Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | SIMAS SANTOS | ||
Descritores: | DEFENSOR OFICIOSO RELATÓRIO SOCIAL INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA | ||
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Nº do Documento: | SJ200305080010913 | ||
Data do Acordão: | 05/08/2003 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | 3 J FIGUEIRA DA FOZ | ||
Processo no Tribunal Recurso: | 99/02 | ||
Data: | 10/02/2002 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REC PENAL. | ||
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Sumário : | 1 - Pode ser nomeado, como defensor em processo crime da competência do tribunal colectivo, um advogado estagiário, não obstante o disposto no art. 164.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, quanto à competência dos advogados estagiários, disposição que não pretendeu tomar posição sobre a questão de saber quem pode ser nomeado defensor num processo crime, mas sim estabelecer, à luz das disposições estutárias, a competência própria dos advogados estagiários.
2 - Perante a constatação de que nada se apurou em sede de julgamento relativamente à personalidade do arguido ou ao meio ambiente e social onde reside, às suas motivações, deveria o Tribunal levar mais longe a indagação em sede de matéria de facto sobre esses elementos, como é consentido n.º 2 do art. 369.º do CPP, declarando reaberta a audiência e procedendo à produção da prova necessária, ouvindo sempre que possível o perito criminológico, o técnico de reintegração social e quaisquer pessoas que possam depor com relevo sobre a personalidade e as condições de vida do arguido. 3 - Tal deficiência consubstancia insuficiência da matéria de facto para a decisão, a declarar oficiosamente pelo Supremo Tribunal de Justiça, acarretando a anulação do acórdão recorrido, para que a 1.ª instância declare reaberta a audiência e proceda à produção da prova necessária. | ||
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Decisão Texto Integral: | Supremo Tribunal de Justiça I 1.1. 1. No dia II de Janeiro de 2002, cerca das 6.30 horas, na recepção da pensão "...", sita na Rua ...., nesta cidade e comarca da Figueira da Foz, o arguido, utilizando uma navalha, encostou-a ao pescoço do dito M, e sob ameaça de o ofender fisicamente, ordenou-lhe a entrega de 5.000$00 e € 15, em dinheiro, o cartão multibanco e uma caderneta, estes emitidos pela CGD, tudo propriedade do ofendido; 2. Receando pela sua integridade física e constrangido com o uso da navalha pelo arguido, o M acedeu a entregar-lhe tais bens e valores em dinheiro, de que o arguido se apossou, fazendo-os seus e ausentando-se com os mesmos do local; 3. O arguido agiu com o propósito, conseguido, de integrar na sua esfera patrimonial os objectos e dinheiro mencionados, que sabia não lhe pertencerem; 4. Fê-lo contra a vontade do dono respectivo, livre, voluntária e conscientemente sabendo da ilicitude da sua conduta; 5. Além dos elementos constantes do seu CRC, nada mais se apurou quanto ao comportamento anterior e posterior aos factos do arguido; 6. Até ao presente o ofendido não se encontra ressarcido do prejuízo causado pelo arguido. 1.2. O Tribunal Colectivo do 3.ª Juízo do Tribunal Judicial da Figueira da Foz, por acórdão de , decidiu, além do mais: Condenar o arguido VMOC, com os sinais dos autos, como autor material de um crime de roubo simples, p. e p. nos termos do artigo 210.º, n.