Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
681/15.0T8AVR.P1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO MAGALHÃES
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
ATIVIDADES PERIGOSAS
CONCORRÊNCIA DE CULPA E RISCO
MOTOCICLO
VEÍCULO AUTOMÓVEL
ILICITUDE
Data do Acordão: 01/17/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
“I. Para efeitos do art. 11º da Lei 67/2007 de 31.12, as actividades administrativas são especialmente perigosas se envolverem por natureza uma exposição a um perigo mais intenso do que a generalidade das manifestações de vida em sociedade;

II. Não é o caso se o condutor conduzia o veículo da GNR, em circunstâncias em que não se alegou nem se provou que o condutor de tal veículo, que colidiu com um velocípede com motor particular, estivesse a desempenhar com esse veículo qualquer actividade que fosse, pela sua natureza, especialmente (acentuadamente) perigosa para os demais utentes da via”.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 1ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça


*


AA intentou a presente acção declarativa, com processo comum, contra o Estado Português, pedindo a condenação deste a pagar-lhe:

. uma indemnização por danos patrimoniais cujo valor não é possível liquidar uma vez que as lesões patrimoniais que sofreu ainda estão em tratamento até à sua consolidação, liquidando-se os já vencidos até à propositura da ação do seguinte modo:

a) perda de rendimentos do trabalho no período da incapacidade absoluta ainda em curso, no valor atual de € 5.460,98;

b) deslocações aos estabelecimentos de saúde, no valor atual de € 2.691,24; c) € 3.999,88, valor a que ascende a reparação do motociclo;

. uma indemnização por danos não patrimoniais em valor não inferior a € 80.000,00.

Alega, para o efeito, que,: no dia 09/09/2013, pelas 16,30 horas, conduzia o motociclo de marca ..., matrícula ..-NQ-.., na Rua ..., ..., no sentido poente – nascente; quando estava a descrever a curva à esquerda, na qual existe, do lado direito (sentido poente – nascente), o entroncamento com a Rua ..., surgiu-lhe, subitamente, em sentido contrário (nascente – poente), a invadir a hemifaixa de rodagem destinada ao sentido de marcha do A., o veículo automóvel da GNR, caracterizado, de matrícula GNR-...., que embateu, com a sua parte frontal esquerda, na lateral esquerda do motociclo do A.; o embate ocorreu dentro da via de trânsito destinada ao sentido em que circulava o A.; este caiu e foi de rojo com o seu motociclo cerca de 4 metros, até se imobilizar junto a um contentor do lixo que estava na berma direita da Rua ..., próximo da interceção desta com a Rua ... (atento o sentido proveniente daquela para esta).

O R., na contestação que apresentou, sustenta que: o acidente ocorreu porque o A. não diminuiu a velocidade ao entrar na curva à esquerda, de visibilidade reduzida, e invadiu a hemifaixa de rodagem contrária; que o condutor do veículo do Estado, ao aperceber-se da presença do motociclo na curva a circular fora de mão, acionou os órgãos de travagem a fundo com o objetivo de evitar a colisão; que o A., face à iminência da colisão, tentou desviar-se para a direita, vindo a embater, com a parte lateral da frente esquerda do motociclo, no veículo do R..; que o veículo do R. deixou impressas, pelos rodados, marcas da travagem, que se iniciaram à distância de 0,80 metros da berma direita; que o veículo do Estado movimentou-se retilineamente para a frente, percorrendo 5,50 metros sob travagem e derrapagem, o que fez com que, face ao sentido curvilíneo da via para a direita, este se imobilizasse com a parte frontal esquerda a transpor o eixo da via cerca de 0,50 metros.

O Instituto da Segurança Social, IP, veio deduzir contra o Estado Português pedido de reembolso da quantia de € 15.503,85 que pagou ao ora A., a título de subsídio de doença referente ao período de 09/09/2013 a 15/07/2015.

O R. Estado Português contestou, alegando que não aceita nem reconhece qualquer facto gerador de responsabilidade, quer por culpa, quer pelo risco, na ocorrência do sinistro.

