Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
30/16.0T9CNT.C2-A.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: MANUEL AUGUSTO DE MATOS
Descritores: RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
RECURSO DE DECISÃO CONTRA JURISPRUDÊNCIA FIXADA
ERRO NA FORMA DO PROCESSO
DIVERSIDADE DAS NORMAS JURÍDICAS
TRAMITAÇÃO ELECTRÓNICA DO PROCESSO
Data do Acordão: 09/25/2019
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO EXTRAORDINÁRIO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Decisão: REJEITADO O RECURSO EXTRAORDINÁRIO DE DECISÃO PROFERIDA CONTRA JURISPRUDÊNCIA FIXADA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL – RECURSOS / RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS / FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA.
DIREITO PENAL – CRIMES EM ESPECIAL / CRIMES CONTRA O ESTADO / CRIMES CONTRA A AUTORIDADE PUBLICA / RESISTÊNCIA E DESOBEDIÊNCIA À AUTORIDADE PÚBLICA.
Doutrina:
- Manuel Simas Santos e Manuel Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, Rei dos Livros, 8.ª edição, p. 183;
- Manuel Simas Santos, Manuel Leal Henriques e João Simas Santos, Noções de Processo Penal, Rei dos Livros, p. 531.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 437.º, N.ºS 2 E 5, 438.º, N.ºS 1 E 2, 441.º, N.º 1 E 446.º, N.ºS 1, 2 E 3.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGO 348.º, N.º 1, ALÍNEA B).
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 132.º, N.º 1, 144., N.ºS 1 A 6 E 193.º.
CPC/1961: - ARTIGO 150.º, N.ºS 1, ALÍNEA D) E 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- ACÓRDÃO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (AFJ) N.º 3/2014, DE 06-03-2014, IN DR, 1.ª SÉRIE, N.º 74, DE 15 DE ABRIL DE 2014;

- DE 20-06-2013, PROCESSO N.º 83/04.4IDCBR.C1-A.S1, IN SASTJ, WWW.STJ.PT;
- DE 29-04-2015, PROCESSO N.º 20/02.0IDBRG-X-G1-A.S1;
- DE 01-02-2017, PROCESSO N.º 446/07.3ECLSB.L1-C.S1, IN SASTJ, WWW.STJ.PT;
- DE 24-04-2019, PROCESSO N.º 265/16.6T8ILH.P1-A.S1, IN SASTJ, WWW.STJ.PT.
Sumário :
I – Alega o recorrente que o acórdão recorrido está em contradição com o Acórdão de Fixação de Jurisprudência (AFJ) n.º 3/2014, afirmando que o mesmo não caducou, invocando, no entanto, as disposições contidas nos artigos 437.º n.os 2 e 5 e 438.º n.os 1 e 2, do CPP, designando o recurso expressamente como recurso «EXTRAORDINÁRIO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA».

II - Sendo invocada a oposição entre o acórdão recorrido e um AFJ, entende-se que a referência ao recurso de fixação e ao artigo 437.º do CPP, se deve a um lapso: tendo presente o enquadramento fáctico e o fundamento invocado, estamos perante recurso contra jurisprudência fixada, previsto no artigo 446. Do CPP».

III - Perante uma situação de erro na forma de processo aqui evidenciada, e como tem entendido o STJ, a sua reparação é possível, conforme dispõe o artigo 193.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicável ex vi artigo 4.º do CPP, sendo fácil adaptação dos termos do recurso interposto aos termos do recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada. Se um acórdão do Tribunal de Relação ou do STJ está em oposição com um AFJ, que é sempre deste último tribunal, essa situação é tratada à luz do art. 446.º do CPP, dando lugar a outro recurso extraordinário, o de decisão proferida contra jurisprudência fixada.

IV – Em face do disposto nos n.os 1, 2, e 3 do art. 446.º do CPP, é admissível recurso directo para o STJ - a interpor no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da decisão recorrida, pelo arguido, pelo assistente, pelas partes civis ou pelo MP, para quem é obrigatório - de qualquer decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo mesmo STJ, que pode limitar-se a aplicar a jurisprudência já fixada, apenas devendo proceder ao seu reexame se entender que ela se encontra ultrapassada.

IV - Para além dos pressupostos formais enunciados na conclusão anterior, que ficaram referidos, exige-se ainda (a) a justificação da oposição entre os acórdãos (o fundamento e o recorrido) que motiva o conflito de jurisprudência; (b) a inalterabilidade da legislação no período compreendido entre a prolação das decisões conflituantes; (c) necessidade de a questão ser decidida em termos contraditórios de forma expressa; e (d) a identidade das situações de facto estar subjacente à questão de direito;

V – O AFJ n.º 3/2014 foi tirado com referência ao artigo 150.º, n.os 1 alínea d) e 2, do CPC/1961, na redacção Decreto-Lei n.º 324/2003 – que previa entre as formas da prática dos actos processuais escritos das partes, a remessa a juízo por correio electrónico –, e à Portaria n.º 642/2004 – que, além do mais, regulava aquela forma de prática de actos, preceitos e diploma que, pesem as alterações introduzidas no àquele artigo 150º pelo Decreto-Lei n.º 303/2007 – que, entre o mais, eliminaram a possibilidade da apresentação de peças por correio electrónico – e a substituição da Portaria n.º 642/2004 pela Portaria n.º 114/2008, o acórdão uniformizador considerou sobrevigentes em processo penal, por isso que fixando interpretação no sentido de continuar a ser permitido nesse contexto a remessa a juízo de peças processuais por correio electrónico.

VI - Acontece todavia que o CPC/1961 foi revogado e substituído, a partir de 1.9.2013 pelo CPC/2013, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, cujo artigo 144º optou pela transmissão electrónica de dados como forma exclusiva da prática dos actos escritos das partes em juízo – n.os 1 a 6 da norma, em articulação com o artigo 132.º n.º 1 do mesmo diploma e com a Portaria n.º 280/2013, de 26 de Agosto –, com a única derrogação de, não sendo obrigatória a constituição por advogado e não estando o interessado patrocinado, se permitir a entrega das peças em mão na secretaria judicial, a remessa delas por correio registado ou o seu envio por telecópia – n.º 7 do preceito.

