Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
51/20.9PAOER-A.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: LOPES DA MOTA
Descritores: RECURSO DE REVISÃO
RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
INCONCIABILIDADE DE DECISÕES
MATÉRIA DE FACTO
Data do Acordão: 01/17/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE REVISÃO
Decisão: PROCEDÊNCIA /DECRETAMENTO TOTAL
Sumário :
I. O direito à revisão de sentença condenatória com consagração no artigo 29.º, n.º 6, da Constituição, efetiva-se por via de recurso extraordinário que a autorize (art.ºs 449ss do CPP), possibilitando a quebra do caso julgado de sentenças condenatórias que devam considerar-se injustas por ocorrer motivo dos taxativamente previstos na lei. O juízo de grave dúvida sobre a justiça da condenação, que justifica a realização de novo julgamento, sobrepõe-se à eficácia do caso julgado, em homenagem às finalidades do processo – a realização da justiça do caso concreto, no respeito pelos direitos fundamentais –, desta forma se operando o desejável equilíbrio entre a segurança jurídica da definitividade da sentença e a justiça material do caso.

II. O fundamento de revisão de sentença previsto na al. c) do n.º 1 do art. 449.º do CPP contém dois pressupostos, de verificação cumulativa: a inconciliabilidade entre os factos que serviram de fundamento à condenação e os dados como provados noutra sentença e dessa oposição resultarem dúvidas graves sobre a justiça da condenação.

III. O fundamento do recurso diz respeito a matéria de facto, da qual a lei apenas elege os factos relativos à determinação da culpabilidade (artigo 368.º do CPP), que fundamentam a condenação, ou seja, os factos que se compreendem no objeto do processo, definido pela acusação (artigo 283.º do CPP) ou pela pronúncia (artigo 308.º do CPP) e que justificam a aplicação da pena.

IV. Os factos provados na sentença recorrida, proferida nestes autos, por cuja prática foi aplicada ao arguido uma pena de multa pela autoria de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, são inconciliáveis com os posteriormente dados como provados no processo n.º 41/19.0…, em que outro arguido foi condenado pelos mesmos factos e pelo mesmo crime e no qual foi também dado como provado um crime de falsas declarações por se ter identificado perante o agente da PSP com os elementos de identificação do arguido destes autos.

V. A condenação posterior do arguido no processo n.º 41/19.0… – por condução do mesmo veículo automóvel, no mesmo dia, hora e local – por que o arguido destes autos havia sido condenado não é conciliável com esta condenação; os mesmos factos, nas mesmas circunstâncias, na impossibilidade material de uma execução conjunta, não poderiam ter sido praticados simultaneamente pelos dois arguidos.

VI. Mostram-se, assim, verificados os pressupostos da revisão requeridos pela alínea c) do n.º 1 do artigo 449.º do CPP, justificando-se a autorização da revisão, em consequência do que, nos termos do artigo 458.º do CPP, se anulam as duas decisões condenatórias, para se proceder a julgamento conjunto dos dois arguidos.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:


I. Relatório

1. O Ministério Público, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 449.º, 1, alínea c), 450.º,1, a), 451.º, 452.º, e 454.º, do Código de Processo Penal, interpõe recurso extraordinário de revisão da sentença condenatória proferida a 18.08.2020, no processo n. º 51/20.9PAOER do Juízo Local Criminal de ..., Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, transitada em julgado a 30.09.2021, em que foi condenado AA, pela prática, em 10.08.2020, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art.º 292.º nº. 1 do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de € 6 (seis euros), o que perfaz € 600,00 (seiscentos euros) e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados de qualquer categoria pelo período de 4 (quatro)meses e 15 (quinze) dias.

2. Apresenta requerimento com motivação de que extrai as seguintes conclusões:

«I. Nos presentes autos, com o número 51/20.9PAOER, por sentença transitada em julgado a 30.09.2021, foi AA condenado nos presentes autos pela prática em 10-08-2020 de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artº 292º nº 1 do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de € 6 (seis euros), o que perfaz € 600,00 (seiscentos euros) e nos termos do art.º 69º nº 1 al. a) do Código Penal, na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados de qualquer categoria pelo período de 4 (quatro) meses e 15 (quinze) dias.

II. Para tanto, foi dado como provado que AA, filho de BB e de CC, natural de ..., nascido a ........1989, servente de ..., residente em Impasse ..., n.º 4, 2º esqº, em ..., «No dia 10 de agosto de 2020, cerca das 00h18, na Rua ..., em ..., [o arguido] conduziu o veículo automóvel ligeiro de passageiros, com a matrícula ..-UI-.., com uma TAS de, pelo menos, 1,387g/l, deduzido o erro máximo admissível. [O arguido] agiu de forma livre, voluntária e consciente, não se tendo abstido de conduzir o veículo automóvel na via pública depois de ter ingerido bebidas alcoólicas em quantidade tal que sabia que lhe determinava necessariamente uma taxa de álcool no sangue superior a 1,2 g/l. [O arguido] sabia que a sua conduta era proibida por lei e criminalmente punível.