º 1 do C. Penal, na pena de dezoito meses de prisão. II 2.1. Inconformado, recorreu o arguido para este Supremo Tribunal de Justiça A) O recurso que ora apresentamos é, antes de mais, um dever, não só em nome da justa representação dos direitos que ao Recorrente assistem, mas igualmente, a certeza de que a confiança na justiça haverá de atingir-se e manter-se, pelo que, para isso e na situação que ora nos preocupa, a pena aplicada ao arguido VMOC não atinge os fins da sua aplicação e correspondem ao oposto dos fins de punição e prevenção; E) Em relação à pena aplicada ao Recorrente -18 meses de prisão - esta é manifestamente excessiva, tendo em conta que o valor dos bens furtados são de diminuto valor. Pese ainda o facto de o Recorrente, no momento da prática do crime ser toxicodependente, com uma vida familiar muito complicada. C) Cumpre ainda salientar que, o Recorrente, encontra-se num processo de recuperação, estando a fazer um tratamento de desabituação, tendo-o iniciado em Março do presente ano na Unidade de do Serviço de Prevenção da Toxicodependência de Coimbra; e posteriormente, em Abril, iniciou um processo de reinserção social na Instituição ANAJOVEM na cidade de Coimbra. Pelo que, D) Neste momento, está completamente inserido na sociedade, afastado das "drogas", lutando por uma vida digna, e com uma vida familiar e social sólida. Sendo certo que, a aplicação da pena de prisão de dezoito meses terá como efeito, evidente, um retrocesso em todo este processo que ao longo destes meses tem sido levado a cabo. E) A interposição do recurso que ora se assume fundamenta-se em erro de julgamento, por violação da norma contida no artigo 71° do C Penal, para além das normas constitucionais contidas nos art.ºs 13° e 18° da CRP (princípios da igualdade, da justiça e da proporcionalidade). Termos em que e nos que doutamente por Vossas Ex.as forem supridos, deve dar-se provimento ao presente recurso, nos termos conclusivos exarados, por violação dos preceitos legais identificados e outros que do douto suprimento dos Venerandos e Ilustres Juízes Conselheiros resultarem, fazendo-se assim, Justiça. 2.3. Respondeu o Ministério Público, que concluiu: Quanto à questão prévia, I) Ao arguido foi nomeado defensora oficiosa, ainda no âmbito do Inquérito e por indicação da Ordem dos Advogados a Dra. PN, advogada-estagiária, que se manteve nessa qualidade para efeitos de julgamento e actos subsequentes, de acordo com o despacho judicial de fls. 25 e art. 66.º n.º 4 - CPP. Sucede porém que, de acordo com o disposto no art. 164.°, n.º, 2, alínea b) do Estatuto da Ordem dos Advogados (por força da redacção introduzida pelo art. 56.º, n.º, 2 da Lei n.° 30-E/2000 de 20/12, os Advogados-Estagiários não têm competência para intervir nos processos penais do Tribunal Colectivo, cabendo aos próprios Estagiários indicar sempre a sua qualidade quando intervenham em qualquer acto de natureza profissional nos termos do art. 164.°, n.º 3 daquele diploma legal. Quanto à matéria do Recurso, II) As conclusões referidas nos pontos B), C) e D) das alegações do Recorrente e toda a restante matéria com elas relacionada não podem ser tomadas em consideração, uma vez que tem como único suporte os documentos juntos indevidamente às Alegações, que são extemporâneos e por isso legalmente inadmissíveis, uma vez que não foram apresentadas até ao encerramento da audiência de julgamento, nem apreciados pelo Tribunal de primeira instância, nos termos dos art.°s 165.º, n.° 1 e 355.º, ambos do C.P.P.. III) Nada resulta dos autos nem da prova produzida em julgamento que o Arguido tenha cometido o crime "sob efeito de estupefacientes, com maior ou menor lucidez ou consciência do acto que praticava", tratando-se duma mera afirmação gratuita sem qualquer suporte na matéria probatória dada como provada. IV) O facto de se tratar dum roubo não qualificado não lhe retira particular gravidade, já que a moldura penal deste ilícito não assenta propriamente no valor da subtracção dos bens mas na utilização da violência e constrangimento usada contra os ofendidos, sejam estas traduzidas na violação da integridade física ou na segurança das pessoas. V) As razões de prevenção geral que se prendem com a insegurança e alarme social que este tipo de crimes causam na população em geral e no cidadão em particular e as razões de prevenção especial que fazem questionar a real boa formação da personalidade do arguido ao cometer tal crime na pendência da suspensão da pena a que for condenado por outro de natureza idêntica, foram devidamente valorados, atento o disposto no art. 40.