VII – O que significa que o quadro legal que relevou na decisão recorrida foi o decorrente do CPC/2013 e da Portaria n.º 280/2013 referida, esta na redacção da Portaria n.º 170/2017, de 25 de Maio, tudo por referência à data de 1.6.2018 aqui relevante, não tendo sido aquele em que se moveu o citado AFJ n.º 3/2014, pelo que se mostra excluído o pressuposto da identidade da questão de direito tratada num e noutro.

VIII - Não existindo essa identidade normativa nas situações apreciadas no acórdão recorrido e no acórdão fundamento, torna-se evidente que são também diferentes as pronúncias em termos de direito, o que afasta, a integração do pressuposto substancial da oposição de julgados, pelo que o recurso interposto, convolado para recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada, deve ser rejeitado, nos termos do disposto nos artigos 446.º, n.º 1, 437.º e 441.º, n.º 1, do CPP.

Decisão Texto Integral:

            Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

            I - RELATÓRIO

1. AA, notificado do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 10.10.2018, não se se conformando com ele, «vem apresentar RECURSO EXTRAORDINÁRIO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (cfr. arts.437º, nºs.2 e 5, 438º nºs.1 e 2 do CPP)», alegando que (transcrição)[1]:

«No douto Acórdão sob recurso foi decidido que a forma como o primitivo recurso tinha sido interposto pelo aqui recorrente contrariava a disciplina prevista no igualmente douto AUJ nº3/2014, de 6 de Março de 2014, publicado no Diário da República, 1.ª série, N.º 74, de15 de Abril de 2014, mantendo assim a rejeição liminar daquele, que já resultava da decisão sumária sobre a qual conheceu.

Pelo que tanto o douto Acórdão recorrido, como a decisão sumária que este manteve, subverte frontalmente, salvo o devido respeito, o que ficou decidido e plasmado no douto Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do STJ nº3/2014.

Com efeito, neste último, e de forma sintética, pedimos licença para transcrever, foi decidido a final o seguinte (com grifos e sublinhado nossos):

«(…) A afirmação acabada de referir, feita no acórdão recorrido, esquece, todavia, que o artigo 11.º n.º 2 do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, estabeleceu que a produção de efeitos da nova redacção dos artigos 138.º -A e 150.º, entre outros, ficou dependente da entrada em vigor da portaria prevista no n.º 1 do artigo 138.º -A do Código de Processo Civil.

A Portaria n.º 114/2008, no seu artigo 2.º, limitou, como vimos, o respectivo âmbito de aplicação às acções declarativas cíveis, procedimentos cautelares e notificações judiciais avulsas, bem como às acções executivas cíveis, só sendo nesse segmento que foi revogada a Portaria n.º 642/2004.

Tendo tido este diploma, como finalidade primordial, «clarificar alguns dos aspectos técnicos a que deve obedecer o envio por correio electrónico», a sua revogação parcial, no estrito âmbito do artigo 2.º da Portaria n.º 114/2008, só pode ter a leitura de que, em todo o restante campo de aplicação, nomeadamente quanto ao processo penal, se mantém em vigor.

Na verdade, se fosse vontade do legislador afastar definitivamente o correio electrónico das formas de envio a juízo de peças processuais escritas, bastaria ter revogado globalmente a Portaria n.º 642/2004.

Foi no sentido da manutenção deste diploma e do artigo 150.º do Código de Processo Civil, na redacção do Decreto -Lei n.º 324/2003, de 27 de Dezembro que julgou o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de 20 -12 -2012 — Proc. 32/05.2TAPCV.C2.S2, relatado pelo Conselheiro Manuel Braz (CJ - Acs. STJ, XX, tomo III, pág. 223), assim como o fizeram a Relação de Coimbra, pelo acórdão de 19 -01 - 2011 — Proc. 51/06.1GAMGL.C1, a Relação de Évora, por acórdãos de 05 -03 -2013 — Proc. 559/07.1TAABT.E1 e de 19 -03 -2013 — Proc. 317/11.9GCPTM -A.E1 e a Relação do Porto, por acórdão de 15 -01 -2014 — Proc. 441/07.2JAPRT.P1, todos acessíveis em www.dgsi.pt No mesmo sentido da decisão recorrida, se pronunciou a Relação de Coimbra, nos acórdãos de 30 -11 -2011 — Proc. 135/03.8IDAVR.C1 e de 25 -01 -2012 — Proc. 123/09.0GTVIS.C1, todavia, todos com o mesmo relator.

Termos em que acordam no Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça em fixar jurisprudência nos seguintes termos:

«Em processo penal, é admissível a remessa a juízo de peças processuais através de correio electrónico, nos termos do disposto no artigo 150.º, n.º 1, alínea d), e n.º 2, do Código de Processo Civil de 1961, na redacção do Decreto--Lei n.º 324/2003, de 27.12, e na Portaria n.º 642/2004, de 16.06, aplicáveis conforme o disposto no artigo 4.º do Código de Processo Penal».

Em consequência ordena-se que, oportunamente, o processo seja remetido à Relação de Coimbra para que profira nova decisão em conformidade com a jurisprudência fixada — artigo 445.º do Código de Processo Penal».

Ou seja, tendo o aqui recorrente praticado o ato (o primitivo recurso jurisdicional interposto em Primeira Instância), procedendo ao seu «Envio através de correio electrónico, com aposição de assinatura electrónica avançada, valendo como data da prática do acto processual a da expedição, devidamente certificada» (cfr.art.150º, nº1, al. d) do CPC), praticou tal ato através de uma das formas admissíveis em processo penal, conforme resulta do mui douto Aresto atrás transcrito.

