Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
284/06.0TBFND.C1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: HÉLDER ROQUE
Descritores: CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
TRADIÇÃO DA COISA
POSSE
AQUISIÇÃO DERIVADA
CONTRATO DE COMODATO
MERA DETENÇÃO
ACTO DE MERA TOLERÂNCIA
RESTITUIÇÃO DE POSSE
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 02/09/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I - Tendo o autor começado por viver no apartamento, por acto de consentimento da ré, promitente-compradora do mesmo, que dele tinha a tradição, fê-lo por mera tolerância desta, não procedendo com a intenção de agir em nome próprio, mas antes de actuar em nome daquela, numa situação configurável como detenção ou posse precária.
II - Nos casos de tradição da coisa operada pelo promitente vendedor, a ocupação, uso e fruição da mesma pelo promitente-comprador é lícita e legítima, podendo, em princípio, a posse ser defendida pelos meios de tutela possessória facultados pelos arts. 1276.º a 1279.º do CC.
III - A tradição material da coisa, concretizada através do acto de entrega efectiva do apartamento à ré, por parte do promitente-vendedor, consubstancia a aquisição derivada da posse e induz a intenção do possuidor de exercer o correspondente direito de propriedade.
IV - Não provando o autor a existência de título, nem a situação de posse, pois que se demonstrou que de um mero comodatário, portanto, possuidor precário, se trata, deve a ré-reconvinte, beneficiária da tradição material da fracção, por parte do promitente-vendedor, ser restituída à posse da mesma.
Decisão Texto Integral:


ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


AA, residente na Rua Dr. C… M…, nº …, 3º esquerdo, Fundão, propôs a presente acção possessória de prevenção contra BB, moradora na Rua Dr. C… M…, nº …, 2º esquerdo, Fundão, pedindo que, na sua procedência, a ré se abstenha de praticar qualquer acto ofensivo da posse do autor, sob pena das sanções a que alude o artigo 1276°, do Código Civil, alegando, para tanto, e, em resumo, que tem a posse do andar, sito na Rua Dr. C… M… n°…, 3° esquerdo, no Fundão, que lhe adveio de uma permuta verbal, acompanhada da promessa da oportuna redução a escritura publica, o que não aconteceu, sendo certo que a ré tem vindo a pôr em causa a sua posse.
Na contestação, a ré defende-se por impugnação e, em reconvencão, pede a condenação do autor a reconhecer que é a legitima possuidora das fracções, obrigando-se este à sua restituição e ainda ao pagamento de uma indemnização, com a consequente condenação como litigante de má-fé.
Na réplica, o autor sustenta a improcedência do pedido reconvencional formulado pela ré.
A sentença julgou a acção improcedente, mas procedente a reconvenção e, em consequência, absolveu a ré do pedido e condenou o autor-reconvindo a reconhecer que a ré-reconvinte é a legítima possuidora das fracções prediais, referidas no artigo 1º da petição inicial e nos artigos 18º e 39º da contestação/reconvenção, a restituir à reconvinte a plena posse daquelas fracções, removendo delas todos e quaisquer bens que ali tenha guardados e depositados e desocupando-os, completamente, abstendo-se de praticar quaisquer actos que estorvem, impeçam ou lesem a posse da reconvinte, a indemnizar a reconvinte pelos factos praticados, referidos nos pontos 4 (factos assentes) e 18 a 20, cuja liquidação se remete para execução de sentença, e declarou que as partes não litigaram com má-fé.
Desta sentença, o autor interpôs recurso, tendo o Tribunal da Relação julgado improcedente a respectiva apelação, confirmando a decisão impugnada.
Do acórdão da Relação de Coimbra, o mesmo autor interpôs recurso de revista, terminando as alegações com o pedido de declaração da respectiva nulidade ou, se assim se não entender, com o pedido da sua revogação, por erro na determinação da norma aplicável, formulando a seguinte conclusão, que se transcreve:
O douto acórdão, ora recorrido, errou na determinação da norma aplicável, porquanto o regime do artigo 1253º, do Código Civil, não é aplicável aos autos, devendo antes ser o artigo 1259º, do Código Civil, com as legais consequências.
A ré não apresentou contra-alegações.
