoas amigas. Assim, desde a primeira hora que o A. ficou ciente que faculdade concedida foi transitória e sem qualquer cariz de permanência. A invocação dos defeitos não é mais que um pretexto para o A. deixar de celebrar o contrato prometido. O A. tem uma mera detenção do prédio em causa, não tendo existido qualquer incumprimento do contrato celebrado. O A. ocupa abusivamente a fracção.
Termina pedindo a improcedência da acção.

O A. ofereceu réplica e a R. tréplica, onde reafirmaram as posições anteriores.

O processo seguiu os seus regulares termos posteriores, tendo-se proferido o despacho saneador, após o que se fixaram os factos assentes e se organizou a base instrutória, se realizou-se a audiência de discussão e julgamento, se respondeu a essa base e se proferiu a sentença.

Nesta julgou-se a acção parcialmente procedente, por provada e, em consequência, declarou-se resolvido o contrato de compra promessa de compra e venda em causa nos presentes autos celebrado a 7/05/98 e condenou-se a R., BB-I... B... Imobiliária Ldª, a restituir ao A., AA, o montante de € 24.939,89, que por este lhe foi entregue a título de sinal e início do pagamento do preço devido pelo aludido imóvel, acrescido de juros de mora, à taxa legal, contados desde a data da citação até integral e efectivo pagamento.

Não se conformando com esta decisão, dela recorreu a R. de apelação para o Tribunal da Relação de Guimarães tendo-se aí, por acórdão de 27-10-2009, julgado improcedente o recurso, confirmando-se a sentença recorrida.

1-2 Irresignada com este acórdão, dele recorreu a R. para este Supremo Tribunal, recurso que foi admitido como revista e com efeito devolutivo.
A recorrente alegou, tendo das suas alegações retirado as seguintes conclusões:
1ª- Atenta a matéria dada como provada pelo Tribunal a quo jamais a decisão proferida poderia ter ido no sentido de julgar parcialmente procedente, o pedido aduzido pelo Autor.
2ª- A conclusão de direito a que chegou o Tribunal recorrido com a aplicação do disposto nos artigos 437°, 252° nº 2 e 913° e ss. do Código Civil, não pode proceder.
3ª- No caso de venda de coisa defeituosa, são concedidos ao comprador, em princípio, os seguintes direitos: anulação do contrato; redução do preço; indemnização do interesse contratual negativo; e reparação da coisa ou a sua substituição.
4ª- Como são diferentes os pressupostos dos referidos direitos, a pretensão que o comprador deve adoptar resolve-se por interpretação - integração do negócio jurídico concreto: se as qualidades da coisa fizerem parte integrante do conteúdo negocial, o problema é de incumprimento ou cumprimento defeituoso do contrato; de contrário, o problema só pode ser de erro.
5ª- Impende sobre o comprador o ónus da prova dos termos precisos e concretos em que o contrato foi celebrado, designadamente de ter o vendedor asseverado as qualidades da coisa e ter-se responsabilizado por elas.
6ª- A douta decisão concluiu pela resolução do contrato, porque o bem objecto de venda não apresenta as qualidades enunciadas pelo vendedor.
7ª - O DL 67/2003 de 08/04 transpôs para a Ordem Jurídica Interna a Directiva nº 1999/44/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio, relativa a certos aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas, com vista a assegurar a protecção dos interesses dos consumidores (art. 1° do citado Decreto-Lei).
8ª- Decorre do regime estabelecido no referido diploma que o vendedor tem o dever de entregar ao consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda (art. 2°/1 do citado diploma).
9ª- Determina o art. 2°/2 do referido diploma, que presume-se: “que os bens de consumo não são conformes com o contrato se se verificar, algum dos seguintes factos: não serem conformes com a descrição que deles é feita pelo vendedor ou não possuírem as qualidades do bem que o vendedor tenha apresentado ao consumidor como amostra ou modelo”.
10ª- Decorre, ainda, do regime previsto no art. 3°/2 do mesmo diploma que “As faltas de conformidade que se manifestem num prazo de dois ou cinco anos a contar da data de entrega de coisa móvel corpórea ou de coisa imóvel, respectivamente presumem-se existentes já nessa data, salvo quando tal for incompatível com a natureza da coisa ou com as características da falta de conformidade”.
11ª- Em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato, independentemente de culpa do vendedor no cumprimento inexacto da obrigação de entregar o bem devido, conforme ao contrato - art. 4º/1 do citado diploma ( Calvão da Silva “Venda de Bens de Consumo”, pág. 80, Almedina, 3ª edição).
12ª- A citada lei visa regular as relações entre consumidor e fornecedor, consideram-se como consumidor” todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios.” (ob. cit., pág. 54).
13ª- Porque dos factos provados não resulta o fim a que se destina a aquisição, sempre seria de considerar, atenta a matéria de facto apurada, que não assiste ao Autor o direito de resolução do contrato, sem que previamente se esgote a via da reparação ou substituição do bem objecto de venda.
14ª- Verificando-se existir a aludida desconformidade entre o bem objecto de venda e o bem que o consumidor se propõe adquirir, o consumidor pode exercer qualquer dos direitos enunciados, salvo se tal se manifestar impossível ou constituir abuso de direito, nos termos gerais (art. 4°/5 do mesmo diploma).