Em consequência, deverá ser revogado o douto Acórdão recorrido, que manteve a decisão sumária que rejeitou liminarmente o recurso interposto pelo arguido em Primeira Instância e substituída por outra que o receba, porque tempestivamente praticado por meio processualmente idóneo para o efeito, à data em que foi interposto, i. é, via e-mail da Ordem dos Advogados Portugueses, e com a aposição de assinatura digital válida e certificada.»

            2. Respondendo ao recurso, disse o Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Coimbra, concluindo:

«Conclusões

           1 - O Recorrente AA, interpôs recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, nos termos do art. 437º, nº 2 e nº 5, e do art. 438º nº1 e nº 2, ambos do Cod. Proc. Penal, invocando que o acórdão, proferido em 10/10/2018, bem como a anterior decisão sumária, que rejeitou o recurso por si interposto, da decisão da 1ª Instância, violaram o Acórdão Fixação de Jurisprudência, do STJ nº 3/2014, de 06 de Março de 2014, publicado no D. R. 1ª Série, n.º 74, de 15 de Abril de 2014.

           2 - O recorrente AA, deveria ter interposto um recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, previsto no art. 446º, do Cod. Proc. Penal, de forma a possibilitar que o Supremo Tribunal de Justiça pudesse apreciar se o acórdão proferido em 10/10/2018, violou o Acórdão Fixação de Jurisprudência, do STJ nº 3/2014, de 06 de Março de 2014, entendendo-se que a situação em apreço não reúne os pressupostos exigidos no art. 437º, n º 2, do Cód. Proc. Penal, de forma a legitimar a interposição de um recurso extraordinário para fixação de jurisprudência.»

           3. Neste Supremo Tribunal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu o proficiente parecer que se transcreve:

            «I. Do recurso.

           1. Recorre o arguido AA, com os sinais dos autos – doravante, Recorrente –, do douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10.10.2018 – doravante, Acórdão Recorrido – que, em procedimento de reclamação para conferência – art.os 417º n.os 6 al.ª b) e 7 e 419º n.º 3 al.ª a) – contra decisão sumária de rejeição de recurso que movera a sentença de 1ª instância que o condenara em quatro meses de prisão, suspensa por um ano, pela prática de um crime de desobediência p. e p. pelo art.º 348º n.º 1 al.ª b) do CP, «[d]eclar[ou] o […] incidente […] como afectado pela excepção dilatória de nulidade, por invalidade jurídica do meio de correspectiva manifestação a Juízo, e, consequentemente, abste[ve-se] de qualquer resolução quanto aos respectivo merecimento».

           Nomina o recurso de «EXTRAORDINÁRIO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA», convoca a normas dos art.os 437º n.os 2 e 5 e 438º n.os 1 e 2 do CPP [[2]] e diz estar o Acórdão Recorrido em oposição ao AFJ n.º 3/2014, do STJ, in DR, I, de 15.4.

           Pede a revogação do Acórdão Recorrido e sua substituição por outro que receba o recurso interposto do decidido em 1ª instância, «porque tempestivamente praticado por meio processualmente idóneo para o efeito, à data em que foi interposto, i. é, via e-mail da Ordem dos Advogados Portugueses, e com a aposição de assinatura digital válida e certificada».

            II. Do procedimento.

          2. O Recorrente foi condenado no Juízo de ... na pena de quatro meses de prisão, suspensa por um ano, pela prática de um crime de desobediência p. e p. pelo art.º 348º n.º 1 al.ª b) do CP.

           Moveu-lhe recurso ordinário para o Tribunal da Relação de Coimbra, mas a impugnação foi rejeitada por decisão sumária do Exmo. Desembargador Relator, por «extemporaneidade e manifesta irreunião dos pressupostos legais».

           Reclamou em 1.6.2018 dessa decisão para a conferência […], apresentando requerimento por correio electrónico.

     O Acórdão Recorrido recusou o conhecimento da reclamação com base nos seguintes, resumidos, fundamentos:
─ Por via da entrada em vigor em 1.9.2013 da versão do Código de Processo Civil reformada pela Lei n.º 41/2013, de 26.6, foi revogada – art.º 4º al.ª a) respectivo – a legislação que, na visão interpretativa do AFJ n.º 3/2014, permitia a prática de actos em processo penal por correio electrónico, mormente, o art.º 150º n.º 1 al.ª d) do CPC/1961, na redacção do Decreto-Lei n.º 324/2003, de 27.12, e a regulamentação dele dependente, designadamente, a da Portaria n.º 642/2004, 16.6.
─ Na consequência, a disciplina do mencionado acórdão ficou «[…] automaticamente ultrapassada, prejudicada e caducada […]».
─ A partir da mencionada, inexiste base legal ou jurisprudencial que, em processo penal, autorize a apresentação de peças em juízo através de correio electrónico.

─ À data da prática do acto de reclamação, dispunha o Recorrente, em alternativa, de três meios para o concretizar, de que nenhum, porém, lançou mão: entrega da peça na secretaria judicial; remessa por correio registado; envio por telecópia, através de equipamento constante da lista oficial, nos termos do Decreto-Lei n.º 28/92, de 27.2.
─ O acto de reclamação, na forma em que foi praticado, está ferido de nulidade, por violador de normas expressas e imperativas – art.os 295º e 294º do CC.

─ Tanto constitui excepção dilatória que obsta ao conhecimento do respectivo mérito – art.os 278º al.ª e), 576º n.os 1 e 2, 577º e 578º, todos do CPC, e 4º.

  3. Notificado do decidido, na pessoa do defensor, por carta registada a 11.10.2018 – o Ministério Público, esse, foi notificado por termos nos autos de 11.10.2018 –, veio o Recorrente em 29.11.2019 interpor o presente recurso – o que fez no 33º dia posterior ao trânsito, ocorrido a 25.10.2018, e mediante o pagamento da multa prevista nos art.os 139º do CPC e 107º n.º 5 e 107º-A.

