Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06B3267
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: JOÃO BERNARDO
Descritores: MATÉRIA DE DIREITO
MATÉRIA DE FACTO
Nº do Documento: SJ200611020032672
Data do Acordão: 11/02/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : A expressão " no interesse, por conta e sob a direcção da proprietária" basta para integral factualmente a relação de comissão a que alude o artigo 503º , nº3 do Código civil.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I -
No Tribunal Judicial da Comarca de Peso da Régua, AA intentou acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra:
A Companhia de Seguros Empresa-A

Pediu a condenação desta pagar-lhe € 20.788,85 de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento, tudo reportado a danos por ele sofridos em acidente de viação cujos contornos descreve.

A Ré contestou, sustentando que foi o autor o responsável pelo acidente que invoca.

Na altura própria, foi proferida sentença.
Com a consideração da culpa presumida e atenta a verificação dos demais pressupostos da responsabilidade civil, foi a ré condenada a indemnizar o autor em € 7.995,59, acrescidos de juros.

Apelou a condenada, mas malogradamente, porquanto o Tribunal da Relação do Porto confirmou o decidido.

II -
Deste Acórdão traz ela a presente revista, concluindo as alegações nos seguintes termos:

1. - O Autor não alegou - e não provou - quaisquer factos objectivos donde se pudesse concluir pela existência duma relação de "comissão", aquando do sinistro.
2. - O Autor apenas alegou - o que foi levado à Especificação - que o RO propriedade de Empresa-B, era conduzido, na altura, por BB, no interesse, por conta e sob a direcção da citada sociedade.
3. - Expressão esta que é meramente conclusiva, contendo em si mesma apenas conceitos de direito. Não sendo aceitável, nem legítimo partir-se de tal expressão para a conclusão da existência, in casu, de uma relação de "comissão".
4. - Não tendo sido feita a prova da questionada relação de "comissão" não pode ser imputada ao condutor do veículo, segurado na recorrente, a responsabilidade pela eclosão do acidente, ainda que em sede de culpa presumida.
5 . - O Douto Acórdão do Venerando Tribunal da Relação do Porto, mantendo o decidido pela 1.ª Instância, não fez a melhor interpretação, violando, do disposto nos art.ºs 342°/1 e 503°/3 do Código Civil.
Termos em que, e nos demais do douto suprimento de V. Ex.as, no deferimento da Revista, devem ser revogadas as decisões anteriormente proferidas, proferindo-se não menos douto Acórdão que absolva a recorrente do pedido de indemnização contra si formulado.

Contra-alegou o A., pugnando pela manutenção do decidido.

III -
Ante as conclusões das alegações, importa tomar posição sobre se a expressão "no interesse, por conta e sob a direcção da proprietária" basta para integrar a relação de comissão a que alude o artigo 503.º, n.º 3 do Código Civil.

IV -
Das instâncias vem provada a seguinte matéria de facto:

a) No dia 14/09/2001, na EN que liga Peso da Régua a Vila Real, no lugar do Juncal de Cima, freguesia do Corgo, verificou-se um acidente de viação em que foram intervenientes o motociclo de matrícula PH, conduzido pelo autor, seu proprietário, e o veículo ligeiro de mercadorias, de matrícula RO, propriedade de Empresa-B, e conduzido por CC, no interesse, por conta e sob a direcção da proprietária.
b) O motociclo de matrícula PH seguia pela referida EN no sentido Vila Real - Peso da Régua.
c) A Companhia de Seguros Empresa-A declarou, por escrito consubstanciado na apólice n.º 6779672, em vigor na data referida em a), assumir o encargo de responder pelos danos causados a terceiros pela circulação do veículo de matrícula RO.
d) O embate (entre o PH e o RO) ocorreu junto ao restaurante "A Régua", à entrada de um largo que existe à frente do mesmo e que serve de local de estacionamento de viaturas (resp. ao ques. 1.º da base instrutória).
e) Instantes antes do embate, o veículo de matrícula RO havia circulado no sentido Peso da Régua - Vila Real (resp. ao ques. 3°).
f) Em consequência do referido embate, o autor foi transportado de ambulância para o Hospital de Peso da Régua (resp. ao ques. 13°).
g) À noite, e em virtude de sentir dores na perna esquerda, o autor teve de se deslocar novamente ao referido Hospital, tendo sido encaminhado para o Hospital de Lamego (resp. ao ques. 14°).
h) Neste último, foi submetido a exame radiológico à referida perna, tendo sido diagnosticada uma fractura no tornozelo (resp. ao ques. 15°).
i) Em consequência de tal fractura foi aplicado gesso na referida perna do autor, o qual o manteve até 15/10/2001, data em que lhe foi retirado (resp. ao ques. 16°).
j) No período referido em i), o autor só se deslocava com a ajuda de canadianas (resp. ao ques. 17°).
l) Em consequência dessa imobilização o autor sentiu tristeza (resp. ao ques. 18°).
m) Quando há alterações climatéricas o autor sente ligeiras dores no referido tornozelo (resp. ao ques. 20°).
n) Em virtude do embate, o PH sofreu danos cuja reparação importa em € 900,63 (resp. ao ques. 21°).
o) À data do acidente, o autor estava contratado para começar a trabalhar na Ecovini, pelo período de seis meses, e ia auferir € 349,16 por mês (resp. ao ques. 22°).
p) O autor perdeu o referido emprego em virtude das lesões supra referidas (resp. ao ques. 23°).
q) Tendo ficado desgostoso (resp. ao ques. 24°).