15ª- Como refere Calvão da Silva (ob. citada, pág. 82), a Directiva subordina o exercício dos direitos pelo consumidor a um conjunto de requisitos objectivos que cumpre considerar para efeito de interpretar (a norma portuguesa), conforme a Directiva.
16ª- Refere o Ilustre Professor: “Assim, e à cabeça, salta à vista na Directiva a seguinte hierarquia: primus, a reparação ou substituição do bem; secundus, redução do preço ou resolução do contrato.
17ª- É o que resulta da conjugação do nº 3 — “Em primeiro lugar, o consumidor pode exigir do vendedor a reparação ou a substituição do bem, em qualquer dos casos sem encargos, a menos que isso seja impossível ou desproporcionado” - com o n° 5: “O consumidor pode exigir uma redução adequada do preço, ou a resolução do contrato:
- se o consumidor não tiver direito a reparação nem a substituição, ou
- e o vendedor não tiver encontrado uma solução num prazo razoável, ou
- se o vendedor não tiver encontrado uma solução sem grave inconveniente para o consumidor.
18ª- A regra e proeminência da parelha” Reparação/ substituição “sobre o par” redução/resolução” surge confirmada no considerando nº 10: “em caso de não conformidade do bem com o contrato, os consumidores devem ter o direito de obter que os bens sejam tornados conformes com ele sem encargos, podendo escolher entre a reparação ou a substituição, ou, se isso não for possível, a redução do preço ou a resolução do contrato.
19ª- Quer dizer: o consumidor tem o poder-dever de seguir primeiramente e preferencialmente a via da reposição da conformidade devida (pela reparação ou substituição da coisa) sempre que possível e proporcionada, em nome da conservação do negócio jurídico, tão importante numa economia de contratação em cadeia, e só subsidiariamente o caminho da redução do preço ou resolução do contrato “(ob. citada, pág. 82-83).
20ª- No que respeita ao exercício do direito à resolução do contrato no seu estudo, o Professor Calvão da Silva, salienta dois aspectos:
21ª - O consumidor não tem direito à resolução do contrato se a falta de conformidade for insignificante - art. 3º/5 da Directiva;
22ª- No reembolso ao consumidor do preço por força da resolução potestativa do contrato ou da actio quanti minoris, a eventual utilização do produto pelo consumidor pode justificar uma redução do valor a restituir (art. 432°/2 CC).
23ª- São estas considerações que permitem no caso concreto avaliar da boa-fé do consumidor, na escolha das suas pretensões.
24ª- Assim, ao abrigo do regime do DL 67/2003 de 08/04, não assiste ao Autor o direito à resolução do contrato.
25ª- Desta forma, cumpre apreciar do direito do Autor, à luz do regime previsto no Código Civil para a venda de coisa defeituosa.
26ª- No domínio do contrato de compra e venda como se refere no Ac. STJ 23.04.98 BMJ 476, 389:” Três princípios informam todo o cumprimento da obrigação:
- a prestação tem de ser pontualmente cumprida - art. 406° e 762° CC;
- agindo de boa-fé, evitando prejuízos ao credor - art. 762° CC; e
- em princípio integralmente - art. 763° CC.
- Quando a quantidade da prestação não é devida, pode o credor recusá-la - art. 763° CC.
27ª- De igual modo se passará quanto à qualidade, quando de forma diversa da acordada: é a aplicação do assinalado princípio de integralidade do cumprimento.
28ª- Não querendo e não podendo recusar a prestação nem recorrer ao instituto da excepção de não cumprimento o comprador como meio de tutela do seu direito tinha:
- o direito à anulação do contrato de compra e venda por erro ou dolo (art. 905° e 913° CC);
- o direito à redução do preço -art. 911° e 913° CC;
- o direito à indemnização - art. 908°, 909°, 913°, 915° CC;
- o direito à reparação ou à substituição da coisa se ela for fungível - art. 914º CC.
29ª- O direito à reparação ou substituição pressupõe por um lado que a coisa padeça de um vício e por outro, que o vendedor conheça o defeito ou o desconheça com culpa.
30ª- O vício a considerar para este efeito, conforme resulta do art. 913° CC:
- vício que desvalorize a coisa;
- vício que impeça a realização do fim a que é destinada;
- falta das qualidades asseguradas pelo vendedor;
- falta das qualidades necessárias para a realização do fim a que a coisa se destina.
31ª- O nº 2 do referido preceito manda atender para a determinação do fim da coisa vendida, à função normal das coisas da mesma categoria.
32ª- Assim, não se verificando estes vícios a anulação do contrato não é possível, nem o comprador pode beneficiar do regime previsto para a venda de coisa defeituosa - art. 913° e segs..
33ª- Como referem Pires de Lima e Antunes Varela: os pressupostos fundamentais do regime especial consagrado nesta secção (...) assentam mais nas notas objectivas das situações por ele abrangidas do que na situação subjectiva do erro em que, nalguns casos, se encontre o comprador, ao contrário do regime da anulação do contrato, também aplicável ao caso com algumas adaptações, que repousa essencialmente na situação subjectiva do comprador. (...) Não se trata por conseguinte de garantir o estrito cumprimento dos deveres de prestação contraídos pelas partes. As soluções da lei mergulham as suas raízes mais fundas no princípio da justiça comutativa subjacente a todos os contratos onerosos, em geral, e à compra e venda em especial (Código Civil Anotado, vol. II, pag, 212).