O Tribunal da Relação entendeu que se devem considerar demonstrados os seguintes factos, que este Supremo Tribunal de Justiça aceita, nos termos das disposições combinadas dos artigos 722º, nº 2 e 729º, nº 2, do Código de Processo Civil (CPC), mas reproduz:
1. Por contrato de compra e venda celebrado por escritura pública, em 23 de Junho de 2005, a ré adquiriu à Caixa Económica Montepio Geral o prédio urbano, sito na Arieira do Cabeço do Seixo ou Tapada do Castanho, conforme documento de folhas 4 a 76, que se dá por, integralmente, reproduzido.
2. A ré e “A… - Sociedade de Construções, Lda” celebraram, em
29 de Janeiro de 2002, o contrato promessa de compra e venda, que está a fls. 87 e 88, que se dá por, integralmente, reproduzido, no qual a promitente vendedora entregou, nessa data, as fracções prediais, aí referidas, à ré-reconvinte.
3. Foi deduzida queixa-crime contra o ora autor, em processo que corre os seus termos, sob o n°250/05.3 GBFND do 2° Juízo deste Tribunal.
4. No dia 28 de Março de 2006, o autor deitou a porta abaixo com uma moto serra.
5. O autor tem, pelo menos, desde 22 de Dezembro de 2004, a posse do andar onde vive, sito na Rua Dr. C… M…, nº 148, 3° esquerdo, Fundão, e de uma garagem com capacidade para 2 viaturas, a que denomina n°2.
6. Autor e ré encetaram negociações para a compra e venda do andar e
garagem, referidos no ponto 1.
7. A ré, em data não apurada, mas posterior a Dezembro de 2004, acompanhada de quatro indivíduos, postou-se na escada do prédio, evitando que o autor chegasse à sua casa.
8. À ameaça que constituía a presença dos quatro indivíduos, juntaram-se as atitudes da ré que, imediatamente, disse ao autor para se “pôr na rua ".
9. O Montepio Geral executou o ora autor e penhorou-lhe a casa de rés-do-chão, sito no Cabeço do Seixo, Quinta Nova, descrita na Conservatória do Registo Predial de Fundão, sob o n°00209/121285.
10. A ré, em 2 de Fevereiro de 2004, celebrou com o Montepio Geral contrato-promessa de compra e venda, cujo objecto é o prédio urbano, referido no ponto 5, tendo vindo a celebrar a escritura definitiva, no dia 23 de Junho de 2005.
11. O autor recebeu da ré uma das chaves do 3° andar esquerdo do n°148 da Rua Dr. C… M… e depositou nesse apartamento e numa das garagens que a ré tinha no edifício os diversos bens de mobília que tinha a ocupar a casa comprada pela ré ao Montepio Geral.
12. A ré não consente que o autor continue a utilizar a garagem e as salas do apartamento do 3° andar esquerdo do n°148 da Rua Dr. C… M…, exigindo que lhe restituía, imediatamente, a garagem e o apartamento.
13. O autor recusa-se a remover os seus móveis da garagem e do apartamento de cujas chaves lhe foi facultado um exemplar pela ré.
14. Sendo que a ré conservou e conserva os demais exemplares das
chaves.
15. A ré, além do referido 3° esquerdo do n°148, aí tem outros apartamentos e garagens.
16. O apartamento, a que aludem o artigo 1° da petição inicial e os artigos 18° a 20° da contestação-reconvenção, é uma fracção correspondente ao terceiro andar esquerdo do edifício, sito no Lote n°148, da Rua Dr. C… M…, na cidade do Fundão.
17. Tal edifício foi construído por “A… - Sociedade de Construções, Lda”, em terreno que esta sociedade tinha como seu e se encontrava
registado a seu favor, como o Lote n°148, da Zona de Expansão Poente do Fundão.
18. Naquele escrito de contrato-promessa, a, então, primeira contraente, “A… - Sociedade de Construções, Lda”, fez imediata tradição da posse das fracções aludidas nesse contrato e no artigo anterior, expressamente, declarando que, nessa data, fazia a entrega dessas fracções à ora reconvinte.
19. E, naquela mesma data de 29 de Janeiro de 2002, a ora reconvinte logo recebeu da dita sociedade “A… - Sociedade de Construções, Lda” as fracções transaccionadas no referido contrato-promessa, recebendo e guardando consigo todas as respectivas chaves e exemplares vários das chaves dos espaços comuns do edifício.