O Estado Português instaurou, no Juízo Local Cível ..., acção, com processo comum, contra Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A., com sede no Largo ..., ..., pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 6.442,44, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento.

Articula, para o efeito, que o acidente de viação que ocorreu, no dia 09/09/2013, na Rua ..., entre o motociclo de matrícula ..-NQ-.., conduzido por AA, e o veículo automóvel de marca ..., matrícula GNR-...., se deveu ao facto de o condutor do motociclo não ter diminuído a velocidade ao entrar numa curva à esquerda de visibilidade reduzida, ter invadido a hemifaixa contrária por onde circulava o veículo de matrícula GNR-.... e ter aí embatido neste. O veículo da GNR tinha um valor venal de € 1.700,00 e foi atribuído ao salvado um valor de € 200,00, pelo que deve a Ré pagar o valor de € 1.500,00 pela perda total da viatura. A Ré só efetuou a peritagem 90 dias após ter sido contactada pela GNR, pelo que deve pagar, por este período de imobilização da viatura, a quantia de € 4.941,90.

A Ré Seguradora defendeu, na contestação que apresentou, que o acidente se deveu ao facto de o veículo de matrícula GNR-.... circular pelo meio da faixa de rodagem, ocupando parcialmente a hemifaixa destinada ao tráfego em sentido contrário ao seu, invadindo-a, cortando a linha de marcha ao motociclo que circulava em sentido contrário.

O Ministério Público, em representação do Estado Português, requereu a apensação da acção por si instaurada à presente ação nº 681/15.0T8AVR, o que foi deferido por despacho proferido a 14/07/2015.

Foi proferido despacho saneador em termos tabelares, definiu-se o objecto do litígio e fixaram-se os temas da prova.

O A. veio ampliar o pedido, por requerimento de 27/12/2019, requerendo a condenação do Réu a pagar-lhe também:

. despesas com consultas médicas até abril de 2019, no valor de € 2.160,25; despesas com exames e análises até abril de 2019, no valor de € 563,39;

. despesas com tratamentos até abril de 2019, no valor de € 114,80;

. despesas com intervenções cirúrgicas até abril de 2019, no valor de € 22.580,04;

. despesas com medicamentos até final de 2018, no valor de € 1.507,41;

. despesas com deslocações de março de 2015 a abril de 2019, no valor de € 1.948,54. Por despacho proferido a 17/01/2020 foi admitida a requerida ampliação do pedido.

Realizou-se audiência final, vindo a ser proferida sentença na qual se decidiu:

« I – condenar o Estado Português a pagar ao A. AA:

a) a quantia de € 25.046,45 [a título de indemnização por danos patrimoniais], acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, a partir da citação e até integral pagamento;

b) a quantia de € 43.333,33 [a título de compensação por danos não patrimoniais], acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, a partir da prolação da sentença e até integral pagamento;

c) a quantia que se vier a apurar em incidente de liquidação, quanto a danos patrimoniais futuros, quanto a perda de rendimentos do trabalho no período de 16/07/2015 a 21/09/2017 e quanto a tratamentos médicos e medicamentosos a partir de 28/12/2019.

Absolver o R. Estado Português do mais contra ele peticionado pelo A. AA.

II - Condenar o Estado Português a pagar ao Instituto da Segurança Social, IP, a quantia de € 10.335,90, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, a partir da citação e até integral pagamento.

Absolver o R. Estado Português da restante quantia peticionada pelo ISS, IP.

III – Condenar a Ré Fidelidade a pagar ao Estado Português a quantia de €350,00, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, a partir da citação e até integral pagamento.

Absolver esta Ré da restante quantia peticionada».

Não se conformando com o assim decidido, quer o autor AA, quer o Estado Português interpuseram recurso, admitidos como apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

O autor AA e o Estado Português contra-alegaram, enquanto recorridos.