   Como tudo já referido, diz o Acórdão Recorrido em contradição com o AFJ n.º 3/2014. invoca as normas art.os 437º n.os 2 e 5 e 438º n.os 1 e 2; nomina o recurso de «EXTRAORDINÁRIO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA»; sustenta que o acórdão de uniformização não caducou; afirma que praticou o acto por uma das formas permitidas por lei; e, por não ocorrer qualquer invalidade, pede a revogação e substituição daquele por outro que defira a reclamação e admita o recurso.

            4. O Ministério Público no Tribunal da Relação respondeu.

  Disse haver erro na da espécie de recurso – tratar-se-á de recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada previsto no art.º 446º e não do de fixação de jurisprudência que o Recorrente refere – e não estarem reunidos «os pressupostos exigidos no art. 437.º, n º 2, do Cód. Proc. Penal, de forma a legitimar a interposição de um recurso extraordinário para fixação de jurisprudência».

            III. Do parecer.

 A. A modalidade do recurso: de fixação de jurisprudência ou contra jurisprudência fixada.

  5. A primeira questão a abordar vem suscitada na contramotivação da Exma. Procuradora-Geral Adjunta do Tribunal da Relação e respeita à qualificação do recurso, se o extraordinário de fixação de jurisprudência referido no art.º 437º do CPP, se o extraordinário contra jurisprudência fixada a que alude o art.º 446º do CPP.

  O Recorrente diz que é o de fixação e convoca, em coerência, a norma do art.º 437º, mas diz que a oposição é entre o Acórdão Recorrido e um Acórdão de Fixação, o que precisamente, um dos fundamentos previstos no art.º 446º para o recurso contra jurisprudência fixada.

            A referência ao recurso de fixação e ao art.º 437º tem, assim, que ser levada à conta de lapso que, atento o quadro desenhado e o fundamento invocado, o recurso é o contra jurisprudência fixada do art.º 446º.

            E o erro na forma de processo é reparável: «inoperante como recurso para fixação de jurisprudência nos termos do art. 437.º do CPP, tendo em conta a situação» alegada, o requerimento «deve ser apreciado como sendo um recurso de decisão supostamente proferida contra jurisprudência fixada, nos termos do art. 446.º do CPP, uma vez que o erro na forma de processo não implica o desaproveitamento dos actos que possam ser aproveitados, como resulta do art. 199.º do CPC [de 1961],» – hoje, art.º 193º – «aplicável por força do art. 4.º do CPP» [[3]].

   Nada obsta, assim e nestes aspectos, ao seguimento do recurso como contra jurisprudência fixada, nos termos do art.º 446º do CPP.

            O que se requer.

 B. Pressupostos específicos do recurso (formais e substanciais).

            6. Nos termos do art.º 446º do CPP, «[é] admissível recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça, de qualquer decisão proferida contra jurisprudência por ele fixada, a interpor no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da decisão recorrida, sendo correspondentemente aplicáveis as disposições do presente capítulo» – n.º 1 –, «[o] recurso pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público» – n.º 2 – e «[o] Supremo Tribunal de Justiça pode limitar-se a aplicar a jurisprudência fixada, apenas devendo proceder ao seu reexame se entender que está ultrapassada» – n.º 3.

            E nos termos do art.º 437º do mesmo diploma, «[q]uando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, cabe recurso, para o pleno das secções criminais, do acórdão proferido em último lugar» – n.º 1 – e «[o]s acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida» – n.º 3.

  Transcrevendo do recentíssimo AcSTJ de 24.4.2019 - Proc. n.º 265/16.6T8ILH.P1-A.S1, 3ª Secção, sumariado em www.stj.pt para o efeito de caracterizar o recurso e enunciar os seus pressupostos formais e substanciais:

 ─ «[O] recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça é um recurso de carácter extraordinário que permite a este Tribunal controlar as decisões contrárias à jurisprudência que fixou, garantindo a coerência e estabilidade da jurisprudência […]. Permite, ainda, o reexame dessa jurisprudência quando, por exemplo, surjam argumentos novos, não anteriormente ponderados, ou quando a jurisprudência fixada se encontra ultrapassada.

            […].

  [A]o específico recurso extraordinário previsto no citado art.º 446º são "correspondentemente aplicáveis" as disposições do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, o que significa que terão de verificar-se os respetivos pressupostos, formais e substanciais.

     Os requisitos de ordem formal são os seguintes: a legitimidade do recorrente – que é restrita ao arguido, ao assistente, às partes civis e ao Ministério Público – e a interposição do referido recurso no prazo de 30 dias a partir do trânsito da decisão de que se pretende recorrer. É ainda exigível a existência de prévio trânsito em julgado, por esgotada a possibilidade de recurso ordinário […].

A nível substancial, exige-se a oposição entre a decisão recorrida e um acórdão de fixação de jurisprudência. Ou seja, exige-se, nos termos do art. 445º, n.º 3, do CPP, que "a decisão recorrida tenha decidido em sentido divergente ao do acórdão uniformizador, por não acatamento da sua doutrina, caso em que o tribunal que assim decida terá de fundamentar a sua divergência" [[4]].

            Nessa apreciação releva a identidade de facto respeitante à mesma questão de direito que é, justamente, a tratada no acórdão uniformizador. À semelhança do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, este pressuposto resulta da necessidade de tal identidade para aferir da oposição sobre a mesma questão de direito […].

           O recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada está, assim, sujeito aos mesmos requisitos substanciais exigidos para o recurso de fixação de jurisprudência, isto é, é necessário que a oposição respeite à própria decisão e não aos fundamentos, bem como que se verifique identidade de facto quanto à mesma questão de direito.

   Citando Alberto dos Reis, dizem Simas Santos e Leal Henriques "Dá-se a oposição sobre o mesmo ponto de direito quando a mesma questão foi resolvida em sentidos diferentes, isto é, quando à mesma disposição legal foram dadas interpretações ou aplicações opostas" [[5]].

   7. Enunciados os requisitos do recurso e passando no imediato à sua aferição, diz-se já que nada obsta ao seguimento da impugnação extraordinária do ponto de vista do formal: o Recorrente, na sua qualidade de arguido e de vencido na decisão tem legitimidade e interesse; o Acórdão Recorrido transitou em julgado; o recurso foi interposto dentro dos 30 dias subsequentes, valendo-se o Recorrente da tolerância dos art.os 139º do CPC e 107º n.º 5 e 107º-A.