III. No processo 41/19.0..., por acórdão transitado em julgado a 09.02.2023, DD foi condenado por, além do mais,

«(...)

i. na pena de 10 (dez) meses de prisão pela prática de cada um dos 12 (doze) crimes de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3º, n.ºs 1 e 2 do DL n.º 2/98, de 03.01, por que vinha acusado, cometidos em 04.10.2017, 22.11.2017, 23.11.2017, 06.03.2018, 19.03.2018, 29.04.2018, 24.01.2020, 12.10.2020, 16.11.2020, 14.04.2018, 10.08.2020 e 01.01.2021, respetivamente;

(...)

iii. na pena de 9 (nove) meses de prisão e na sanção acessória de proibição de conduzir todo e qualquer veículo motorizado de circulação terrestre pelo período de 2 (dois) anos, pela prática, em 10.08.2020, de 1 (um) crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 292º, n.º 1, e 69º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal, por que vinha acusado;

(...)

v. na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses pela prática de cada um dos 9 (nove) crimes de falsas declarações, p. e p. pelo art.º 348ºA, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, cometidos pelo Arguido nos dias 04.10.2017, 06.03.2018, 25.03.2019, 24.01.2020, 12.10.2020, 16.11.2020, 14.04.2018, 10.08.2020 e 01.01.2021, respetivamente;»

IV. Para tanto, foi dado como provado, além do mais, o seguinte:

«1) O Arguido conhece e é amigo de AA, desde pelo menos 2012, razão pela qual sabe o seu nome completo e a sua data de nascimento, sabendo, também, que este reside em ..., raramente se deslocando a Portugal;

2) O Arguido DD (doravante “DD”) não foi, nem é titular de carta de condução, ou de qualquer outro título válido, que o habilite à condução de veículos automóveis na via pública;

(…)

4) Sendo que decidiu, igualmente, que, caso fosse abordado pelos senhores agentes da Polícia de Segurança Pública e/ou militares da Guarda Nacional Republicana, transmitiria a estes, como sua, a identificação de AA, a fim de não sofrer quaisquer consequências que eventualmente pudessem advir das fiscalizações de trânsito a que fosse sujeito;

5) Decidiu, ainda, que sempre que fosse abordado pelas autoridades policiais, nas situações em que se visse envolvido como suspeito, lhes transmitiria os dados de identificação de AA(...)

6) Assim aconteceu nas seguintes ocasiões:

(…)

L. Auto de notícia por detenção com o NUIPC 51/20.9PAOER:

63) Também em 10.08.2020, cerca das zero horas e dezoito minutos, o Arguido seguia ao volante do veículo automóvel com a matrícula ..-UI-.., na Rua Alto ... em ..., sem que fosse titular de licença para o exercício da condução na via pública;

64) Acontece que o Arguido, momentos antes de iniciar a condução, ingeriu bebidas alcoólicas que lhe provocaram uma TAS de 1,387 g/l, correspondente à TAS de 1,460 g/l registada, deduzido o valor do erro máximo admissível;

(...)

67) Nas mesmas circunstâncias de tempo e de lugar, ao ser abordado pelo agente da Polícia de Segurança Pública EE, que se encontrava devidamente uniformizado, em exercício de funções, o Arguido, que seguia ao volante do referido veículo automóvel com a matrícula ..-UI-.. na referida artéria, não tinha os documentos de identificação na sua posse, nomeadamente passaporte, cartão de cidadão ou a carta de condução, sendo que se identificou como AA(...);

68) Acreditando que a pessoa que se lhe apresentava e que tinha à sua frente era AA, o agente da Polícia de Segurança Pública EE lavrou o auto de notícia com o NUIPC 51/20.9PAOER, identificando no mesmo, como suspeito intercetado AA;(...)»

V. Conforme resulta ainda do acórdão condenatório prolatado no processo 41/19.0..., aí se deu como provado que o mesmo DD procedeu de forma idêntica nos dias 04.10.2017 (processo 156/17.3...; factos provados 7 a 11), no dia 22.11.2017 (Aviso de apresentação de documentos n.º ..97/2017; factos provados 12 a 16), no dia 23.11.2017 (Aviso de identificação n.º 1, NPP ...; factos provados 17 a 21), 06.03.2018 (Auto de contraordenação n.º .......20; factos provados 22 a 26); Auto de identificação n.º 1, NPP ...; factos provados 27 a 31), 29.04.2018 (Aviso de apresentação de documentos n.º ...53; factos provados 32 a 36), 25.03.2019 (Participação com o NPP ...; factos provados 37 a 40), 24.01.2020 (Auto de contraordenação n.º .......65; factos provados 41 a 45), 12.10.2020 (Auto de contraordenação n.º .......99; factos provados 46 a 50), 16.11.2020 (Autos de contraordenação n.º .......92 e .......06; factos provados 51 a 55); 14.04.2018 (Auto de notícia por detenção NUIPC 450/18.6...; factos provados 56 a 62), 01.01.2021 (Auto de notícia por detenção NUIPC 4/21.0...; factos provados 70 a 76).

VI. Também no mesmo Acórdão condenatório, proferido no processo 41/19.0... se deu como provado que no dia 11.01.2021, DD tinha na sua residência, sita em Rua Impasse ..., n.º 4, 2.º esquerdo, em ..., no interior do seu quarto os seguintes documentos (facto provado 80):

«a. aviso de apresentação de documentos n.º 2297/2017 (com Processo: 4/19.0... duplicado), da Polícia Municipal da ..., datado de 22.11.2017, em nome de AA e assinado com o nome deste;

b. aviso convocatória da PSP de ..., em nome de AA, datado de 23.04.2018;

c. notificação de multa em nome de AA, relativo ao processo 450/18.6... do Juiz 2, do Juízo de Pequena Criminalidade de ...;

d. aviso de apresentação de documentos n.º .....53 (com duplicado), da Guarda Nacional Republicana – Destacamento de Trânsito de ..., datado de 29.04.2018, em nome de AA e assinado com o nome deste;

e. notificação de auto de contra-ordenação n.º .......65, inerente ao auto .......65, da Guarda Nacional Republicana, datado de 24.01.2020, assinado com o nome de “AA”;

f. auto de apresentação de documentos inerente ao auto .......65, da Guarda Nacional Republicana – Destacamento de Trânsito de ..., com a identificação de AA, como condutor da viatura matrícula ..-FG-.., em 24.01.2020, assinado com o nome “AA”;

g. Guia de substituição de documentos inerente ao auto .......65, assinado com o nome AA;

h. cópia de notificação da PSP de ..., no âmbito do NUIPC 51/20.9PAOER, para teste quantitativo de alcoolemia de AA, datado de 10.08.2020;

i. auto de constituição de arguido de AA sob o NUIPC 51/20.9PAOER, efetuado pela PSP de ..., em 10.08.2020, assinado com o nome “AA”;

j. termo de identidade e residência em nome de AA, sob o NUIPC 51/20.9PAOER, efetuado pela PSP de ..., em 10.08.2020, assinado com o nome AA; e

k. cópia de notificação para presença nos serviços do Ministério Público de Oeiras, em 11.08.2020, de AA, no âmbito do processo com o NUIPC 51/20.9PAOER;».