Apreciando os recursos, a Relação decidiu da seguinte forma:

“Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar:

. improcedente a apelação interposta pelo autor AA, confirmando-se a decisão recorrida;

. parcialmente procedente a apelação interposta pelo Estado Português, em consequência do que se condena a ré Companhia de Seguros Tranquilidade, S.A. no pagamento da quantia de quatrocentos e cinquenta euros, a título de indemnização pelo dano de privação do uso, confirmando-se no mais a sentença recorrida.

Custas a cargo dos apelantes na proporção do respectivo decaimento.”

Insatisfeito, interpôs o autor AA revista excepcional, para este Supremo Tribunal formulando as seguintes conclusões:

i) Constitui questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para melhor aplicação do direito determinar se na decisão sobre a responsabilidade extracontratual civil fundada no risco, por danos decorrentes de acidente de viação envolvendo a colisão de veículos automóveis, em que um deles é propriedade do Estado, conduzido por agente público ao seu serviço, deve ser julgado à luz do regime geral que decorre da aplicação da norma do art. 506º do Código Civil, ou se antes o deve ser pela aplicação do regime que resulta da aplicação da norma do art 11º, nº 1 do Regime Anexo à Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro, como sustentado na Conclusão V) do recurso de apelação interposto pelo recorrente.

ii) Quando em acidente de viação intervenha veículo automóvel ligeiro de passageiros propriedade do Estado, conduzido por agente público ao seu serviço, a norma do art. 2º, nº 2 da Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro impõe que se afaste a aplicação do regime geral de responsabilidade civil extracontratual regulado pelo Código Civil e se aplique o Regime Anexo àquela Lei.

iii) Neste caso, não resultando da factualidade julgada como provada a existência de culpa de qualquer dos condutores intervenientes no sinistro, a responsabilidade pela reparação dos danos dali emergente deve ser decidida por aplicação do regime de responsabilidade extracontratual pelo risco regulada pela norma do art. 11º, nº 1 do Regime Anexo à Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro, afastando-se a aplicação do regime geral que resulta da norma do art. 506º do Código Civil.

iv) No âmbito da reparação do dano ao abrigo do regime de responsabilidade civil extracontratual pelo risco regulada pela sobredita norma do art. 11º, nº 1, a responsabilidade do Estado apenas pode ser afastada ou reduzida mediante prova da ocorrência de caso de força maior pude concorrência de culpa do lesado,

v) E afasta tal regime a possibilidade de repartição da responsabilidade pelo risco inerente, por não estar ali previsto nem na letra, nem no espírito da norma.

vi) A actividade de condução de viaturas automóveis ligeiras de passageiros constitui actividade especialmente perigosa e a condução de viatura propriedade do Estado, conduzida por militar da Guarda Nacional Republicana ao seu serviço, é exercida no interesse do Estado.

vii) Verificando-se a colisão entre viatura ligeiro de passageiros, propriedade do Estado, conduzida por militar da Guarda Nacional Republicana ao seu serviço, com viatura particular, sem que se apure a verificação de caso de força maior ou concorrência de culpa do lesado, não há lugar à exclusão ou redução da responsabilidade do Estado pelo dano causado pela sua viatura, que por ela assim responde integralmente, sem que se admita a sua repartição com o lesado em função do risco de circulação de ambos os veículos envolvidos.

viii) O douto acórdão recorrido não deu aplicação à norma do art. 2º, nº 2 da Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro, nem à norma do art. 11º, nº 1 do Regime Anexo a esse diploma legal, como devia, e aplicou erradamente a norma do art. 506º do Código Civil, que não devia ter aplicado.

ix) Aplicado ao caso em apreço o regime da responsabilidade civil extracontratual pelo risco decorrente da norma do art. 11º, nº 1 do Regime Anexo à Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro, a recorrida responde pela totalidade do dano causado ao recorrente, sem que haja lugar à sua repartição pelo risco de circulação de ambas as viaturas envolvidas na colisão.