20. E logo passou a ocupar, mobilar, decorar e, plenamente, utilizar aquelas fracções, habitando-as e dando-as a utilizar a pessoas a quem cedeu ou facultou o gozo delas e em tudo agindo e sendo vista, por toda a gente, como a proprietária das aludidas fracções prediais.
21. O que manteve, à vista e com conhecimento de toda a gente, com reconhecimento e pacífico respeito da sua posição de possuidora, por toda a gente e, designadamente, pela sociedade “A… - Sociedade de Construções, Lda”, que com ela manteve contacto e colaboração na resolução dos trâmites administrativos para a preparação da definitiva escritura pública de compra e venda das fracções que com ela transaccionou, ininterruptamente, e sem restrições ou perturbações.
22. A ré tem sido perturbada na sua posse pelo ora autor.
23. A ré-reconvinte tem instado o autor-reconvindo a remover os bens móveis que mantém na garagem e no 3o andar esquerdo em referência e a restituir-lhe as chaves.
24. O autor-reconvindo recusa-se a fazer tal remoção.
25. O autor faz as suas refeições, dorme e habita, quotidianamente, no andar, referido no ponto 1.
26. O que faz, à vista de toda a gente.
27. O autor aí tem a sua mobília.

Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.
A única questão a decidir, na presente revista, em função da qual se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3, 690º e 726º, todos do CPC, consiste em saber qual a natureza jurídica dos actos de posse praticados sobre o imóvel pelo autor e pela ré.

DA NATUREZA JURÍDICA DOS ACTOS DE POSSE PRATICADOS SOBRE O IMÓVEL

Sustenta o autor, nas alegações da revista, que o regime aplicável ao caso «sub judice» é o do artigo 1259º e não o do artigo 1253º, ambos do Código Civil (CC), ou seja, que a sua posse é titulada e não uma posse precária ou mera detenção.
Revertendo ao caso em apreço, ficou demonstrado que, em 29 de Janeiro de 2002, “A… - Sociedade de Construções, Ldª”, prometeu vender à ré um apartamento, situado no Fundão, com uma garagem, que a esta fez imediata tradição, e que a ré, no mesmo dia, recebeu, guardando consigo todos os exemplares das respectivas chaves, que passou a ocupar, mobilar, decorar e a utilizar, plenamente, habitando-o e dando-o a utilizar a pessoas a quem cedeu ou facultou o respectivo gozo, em tudo agindo e sendo vista, por toda a gente, como a proprietária da aludida fracção predial, o que manteve, à vista e com conhecimento de toda a gente, com reconhecimento e pacífico respeito da sua posição de possuidora, por toda a gente, e, designadamente, pela aludida sociedade, sem interrupções, restrições ou perturbações.
Por outro lado, tendo o Montepio Geral movido acção executiva contra o autor, penhorou-lhe uma casa de rés-do-chão, sita no Fundão, que a ré, na sequência de um contrato-promessa, viria a celebrar a respectiva escritura definitiva de compra e venda correspondente ao contrato prometido, no dia 23 de Junho de 2005.
Efectivamente, em resultado de negociações estabelecidas entre a ré e o autor para a compra e venda do aludido apartamento, este encontra-se a viver nesse espaço, pelo menos, desde 22 de Dezembro de 2004, tendo recebido da ré um exemplar das respectivas chaves, onde depositou os diversos bens de mobília que tinha na casa comprada pela ré ao Montepio Geral, faz as refeições, dorme e habita, quotidianamente, à vista de toda a gente.
Porém, a ré não consente que o autor continue a utilizar a garagem e as salas do apartamento, de que conserva os demais exemplares das
chaves, e exige a sua restituição imediata, instando-o a remover os bens móveis que mantém na garagem e no apartamento e a restituir-lhe as chaves, o que o autor recusa, pelo que aquela, em data não apurada, mas posterior a Dezembro de 2004, acompanhada de quatro indivíduos, postou-se na escada do prédio, evitando que o autor aí entrasse, tendo a ré, imediatamente, dito ao mesmo para se " pôr na rua ".
A ré deduziu queixa-crime contra o autor que, no dia 28 de Março de 2006, deitou a abaixo a porta do apartamento com um moto serra.