VII. Apenas com o trânsito em julgado do acórdão condenatório proferido no processo 41/19.0..., conforme certidão que se junta, se logrou apurar os factos tal qual os mesmos ocorreram e, assim, a correta identificação do arguido, que se veio a apurar não ser o aqui condenado AA, mas sim DD.

VIII. Os factos dados como provados no processo 41/19.0... são absolutamente inconciliáveis com aqueles dados como provados nos presentes autos, resultando dos mesmos a injustiça da condenação de AA nos presentes autos.

IX. A inconciliabilidade da matéria de facto dada como provada em cada um dos processos é fundamento para a revisão da sentença proferida nos presentes autos, nos termos do disposto no artigo 449º, 1, alínea c), 459º e 461º, todos do Código de Processo Penal.

Termos em que se pugna pelo provimento do presente recurso, e consequentemente seja autorizada por V. Exas. a requerida revisão da sentença proferida nos presentes autos.»

3. O processo foi remetido a este Supremo Tribunal de Justiça acompanhado de informação da Senhora Juíza do processo, nos termos do artigo 454.º do CPP, do seguinte teor:

«No cumprimento do disposto no art.º 454º do CPP, entende-se que assiste razão ao Digno Recorrente, porquanto da análise das sentenças proferidas nos processos 51/20.9PAOER e 41/19.0..., afere-se que dois arguidos distintos (AA e DD respectivamente) foram condenados pela prática de crime idêntico (condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 292º, n.º 1, e 69º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal), praticado no mesmo dia, hora e local (no dia 10 de agosto de 2020, cerca das 00h18, na Rua Alto ..., em ...), verificando-se ter ocorrido uma clara divergência no que respeita à identidade de AA, a qual resultou exclusivamente da conduta do arguido DD, conforme resulta do teor da sentença proferida no processo 41/19.0...

Face ao exposto, é nosso entendimento que o presente recurso merece provimento.»

4. Recebido, foi o processo com vista ao Ministério Público, nos termos do artigo 455.º do CPP, tendo o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitido o seguinte parecer:

«Decisão revidenda.

Sentença de 18.08.2020, proferida no PS 51/20.9PAOER, do Juízo Local Criminal de ..., Juiz-2, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, por cujos termos o arguido em questão foi condenado, com trânsito em julgado em 30.09.2021:

Pela prática, em autoria material, no dia 10.08.2020, de um crime de “condução em estado de embriaguez”, p. e p. nas disposições dos arts. 69º/1-a) e 292º do Código Penal, além do mais, na pena de 100 dias de multa, 6.00€, no total de 600.00€, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados de qualquer categoria pelo período de 04 meses e 15 dias (Certidão, xxxx17.02.2023, ...98).

Fundamento da Revisão.

Disposição do art. 449º/1-c) do Código de Processo Penal: Os factos que servirem de fundamento à condenação forem inconciliáveis com os dados como provados noutra sentença e da oposição resultarem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.

Decisão-fundamento:

Acórdão de 16.12.2022, proferido no PCC 4/19.0..., do Juízo Central Criminal de ..., Juiz-3, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, por cujos termos o ali arguido, DD, foi condenado, com trânsito em julgado em 09.02.2023:

Pela prática, além do mais, em autoria material e concurso efectivo, também no dia 10.08.2020:

De um crime de “condução de veículo sem habilitação legal”, p. e p. na disposição do art. 3º/1 e 2 do DL- 2/98, de 03.01, na pena de 10 meses de prisão;

De um crime de “condução de veículo em estado de embriaguez”, p. e p. nas disposições dos arts. 69º/1-a) e 292º do Código Penal, na pena de 09 meses de prisão e na sanção acessória de proibição de conduzir pelo período de 02 anos;

De um crime de “falsas declarações”, p. e p. na disposição do art. 348º-A/1 e 2 do Código Penal, na pena de 01 ano e 06 meses de prisão (Recurso, certidão, págs. 72ss).

[…]

Mérito do recurso.

1. Resulta da jurisprudência comum do STJ a concepção de que o recurso extraordinário de revisão se constitui, na sua etiologia, como um meio extraordinário de reacção contra sentenças (ou despachos) transitadas em julgado nas situações em que a virtual imodificabilidade do decidido daria cobertura a erro ou injustiça clamorosos, ético-socialmente inaceitáveis – porque contra a “consciência axiológica geral”.

2. O instituto do caso julgado – não sendo um fim em si mesmo, mas gozando de um suporte teleológico (como toda a juridicidade, decorrente de princípios ou de normas positivadas) – tem, pois, por escopo conceder estabilidade à decisão judicial, em nome do valor da segurança jurídica, que, no entanto, não é um bem absoluto (o Direito é avesso ao Absoluto), pois que há-de coexistir, numa equação de “concordância prática”, com o valor da Justiça, e perante o qual há-de ceder se o âmago da sua realização resultar intoleravelmente afectado.