34ª- Não resulta do regime específico da compra e venda de coisa defeituosa, a faculdade de pedir a resolução do contrato.
35ª- Por outro lado, não resulta dos factos apurados que o vendedor agiu com dolo ou que se verifica uma situação de erro que conceda a faculdade de anulação do contrato, convolando-se o pedido de resolução para anulação.
36ª- De acordo com o regime geral da resolução previsto no art. 432° CC, a resolução é possível desde que fundada na lei ou em convenção das partes.
37ª- A resolução fundada na lei prevista nos arts. 793º e 801° CC pressupõe a perda de interesse na prestação ou a impossibilidade da prestação, o que no caso presente, também não se verifica, nem resulta da matéria dada por assente.
38ª- Assim, e na hipótese que ora nos ocupa deve a sentença recorrida ser revogada e, em sua substituição, ser proferido decisão na qual se julgue improcedente o pedido formulado pelo Autor.
39ª- Face ao exposto, violou o Tribunal recorrido o dispositivo consagrado nos arts. 252º nº 2, 437°, 913° e ss. do Código Civil, 659°, nº 3 e 660°, nº 2 do C.P.Civil, o que, inelutavelmente importa igualmente a nulidade da sentença proferida, nos termos do disposto no art. 668°, nº 1 al. d) do mesmo diploma que igualmente se argui para todos os efeitos.

O recorrido não contra-alegou
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
II- Fundamentação:
2-1- Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, apreciaremos apenas as questões que ali foram enunciadas (arts. 690º nº 1 e 684º nº 3 do C.P.Civil).
Nesta conformidade, será a seguinte a questão a apreciar e decidir:
- Se o contrato em causa pode ser anulado, como decidiram as instâncias.

2-2- Vem fixada das instâncias a seguinte matéria de facto:
1- Em 7/05/98, o A. e a R. celebraram o contrato promessa de compra e venda de uma habitação do tipo T2, com garagem, de um prédio em construção, sito na Avenida A... V..., freguesia de F..., em Esposende.
2- Não foi estipulada qualquer data para a realização da escritura de compra e venda.
3- Após a assinatura do contrato promessa referido no facto 1), a R. facultou ao A. a chave do imóvel, o qual nele passou a habitar.
4- Em Novembro de 1998, com as primeiras chuvas, o A. constatou a existência de humidades e infiltrações.
5- O A. deu de imediato conhecimento à R. e interpelou-a para realizar as reparações necessárias.
6- A R. reconheceu a existência daqueles defeitos mas limitou-se a executar reparações pontuais não tendo efectuado as necessárias à erradicação dos defeitos.
7- O A. consultou uma empresa da especialidade, com vista à definição da extensão e custos dos trabalhos necessários.
8- O A. interpelou de novo a R., enviando-lhe a carta correspondente ao doc. de fls. 9.
9- A fracção aludida em 1) carece das seguintes intervenções:
- Retirar as soleiras existentes e substituí-las por novas, nas janelas e portas;
- Retirar as janelas e portas de alumínio e regularizá-las para poderem receber as novas soleiras.
- Substituição dos vidros duplos nas portas, pela necessidade de as encurtar ligeiramente.
- Impermeabilização das fachadas.
- Reparação e pintura das paredes interiores nas partes afectadas.
- Despolimento do chão de madeira e aplicação de verniz no mesmo.
- Reparação ou substituição dos móveis de cozinha danificados.
- Verificação da vedação do telhado.
10- O custo dessa intervenção ascende a valor não concretamente determinado, mas não inferior a € 20.000,00.
11– Perante os aludidos defeitos, o imóvel não preenche os requisitos de habitabilidade normais e adequados em termos de assegurar, com a qualidade mínima exigível, o gozo a que o prédio se destina.
12- O apartamento ainda não se encontrava completamente concluído quando foi celebrado o contrato promessa.
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2-3- No douto acórdão recorrido, quanto à fundamentação de direito, remeteu-se integralmente para os termos da decisão de 1ª instância. Assim, considerou-se, de essencial, que os factos provados não demonstram a existência do incumprimento definitivo do contrato por banda da R.. Com efeito, não foi inicialmente estipulado qualquer prazo para a celebração do contrato, não houve recusa do cumprimento, também não houve qualquer interpelação admonitória, bem como, marcação da escritura por parte do A. no sentido de converter a mora em incumprimento definitivo. Por isso se concluiu que não se podia aplicar no caso a sanção de restituição do sinal em dobro “cuja atribuição assenta ou tem por base a existência de uma situação de incumprimento definitivo”.