Quer isto dizer, e agora numa expressão mais sintética e crítica que, na iminência da venda executiva da moradia onde o autor habitava, este acordou com a ré, no âmbito das negociações com a mesma entabuladas com vista à compra e venda de um apartamento que a esta fora prometido vender, por “A… - Sociedade de Construções, Ldª”, de quem a ré recebeu as chaves, e que do mesmo lhe fez tradição, começar a viver nesse espaço, o que acontece, pelo menos, desde 22 de Dezembro de 2004, quotidianamente, à vista de toda a gente, sendo certo que, entretanto, a ré deixou de consentir que o autor continue a utilizá-lo e exige a sua restituição imediata.
Contudo, recusando-se o autor a restituir o apartamento e a garagem à ré, esta, acompanhada de quatro indivíduos, tentou impedir-lhe a entrada no mesmo, dizendo-lhe para se "pôr na rua ", e deduziu queixa-crime contra ele que, por seu turno, deitou abaixo a porta do apartamento com um moto serra.
O autor propôs a presente acção de prevenção de posse, com vista a que, na qualidade de possuidor perturbado pela ré, esta seja intimada a abster-se de praticar qualquer acto ofensivo da sua posse, nos termos e para os efeitos do disposto pelo artigo 1276º, do CC.
Por sua vez, a ré, em reconvenção, invocando a perturbação da sua posse pelo esbulho do autor, pede que seja restituída na mesma, em relação à situação anterior, em conformidade com o disposto pelo artigo 1277º, do CC.
Ora, “no caso de recorrer a Tribunal, o possuidor perturbado ou esbulhado será mantido ou restituído enquanto não for convencido na questão da titularidade do direito”, em conformidade com o estipulado pelo artigo 1278º, nº 1, do CC.
A este propósito, prossegue o nº 2 deste artigo 1278º, do CC, ao estatuir que “se a posse não tiver mais de um ano, o possuidor só pode ser mantido ou restituído contra quem não tiver melhor posse”, acrescentando o respectivo nº 3 que “é melhor posse a que for titulada; na falta de título, a mais antiga; e, se tiverem igual antiguidade, a posse actual”.
E a posse diz-se titulada, segundo dispõe o artigo 1259º, nº 1, do CC, quando se “…funda em qualquer modo legítimo de adquirir, independentemente, quer do direito do transmitente, quer da validade substancial do negócio jurídico”, sendo certo, prossegue o respectivo nº 2, que “o título não se presume, devendo a sua existência ser provada por aquele que o invoca”.
Por seu turno, são havidos como detentores ou possuidores precários, de acordo com o preceituado pelo artigo 1253º, do CC, os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito [a], os que simplesmente se aproveitam da tolerância do titular do direito [b] e
os representantes ou mandatários do possuidor e, de um modo geral, todos os que possuem em nome de outrem [c].
São, assim, pressupostos constitutivos da acção de manutenção e restituição de posse, a posse e a turbação ou o esbulho.
Será, então, que o autor ou a ré tinham a posse, de que aquele diz sentir-se ameaçado de ser perturbado e a última alega estar a ser esbulhada?
O autor começou a viver no apartamento, que tinha anexo uma garagem, pelo menos, desde 22 de Dezembro de 2004, por acto de consentimento da ré, promitente compradora do mesmo, por mera tolerância desta, não procedendo com a intenção de agir, em nome próprio, mas antes de actuar, em nome daquela.
Ora, tendo a ré a tradição do aludido apartamento e garagem, que utilizava, plenamente, há cerca de três anos, exigiu ao autor a sua restituição imediata, não sendo, assim, oponível à mesma, para o efeito de lhe recusar o gozo e de se permitir deixar de lhe restituir o bem, logo que a ré o reclame, a utilização que o autor vem praticando sobre a coisa, atento o disposto pelo artigo 1137º, nº 2, do CC.
Trata-se de um caso de posse em nome alheio que tem na sua base um título do qual não resulta o direito real aparente, mas apenas o direito de utilizar a coisa, ou seja, um título que, por si só, qualifica a situação como detenção ou posse precária, como acontece quando provém de um contrato de comodato (1).
Efectivamente, não chegando o autor a celebrar com a ré um contrato-promessa de compra e venda, em relação à fracção autónoma em causa, praticou sobre esta actos materiais, sem intenção de se comportar como titular do direito real correspondente aos mesmos, como poderia ter acontecido com a entrega real do bem, operada por aquela, em hipotética antecipação do contrato prometido.