3. Nesse pressuposto, a disposição do art. 449º/1 do Código de Processo Penal, precipitado lógico-positivado em sede ordinária do preceito do art. 29º/6 da Constituição da República, consagra, nomeadamente, que: A revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando:

c) Os factos que servirem de fundamento à condenação forem inconciliáveis com os dados como provados noutra sentença e da oposição resultarem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.

4. É este, precisamente, o fundamento de revisão formalmente invocado pelo recorrente, Ministério Público, em benefício do arguido:

No caso em apreço, e conforme se extrai do teor do Acórdão condenatório proferido no processo 41/19.0..., no dia, hora e local que nos presentes autos se deu como provado que AA havia praticado o crime de condução de veículo em estado de embriaguez, provou-se que, afinal, havia sido DD quem ali havia praticado os factos em apreço, além de outros, como os integrantes do crime de falsas declarações (por se ter identificado como AA).

Temos, assim, que em dois processos distintos (51/20.9PAOER e 41/19.0...) se deu como provado que no dia 10 de agosto de 2020, cerca das 00h18, na Rua ..., em ..., [o arguido] conduziu o veículo automóvel ligeiro de passageiros, com a matrícula ..-UI-.., com uma TAS de, pelo menos, 1,387g/l, deduzido o erro máximo admissível. Sendo que o arguido identificado e condenado nos presentes autos é AA, e no processo 41/19.0... o arguido a quem é imputada a prática desses mesmos factos é DD.

Ou seja, o mesmo crime, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar imputado a diferentes agentes, ambos condenados.

VIII. Os factos dados como provados no processo 41/19.0... são absolutamente inconciliáveis com aqueles dados como provados nos presentes autos, resultando dos mesmos a injustiça da condenação de AA nos presentes autos.

5. Diz o Ministério Público neste Alto Tribunal:

Também cremos que o presente recurso deverá proceder.

Vejamos.

6 Por um lado, porque a detectada inconciliabilidade entre factos que fundamentaram ambas as condenações se revela numa relação de incompatibilidade, no sentido de exclusão mútua, pois que assente numa lógica proposicional de disjunção exclusiva – os factos relativos à condenação operada no PCC 4/19.0... só podem ser verdadeiros se os do PS 51/20.9PAOER forem falsos:

De outra forma, tudo seria ilógico, irremediavelmente contraditório, porque atinente, a um tempo, ao ser e ao não ser. 7 Por outro lado, porque tal inconciliabilidade gera, no caso, graves dúvidas dobre a justiça da condenação do AA, ou seja, dúvidas qualificadas, aptas a permitir que se perspective mais provável do que improvável a sua absolvição num novo julgamento. 8 Veja-se, nesta matéria, o Ac. do STJ de 27.03.2019, P- 141/15.0...:

II - O fundamento de revisão da al. c) do n.º 1 do art. 449.º do CPP reclama que os factos que serviram de fundamento à condenação sejam inconciliáveis com os factos dados como provados noutra sentença de modo que, do confronto entre uns e outros, resultem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.

Analisando o primeiro daqueles dois pressupostos, dir-se-á que o legislador ao aludir à inconciliabilidade entre factos impõe que entre os factos que serviram de fundamento à condenação e os dados como provados noutra sentença ocorra uma incompatibilidade, ou seja, uma relação de exclusão, no sentido de que, se se tiverem por provados determinados factos numa outra sentença, não podem ser, ao mesmo tempo, verdadeiros os tidos por provados na sentença revivenda [[32]]

Por outro lado, ao referir-se à inconciliabilidade dos factos que serviram de fundamento à condenação com os dados como provados noutra sentença limita a inconciliabilidade aos factos provados na sentença revivenda e aos factos provados na sentença fundamento, o que significa que não é legalmente relevante a inconciliabilidade entre factos não provados nas sentenças revivenda e fundamento, entre factos provados na sentença revivenda e factos não provados na sentença fundamento e entre factos não provados na sentença revivenda e factos provados na sentença fundamento [[33]]».

A dúvida relevante para a revisão tem de ser qualificada; há-de elevar-se do patamar da mera existência, para atingir a vertente da “gravidade” que baste, tendo os novos factos e/ou provas de assumir qualificativo correlativo da “gravidade” da dúvida.

9 Isto, pese embora: A circunstância de a pessoa física julgada no PS 51/20.9PAOER o haver sido na sua ausência, depois de ter sido apenas identificado verbalmente pelo agente autuante; O facto de o julgamento no PCC 4/19.0... também ter ocorrido na ausência do arguido respectivo; A (inevitável) falta, na fundamentação do Acórdão proferido nesse processo, da referência à (inexistente) interpelação, em julgamento, da testemunha EE (Agente da PSP autuante no 51/20.9PAOER) acerca de o autuado no PS e o arguido no PCC serem ou não fisicamente pessoa diversas, o que poderia ser sido feito, pelo menos, através da exibição e confronto das fotografias dos respectivos documentos de identificação.

10. Poder-se-ia, pois, alegar serem os restantes factos imputados ao arguido no PCC 4/19.0..., todos cometidos em prejuízo do AA, que, no cotejo com os que são directamente inconciliáveis, sustentam esse juízo de grave injustiça da condenação que lhe foi proferida a este, agora objecto de recurso extraordinário de revisão, e não de uma alternativa e hipotética injustiça daqueloutra condenação, na parte em questão (em virtude da possibilidade, pelo menos teórica, de aquela relação de incompatibilidade poder ser resolvida a favor do ali arguido).

11. Mas, num plano de razoabilidade e objectividade – transversais do Direito – o presente recurso de revisão, conquanto a natureza e melindre jurídico-processual do pedido que encerra, aponta, eficaz e ostensivamente, a nível da sua causa petendi, para uma clara viabilidade lógica da demonstração de que foi a verdade prático-jurídica fixada na decisão a rever – e não a alternativa – a que assentou em erro de julgamento da questão-de-facto, por inconciliável com os factos-provados integradores de uma outra decisão transitada em julgado.