Entendeu-se depois no aresto que pelo facto de não ocorrer a situação de incumprimento definitivo da prestação, tal não significa que o A. não tenha forma de se desvincular da prestação contratual a que se obrigou e, bem assim, de reaver aquilo que já cumpriu previamente à celebração do contrato definitivo. O A. pede subsidiariamente a anulação do contrato, fundando este pedido na circunstância de o imóvel objecto do contrato padecer de defeitos ou vícios que, uma vez não reparados, tornam anulável o negócio. Acrescentou-se que se discute nos autos o cumprimento defeituoso do contrato, cujo regime legal é regulado nos arts. 913º e segs. do C.Civil (diploma de que serão as disposições a referir sem menção de origem). No caso de coisas defeituosas, pode o comprador, nos termos do art. 914º, exigir do vendedor a reparação da coisa ou, tratando-se de coisa fungível, a sua substituição, ou nos termos do disposto nos artigos 913º nº 1 e 905º, se a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim, pode ainda pedir a anulação do contrato por erro ou dolo, desde que no caso se verifiquem os requisitos legais da anulabilidade. Entendeu-se depois, no que toca ao erro, que é incontroverso, a existir, que ele só se poderá subsumir à previsão contida no n º 2 do art. 252º e não à do nº 1 pois que, não incide sobre a pessoa do declaratário nem sobre o objecto do negócio, mas sim sobre a base negocial, ou seja, sobre as circunstâncias concretas em que as partes basearam a sua decisão de contratar. Assente que do contrato promessa celebrado constava que o imóvel a alienar se destinava a habitação do promitente comprador e que este estava, indubitavelmente convencido de que tal imóvel teria todas as condições necessárias para ser afecto a esse fim e que disso deu conhecimento aos representantes da R., conhecendo estes ou não podendo ignorar, que os defeitos que o imóvel enfermava, sem adequadas obras de reparação, que por si não foram efectuadas, o que tornava o imóvel de todo imprestável para o objectivo a que se destinava, que era a de servir de habitação do A.. Assim e de harmonia com o regime fixado no artigo 437º, ex vi do nº 2 do artigo 252º, reconheceu-se ao A. o direito à resolução do negócio visto que as circunstância em que as partes fundaram a decisão de contratar sofreram uma alteração anormal uma vez que a intenção do A. ao adquirir a fracção em causa era a de a destinar à sua própria habitação e que a exigência da obrigação por ele assumida afecta gravemente os princípios da boa-fé e não estando cobertos pelos riscos do negócio. Concluiu-se dizendo que “assim, dúvidas não restam de que, encontrando-se preenchidos todos os pressupostos de cuja verificação depende, assiste ao A. o direito à resolução do contrato em causa nos autos”, pelo que, sendo em conformidade com o disposto no artigo 433º a resolução equiparada à nulidade, anulou-se o contrato em causa nos autos e, em consequência, procedeu-se à condenação acima referenciada, ou seja condenou-se a R. condenado a restituir ao A. valor por si pago, a título de preço sinal e inicio de pagamento pelo imóvel, ou seja, o montante de € 24.939,89.
No recurso, a recorrente, em síntese, sustenta que resulta do Dec-Lei 67/2003 de 8/4 (que transpôs para a ordem jurídica interna a Directiva nº 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 25 de Maio), primeiramente a reparação ou substituição do bem e só depois a redução do preço ou resolução do contrato, razão por que face a esse diploma, não estando esgotada aquela primeira hipótese, não assiste ao A. o direito à resolução do contrato. Também face ao regime previsto no Código Civil para a venda de coisa defeituosa, o direito à reparação ou substituição pressupõe por um lado que a coisa padeça de um vício e por outro, que o vendedor conheça o defeito ou o desconheça com culpa, sendo que não se verificam os vícios a que alude o art. 913º, pelo que anulação do contrato não é possível, nem o comprador pode beneficiar do regime previsto para a venda de coisa defeituosa (art. 913° e segs.) Por outro lado, não resulta dos factos apurados que o vendedor agiu com dolo ou que se verifica uma situação de erro que conceda a faculdade de anulação do contrato, convolando-se o pedido de resolução para anulação. De acordo com o regime geral da resolução previsto no art. 432°, a resolução é possível desde que fundada na lei ou em convenção das partes. A resolução fundada na lei prevista nos arts. 793º e 801° pressupõe a perda de interesse na prestação ou a impossibilidade da prestação, o que no caso presente, também não se verifica, nem resulta da matéria dada por assente. Assim, a decisão recorrida deve ser revogada e, em sua substituição, deve ser proferido acórdão em que se julgue improcedente o pedido formulado pelo A..
Vejamos:
Não existe qualquer dúvida que as partes celebraram um contrato-promessa em relação à fracção autónoma acima identificada, mediante o qual o A. acordou com a R. a compra desse imóvel (art. 410º).
Também não existe dúvida sobre a circunstância, declarada no aresto recorrido, de não ocorrer uma situação de incumprimento definitivo da prestação por parte da R., sendo certo que a recorrente se conformou com a correspondente decisão. Não será possível, assim, aplicar à questão o regime de incumprimento de um contrato-promessa e, portanto, não poderá ser aplicada à R. a sanção própria do incumprimento, a restituição do sinal em dobro, conforme foi pedido pelo A..
No acórdão recorrido entendeu aplicar-se à questão o regime de venda de coisa defeituosa a que aludem os arts. 913º e segs. e consequentemente, atendendo-se à remissão que esta disposição faz para a secção precedente, adoptar o regime estabelecido no art. 905º, considerando o contrato anulável por erro, acabando-se por declarar, nos termos acima referidos, a respectiva nulidade.