Termos em que deve ser julgado procedente o presente recurso de revista, com a consequente alteração do douto acórdão recorrido, julgando-se o recorrido como o único responsável pelo ressarcimento dos danos sofridos pelo recorrente, revogando-se o segmento decisório que imputou ao recorrente 1/3 dessa responsabilidade.”

O Réu Estado recorrido contra-alegou pugnando pela manutenção do acórdão.

A Formação admitiu a revista excecional com fundamento no pressuposto previsto na alínea a) do n." 1 do artigo 672° do CPC.

Cumpre decidir:

A matéria de facto dada como provada pelas instâncias é a seguinte:

1 - No dia 09/09/2013, pelas 16,30 horas, na Rua ..., freguesia e concelho ..., ocorreu um acidente de viação, no qual foram intervenientes o motociclo de marca ..., matrícula ..-NQ-.., conduzido pelo ora A., seu proprietário, e o veículo automóvel de marca ..., modelo ..., de matrícula GNR-...., conduzido por BB, militar da GNR, a prestar serviço, à data, no Posto ... (A).

2 - O motociclo circulava na Rua ..., freguesia e concelho ..., no sentido ... – ... (...), ou seja, poente – nascente (B).

3 - O veículo GNR-... circulava na Rua ... no sentido nascente – poente (C).

4 - A Rua ... descreve uma curva, à esquerda (sentido poente – nascente), no local, e entronca, pelo lado direito (sentido poente – nascente), ou seja, do lado da rua por onde circulava o motociclo, com a Rua ... (D).

5 - O acidente ocorreu no local do referido entroncamento (E).

6 - A curva é de visibilidade reduzida (F).

7 - A velocidade máxima no local é de 50 km/hora imposta por sinal vertical (G).

8 - O embate ocorreu entre a parte frontal esquerda do veículo GNR-.... e a parte lateral esquerda do motociclo (H).

9 - Após o acidente, o veículo GNR-.... ficou imobilizado a ocupar, parcialmente, a hemifaixa destinada ao sentido de trânsito poente – nascente (I).

10 - O A. nasceu a .../.../1982 – fls. 58 (J).

11 - Os salvados do veículo GNR-.... têm o valor de € 200,00 (K).

12 - A GNR reclamou junto da Seguradora Fidelidade o pagamento do valor de € (1.700,00-200,00=) 1.500,00 pela perda total do veículo GNR-.... (L).

13 - Em 10/09/2013, o Comando Territorial da GNR de... enviou à Seguradora Fidelidade o e-mail 026/CMDT/13, solicitando-lhe que tomasse posição sobre o sinistro (M).

14 - A responsabilidade civil por danos causados a terceiros com a circulação do motociclo ..-NQ-.. encontrava-se transferida, à data do acidente, para a Ré Seguradora por contrato de seguro titulado pela apólice nº ...50 – fls. 75/76 (N).

15 - O embate entre o motociclo e o veículo GNR-.... ocorreu junto ao eixo da via.

16 - O A. caiu, em consequência do embate, e foi de rojo com o motociclo até se imobilizar dentro de uma vala, junto a um contentor do lixo, que estava na berma direita da Rua ..., próximo da interceção desta com a Rua ....

17 - Na altura do acidente:

a) o eixo da via estava delimitado por uma linha tracejada descontínua, pouco visível;

b) fazia bom tempo, era de dia e o sol estava de frente para o condutor do veículo GNR-....;

c) o piso estava seco, mas tinha alguma areia.

18 - O motociclo e o veículo GNR-.... circulavam a menos de 50 km/hora.

19 - A largura da faixa de rodagem da Rua ... imediatamente antes e depois do [entroncamento3] com a Rua ... (sentido poente – nascente) é, respetivamente, de 5,80 e 5,40 metros (fls. 402).

20 - Ao aperceber-se da presença do motociclo, o condutor do veículo GNR-.... acionou os órgãos de travagem a fundo com o objetivo de evitar a colisão.

21 – Após acionar os travões a fundo, as rodas da frente do veículo GNR-.... bloquearam.

22 – E o veículo GNR-.... entrou em derrapagem.