12. Nesta fase – a rescindente (a rescisória poderá, no julgamento conjuntos dos factos, esclarecer com mais profundidade a questão da identidade física de ambos os arguidos) –é o bastante (por, aliás, não ser também, no caso, tolerável o risco de o AA poder vir a iniciar o cumprimento da pena de prisão que lhe foi aplicada), pelo que deverá ser autorizada a peticionada revisão, com anulação de ambas as decisões e a oportuna realização do julgamento conjunto dos factos pertinentes de ambos os processos (cfr, o art. 458º do Código de Processo Penal).

III. Em síntese:

Constitui fundamento de revisão a alegação e demonstração de que os factos típicos que fundamentaram a condenação na sentença revidenda – questão da autoria – são inconciliáveis com factos típicos dados como provados noutra decisão condenatória, ainda que não tenha sido produzida qualquer prova definitiva sobre a identidade física dos arguidos em ambos os processos.

IV. Em conclusão:

Motivo por que o Ministério Público dá Parecer que deverá:

Ser o presente recurso julgado procedente, com autorização da revisão e a anulação das decisões inconciliáveis e o novo julgamento, conjunto, de ambos os arguidos.»

5. O recorrente tem legitimidade para requerer a revisão (artigo 450.º, n.º 1, al. c), do CPP), este tribunal é o competente (artigos 11.º, n.º 4, al. d), e 454.º do CPP) e nada obsta ao conhecimento do recurso.

Cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação

Factos

6. Na sentença condenatória proferida oralmente (ficheiro áudio 20200818152405_4371420_2871363.wma) nestes autos de processo sumário (processo n.º 51/20.09PAOER, Juízo Local Criminal de ...) em 18.08.2020, transitada em julgado a 30.09.2021, foram dados como provados os seguintes factos:

«No dia 10 de agosto de 2020, pelas 00h18, na Rua Alto ..., em ..., o arguido, [AA] conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros, de matrícula ..-UI-.., com uma TAS de, pelo menos, 1,387g/l, deduzido o erro máximo admissível.

O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, não se tendo abstido de conduzir o veículo automóvel na via pública depois de ter ingerido bebidas alcoólicas em quantidade tal que sabia que lhe determinaria necessariamente uma taxa de álcool no sangue superior a 1,2 g/l.

O arguido sabia que a sua conduta era proibida por lei e criminalmente punível».

Pelo que foi decidido condenar «o arguido AA pela prática em 10-08-2020 de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artº 292º nº 1 do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de € 6 (seis euros), o que perfaz €600,00 (seiscentos euros)» e «nos termos do art.º 69º nº 1 al. a) do Código Penal, na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados de qualquer categoria pelo período de 4 (quatro) meses e 15 (quinze) dias.»

7. No acórdão condenatório proferido no processo n.º 41/19.0... (Juízo Central Criminal de ...), em 16.12.2022, transitado em julgado em 09.02.2023, foram dados como provados, no que agora releva, os seguintes factos:

«DD, solteiro, filho de FF e de GG, natural de ..., onde nasceu em ........1989, titular do passaporte n.º J....78, residente em Impasse ..., 4, 2.º Esquerdo, 2605-230 ...;

(…)

1) O Arguido conhece e é amigo de AA, desde pelo menos 2012, razão pela qual sabe o seu nome completo e a sua data de nascimento, sabendo, também, que este reside em ..., raramente se deslocando a Portugal;

2) O Arguido DD (doravante “DD”) não foi, nem é titular de carta de condução, ou de qualquer outro título válido, que o habilite à condução de veículos automóveis na via pública;

3) Não obstante não ser titular de carta de condução, o Arguido, ainda que sabendo que não lhe era legalmente permitido seguir ao volante de veículos automóveis na via pública, decidiu fazê-lo em várias ocasiões diversas;

4) Sendo que decidiu, igualmente, que, caso fosse abordado pelos senhores agentes da Polícia de Segurança Pública e/ou militares da Guarda Nacional Republicana, transmitiria a estes, como sua, a identificação de AA, a fim de não sofrer quaisquer consequências que eventualmente pudessem advir das fiscalizações de trânsito a que fosse sujeito;

5) Decidiu, ainda, que sempre que fosse abordado pelas autoridades policiais, nas situações em que se visse envolvido como suspeito, lhes transmitiria os dados de identificação de AA, como se de seus se tratassem, a fim de evitar quaisquer consequências daí decorrentes, designadamente notificações pendentes relativamente a si;

6) Assim aconteceu nas seguintes ocasiões:

[…]

L. Auto de notícia por detenção com o NUIPC 51/20.9PAOER:

63) Também em 10.08.2020, cerca das zero horas e dezoito minutos, o Arguido seguia ao volante do veículo automóvel com a matrícula ..-UI-.., na Rua Alto ..., em ..., sem que fosse titular de licença para o exercício da condução na via pública;

64) Acontece que o Arguido, momentos antes de iniciar a condução, ingeriu bebidas alcoólicas que lhe provocaram uma TAS de 1,387 g/l, correspondente à TAS de 1,460 g/l registada, deduzido o valor do erro máximo admissível;

65) Embora soubesse que não podia conduzir veículos a motor com uma taxa de alcoolemia superior a 1,20 g/l e que a condução automóvel naquelas condições é proibida e punida por lei, o Arguido quis, livre e conscientemente, conduzir na via pública a viatura de matrícula ..-UI-..;

66) O Arguido bem sabia que não lhe era permitido conduzir veículos a motor, na via pública, tendo ingerido previamente bebidas alcoólicas e estando sob a influência do álcool;