º n.º 1 e 71.º, n.º 1 do C.P. VI) Deva assim o arguido ser condenada numa pena de prisão efectiva, uma vez que nada resultou do julgamento que permita sustentar a verificação dos pressupostos previstos no art. 50.º, n.º 1 do C.P.P. e consequente suspensão da pena. Pelo que e consequentemente, sem prejuízo da eventual anulação do julgamento pelos motivos expostos na questão prévia e se assim não se entender deve ser negado provimento ao Recurso interposto, fazendo assim esse Tribunal Superior a habitual Justiça. III Neste Supremo Tribunal de Justiça, o Ministério Público, na vista a que se refere o art. 416.º do CPP, opinou no sentido de que a questão prévia suscitada na resposta à motivação só poderá ser decidida na apreciação do recurso, embora tenha adiantado o entendimento de que tal irregularidade está sanada (art. 62°, 2°, 1.ª parte do CPP), e promoveu a designação de dia para julgamento. O Relator suscitou a questão prévia de insuficiência da matéria de facto para a decisão, pelo que colhidos os vistos legais, vieram os autos à conferência, cumprindo conhecer e decidir. IV E conhecendo. 4.1. Quanto à questão prévia suscitada pelo Ministério Público na 1.ª instância. Dispõe-se efectivamente no art. 164.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, quanto à competência dos advogados estagiários: 1. Durante o primeiro período do estágio, o estagiário não pode praticar actos próprios das profissões de advogado ou de solicitador judicial senão em causa própria ou do seu cônjuge, ascendentes ou descendentes. 2. Durante o segundo período do estágio, o estagiário pode exercer quaisquer actos da competência dos solicitadores e, bem assim: a.) (Revogada) b.) Exercer a advocacia em processos penais, da competência do tribunal singular; c.) Exercer a advocacia em processos não penais cujo valor caiba na alçada dos tribunais de 1ª instância e ainda nos processos da competência dos tribunais de menores; d.) Dar consulta jurídica. 3. O estagiário deve indicar sempre a sua qualidade quando intervenha em qualquer acto de natureza profissional. Com esta disposição não se pretendeu tomar posição sobre a questão de saber quem pode ser nomeado defensor num processo crime, mas sim estabelecer, à luz das disposições estutárias, a competência própria dos advogados estagiários. O que significa que os advogados estagiários não podem ser constituídos nos processos penais da competência do tribunal colectivo ou de júri. Já no que se refere ao elenco das pessoas que podem ser nomeadas defensor em tais processos é outra a disposição aplicável. Com efeito, prescreve o art. 62.º do CPP (na redacção dada DL 30-E/2000, de 20-12), sobre o defensor: 1 - O arguido pode constituir advogado em qualquer altura do processo. 2 - Nos casos em que a lei determinar que o arguido seja assistido por defensor e aquele o não tiver constituído ou o não constituir, o juiz nomeialhe advogado ou advogado estagiário, mas o defensor nomeado cessa funções logo que o arguido constituir advogado. 3 - A nomeação referida no número anterior pode ser feita: a) Nos casos previstos no artigo 64.º, n.º 1, alínea c), pelo Ministério Público ou por autoridade de polícia criminal; b) Nos casos previstos nos artigos 64.º, n.º 3, e 143.º, n.º 2, pelo Ministério Público. 4 - Tendo o arguido mais do que um defensor constituído, as notificações são feitas àquele que for indicado em primeiro lugar no acto de constituição. E na redacção anterior previa esta disposição que «excepcionalmente, em caso de urgência e não sendo possível a nomeação de advogado ou de advogado estagiário, poderá ser nomeada pessoa idónea, de preferência licenciado em direito, a qual cessa funções logo que seja possível nomear advogado ou advogado estagiário.» Pretendeu-se, pois, assegurar ao arguido o defensor melhor apetrechado tecnicamente possível, como demonstra a própria evolução legislativa, mas atendendo às condicionantes de facto. À luz deste preceito, e é ele que dispõe sobre quem pode ser nomeado defensor em processo crime, não merece censura a nomeação de advogada estagiária, mesmo tratando-se de processo da competência de tribunal colectivo. Improcede, assim, esta questão prévia. 