E, não tendo os actos de retenção praticados pelo autor sobre o apartamento da ré origem em qualquer negócio jurídico válido, cujo objecto tivesse sido o mesmo prédio, não existe posse titulada.
É, portanto, a situação fáctica do autor configurável como a de um simples detentor ou possuidor precário.
Por sua vez, a ré, na qualidade de promitente compradora de um andar de prédio urbano, com imediata tradição efectiva do bem, e na previsão da futura outorga do contrato de compra e venda prometido, passou a conduzir-se como se o imóvel fosse seu, designadamente, fruindo-o, em pleno, habitando-o e dando-o a utilizar a pessoas a quem cedeu ou facultou o gozo, em tudo agindo e sendo vista, por todos, como a proprietária da aludida fracção predial, o que manteve, com reconhecimento e pacífico respeito da sua posição de possuidora, por toda a gente, desde Janeiro de 2002, durante mais de quatro anos, ininterruptamente, com o «animus» de exercer o direito, em seu próprio nome e interesse, e não do promitente vendedor.
Efectivamente, em todos os casos de tradição da coisa, operada pelo promitente vendedor, a ocupação, uso e fruição da mesma, pelo promitente comprador, é lícita e legítima, na falta de termo especial, até à resolução do contrato-promessa ou à celebração do contrato prometido, podendo, consequentemente, a posse ser defendida pelos meios de tutela possessória facultados pelos artigos 1276º a 1279º, do CC (2).
Revertendo ao caso dos autos, registe-se que o poder fáctico da ré sobre o prédio urbano, consubstanciado nos actos materiais que praticou sobre o mesmo, manifesta-se, através de uma acção correspondente ao exercício do direito de propriedade, atento o disposto pelo artigo 1251º, do CC, isto é, traduz uma situação de posse.
Assim sendo, verificados que estão os requisitos da posse e do esbulho do prédio, resta saber se ocorre algum obstáculo à restituição da posse à ré.
Quem está na posse da coisa, na generalidade das situações, goza do direito correspondente, razão pela qual se lhe não exige, desde logo, uma actividade probatória dirigida à demonstração do seu direito de propriedade sobre ela, sendo suficiente a prova da posse.
Por isso, a posse é um direito real provisório, porquanto os seus efeitos são independentes da circunstância de se saber quem é o titular do direito real sobre a coisa que está na esfera do possuidor, pelo que só actua, enquanto não for, definitivamente, apurado quem é o autêntico titular do direito real sobre o bem.
Quer isto dizer, portanto, que à pessoa que retém ou frui uma coisa, basta provar a posse, a qual, se for uma posse de ano e dia, ou seja, uma posse superior a um ano, nada mais se impõe que seja averiguado, nos termos do disposto pelo artigo 1278º, nº 2, do CC, não sendo, consequentemente, a contraparte admitida sequer a provar que tem melhor posse (3).
A concepção subjectivista da posse, plasmada no ordenamento jurídico nacional, está integrada por dois elementos estruturais – o «corpus» e o «animus possidendi» -, objectivando-se aquele como o exercício actual ou potencial de um poder de facto sobre a coisa, enquanto que o último consiste na intenção de agir como titular do direito correspondente aos actos realizados (4).
Porém, considerando a dificuldade de demonstrar o «animus» e a consequente posse, em nome próprio, ressalvada a situação em que haja coincidência com a prova do direito aparente, consagrou-se uma presunção de posse, em nome próprio, por parte daquele que exerce o poder de facto, ou seja, daquele que tem a detenção da coisa – «corpus» -, razão pela qual, quando seja necessário o «corpus» e o «animus», em caso de dúvida, o exercício daquele faz presumir a existência deste, com base no disposto pelo artigo 1252º, nº 2, do CC (5).
Efectivamente, a protecção conferida ao possuidor traduz-se numa tutela provisória, destinada, unicamente, a manter determinada situação de facto, enquanto não se provar quem é o verdadeiro titular do direito real correspondente, razão pela qual a restituição da posse cessa, nos termos do preceituado pelo artigo 1278º, nº1, do CC, como já se disse, se o possuidor for convencido na questão da titularidade do direito, deixando, então, a tutela possessória de revestir qualquer justificação (6).