23 – O condutor deste veículo deixou de conseguir controlar a viatura que conduzia e de manter a trajetória da curva no seu sentido de trânsito.

24 - O veículo GNR-.... movimentou-se retilineamente para frente percorrendo pelo menos 5,50 metros sob travagem e derrapagem.

25 – E imobilizou-se com a parte frontal esquerda a transpor o eixo da via cerca de 0,50 a 0,60 metros.

26 – O veículo GNR-.... ainda desviou a trajetória ligeiramente para a direita (sentido nascente – poente) antes de imobilizar.

27 – Era a primeira vez que o condutor do veículo GNR-.... circulava no local onde ocorreu o acidente.

28 - O A. não travou.

29 – O veículo GNR-...., do ano de [19984], foi inspecionado a 19/12/2012 e, nessa data, tinha percorrido 555.879 kms. – fls. 39 do apenso A.

30 – A reparação deste veículo importava em € 5.169,26 (IVA incluído) – fls. 11/17 do apenso A.

31 – O veículo tinha o valor venal de € 1.250,00.

32 – O salvado tinha o valor de € 200,00.

33 - A Seguradora Fidelidade iniciou a peritagem ao veículo GNR-.... a 11/12/2013.

34 - O A. foi assistido, minutos depois do acidente, pelo INEM, e transportado para o Centro Hospitalar ..., EPE, em ..., onde deu entrada no Serviço de Urgência pelas 18,19 horas.

[4 Rectificação determinada pelo decisor de 1ª instância, ao abrigo do disposto no art. 614º, no despacho de admissão do recurso.]

35 – Apresentava-se inconsciente, pós sedação com propofol e medicado com morfina, politraumatizado com traumatismo crânio-encefálico e fratura exposta do membro inferior esquerdo.

36 – Ao exame objetivo apresentava esfacelo do membro inferior esquerdo e fraturas múltiplas dos terços médio e distal dos ossos da perna esquerda. Efetuou exames imagiológicos (radiografias da coluna vertebral, do tórax, grelha costal, bacia e membros inferiores; TAC crânio-encefálica; ecografia abdominal) que não evidenciaram sinais de lesões traumáticas para além das já descritas.

37 – Foi submetido a intervenção cirúrgica para estabilização e correção das fraturas com colocação de fixadores externos e posteriormente transferido para o ... para avaliação por cirurgia vascular por ausência de pulsos distais no membro inferior esquerdo com suspeita de lesão arterial.

38 – Após a realização de exames verificou-se que apresentava artéria peronial permeável até ao pé, tibial anterior com lesão ao nível da fratura proximal da tíbia e tibial posterior com lesão ao nível do terço distal justa maleolar, repermeabilizando a distal a lesão.

39 – Foi considerado do ponto de vista daquela especialidade que não existir indicação para cirurgia, pelo que 48 horas depois da sua entrada regressou ao Centro Hospitalar ....

40 – Ficou internado no Serviço de Ortopedia deste Centro Hospitalar de 12 a 30 de setembro, período durante o qual efetuou cuidados de penso, antibioterapia e profilaxia tromboembólica. À data da alta, apresentava viabilidade do pé, com necrose extensa de toda a perna, pelo que foi novamente transferido para o ... para internamento no Serviço de Cirurgia Plástica.

41 – Durante o internamento foi realizado: a) desbridamento cirúrgico dos tecidos necrosados e revisão de osteotaxia (02/10/2013 e 08/10/2013); b) reconstrução, com retalho microcirúrgico, do grande dorsal para cobertura de áreas de exposição óssea da tíbia esquerda e retalho de rotação plantar para cobertura do calcâneo esquerdo (18/10/2013); c) enxertos cutâneos para cobertura do retalho muscular e de áreas cruentas adjacentes (30/10/2013).

42 – A 29/11/2013 foi transferido para o Serviço de Ortopedia do ... – Unidade de ..., onde permaneceu internado até 05/02/2014. Nesta data teve alta para deambular com canadianas.