4.2. Uma outra questão prévia, deve ser, no entanto, equacionada. Ao entrar na determinação da medida concreta da pena, escreve-se na decisão recorrida: No caso dos autos temos o questionar violento do património da vítima, em moldes que fazem questionar da real boa formação da personalidade do arguido. A defesa da sociedade e das vítimas impõe uma pena que satisfaça, adequada e proporcionadamente, a insegurança que este tipo de conduta acarreta, bem como constitua um aviso solene aos agentes da gravidade e desvalor da sua conduta. Por outro lado, razões pertinentes de reprovação e especial se vislumbram: o total alheamento do Tribunal do arguido e uma já anterior condenação por crime de igual natureza, ocorrendo os factos em apreciação durante o período de suspensão da pena então imposta. Tudo ponderado, e na consideração da medida da pena abstractamente cominada (prisão de um a oito anos) tem-se como ajustada a imposição da pena de dezoito meses de prisão.» Não se reflecte, assim, na dosimetria penal, a personalidade do arguido, as suas motivações, as suas condições pessoais. E da matéria de facto provada consta apenas que: «5. Além dos elementos constantes do seu CRC, nada mais se apurou quanto ao comportamento anterior e posterior aos factos do arguido». Tem este Supremo Tribunal entendido que essa deficiência da matéria de facto pode configurar a insuficiência de matéria de facto. Decidiu que a falta de relatório social, nas situações contempladas no n.º 2 do art. 370.º do CPP, não consubstancia nenhuma das nulidades elencadas nos art.ºs 119.º e 120.º do CPP ou em qualquer outra disposição legal, antes fazendo com que a respectiva decisão final, se condenatória, enferme do vício de insuficiência da matéria de facto provada, determinando o reenvio do processo para novo julgamento, limitado, porém, à determinação da sanção (Ac. do STJ de 18-09-1997, Acs STJ V, 3, 176). A falta de relatório social - independentemente de ser ou não de solicitação obrigatória - pode fundamentar o vício indicado no art.º 419.º, n.º 2, alínea a), do CPP: insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, esta a conhecer oficiosamente (Acs. do STJ de 12-11-1997, proc. n.º 935/97, de 11-03-1998, proc. n.º 1530/9,7 de 28-10-1998, proc. n.º 887/98). Não constando do acórdão recorrido os elementos indispensáveis para a determinação do regime e da pena a aplicar ao arguido (factos sobre a personalidade daquele, a sua inserção familiar e sócio-familiar, a sua condição pessoal e situação económica, a sua conduta anterior e posterior e os motivos que determinaram o cometimento do crime), a falta de relatório social, a solicitar em obediência ao preceituado no art. 370, do CPP, fundamenta o vício indicado no art. 410.º, n.º 2, al. a), do referido código: insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, e determina o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos dos art.s 426.º e 436.º, do mesmo diploma (Acs. do STJ de 11-03-1998, proc. n.º 1530/97, de 08-02-1999, proc. n.º 1379/98). V Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em anular a decisão recorrida, devendo o tribunal recorrido levar mais longe a indagação em sede de matéria de facto sobre esses elementos atinentes à determinação da medida da pena, declarando reaberta a audiência (n.º 1 do art. 371.º do CPP) e procedendo à produção da prova necessária, ouvindo sempre que possível o perito criminológico, o técnico de reintegração social e quaisquer pessoas que possam depor com relevo sobre a personalidade e as condições de vida do arguido, como dispõe o n.º 2 do art. 371.º. Sem custas. Lisboa, 8 de Maio de 2003 Simas Santos Santos Carvalho Costa Mortágua |