V -
A questão levantada no presente recurso não é tão linear como o seu enunciado.
Mexe, efectivamente, com um dos alicerces do nosso processo civil, consistente na distinção entre matéria factual e matéria jurídica.
Vem de longe esta distinção, que encontrou eco nos processualistas portugueses e tradução em muitas disposições legais, nomeadamente nos artigos 511.º , 653.º e 659.º, n.º2 do Código de Processo Civil. (1)

VI -
Mas o deificar desta distinção levanta duas questões de grande dificuldade:

Uma, porque, embora se possa falar de "linguagem jurídica", as línguas não contêm palavras específicas para a designação da esmagadora maioria dos conceitos legais. Socorre-se, então, o legislador de termos também usados na linguagem vulgar, como "comprar", "vender", "cumprir", gerando-se, por aí, uma confusão terminológica com a redacção dos factos.
Outra, porque passou a poder-se sustentar que qualquer conceito jurídico, por mais acessível que seja, terá de ter uma referência factual subjacente. Fala-se, então, em que a referência jurídica é apenas uma "conclusão". (2)

VII -
Paralelamente e concatenada com estas questões, surge outra consistente em saber até que ponto se devem decompor os conceitos factuais em ordem a não se discutirem conclusões, ainda no âmbito da matéria de facto. (3)

VII -
Estas dificuldades foram abordadas por Manuel de Andrade (NEPC, 187) em termos que entendemos dever trazer para aqui, apesar da acessibilidade da obra:
"O questionário deve conter só matéria de facto. Deve estar rigorosamente expurgado de tudo quanto seja questão de direito; de tudo quanto envolva noções jurídicas (v.g. a de ofensa grave, nas acções de divórcio; a de posse de estado ou a de convivência notória como marido e mulher, nas acções de investigação de paternidade). Os factos materiais que possam interessar a estas noções é que devem ser quesitados... Por vezes o mesmo termo é usado na linguagem jurídica e na linguagem comum. Na formulação do questionário deve arredar-se o emprego desses termos. Quando todavia lá figure algum deles, deve entender-se que foi tomado no seu sentido vulgar, pelo menos quando este seja (como tal) bem claro e preciso. Assim os termos "pagar", "emprestar", "vender", etc.
E também Anselmo de Castro (Direito Processual Civil, III, 269) refere que " são ainda de equiparar aos factos, os juízos que contenham subsunção a um conceito jurídico geralmente conhecido; por outras palavras, os que, contendo a enunciação do facto pelos próprios caracteres gerais da lei, sejam de uso corrente na linguagem comum, como "pagar", "emprestar", "vender", "arrendar", "dar em penhor", etc.
"Poderão então figurar, nesses próprios termos, devendo tomar-se no sentido corrente ou comum, ou no próprio sentido em que a lei os tome, quando coincidente, desde que as partes não disputem sobre eles, podendo ainda figurar sempre na especificação e ainda no questionário quando não constituam o próprio objecto do quesito."

VIII -
A primeira das ideias veiculadas diz respeito à confusão de que falámos em VI.
Nos casos em que a mesma palavra tem um sentido vulgar e outro jurídico deve, se disser respeito a alegação ou fixação factual, ser entendida no seu sentido vulgar. Sendo assim, pode dar-se o caso de conceitos jurídicos, pela sua vulgaridade e pela vulgaridade das palavras que os traduzem, poderem ser preenchidos por termos, agora com sentido vulgar, idênticos.