43 – A 06/02/2014 iniciou seguimento a título particular na Clínica .... Nesta realizou RX que demonstrou desvio ósseo, tendo sido submetido a correção de desvio de eixo com manutenção de fixador externo a 24/02/2014, no Hospital ... (...). Realizou outras intervenções durante este ano, designadamente: a) extração de material de onteossíntese a 21/05/2014; b) extração de fixador externo a 22/10/2014; c) colocação de ortofix externo e enxerto do ilíaco a 24/11/2014. Entre cirurgias o A. cumpriu tratamentos de penso.

44 – A 19/05/2015, na consulta de reavaliação, apresentava pouco calo proximal e melhor distal, comprovado por radiografia. A 27/10/2015, observava-se no RX sinais de consolidação.

45 – A 28/12/2015, realizou exame radiográfico da perna esquerda na Clínica ..., de cujo relatório consta: “foram efetuados novos radiogramas de controle de fratura da diáfise tibial assim como da vertente distal, estabilizadas com fixadores externos, em fase de consolidação, a requerer por isso sempre valorização clínica/ortopédica e abordagem comparativa com outros estudos radiológicos anteriormente efetuados. Está associada à ausência da vertente mediana peroneal onde a esse nível estão patentes alguns fragmentos projetados às estruturas das partes moles. (…).

46 – Do relatório clínico do Serviço de Cirurgia Plástica e Queimados do ..., datado de 14/06/2017, conta (além do mais): “o doente foi internado no Serviço de Cirurgia Plástica e Queimados do ... - EPE a 30/09/2013 por esfacelo da perna esquerda com fatura cominutiva dos ossos da perna e destruição tecidular extensa, alegadamente por atropelamento com veículo automóvel. Durante o internamento foi realizado desbridamento cirúrgico de tecidos necrosados e revisão de osteotaxia (02/10/2013 e 08/10/2013) e a reconstrução com retalho microcirúrgico do grande dorsal para cobertura de áreas de exposição óssea da tíbia esquerda e retalho de rotação plantar para cobertura do calcâneo esquerdo 18/10/2013. A 30/10/2013 foram realizados enxertos cutâneos para cobertura do retalho muscular e de áreas cruentas adjacentes. (…) É seguido atualmente em consultas externas de Cirurgia Plástica. Mantém algumas áreas cruentas residuais e áreas de fragilidade cutânea. A última consulta decorreu a 14/04/2014 (…).

47 – O A. apresenta as seguintes sequelas:

- tórax: cicatriz nacarada com zonas hipertróficas violáceas, oblíqua da frente para trás, de cima para baixo e da direita para a esquerda, no terço médio da face posterior do hemitórax direito, medindo 29 cms. de maior eixo por 2,4 cms. de menor eixo;

- abdómen: cicatriz castanha nacarada, ligeiramente hipertrófica, oblíqua ínfero-medialmente, na superfície em correspondência com a crista ilíaca esquerda, medindo 4,5 cms. de maior eixo por 0,9 cms. de menor eixo;

- membro inferior esquerdo: complexo cicatricial com áreas nacaradas e outras áreas hipertróficas castanhas rosáceas, interessando a face ântero-medial da coxa, sugestivo de retalho cutâneo, mediando 32 cms. de maior eixo por 13 cms. de menor eixo; outro complexo cicatricial de idênticas características, intercalado com algumas zonas de pele de aspeto íntegro, na face lateral da coxa, medindo 31 cms. de maior eixo por 12 cms. de menor eixo; complexo cicatricial de idênticas características ao anteriormente descrito (2º complexo), na face posterior da coxa, medindo 19,5 cms. de maior eixo por 11 cms. de menor eixo; complexo cicatricial rosáceo, interessando toda a extensão dos dois terços distais da perna, dorso do pé e retropé, com zonas hipertróficas e zonas hiperpigmentadas acastanhadas no terço distal da face póstero-lateral da perna e região calcânea, medindo 40 cms. de maior eixo por 9 cms. de menor eixo; no bordo medial do complexo cicatricial da perna anteriormente descrito apresentam-se três cicatrizes acastanhadas, alinhadas num eixo vertical (do terço proximal ao terço distal), todas com dois milímetros de diâmetro, correspondendo à localização dos fixadores externos descritos no primeiro relatório; deformidade da perna com desvio lateral do terço distal e rotação lateral do pé, perda acentuada de substância nos dois terços distais da perna; espessamento do tornozelo; edema do dorso do pé; aumento de volume do joelho, sobretudo na região infrapatelar, mas sem derrame ou dor; ligeira instabilidade ântero-posterior do joelho; anquilose das articulações tibiotársica, subtalar, mediotársica, metatarso-falângicas e interfalângicas dos dedos do pé; hipostesia em todo o complexo cicatricial da perna e na zona de enxerto cutâneo da região calcaneana; amiotrofia da coxa de 3,5 cms. (determina a 15 cms. do bordo superior da patela); sem alterações térmicas do pé com normal preenchimento vascular do leito ungueal.