            8. Já não assim – antecipe-se – na perspectiva do substancial, onde falha o requisito da oposição de julgados em razão de inidentidade da questão de direito na vertente da inidentidade do quadro legal aplicado.

            Com efeito:

  9. Segundo a proposição interpretativa do AFJ n.º 3/2014 sempre referido, «[e]m processo penal, é admissível a remessa a juízo de peças processuais através de correio electrónico, nos termos do disposto no artigo 150.º, n.º 1, alínea d), e n.º 2, do Código de Processo Civil de 1961, na redacção do Decreto-Lei nº 324/2003, de 27.12, e na Portaria nº 642/2004, de 16.06, aplicáveis conforme o disposto no artigo 4º do Código de Processo Penal».

   O acórdão uniformizador foi, desse modo, tirado com referência ao art.º 150º n.os 1 al.ª d) e 2 do CPC/1961, na redacção Decreto-Lei n.º 324/2003 – que previa entre as formas da prática dos actos processuais escritos das partes a remessa a juízo por correio electrónico [[6]] – e à Portaria n.º 642/2004, de 16.6 – que, além do mais, regulava aquela forma de prática de actos [[7]]. Preceitos e diploma que, pesem as alterações introduzidas no art.º 150º referido pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24.8 – que, entre o mais, eliminaram a possibilidade da apresentação de peças por correio electrónico – e a substituição da Portaria n.º 642/2004 pela Portaria n.º 114/2008, de 6.2, o acórdão uniformizador considerou sobrevigentes em processo penal, por isso que fixando interpretação no sentido de continuar a ser permitido nesse contexto a remessa a juízo de peças processuais por correio electrónico.

           Acontece todavia que o CPC/1961 foi revogado e substituído, a partir de 1.9.2013 pelo CPC/2013, aprovado pela Lei n.º 41/2013 de 26.6, cujo art.º 144º optou pela transmissão electrónica de dados como forma exclusiva da prática dos actos escritos das partes em juízo – n.os 1 a 6 da norma, em articulação com o art.º 132º n.º 1 do mesmo diploma e com a Portaria n.º 280/2013, de 26.8 –, com a única derrogação de, não sendo obrigatória a constituição por advogado e não estando o interessado patrocinado, se permitir a entrega das peças em mão na secretaria judicial, a remessa delas por correio registado ou o seu envio por telecópia – n.º 7 do preceito.

           Ora, vale tudo isto por dizer que, como assinala o próprio Acórdão Recorrido, o quadro legal que relevou na sua decisão – é dizer, o do CPC/2013 e da Portaria n.º 280/2013 referida, esta na redacção da Portaria n.º 170/2017, de 25.5, tudo por referência à data de 1.6.2018, que foi a da apresentação da reclamação para a conferência [[8]] – não foi manifestamente o mesmo em se moveu o acórdão de fixação, pelo que logo fica excluído o pressuposto da identidade da questão de direito tratada num e noutro, que constitui requisito inafastável do recurso extraordinário.

            Mais do que isso, sobre ser outro o quadro, é bem diversa a sua filosofia geral, a apontar, decididamente, para a adopção da transmissão electrónica de dados como única forma da prática de actos processuais das partes, apenas se tolerando outras formas – mas, mesmo assim, sem que entre elas esteja expressamente previsto o correio electrónico –, a título residual mormente e com já referido, nas causas em que, não sendo o patrocínio obrigatório, não intervenha mandatário judicial.

            Quadro esse em que, de resto, já não operava a restrição do regime da tramitação electrónica aos procedimentos cíveis, que constava do art.º 2º da Portaria n.º 280/2013 na sua versão inicial, que a essa data já tinha sido revogado pela Portaria n.º 170/2017, de 25.5, que, do mesmo passo, alargara o âmbito daquele regime a todos o processos jurisdicionalizados de 1ª instância [[9]].

            E quadro aquele em que, não obstante ainda não alargado, ao tempo, aos tribunais superiores o regime da tramitação electrónica [[10]], só muito dificilmente poderia continuar a autorizar uma solução como, v. g., a do AcSTJ de 24.1.2018 - Proc. n.º 5007/14.8TDLSB.L1.S1, in wwwdgsi.pt, que muito condicionado pelo aplicabilidade, no caso, da Portaria n.º 280/2013 na sua versão originária – e, portanto, do seu art.º 2 que, como referido, restringia a aplicabilidade do seu regime e do art.º 144º do CPC aos processos de natureza cível – concluiu que a jurisprudência do AFJ n.º 3/2014 mantinha actualidade, devendo, em consonância com ela, «considerar-se admissível, em processo penal, a remessa a juízo de peças processuais através de correio electrónico, nos termos do disposto no art. 150.º, n.º 1, al. d), e n.º 2, do CPC de 1961, na redacção do DL 324/2003, de 27-12, e na Portaria 642/2004, de 16-06, aplicáveis conforme o disposto no art. 4.º do CPP».

            10. Razões por que – e com isto se remata – se entende que o presente recurso, ainda que convolado para contra jurisprudência fixada previsto no art.º 446º do CPP, não pode ter seguimento por falência do pressuposto de identidade da questão de direito/identidade substancial do quadro normativo e, por via dele do requisito substancial da oposição de julgados, por isso que havendo de ser rejeitado nos termos dos art.os 446º n.º 1, 437º n.os 1 e 3, 440º n.os 3 e 4 e 441º n.º 1, todos do CPP.

            IV. Conclusão-parecer.

   11. Termos em que, com atenção a todo o exposto, o Ministério Público se pronuncia pela rejeição do recurso nos termos dos art.os 440º n.os 3 e 4 e 441º n.º 1 do CPP, por inverificado o requisito substancial da oposição de julgados exigido pelos art.os 446º n.º 1 e 437º do CPP.