Com a celebração do contrato-promessa as partes vincularam-se à concretização do contrato prometido. Como refere Calvão da Silva “o contrato promessa é um contrato autónomo, distinto do contrato definitivo, cuja função consiste em impor a celebração de ulterior contrato definitivo”(1) . O contrato-promessa é a fonte da obrigação de contratar. Num contrato promessa de compra de compra e venda (como sucede no caso), não se produz o efeito translativo da propriedade. Este efeito só se concretizará com a realização do contrato prometido. O contrato promessa ao desencadear a obrigação de contratar, gera o correspondente do direito de crédito da contraparte de exigir o seu cumprimento. Produz, assim, mero efeito obrigacional de realizar o contrato prometido(2). Este, celebrado na sequência da obrigação decorrente do contrato-promessa, é equivalente a um contrato celebrado desde logo sem precedência do contrato-promessa.
Quer dizer, com a celebração do contrato-promessa as partes só lograram vincular a contraparte à realização do contrato prometido, no caso, a compra e venda do imóvel em questão. Como diz Almeida Costa (3) “no contrato-promessa a prestação devida consiste na emissão de uma declaração de vontade negocial destinada a realizar o contrato prometido”. Daqui decorre que, em relação ao cumprimento/incumprimento do contrato-promessa, devem valer primacialmente as normas próprias deste contrato, designadamente as disposições dos arts. 442º e 830º.
O art. 410º nº 1 estabelece que ao contrato-promessa são aplicáveis as disposições legais relativas ao contrato prometido, exceptuadas as relativas à forma e as que, pela sua razão de ser, não se devam considerar extensivas ao contrato-promessa. Estabelece-se aqui o princípio da equiparação, afastando-se as regras relativas à forma e as que pela sua razão de ser, não se devam considerar extensivas ao contrato-promessa.
Para o presente caso, interessa-nos esta segunda excepção a tal princípio de equiparação. Como o estabelecido no art. 410º nº 1 “não distingue, na sua aplicação, entre os requisitos de formação e os efeitos do negócio, são aplicáveis à promessa de venda, com as necessárias adaptações, as regras que na compra e venda se referem à determinação e a redução do preço, à venda de bens alheios, de coisa defeituosa, de bens onerados etc” (4) .
Quer dizer, nos termos do referido art. 410º nº 1 e porque a disposição não distingue entre os requisitos de formação e os efeitos do negócio, face ao dito princípio da equiparação, deve aplicar-se à situação vertente as regras atinentes à venda de coisa defeituosa.
Já se disse que, como decidiram as instâncias, não poderá ser aplicada à R. a sanção própria do incumprimento do contrato-promessa, a restituição do sinal em dobro, conforme foi pedido pelo A.. Mas o A. pediu também, subsidiariamente, a anulação do contrato por venda de coisa defeituosa, tendo as instâncias respondido afirmativamente a esta pretensão.
É sobre esta parte do acórdão que a recorrente mostra o seu inconformismo.
Estabelece o art. 913º nº 1, em relação ao contrato de compra e venda, que “se a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim, observar-se-á, com as devidas adaptações, o prescrito na secção precedente, em tudo quanto não seja modificado pelas disposições dos artigos seguintes”.
Esta norma faz equivaler o vício à falta de qualidade da coisa. Como refere Calvão da Silva (5) em relação a este paralelismo “a lei posterga a definição conceitual e privilegia a idoneidade do bem para a função a que se destina, ciente de que o importante à aptidão da coisa, a utilidade que o adquirente dela espera. Nesta medida, diz o mesmo autor que “diz-se defeituosa a coisa imprópria para o uso concreto a que é destinada contratualmente – função negocial concreta programada pelas partes – ou para a função normal das coisas da mesma categoria ou tipo se do contrato não resultar o fim a que se destina (art. 913º nº 2)”. Pedro Marinez (6) diz que "o defeito da coisa constitui um desvio com respeito à qualidade corpórea que seria devida".
Quer dizer, a coisa será defeituosa quando for imprópria para o uso concreto destinado pelo contrato, ou quando não satisfaça a função normal das coisas da mesma categoria ou tipo (nº 2 do art. 913º).
O vício que haverá, no presente caso, de ponderar, será o que impede a coisa da “realização do fim a que é destinada”, visto que as deficiências verificadas provocam, uma redução da aptidão da casa para o seu uso comum, que é a de proporcionar aos que a habitam, como é notório, uma vivência satisfatória. A este propósito será de sublinhar que o imóvel sofre dos defeitos indicados no nº 9 dos factos dados como provados, donde será possível inferir que a casa carece de condições de habitabilidade adequadas.
Quanto a este aspecto, deu-se ainda como assente que a fracção não preenche os requisitos de habitabilidade normais e adequados em termos de assegurar, com a qualidade mínima exigível, o gozo a que o prédio se destina (facto 11 acima referenciado). Estas circunstâncias, porém, têm conteúdo patentemente conclusivo(7) (8), pelo que terão que se ter como não escritas (arts. 511º, 646º nº 2 e 653º nº 2 do C.P.Civil). Todavia, pese embora esta conjuntura será possível deduzir as precárias condições de habitabilidade da habitação, das deficiências ou defeitos que a mesma apresenta, retratadas no nº 9 dos factos assentes.
Assente que o contrato incidiu sobre a venda de coisa defeituosa, vejamos agora a responsabilidade da demandada.