48 – A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 21/09/2017, tendo em atenção o tipo de lesões resultantes, o período de tempo necessário à sua consolidação, o tipo de tratamentos efetuados e, nomeadamente, a data em que passou a evidenciar consolidação radiológica das lesões.

49 – O período de défice funcional temporário total é fixável num período de 180 dias.

50 - O período de défice funcional temporário parcial é fixável num período de 1294 dias.

51 – O período de repercussão temporária na atividade profissional total é fixável num período de 1474 dias.

52 – O quantum doloris é fixável no grau 6/7.         

53 – O défice funcional permanente da integridade físico-psíquica é fixável em 39 pontos.

54 – É de admitir a existência de dano futuro, tendo em consideração a angulação do eixo da tíbia esquerda, o encurtamento do membro inferior esquerdo e as anquiloses das articulações tibiotársica, sub-talar, mediotársica e metatarso-falângicas à esquerda, o que necessariamente condiciona uma alteração da estática e dinâmica do membro afetado.

55 – As sequelas de que o A. ficou a padecer são, em termos de repercussão permanente na atividade profissional, compatíveis com exercício da atividade profissional habitual, mas implicam esforços suplementares.

56 – Dano estético permanente: é fixável no grau 5/7, tendo em consideração a claudicação da marcha, a utilização de ajudas técnicas (canadianas), as cicatrizes e as deformidades descritas, assim como a idade do A..

57 – Repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer fixável no grau 4/7, tendo em atenção as atividades de convívio social que compartilhava com os amigos, nomeadamente atividades desportivas e recreativas (futebol, paintball, vindimas), as quais, face às sequelas evidenciadas, ficaram necessariamente comprometidas.

58 – O A. está dependente:

- de tratamentos médicos regulares: necessidade de seguimento periódico em consultas de ortopedia, para vigilância do seu quadro sequelar;

- ajudas técnicas: deambulação com o auxílio de meios técnicos (canadianas).

59 – O A. sofreu dores atrozes e lancinantes após o acidente e até o médico do INEM o ter sedado.

60 – Após ter sido transferido, a 29/11/2013, para o Serviço de Ortopedia do ... – Unidade de ..., informaram-no que havia uma forte possibilidade de ter de ser amputado o seu membro inferior esquerdo.

61 – O A. ficou em choque com essa possibilidade.

62 - Até agosto de 2014, o A. locomovia-se, apenas, em cadeira de rodas.

63 - Recomeçou, nesta data, a locomover-se de pé com o auxílio de canadianas.

64 – Até à data da consolidação médico-legal das lesões, o A. era auxiliado pelos seus pais que o ajudavam a vestir-se, calçar-se, tomar banho, e em todas as restantes atividades do dia-a-dia.

65 – Os seus pais tiveram de regressar da ... para cuidarem dele.

66 – O A. continua a ter dores com muita frequência.

67 – Tinha uma carreira profissional e em ascensão que foi interrompida.

68 – O A. sentiu-se após o acidente angustiado, triste e revoltado com a vida.