A segunda, vertida pelo Prof. Anselmo de Castro tem, a nosso ver, enorme importância, em questões como a eficiência processual e até a sua celeridade.
Na verdade, perante um conflito que vai desaguar em litígio judicial, há que levar a cabo uma operação de circunscrição tão nítida quanto possível, em ordem a que a discussão se situe apenas na zona circunscrita. Esta operação deve enformar logo os articulados, mas também deve estar prementemente presente no traçado que o juiz, nomeadamente através da selecção da matéria de facto assente e da base instrutória, imprime ao processo.

Levada a cabo a circunscrição, logo vemos que tem de se ser muito menos exigente, quanto à "pureza" da redacção factual na parte que está de fora e que serve apenas para situar o conflito do que relativamente aos factos próprios deste.
Se assim não se pensar, à delicadeza que sempre encerra a resolução dum conflito acrescentamos complicação particularmente acrescida e afastamo-nos, negligentemente, dos objectivos de justa composição do litígio que as partes pretendem. Violando o princípio da celeridade que o artigo 266.º, n.º1 do Código de Processo Civil contempla.

IX -
Mas mesmo entre muros da factualidade que caracteriza o conflito, onde a pormenorização e o afastar dos conceitos jurídicos deve ser mais premente, há que atender a que o arredar das conclusões de que falámos em VII deve ser entendido em termos de razoabilidade. De outro modo, num caso como de dano em automóveis, havia o autor que enumerar cada peça danificada, cada preço de reparação dela, para só então, se poder calcular o prejuízo global. É que, a globalização do preço da reparação corresponde a uma conclusão traduzida pela soma aritmética.
Atribuía-se aos articulados uma premência de gongorismo, com perdas imensas de eficiência e celeridade processuais sempre a determinarem o afastamento da prossecução dos fins do processo e do almejado pelas partes.

X -
De tudo o que vimos expondo, só resulta desfavorabilidade para a recorrente.
O Sr. Juiz logo levou à alínea A da Matéria de Facto Assente que o Heitor Pereira conduzia o veículo "no interesse, por conta e sob a direcção" da proprietária.
Situou, assim, esta afirmação fora da circunscrição onde se situava o conflito. Servia a mesma apenas como estribo para nele assentar a discussão.
As exigências de "pureza " terminológica eram bem menores.
Depois, estas palavras são palavras vulgares, perceptíveis perfeitamente por quem não tenha formação jurídica. Devem ser, pois, entendidas como encerrando uma realidade factual que, depois, se vai subsumir nas normas interessantes, as quais, coincidentemente, empregam algumas delas.
Finalmente, a decomposição em factos mais simples não se pode considerar razoável. Como refere Sofia Galvão (Reflexões Acerca da Responsabilidade do Comitente no Direito Civil Português, 104) "o serviço ou a actividade (realizados por conta de outrem) pode consubstanciar-se em qualquer contrato, nominado ou não, ou resultar de uma situação jurídica mais complexa". A panóplia de hipóteses é de tal modo vasta que impenderia sobre o autor uma investigação circunstanciada e o risco de perda do seu direito a ser indemnizado se viesse a falhar na aposta factual que fizera.

XI -
Nestes termos, nega-se a revista, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 2 de Novembro de 2006
João Bernardo (Relator)
Abílio de Vasconcelos
Duarte Soares
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(1) A distinção entre matéria de facto e matéria de direito assumiu, assim, entre nós, uma importância que não terá em outros países. Veja-se, a título de exemplo, o capítulo referente à forma e conteúdo da sentença, a páginas 305 do Direito Processual Civil de Othmar Jauernig, edição da Almedina, mormente a parte relativa à "exposição" e aos "fundamentos da decisão" e compare-se com o texto português correspondente.
(2) Esta designação de "conclusão" com este sentido não é, a nosso ver, correcta. A conclusão é o resultado dum raciocínio lógico que se pode situar apenas em sede factual ou apenas em sede jurídica e que não corresponde ao caminho que se segue com a subsunção factual em conceitos jurídicos.
(3) Outras questões surgem a propósito dos factos, mas aqui só nos interessa a da necessidade de decomposição evitando factos conclusivos. " A prova ... só pode ter por objecto factos positivos, materiais e concretos; tudo o que sejam juízos de valor, induções, conclusões, raciocínios, valorações de factos é actividade estranha e superior à simples actividade instrutória" - Alberto dos Reis Código de Processo Civil Anotado, III, 212.