67) Nas mesmas circunstâncias de tempo e de lugar, ao ser abordado pelo agente da Polícia de Segurança Pública EE, que se encontrava devidamente uniformizado, em exercício de funções, o Arguido, que seguia ao volante do referido veículo automóvel com a matrícula ..-UI-.. na referida artéria, não tinha os documentos de identificação na sua posse, nomeadamente passaporte, cartão de cidadão ou a carta de condução, sendo que se identificou como AA, afirmando ser possuidor de licença de condução para conduzir, mas que não se encontrava acompanhado do documento de identificação e da carta de condução, fornecendo elementos da sua identidade, nomeadamente nome, que não eram seus mas os de AA, o qual era titular de carta de condução;

68) Acreditando que a pessoa que se lhe apresentava e que tinha à sua frente era AA, o agente da Polícia de Segurança Pública EE lavrou o auto de notícia com o NUIPC 51/20.9PAOER, identificando no mesmo, como suspeito intercetado AA, e não o Arguido DD, como deveria ter feito constar;

69) O Arguido bem sabia que não lhe era permitido conduzir veículos a motor, na via pública, sem para tal estar habilitado;»

8. No mesmo Acórdão condenatório, proferido no processo 41/19.0..., deu-se como provado que no dia 11.01.2021, DD tinha na sua residência, na Rua Impasse ..., n.º 4, 2.º esquerdo, em ..., para além de outros referentes a outros processos, os seguintes documentos relativos ao processo 51/20.9PAOER (facto provado 80):

«h. cópia de notificação da PSP de ..., no âmbito do NUIPC 51/20.9PAOER, para teste quantitativo de alcoolemia de AA, datado de 10.08.2020;

i. auto de constituição de arguido de AA sob o NUIPC 51/20.9PAOER, efetuado pela PSP de ..., em 10.08.2020, assinado com o nome “AA”;

j. termo de identidade e residência em nome de AA, sob o NUIPC 51/20.9PAOER, efetuado pela PSP de..., em 10.08.2020, assinado com o nome AA; e

k. cópia de notificação para presença nos serviços do Ministério Público de Oeiras, em 11.08.2020, de AA, no âmbito do processo com o NUIPC 51/20.9PAOER;».

9. Da fundamentação da decisão em matéria de facto do acórdão proferido no processo 41/19.0... consta que:

««Serviram de base para formar a convicção do Tribunal a análise critica e conjugada dos vários elementos probatórios abaixo discriminados, apreciados segundo as regras de experiência comum e a livre convicção do julgador, nos termos do art.º 127º do Código de Processo Penal:

- no testemunho prestado por AA, que, de forma clara, segura e coerente, descreveu o circunstancialismo em que tomou conhecimento que o Arguido DD (que foi seu amigo, desde 2008 até data que situou em 2018/2019, e vizinho) andava a utilizar a sua identificação quando era parado pelas autoridades em fiscalizações de trânsito e reação do Arguido quando com isso o confrontou (comprometendo-se a resolver a situação, entregando-se). Foi perentório ao afirmar que se encontra em ... desde 2013.

Embora tenha reconhecido ter-se deslocado a Portugal em alguns períodos foi perentório ao afirmar não o ter feito no período de 2014 a 2017/2018, e que inicialmente o fazia nos meses de dezembro e posteriormente só no mês de agosto. Foi categórico ao afirmar que desde que foi para ..., em 2013, nunca foi mandado parar por autoridades policiais quando se deslocou a Portugal, nem nunca lhe foi determinado que fizesse teste de álcool. Negou ter estado em Portugal nas datas que lhe são imputados os factos objeto dos autos (designadamente 04.10.2017, 22.11.2017, 23.11.2017, 06.03.2018, 19.03.2018, 29.04.2018, 25.03.2019, 24.01.2020, 12.10.2020, 16.11.2020, 14.04.2018, 10.08.2020 e 01.01.2021), bem como alguma vez ter possuído os veículos descritos na acusação.

Afirmou ter visto o Arguido a conduzir, bem como em fotos e vídeos com uma carrinha de marca BMW, de cor branca, com matrícula “UI”.

Frisou ter a mesma idade e tom de pele que o Arguido, bem como ambos terem bigode e pera, sendo, no entanto, mais alto que o Arguido cerca de 10/15 cms.

O testemunho prestado, que nos mereceu total credibilidade, concatenado com os documentos trazidos aos autos em 27.11.2022 pela própria testemunha (referentes a períodos em que esteve a trabalhar em França), com os documentos apreendidos ao Arguido, no quarto deste (que corroboram a versão dos factos apresentada pela testemunha, que desconhecia a sua existência, e que são demonstrativos que foi ao Arguido que foram entregues pelas autoridades tais documentos, pois não vislumbramos sequer outra forma destes chegarem à posse do Arguido) e com o facto da morada indicada aos agentes de autoridade corresponder à indicada pelo Arguido nos autos como sua, aquando da prestação de TIR (constante de fls. 215 dos presentes autos), mostraram-se assim determinantes para que considerássemos que não foi a testemunha que foi abordada pelas autoridades nas circunstâncias descritas na acusação, mas sim o Arguido, que, conhecendo os elementos de identificação de AA, se identificou como sendo AA;

- nos testemunhos prestados por HH [agente da PSP autuante no processo 51/20.9PAOER, em que foi ouvido como testemunha], II, JJ, KK, LL, MM, NN, OO, PP, QQ, EE, RR, agentes da PSP e da GNR, que, no essencial, confirmaram a veracidade dos factos por si exarados nos autos e avisos elaborados, constantes, respetivamente, de fls. 25 a 26, 28, 202, 204, 33, 312 (e 417 e 205), 27, 381, 372, 378 a 379, 29 a 30, 279 a 280 dos presentes autos, cuja autenticidade não foi posta em causa nos autos;

(…)