De harmonia com o disposto no art. 914º “o comprador tem o direito de exigir do vendedor a reparação da coisa ou se for necessário e esta tiver a natureza de fungível, a substituição dela; mas esta obrigação não existe se o vendedor desconhecia sem culpa o vício ou a falta de qualidade de que a coisa padece”.
A razão de ser desta disposição está em que “se deve entender que o vendedor garante tacitamente ao comprador as qualidades da coisa vendida, isto, evidentemente, se o comprador não tinha conhecimento do vício ou da falta de qualidades da coisa”(9).
A parte final do dito art. 914º estabelece que a obrigação de reparação ou de substituição da coisa (se for necessário e esta tiver a natureza fungível), não existe se o vendedor desconhecia, sem culpa o vício da coisa ou a sua falta de qualidade. Afasta-se, assim, a responsabilidade do vendedor, em caso de ausência de culpa da sua parte.
No caso dos autos, através do factualidade provada, não é possível deduzir o desconhecimento dos defeitos por parte da R. vendedora, nem é exequível depreender a sua ausência de culpa dessa ignorância, sendo que a prova desses elementos lhes cabia, de harmonia com o disposto no art. 342º nº 2 (10).
Portanto, a nosso ver, o A. tinha o direito de exigir da R. vendedora a reparação da coisa.
E o certo é que fez essa exigência à R. e que esta realizou reparações mas os defeitos permaneceram (vide factos provados acima referidos sob o nº 6).
Já vimos o que estabelece o art. 913º nº 1. Também já dissemos que o vício em causa no presente caso, será o que impede a coisa da “realização do fim a que é destinada”. Face a esta disposição, o regime a aplicar à situação será o determinado na secção precedente (venda de bens onerados) em tudo quanto não seja modificado pelas disposições dos artigos seguintes.
Quer dizer, deve aplicar-se ao caso, primordialmente, as disposições próprias da venda defeituosa e depois com as devidas adaptações o prescrito para a venda de bens onerados. Como diz Calvão da Silva (11) “desta sorte o comprador de coisa defeituosa goza do direito de anulação do contrato e do direito de redução do preço, nos termos previstos para a venda de bens onerados… Por força da mesma remissão, o comprador da coisa defeituosa goza igualmente do direito à indemnização do interesse contratual negativo…”.
Significa isto que deve ser reconhecido ao comprador, em primeira linha, o direito de exigir do devedor a reparação da coisa ou, se for necessário e esta tiver a natureza fungível, a substituição dela (art. 914º nº 2). Para além deste direito, deve-se reconhecer ao mesmo o direito de anulação do contrato, de redução do preço e da indemnização (pelo interesse contratual negativo)(12).
Nesta conformidade, no caso vertente, de harmonia com o disposto no art. 914º (disposição própria da venda defeituosa) e para o que aqui importa, o A. tinha o direito de reivindicar do vendedor, a reparação da coisa (13). Não poderia, contudo, dado que o bem tem a natureza coisa infungível (vide art. 207º) pedir a substituição do bem. Poderia também, face à remissão para as normas de venda de bens onerados, pedir a anulação do contrato (por erro ou dolo), a redução do preço (quando as circunstâncias do contrato, mostrarem que, sem erro ou dolo, o comprador teria igualmente adquirido os bens, mas por preço inferior -art. 911º-), a indemnização pelo interesse contratual negativo (traduzido no prejuízo que sofreram pelo facto de terem celebrado o contrato) (14).
O A., pediu a reparação do bem, tendo a reparação sido realizada pela R., porém, sem lograr suprimir as suas deficiências.
Face a esta circunstância e mantendo-se a construção com defeitos poderia o A. pedir a anulação do negócio?
É esta a questão essencial que nos é submetida para apreciação.
Decorre do art. 905º (para onde remete o art. 913º, com a necessárias adaptações), para o que aqui interessa, que o comprador, em relação a coisas que sofram de vício que impeça a realização do fim a que é destinada, pode pedir a anulação do contrato por erro ou dolo desde que se verifiquem os requisitos legais de anulabilidade.
Afigurando-se-nos ser de excluir, desde logo, a hipótese de dolo por parte do vendedor (15), teremos agora de verificar se o caso poderá ser subsumível a uma qualquer situação de erro em alguma das suas modalidades.
O art. 917º estabelece prazos para a propositura da acção de anulação por simples erro, contudo sem aplicação ao caso concreto visto que o contrato ainda não se encontra definitivamente concluído. É que, como decorre do disposto no art. 287º nº 2, enquanto o negócio não estiver cumprido, pode a anulabilidade ser arguida sem dependência de prazos (quer por via de acção como por via de excepção).
Voltando à questão do erro parece-nos, como se entendeu na sentença de 1ª instância (para onde o acórdão recorrido remeteu integralmente), que a modalidade de erro a considerar será o erro sobre os motivos a que se refere o art. 252º, mais particularmente, no nº 2 da disposição.
Estabelece esta disposição no seu nº 1 que “o erro que recaia nos motivos determinante da vontade, mas se não refira à pessoa do declaratário nem ao objecto do negócio, só é causa de anulação se as partes houverem reconhecido, por acordo, a essencialidade do motivo”. Acrescenta o nº 2 que “se, porém, recair sobre as circunstâncias que constituem a base do negócio, é aplicável ao erro do declarante o disposto sobre a resolução ou modificação do contrato por alterações das circunstâncias vigentes no momento em que o negócio foi concluído”.