A tradição da coisa consiste na transmissão da detenção da mesma entre dois sujeitos de direito, sendo constituída pelo abandono do vendedor, a favor do autor do gozo do prédio, que constitui o seu elemento negativo, coadjuvado pela prática de inequívocos actos materiais que exerce sobre o prédio [a apprehensio], como seu elemento positivo (7).
Assim, a tradição material, concretizada através do acto de entrega efectiva do apartamento à ré, por parte do promitente vendedor do mesmo, consubstancia a aquisição derivada da posse e induz a intenção da ré de exercer o correspondente direito de propriedade.
Ora, não provando o autor a existência de título, nem a situação de posse, pois que se demonstrou que de um mero comodatário, portanto, possuidor precário, se trata, deve a ré ser restituída à posse do prédio urbano constituído pela fracção autónoma correspondente ao terceiro andar esquerdo do edifício, sito no Lote n°148 da Rua Dr. C… M…, na cidade do Fundão, que tem agregada uma garagem, denominada sob o nº 2.
Improcedem, assim, as conclusões constantes das alegações da revista do autor.

CONCLUSÕES:

I - Tendo o autor começado a viver no apartamento, por acto de consentimento da ré, promitente compradora do mesmo, que dele tinha a tradição, fê-lo por mera tolerância desta, não procedendo com a intenção de agir em nome próprio, mas antes de actuar em nome daquela, numa situação configurável como detenção ou posse precária.
II - Nos casos de tradição da coisa operada pelo promitente vendedor, a ocupação, uso e fruição da mesma pelo promitente comprador é lícita e legítima, podendo, em princípio, a posse ser defendida pelos meios de tutela possessória facultados pelos artigos 1276º a 1279º, do CC.
III - A tradição material da coisa, concretizada através do acto de entrega efectiva do apartamento à ré, por parte do promitente vendedor, consubstancia a aquisição derivada da posse e induz a intenção do possuidor de exercer o correspondente direito de propriedade.
IV - Não provando o autor a existência de título, nem a situação de posse, pois que se demonstrou que de um mero comodatário, portanto, possuidor precário, se trata, deve a ré-reconvinte, beneficiária da tradição material da fracção, por parte do promitente vendedor, ser restituída à posse da mesma.

DECISÃO:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que constituem a 1ª secção cível do Supremo Tribunal de Justiça, em negar a revista, confirmando, inteiramente, o douto acórdão recorrido.
Custas da revista, a cargo do autor.
Notifique.
Lisboa, 9 de Fevereiro de 2010
Hélder Roque (Relator)
Sebastião Povoas
Alves Velho

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(1) Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, III, 2ª edição, revista e actualizada, com a colaboração de Henrique Mesquita, 1987, 10, 11, 18 e 19.
(2) Calvão da Silva, Contrato-Promessa, Análise para a Reformulação do DL nº 236/80, BMJ nº 349, 86, nota (55); STJ, de 21-2-1991, BMJ nº 404, 465; STJ, de 16-5-1989, BMJ nº 387, 579.
(3) Mota Pinto, Direitos Reais, 1970/1971, 126 a 129 e 209 a 211.
(4) Manuel Rodrigues, A Posse, 3ª edição, 181 e ss.; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, III, 1987, 5 e ss.; Orlando de Carvalho, Introdução à Posse, RLJ, 122º, 65 e ss.; Mota Pinto, Direitos Reais, 1970/1971, 177 e ss.; Henrique Mesquita, Direitos Reais, 1967, 65 e ss.
(5) Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, III, 1987, 8; Mota Pinto, Direitos Reais, 1970/1971, 191; Henrique Mesquita, Direitos Reais, 1967, 72; Moitinho de Almeida, Restituição de Posse e Ocupação de Imóveis, 2ª edição, 1978, 76; STJ, de 2-3-1974, BMJ nº 235, 285.
(6) Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, III, 1987, 49 e 50; STJ, de 8-5-2001, CJ (STJ), Ano IX, T2, 57.
(7) Manuel Rodrigues, A Posse, 1981, 216 e 217; STJ, de19-4-2001, CJ (STJ), Ano IX, T2, 28; STJ, de 23-9-93, BMJ nº 429, 796.