- no teor do auto de notícia por detenção cuja cópia se mostra junta a fls. 279 a 280 dos presentes autos, concatenado com o testemunho prestado por EE e com a cópia da notificação da PSP para teste quantitativo de alcoolemia, auto de constituição de arguido, TIR, e cópia da notificação para apresentação nos serviços do MP referentes ao NUIPC 51/20.9PAOER apreendidos no quarto do Arguido, para prova da factualidade constante dos pontos 63) a 69) dos Factos Provados, nos termos aí exarados;

Em consequência, concluiu o acórdão proferido no processo 41/19.0... condenar o arguido DD, para além das condenações pela prática de outros crimes de condução sem habilitação legal, de condução de veículo em estado de embriaguez, de falsas declarações e de desobediência, «na pena de 9 (nove) meses de prisão e na sanção acessória de proibição de conduzir todo e qualquer veículo motorizado de circulação terrestre pelo período de 2 (dois) anos, pela prática, em 10.08.2020, de 1 (um) crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 292º, n.º 1, e 69º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal, por que vinha acusado», pela prática dos mesmos factos por que o arguido AA havia sido anteriormente condenado no processo 51/20.9PAOER.

Do recurso de revisão

10. O direito à revisão de sentença condenatória tem consagração, como direito fundamental, no artigo 29.º, n.º 6, da Constituição, o qual dispõe que «Os cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença e à indemnização pelos danos sofridos.»

O direito à revisão, que se efectiva por via de recurso extraordinário que a autorize (art.ºs 449ss do CPP), possibilita a quebra do caso julgado de sentenças condenatórias que devam considerar-se injustas por ocorrer qualquer dos motivos taxativamente previstos na lei. A linha de fronteira da segurança jurídica resultante da definitividade da sentença, por esgotamento das vias processuais de recurso ordinário ou do decurso do prazo para esse efeito, enquanto componente das garantias de defesa no processo (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição), estabelece-se, enquanto garantia relativa à aplicação da lei penal (artigo 29.º da Constituição), no limite resultante da inaceitabilidade da subsistência de condenações transitadas em julgado que se revelem «injustas».

O juízo de grave dúvida sobre a justiça da condenação, por virtude da demonstração dos fundamentos contidos no numerus clausus definido na lei, que justifica a realização de novo julgamento, sobrepõe-se à eficácia do caso julgado, em homenagem às finalidades do processo – a realização da justiça do caso concreto, no respeito pelos direitos fundamentais –, desta forma se operando o desejável equilíbrio entre a segurança jurídica da definitividade da sentença e a justiça material do caso.

11. A lei enumera os fundamentos e dispõe sobre admissibilidade da revisão no artigo 449.º do CPP, revisto em 2007 (Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, que adicionou três novos fundamentos – os das alíneas e), f) e g) do n.º 1). Estabelece este preceito:

«1 - A revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando:

a. Uma outra sentença transitada em julgado tiver considerado falsos meios de prova que tenham sido determinantes para a decisão;

b. Uma outra sentença transitada em julgado tiver dado como provado crime cometido por juiz ou jurado e relacionado com o exercício da sua função no processo;

c. Os factos que servirem de fundamento à condenação forem inconciliáveis com os dados como provados noutra sentença e da oposição resultarem graves dúvidas sobre a justiça da condenação;

d. Se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.

e. Se descobrir que serviram de fundamento à condenação provas proibidas nos termos dos n.ºs 1 a 3 do artigo 126.º;

f. Seja declarada, pelo Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação;

g. Uma sentença vinculativa do Estado Português, proferida por uma instância internacional, for inconciliável com a condenação ou suscitar graves dúvidas sobre a sua justiça.

2 - Para o efeito do disposto no número anterior, à sentença é equiparado despacho que tiver posto fim ao processo.

3 - Com fundamento na alínea d) do n.º 1, não é admissível revisão com o único fim de corrigir a medida concreta da sanção aplicada.

4 - A revisão é admissível ainda que o procedimento se encontre extinto ou a pena prescrita ou cumprida.»

12. Como se evidencia da formulação do texto da al. c) do n.º 1 deste preceito, em que se funda o pedido de revisão, o fundamento do recurso diz respeito a matéria de facto (assim, Pereira Madeira, Código de Processo Penal Comentado, Henriques Gaspar et alii, Almedina, 2022, anotação ao artigo 449.º) – isto é, à circunstância de os «factos que servirem de fundamento à condenação» serem «inconciliáveis com os [factos] dados como provados noutra sentença e da oposição» entre esses factos «resultarem graves dúvidas sobre a justiça da condenação».

O fundamento da revisão contém dois pressupostos, de verificação cumulativa: (1) por um lado, a inconciliabilidade entre os factos que serviram de fundamento à condenação e os factos dados como provados noutra sentença e, (2) por outro, que dessa oposição resultem graves dúvidas sobre a justiça da condenação [assim, o anterior acórdão do mesmo relator de 04.07.2019, Proc. n. º 47/13.5IDSTR-A.S1, em www.dgsi.pt, e jurisprudência nele mencionada].