    4. Colhidos os vistos legais e presentes os autos à conferência, cumpre apreciar e decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. Questão prévia: a qualificação/tipologia do recurso interposto

  O recorrente foi condenado em 1.ª instância na pena de quatro meses de prisão, suspensa por um ano, pela prática de um crime de desobediência p. e p. pelo artigo 348º n.º 1 alínea b), do Código Penal.

           O recurso ordinário que interpôs para o Tribunal da Relação de Coimbra foi rejeitado por decisão sumária do Exmo. Desembargador Relator, por «extemporaneidade e manifesta irreunião dos pressupostos legais».

           Reclamou em 1.6.2018 dessa decisão para a conferência, apresentando requerimento por correio electrónico.

            Apoiando-nos na correcta síntese efectuada no douto parecer emitido pelo Ex.mo Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal:

  O Acórdão Recorrido recusou o conhecimento da reclamação com base nos seguintes, resumidos, fundamentos:

            ─ Por via da entrada em vigor em 1.9.2013 da versão do Código de Processo Civil reformada pela Lei n.º 41/2013, de 26.6, foi revogada – art.º 4º al.ª a) respectivo – a legislação que, na visão interpretativa do AFJ n.º 3/2014, permitia a prática de actos em processo penal por correio electrónico, mormente, o art.º 150º n.º 1 al.ª d) do CPC/1961, na redacção do Decreto-Lei n.º 324/2003, de 27.12, e a regulamentação dele dependente, designadamente, a da Portaria n.º 642/2004, 16.6.

           ─ Na consequência, a disciplina do mencionado acórdão ficou «[…] automaticamente ultrapassada, prejudicada e caducada […]».

  ─ A partir da mencionada, inexiste base legal ou jurisprudencial que, em processo penal, autorize a apresentação de peças em juízo através de correio electrónico.

    ─ À data da prática do acto de reclamação, dispunha o Recorrente, em alternativa, de três meios para o concretizar, de que nenhum, porém, lançou mão: entrega da peça na secretaria judicial; remessa por correio registado; envio por telecópia, através de equipamento constante da lista oficial, nos termos do Decreto-Lei n.º 28/92, de 27.2.

            ─ O acto de reclamação, na forma em que foi praticado, está ferido de nulidade, por violador de normas expressas e imperativas – art.os 295º e 294º do CC.

       ─ Tanto constitui excepção dilatória que obsta ao conhecimento do respectivo mérito – art.os 278º al.ª e), 576º n.os 1 e 2, 577º e 578º, todos do CPC, e 4º.»

           Notificado o recorrente na pessoa do defensor, por carta registada a 11.10.2018 – o Ministério Público, esse, foi notificado por termos nos autos de 11.10.2018 –, veio o mesmo, em 29.11.2019, interpor o presente recurso – o que fez no 33º dia posterior ao trânsito, ocorrido a 25.10.2018, e mediante o pagamento da multa prevista nos art.os 139º do CPC e 107º n.º 5 e 107º-A.

           Alega o recorrente que o acórdão recorrido está em contradição com o Acórdão de Fixação de Jurisprudência (AFJ) n.º 3/2014, de 6 de Março de 2014[11], afirmando que o mesmo não caducou.

            Invoca as disposições contidas nos artigos 437.º n.os 2 e 5 e 438.º n.os 1 e 2, do CPP, designando o recurso expressamente como recurso «EXTRAORDINÁRIO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA».

           Sendo invocada a oposição entre o acórdão recorrido e um AFJ, tem-se, concordando com o entendimento do Ministério Público neste Supremo Tribunal, que «a referência ao recurso de fixação e ao art.º 437º tem, assim, que ser levada à conta de lapso que, atento o quadro desenhado e o fundamento invocado, o recurso é o contra jurisprudência fixada do art.º 446º».

           Assim, é igualmente nosso entendimento de que, perante uma situação de erro na forma de processo, a sua reparação é possível conforme dispõe o artigo 193.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicável ex vi artigo 4.º do CPP, sendo fácil adaptação dos termos do recurso interposto aos termos do recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada. Neste sentido, se julgou no acórdão deste Supremo Tribunal de 26-06-2013, proferido no processo n.º 83/04.4IDCBR.C1-A.S1 - 5.ª Secção[12]:

           «I - O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do art. 437.º do CPP destina-se a solucionar um conflito jurisprudencial sobre determinada questão de direito entre dois acórdãos de tribunal superior, não podendo qualquer deles ser de fixação de jurisprudência.

           Se um acórdão do Tribunal de Relação ou do STJ está em oposição com um AFJ, que é sempre deste último tribunal, essa situação é tratada à luz do art. 446.º do CPP, dando lugar a outro recurso extraordinário, o de decisão proferida contra jurisprudência fixada.

            II - Deste modo, o requerimento dos requerentes, inoperante como recurso para fixação de jurisprudência nos termos do art. 437.º do CPP, tendo em conta a situação que alegam, deve ser apreciado como sendo um recurso de decisão supostamente proferida contra jurisprudência fixada, nos termos do art. 446.º do CPP, uma vez que o erro na forma de processo não implica o desaproveitamento dos actos que possam ser aproveitados, como resulta do art. 199.º do CPC, aplicável por força do art. 4.º do CPP».

            Perante o exposto, prossegue a presente instância recursória como recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada.

2. Enquadramento jurídico

            Sob a designação genérica e abrangente contida na expressão «Da fixação de jurisprudência», epígrafe do Capítulo I do Título II, dedicado aos «Recursos extraordinários», abrangendo os artigos 437.º a 448.º do CPP, são previstos diferentes sub-espécies de recursos, os quais, como assinalam MANUEL SIMAS SANTOS, MANUEL LEAL-HENRIQUES e JOÃO SIMAS SANTOS, têm em vista «pugnar por decisões uniformes e comunitariamente aceites»[13] .