Esta disposição (assim como o art. 251º) trata do chamado erro vício. Como refere Mota Pinto (16) este tipo de erro “traduz-se numa representação inexacta ou na ignorância de uma qualquer circunstância de facto ou de direito que foi determinante na decisão de efectuar o negócio. Se estivesse esclarecido acerca dessa circunstância – se tivesse exacto conhecimento da realidade – o declarante não teria realizado qualquer negócio ou não teria realizado o negócio nos termos em que o celebrou”.
A relevância jurídica deste tipo de erro parte do pressuposto de que, para a validade do acto, deve a vontade das partes ser formada de um “modo julgado normal e são”(17) , ou seja, que essa vontade se estabeleça de forma livre, esclarecida e ponderada. “À liberdade na formação da vontade opõe-se o medo, provocado pela coação moral; ao esclarecimento, o erro, à ponderação, a incapacidade acidental. Erro, medo, incapacidade acidental são os principais tipos de vícios na formação da vontade” (18).
Para o que aqui importa, interessa o erro vício a que acima já aludimos.
A falta de esclarecimento ou uma elucidação deficiente, pode conduzir ao erro. Como diz Carvalho Fernandes “enquanto vício na formação da vontade, o erro consiste no desconhecimento ou na falsa representação da realidade que determinou ou podia ter determinado a celebração do negócio. Essa circunstância pode consistir numa circunstância de facto ou de direito”(19).
Analisando os dispositivos dos arts. 251º e 252º, verifica-se que o erro vício comporta as seguintes modalidades: erro quanto ao objecto, erro quanto à pessoa do declaratário, erro quanto à base do negócio e erro sobre os motivos.
Para o caso dos autos deveremos focarmo-nos no erro quanto à base do negócio, que vem previsto e regulado no nº 2 do art. 252º já acima referenciado. Como refere Carvalho Fernandes (20) “a base do negócio é constituída por aquelas circunstâncias que, sendo conhecidas de ambas as partes, foram tomadas em consideração por elas na celebração do acto e determinaram os termos concretos do conteúdo do negócio”. Ou como diz Castro Mendes (21) “chama-se base do negócio ao conjunto de circunstâncias, conhecidas das partes ou que se pode esperar que o sejam, com fundamento na actual ou superveniente verificação das quais o contrato foi celebrado e que explicam ou justificaram essa celebração nos seus termos concretos”.
Através da remissão do referido art. 252º nº 2 para o art. 437º, concluiu-se que as circunstâncias que devem ser tidas em conta serão aquelas «em que as partes fundaram a decisão de contratar» (vide 1ª parte do art. 437º). Nesta conformidade, de harmonia com estas disposições legais o negócio será anulável (22) (ou modificável segundo juízos de equidade), se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal, desde que a exigência as obrigações por ela assumidas afecte gravemente os princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos do contrato.
No caso dos autos, na douta sentença de 1ª instância para onde o acórdão recorrido remeteu, considerou-se que “estando assente que do contrato promessa em causa constava que o imóvel a alienar se destinava à habitação do promitente comprador e que este estava, indubitavelmente, convencido de que tal imóvel teria todas as condições necessárias para ser afecto a esse fim, e que disso deu conhecimento aos representantes da R. – pois consta do contrato o fim a que se destinava o imóvel -, que também o pretendiam vender para essa finalidade, conhecendo ou não podendo ignorar, que os defeitos que constatou que o mesmo enfermava, e que eram do seu conhecimento, sem adequadas obras de reparação, que por si não foram efectuadas, tornava o imóvel de todo imprestável para o objectivo a que se destinava e que era a de servir de habitação do A., pois que, como resultou demonstrado, com os “aludidos defeitos, o imóvel não preenche os requisitos de habitabilidade normais e adequados em termos de assegurar, com a qualidade mínima exigível, o gozo a que o prédio se destina”.
Parece-nos que estas considerações são correctas, fundando-se em factos que foram dados como assentes (se bem que se deva subtrair, por conclusivas, as circunstâncias referidas no nº 11 dos factos provados, como já se decidiu). Com efeito, provou-se que o contrato promessa em questão teve como objecto a compra e venda de uma habitação do tipo T2, sendo também certo que após a assinatura do contrato promessa a R. facultou ao A. a chave do imóvel, o qual nele passou a habitar. O imóvel, destinava-se pois a habitação do promitente-comprador. Evidentemente que este ao contratar com a R. convenceu-se que a habitação que pretendia adquirir teria todas as condições de habitabilidade, tanto mais que se tratava de um imóvel novo (provou-se que na altura da realização do contrato o imóvel se encontrava em construção – vide facto provado sob nº 1 supra-referenciado -). Por sua vez, a promitente-vendedora não podia desconhecer a finalidade do imóvel, pois no próprio contrato foi exarado que o contrato incidia sobre «uma habitação do tipo T2». Acresce que se provou que o imóvel apresenta defeitos graves (que a R. não suprimiu), perante os quais se pode concluir que a fracção autónoma não preenche os requisitos de habitacionais adequados, pois denota-se que no seu interior entra água e originam-se humidades, não assegurando, assim, as condições para nela se estabelecer uma vivência capaz. Por outras palavras, das deficiências dadas como demonstradas é possível inferir que o imóvel tem defeitos ao nível de impermeabilização e de vedações, designadamente nas janelas e no telhado o que, evidentemente, leva a que no interior dele se possam infiltrar águas e produzir humidades, deficiências que impedem que se estabeleça nele uma vivência condigna e adequada.