Da matéria de facto, a lei apenas elege os factos relativos à determinação da culpabilidade que fundamentam a «condenação», ou seja, os factos que constituem ou se compreendem no âmbito do objeto do processo, definido pela acusação (artigo 283.º do CPP) ou pela pronúncia (artigo 308.º do CPP) e que justificam a aplicação da pena. O que, neste caso, releva são os factos relativos à «questão da culpabilidade» (artigo 368.º do CPP) – os factos relacionados com o preenchimento do tipo de crime, com a participação do arguido na sua prática e com a questão da culpa –, não os factos relativos à «questão da determinação da sanção» (artigo 369.º do CPP) – factos relevantes para a determinação da espécie e da medida da pena) [assim, por todos os recentes acórdãos de 22.11.2023 (do mesmo relator), Proc. 144/22.8GAPMS.C1-A.S1, e de 06.04.2022 (Ana Brito), Proc. 1118/17.6PHSNT-A.S1, em www.dgsis.pt]. Neste sentido, na doutrina, Conde Correia, em O «Mito do Caso Julgado» e a Revisão «Propter Nova», Coimbra Editora, 2010, pp. 292-293, onde se lê: «O núcleo dos factos elegíveis deverá ser considerado em função, quer da matéria, quer dos fins pretendidos: só são incluídos os factos compreendidos no âmbito do objeto que determina a condenação judicial e os factos suscetíveis de determinar a absolvição do condenado […]»

Requer-se, pois, que entre os factos dados como provados na sentença proferida no processo da condenação e os dados como provados noutra sentença se estabeleça uma relação de incompatibilidade, de oposição ou de exclusão recíproca, de tal modo que, verificada a impossibilidade de se conciliarem entre si, é fundado concluir pela existência de grave dúvida sobre a justiça da condenação do recorrente. «A inconciliabilidade pressuposta na lei é apenas e só a que resulta de factos provados numa e noutra sentença, e não quaisquer outros», tem assinalado a jurisprudência [Pereira Madeira, loc. cit. Cfr., por exemplo, os acórdãos de 13-01-2021 (Nuno Gonçalves), Proc. n.º 757/18.2T9ESP-A.S1, e de 11-03-2020 (Manuel A. Matos), ECLI:PT:STJ:2020:3.19.1PFBRG.A.S1].

Apreciação

13. Em síntese, o recorrente alega que os factos provados na sentença recorrida, por cuja prática foi aplicada ao arguido AA uma pena de multa pela autoria de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art.º 292.º nº. 1 do Código Penal, são inconciliáveis com os posteriormente dados como provados no processo n.º 41/19.0..., em que o arguido DD foi condenado pelos mesmos factos, e pelo mesmo crime, com os fundamentos anteriormente mencionados (supra, 9), e no qual foi também dado como provado um crime de falsas declarações por este se ter identificado perante o agente da PSP com os elementos de identificação de AA.

Ora, a condenação posterior do arguido DD por factos – condução do mesmo veículo automóvel, no mesmo dia e local – por que AA havia sido condenado não é conciliável com esta condenação.

Os mesmos factos, nas mesmas circunstâncias, na impossibilidade material de uma execução conjunta, não poderiam ter sido praticados simultaneamente pelos dois arguidos. Para além disso, a verdade processual obtida na decisão da anterior condenação é posta irremediavelmente em crise pela circunstância de a segunda condenação incluir a condenação por um crime de falsas declarações que o arguido DD prestou perante o agente da PSP que, na ocasião, procedeu à sua identificação, ao indicar, como seus, os elementos de identificação do então seu amigo AA, os quais levaram à condenação deste, na sua ausência.

Assim sendo, impõe-se concluir que se mostram verificados os pressupostos da revisão requeridos pela alínea c) do n.º 1 do artigo 449.º do CPP: os factos provados nas duas sentenças condenatórias são inconciliáveis entre si, resultando da condenação posterior uma fundada e grave dúvida sobre a justiça da condenação na sentença recorrida.

Em consequência do que se justifica a autorização da revisão.

14. Nos termos do artigo 458.º do CPP, se a revisão for autorizada com fundamento no artigo 449.º, n.º 1, alínea c), por haver sentenças penais inconciliáveis que tenham condenado arguidos diversos pelos mesmos factos – como sucede neste caso –, o Supremo Tribunal de Justiça anula as sentenças e determina que se proceda a julgamento conjunto de todos os arguidos, indicando o tribunal que, segundo a lei, é competente, sendo os processos apensos para esse efeito (n.ºs 1 e 2).

Estando o arguido DD condenado por vários crimes no processo 41/19.0..., a anulação do acórdão abrange apenas a parte respeitante à condenação pelo crime de condução de veículo em estado de embriaguez cometido em 10.08.2020, pelo qual também foi condenado o arguido AA.

Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 10.º, 16.º, n.º 2, al. b), e 19.º, n.º 1, do CPP e do artigo 130.º da LOSJ, tratando-se de crime punível com pena de prisão inferior a cinco anos de prisão, é competente para o julgamento conjunto o Juízo Local Criminal de ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, por ser o tribunal em cuja área se verificou a consumação, havendo que observar o disposto no artigo 40.º do CPP.

Dado o tipo de crime em questão, não há que decidir quanto à aplicação de medida de coação (n.º 3 do artigo 458.º do CPP) para além do termo de identidade e residência (artigo 196.º do CPP).

III. Decisão

15. Termos em que, nos termos dos artigos 455.º, n.º 3, 457.º, n.º 1, e 458.º do Código de Processo Penal, se decide em conferência na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

a. Autorizar a revisão da sentença condenatória do arguido AA proferida no processo n.º 51/20.9PAOER, e, em consequência,

b. Anular a sentença condenatória do arguido AA proferida no processo n.º 51/20.9PAOER e a sentença condenatória do arguido DD proferida no processo n.º 41/19.0..., na parte respeitante à condenação pelo crime de condução de veículo em estado de embriaguez cometido em 10.08.2020, pelo qual também foi condenado o arguido AA;

c. Determinar que, mediante apensação de processos, se proceda a julgamento conjunto dos arguidos AA e DD, sendo competente para o efeito o Juízo Local Criminal de ..., Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste.

Sem custas.

Supremo Tribunal de Justiça, 17 de janeiro de 2024.

José Luís Lopes da Mota (Juiz conselheiro relator)

Maria do Carmo Silva Dias (Juíza conselheira adjunta)

Ernesto Vaz Pereira (Juiz conselheiro adjunto)

Nuno A. Gonçalves (Presidente da Secção)