           Contemplam-se, assim, o recurso de fixação de jurisprudência propriamente dito, previsto no artigo 437.º do CPP, o recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, referido no artigo 446.º do mesmo diploma, e, por fim, os recursos interpostos no interesse da unidade do direito a que se refere o artigo 447.º do mesmo Código.

           

            O recurso para fixação de jurisprudência tem como objectivo a uniformização da jurisprudência, eliminando o conflito originado por duas decisões contrapostas a propósito da mesma questão de direito e no domínio da mesma legislação.

            O artigo 437º do CPP enuncia o fundamento do recurso.

           O artigo 446.º do CPP rege sobre o recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, estipulando que:
«1. É admissível recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça de qualquer decisão proferida contra jurisprudência por ele fixada, a interpor no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da decisão recorrida, sendo correspondentemente aplicáveis as disposições do presente capítulo.
2. O recurso pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público.
3. O Supremo Tribunal de Justiça pode limitar-se a aplicar a jurisprudência fixada, apenas devendo proceder ao seu reexame se entender que está ultrapassada.»

    Da articulação dos artigos 437.º, 444.º, 445.º, 446.º e 447.º do CPP, decorre que, como se assinala no acórdão deste Supremo Tribunal, de 03-06-2009 (Proc. n.º 21/08.5GAGDL.S1 – 5.ª Secção), «a lei indica que a regra é a de que a jurisprudência fixada deverá ser seguida, se necessário ordenando-se a sua observância. Surgindo como excepção, a eventualidade do seu desrespeito, no caso de a jurisprudência em apreço ser de considerar ultrapassada».

   E «só um condicionalismo superveniente – lê-se no acórdão deste Supremo Tribunal, de 03-10-2012, proferido no processo n.º 382/09.9PCGDM.P1.S1 – 3.ª Secção, em relação à altura da prolação do acórdão para fixação de jurisprudência, poderá atingir a jurisprudência fixada. Para que a jurisprudência fixada possa ser considerada ultrapassada, importa que os juízes na conferência constatem que a questão jurídica é de novo controvertida, porque há argumentos novos e ponderosos que justificam o reexame da jurisprudência fixada” (cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, pág. 1193)».

            No modelo criado com a revisão do CPP pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, e acompanhando SIMAS SANTOS e LEAL-HENRIQUES, «os tribunais judiciais podem decidir contra a jurisprudência fixada, desde que fundamentem as divergências em relação a tal jurisprudência»[14] .

           O recurso de decisões proferidas contra jurisprudência fixada, previsto no artigo 446.º do CPP, acima transcrito, constitui o mecanismo adequado para reacção a tais situações, cumprindo assinalar a obrigatoriedade imposta ao Ministério Público em recorrer de todas as decisões judiciais contrárias a jurisprudência anteriormente fixada em conflito de decisões proferidas sobre a mesma questão de direito.

           Daí que, como se considera no acórdão deste Supremo Tribunal de 29-04-2015 (Proc. n.º 20/02.0IDBRG-X-G1-A.S1 – 5.ª Secção), o recurso de decisão em que se invoca a sua não conformidade com um acórdão de fixação de jurisprudência «tem em vista a defesa de um interesse na unidade do direito».

           No âmbito do recurso previsto no artigo 446.º do CPP, não há, como observam os autores citados um verdadeiro conflito de jurisprudência, «já que não patenteia qualquer conflito para dirimir», configurando-se, isso sim, «um meio impugnatório apto não só a fazer respeitar jurisprudência fixada anteriormente, mas também a possibilitar o reexame dessa jurisprudência».

            De harmonia com o preceituado nos n.os 1, 2, e 3 do art. 446.º do CPP, é admissível recurso directo para o STJ - a interpor no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da decisão recorrida, pelo arguido, pelo assistente, pelas partes civis ou pelo MP, para quem é obrigatório - de qualquer decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo mesmo STJ, que pode limitar-se a aplicar a jurisprudência já fixada, apenas devendo proceder ao seu reexame se entender que ela se encontra ultrapassada.

           Para além dos pressupostos formais que ficaram referidos, exige ainda a lei, no que concerne aos recursos de fixação de jurisprudência e de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo STJ, pressupostos substanciais, a saber:
- Justificação da oposição entre os acórdãos (o fundamento e o recorrido) que motiva o conflito de jurisprudência, e
- Inalterabilidade da legislação no período compreendido entre a prolação das decisões conflituantes.

            Ainda para além destes pressupostos tem a jurisprudência do STJ referido outros dois que se reportam à necessidade de a questão decidida em termos contraditórios ser objecto de decisão expressa nos dois arestas e de a identidade das situações de facto estar subjacente à questão de direito.

2. Apreciação

Posto isto, importa indagar da verificação dos requisitos do recurso extraordinário interposto, isto é, da sua admissibilidade e da existência de oposição entre julgados.

Iniciamos tal tarefa com a verificação dos pressupostos de natureza formal.

Que se verificam.

O recorrente, enquanto arguido, tem legitimidade para o presente recurso. O acórdão recorrido transitou em julgado. O recurso foi interposto dentro do prazo legal, valendo-se o recorrente do disposto nos artigos 239.º do CPC e 107.º, n.º 5 e 107.º-A do CPP.

            Já o pressuposto de natureza substancial - inalterabilidade da legislação no período compreendido entre a prolação das decisões conflituantes - não se verifica.

           Segundo o AFJ 3/2014 com o qual alegadamente o acórdão recorrido se encontra em conflito:

 «Em processo penal, é admissível a remessa a juízo de peças processuais através de correio electrónico, nos termos do disposto no artigo 150.º, n.º 1, alínea d), e n.º 2, do Código de Processo Civil de 1961, na redacção do Decreto-Lei nº 324/2003, de 27.12, e na Portaria nº 642/2004, de 16.06, aplicáveis conforme o disposto no artigo 4º do Código de Processo Penal».