Por outro lado, como também se pondera na sentença de 1ª instância, “a intenção do A. ao adquirir a fracção em causa era a de a destinar à sua própria habitação e, se soubesse que o imóvel não reunia as mais elementares condições de adequação à concretização desse fim, não teria realizado o aludido negócio”. Também esta observação nos parece certa, pois como é notório, ao pretender-se adquirir uma habitação nova para aí se viver, ambiciona-se um local com boas condições de habitabilidade e conforto, não passando pela cabeça do pretendente à aquisição que a nova casa não possa reunir as mais elementares condições de habitabilidade, sendo que, se tal pudesse supor, certamente não realizaria o negócio.
Ora, sabendo-se que, nos termos dos referidos arts. 252º nº 2 e 437º nº 1, o interessado tem o direito à anulação do negócio se a circunstâncias em que fundou a decisão de contratar sofram uma alteração anormal (e desde que a exigência da obrigação por ele assumida afecte gravemente os princípios da boa-fé – o que patentemente sucede no caso - e não esteja coberto pelos riscos de negócio(23)), parece-nos evidente que o fundamento de anulação se verifica no caso dos autos.
Por isso, se confirma o douto acórdão recorrido.
No que toca à restituição da quantia em causa e respectivos juros, a recorrente não coloca qualquer questão, pelo que se remete para o que sobre o assunto decidiram as instâncias.
Para terminar, esclareceremos que a recorrente, no fundo, não coloca, através de argumentação jurídica capaz qualquer entrave à fundamentação jurídica da decisão recorrida. Apenas sustenta, em contrário, de útil para o presente caso, que o direito à resolução não ocorre sem que previamente se esgote a via da reparação ou da substituição do bem objecto da venda.
Não aceitamos este modo de ver as coisas como se infere do que acima se referiu, sublinhando-se que foi dada à R. a possibilidade de, num primeiro momento, proceder à eliminação dos defeitos, o que não fez.
Por outro lado, como nos parece claro, o disposto Dec-Lei 67/2003 de 8/4 não tem aplicação ao caso vertente, dado que o diploma versa sobre venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas (vide art. 1º nº 1 do Dec-Lei) (24), o que não se verifica no caso vertente.
O recurso é improcedente.
III- Decisão:
Por tudo o exposto, nega-se a revista, confirmando-se, pelas razões acima mencionadas, o douto acórdão recorrido.
Custas pela recorrente.
*

Supremo Tribunal de Justiça,
Lisboa, 29 de Junho de 2010.
Garcia Calejo (Relator)

Helder Roque

Sebastião Póvoas

______________
(1) In Sinal de Contrato-Promessa, 1988, pág. 178.
(2) Vide a este propósito Calvão da Silva, obra citada, pág. 178. No mesmo sentido Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 9ª edição, pág.335.
(3) In Obrigações, 3ªedição, pág. 287.
(4) Antunes Varela, obra citada, pág. 336.
(5) In Compra e Venda de Coisas Defeituosas, pág. 41.
(6) In Cumprimento Defeituoso, Em Especial Na Compra e Venda e Empreitada, pág. 198.
(7) Serão deduções a retirar de factos provados.
(8) Só devem ser especificados e quesitados factos materiais simples e não juízos conclusivos o de valor extraídos da realidade concreta.
(9) In Compra e Venda, pág. 175.
(10) Vide a este propósito Calvão da Silva, obra referida, pág. 56.
(11) In Obra citada pág. 48.
(12) Vide novamente Calvão da Silva, obra citada pág. 56.
(13) Vide a este propósito Pedro Martinez, obra citada, pág. 338.
(14) Sobre a questão vide o acórdão deste STJ 27-4-2006 em www.dgsi.pt/jstj.nsf.
(15) Patentemente, os factos provados não denunciam a existência por parte do vendedor dessa espécie de culpa, sendo também certo que o A. também não figura a acção com esse pressuposto.
(16) In Teoria Geral do Direito Civil, pág. 386.
(17) Manuel Andrade referenciado por Castro Mendes em Direito Civil, Teoria Geral, Vol. III, 1973, pág. 123.
(18) Castro Mendes, obra indicada, pág.123.
(19) In Teoria Geral de Direito Civil, Vol. II, 2ª edição, pág. 124.
(20) Obra citada, pág. 137.
(21) Obra citada pág. 167.
(22) Pese embora o art. 437º nº 1 fale em resolução, a consequência da invalidade do negócio deve ser a anulação e não a resolução, visto que na base da invalidação está um vício inerente ao negócio, erro – vide a este propósito Castro Mendes, obra referida, pág. 171.
(23) Não constitui claramente risco do negócio a apregoada falta de habitabilidade do imóvel.
(24) Poderá ser aplicado também, com as necessárias adaptações, aos contratos de fornecimento de bens de consumo a fabricar ou a produzir e de locação de bens de consumo – nº 2 do art. 1º do Dec-Lei -, situações que não ocorrem, claramente, no caso dos autos.