           Como se salienta no já citado parecer do Ex.mo Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal, em argumentação que secundamos:

           «O acórdão uniformizador foi, desse modo, tirado com referência ao art.º 150º n.os 1 al.ª d) e 2 do CPC/1961, na redacção Decreto-Lei n.º 324/2003 – que previa entre as formas da prática dos actos processuais escritos das partes a remessa a juízo por correio electrónico [-] – e à Portaria n.º 642/2004, de 16.6 – que, além do mais, regulava aquela forma de prática de actos [-]. Preceitos e diploma que, pesem as alterações introduzidas no art.º 150º referido pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24.8 – que, entre o mais, eliminaram a possibilidade da apresentação de peças por correio electrónico – e a substituição da Portaria n.º 642/2004 pela Portaria n.º 114/2008, de 6.2, o acórdão uniformizador considerou sobrevigentes em processo penal, por isso que fixando interpretação no sentido de continuar a ser permitido nesse contexto a remessa a juízo de peças processuais por correio electrónico.

           Acontece todavia que o CPC/1961 foi revogado e substituído, a partir de 1.9.2013 pelo CPC/2013, aprovado pela Lei n.º 41/2013 de 26.6, cujo art.º 144º optou pela transmissão electrónica de dados como forma exclusiva da prática dos actos escritos das partes em juízo – n.os 1 a 6 da norma, em articulação com o art.º 132º n.º 1 do mesmo diploma e com a Portaria n.º 280/2013, de 26.8 –, com a única derrogação de, não sendo obrigatória a constituição por advogado e não estando o interessado patrocinado, se permitir a entrega das peças em mão na secretaria judicial, a remessa delas por correio registado ou o seu envio por telecópia – n.º 7 do preceito.

Ora, vale tudo isto por dizer que, como assinala o próprio Acórdão Recorrido, o quadro legal que relevou na sua decisão – é dizer, o do CPC/2013 e da Portaria n.º 280/2013 referida, esta na redacção da Portaria n.º 170/2017, de 25.5, tudo por referência à data de 1.6.2018, que foi a da apresentação da reclamação para a conferência [-] – não foi manifestamente o mesmo em se moveu o acórdão de fixação, pelo que logo fica excluído o pressuposto da identidade da questão de direito tratada num e noutro, que constitui requisito inafastável do recurso extraordinário.

           Mais do que isso, sobre ser outro o quadro, é bem diversa a sua filosofia geral, a apontar, decididamente, para a adopção da transmissão electrónica de dados como única forma da prática de actos processuais das partes, apenas se tolerando outras formas – mas, mesmo assim, sem que entre elas esteja expressamente previsto o correio electrónico –, a título residual mormente e com já referido, nas causas em que, não sendo o patrocínio obrigatório, não intervenha mandatário judicial.

Quadro esse em que, de resto, já não operava a restrição do regime da tramitação electrónica aos procedimentos cíveis, que constava do art.º 2º da Portaria n.º 280/2013 na sua versão inicial, que a essa data já tinha sido revogado pela Portaria n.º 170/2017, de 25.5, que, do mesmo passo, alargara o âmbito daquele regime a todos o processos jurisdicionalizados de 1ª instância [-].»

           O sedimento normativo em que assentou o acórdão recorrido, proferido em 10 de Outubro de 2018, é, pois, claramente diferente daquele que está subjacente no AFJ n.º 3/2014, por força da alteração legislativa decorrente da publicação e entrada em vigor, a partir de 1 de Setembro de 2013, do novo CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, e da publicação da Portaria n.º 280/2013, de 26 de Agosto, alteração que veio a interferir efectivamente na resolução da questão objecto de pronúncia na decisão recorrida.

           Não existindo essa identidade normativa nas situações apreciadas no acórdão recorrido e no acórdão fundamento, torna-se evidente que são também diferentes as pronúncias em termos de direito, o que afasta, sem margem para dúvidas, a integração do pressuposto substancial da oposição de julgados.

           O recurso interposto, convolado para recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada, deve, assim, ser rejeitado, nos termos do disposto nos artigos 446.º, n.º 1, 437.º e 441.º, n.º 1, do CPP.

III - DECISÃO

Termos em que acordam os juízes da 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em rejeitar o recurso extraordinário de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça interposto por AA.

Custas pelo recorrente com 4 UC de taxa de justiça.

(Processei e revi – artigo 94.º, n.º 2, do CPP)

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 25 de Setembro de 2019

Manuel Augusto de Matos (Relator)

Lopes da Mota

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[1]             Mantêm-se os trechos destacados no original.
[2]            Diploma a que pertencerão todos os normativos que a seguir se citarem sem menção de origem.
[3]            Acórdão STJ de 20.6.2013 - Proc. n.º 83/04.4IDCBR.C1-A.S1, 5.ª Secção, sumariado em www.stj.pt.
[4]  Cfr. Acórdão do STJ, de 01-02-2017, processo n.º 446/07.3ECLSB.L1-C.S1 - 3ª Secção, com sumário disponível em https://www.stj.pt/?page_id=4471.
[…].
[5]             ln "Recursos em Processo Penal", Rei dos Livros, 8ª edição, pág. 183.» 3 Destacados a negrito do signatário.
[6]             N.º 1 al.ª d) da norma.
[7]             Art.º 1º n.º 1 do diploma.
[8]             Cfr. n.º 2., terceiro parágrafo, supra.
[9]  Art. 1.º da Portaria n.º 280/2013, na redacção da Portaria n.º 170/2017.
[10]     O que só viria a acontecer a partir de 9.10.2018 para os Tribunais da Relação e de 11.12.2018 para o Supremo Tribunal de Justiça, e, ainda assim, com algumas nuances, como tudo melhor decorre dos art.º 18º n.os 1 a 3 da Portaria n.º 267/2018, de 20.9 e, da nova redacção que deu aos art.os 1º e 19º da Portaria n.º 280/2013.
[11]     Publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 74, de 15 de Abril de 2014.
[12]   Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça - Secções Criminais, 2013.
[13]           Noções de Processo Penal, Rei dos Livros, p. 531.
[14] Recursos em Processo Penal – 7.ª Edição (actualizada e aumentada), Editora Rei dos Livros, 2008, p. 199.