69 – Tornou-se uma pessoa fechada e menos sociável, deixou praticamente de conviver com os amigos.

70 – Durante muito tempo teve muita dificuldade em dormir devido às lesões e aos fixadores externos.

71 – Até à data do acidente, o A. vivia sozinho e, ainda, cuidava do quintal que existe no terreno adjacente à casa dos seus pais, em especial da vinha, o que deixou de poder fazer.

72 – À data do acidente o A. tinha como profissão web designer, também designada designer gráfico multimédia.

73 – Entre 8 de outubro de 2012 e 2 de setembro de 2013 exerceu a sua profissão como trabalhador por conta de outrem na empresa “M..., L.da.”, situada em ....

74 – No dia 2 de setembro de 2013 iniciou uma nova carreira profissional de programador informático multimédia na “V..., S.A.”, empresa esta que detém a maioria do capital da “M..., L.da.”, pelo que o seu trabalho já era conhecido e reconhecido por aquela empresa – fls. 90/92 e fls. 94/95.

75 – Por essa razão, ao iniciar funções na V..., S.A., esta declarou, por escrito, “que se mantêm todos os direitos adquiridos e assumidos desde a data do contrato celebrado entre si e a empresa M..., L.da. Assim, a V..., S.A., substitui-se na totalidade à empresa M..., L.da. – fls. 93.

76 – O A auferia, à data do acidente, o salário líquido de € 799,25 – fls. 99/101.

77 – Neste valor já estão incluídos os subsídios de Natal e férias pagos em duodécimos – fls. 99/101.

78 – A reparação do motociclo de matrícula ..-NQ-.. importa em € 3.999,88 – fls. 104.

79 – Para tratamento e recuperação dos danos na sua perna esquerda sofridos em consequência do acidente, o A. suportou as seguintes despesas no valor total de € 26.521,46:

a) consultas realizadas no ano de 2014 no Centro de Saúde ...: € 74,00 – fls. 426v. a 430;

b) tratamentos realizados no ano de 2014 no Centro de Saúde ...: € 10,80 – fls. 430v. e 431;

c) taxas moderadoras no CH...: € 103,90 – fls. 431v. a 433v.;

d) taxas moderadoras de análises clínicas no laboratório AVELAB: € 47,60 – fls. 434 e 434v.;

e) consultas médicas de ortopedia junto da Clínica ... no ... no ano de 2014: € 395,00 – fls. 435 e 436;

f) exames de diagnóstico (RX) junto da clínica ... no ... no ano de 2014: € 60,31 – fls. 436v. a 438;

g) intervenção cirúrgica de ortopedia efetuada a 24/02/2014 no Hospital ..., no ...: € 2.096,65, ao Hospital, e € 7.400,00, à equipa médica - fls. 438v. a 441 e fls. 441v./442;

h) intervenção cirúrgica de ortopedia efetuada a 21/05/2014 na Clínica ..., no ...: € 595,00, pelo serviço da equipa médica, e € 405,62, pelo uso da sala de cirurgia e materiais – fls. 442v. e 443;

i) intervenção cirúrgica de ortopedia efetuada a 22/10/2014 na Clínica ..., no ...: € 557,04, pelo serviço da equipa médica, e € 442,96, pelo uso da sala de cirurgia e materiais – fls. 443 e 444;

j) intervenção cirúrgica de ortopedia efetuada a 24/11/2014 no Hospital ..., no ..., para colocação de fixador externo da perna esquerda: € 5.938,59, ao Hospital, e € 4.050,00, à equipa médica – fls. 444v./447 e 447v./448;

k) fazer e mudar pensos em ferida viva que se manteve na perna esquerda, junto da Clínica ... no ..., no ano de 2014: € 20,00 – fls. 448;

l) exame bacteriológico no dia 01/10/2014 junto do ...: € 12,68 – fls. 449 e 449v.;

m) em medicação e tratamentos medicamentosos ao longo do ano de 2014: € 346,97 – fls. 450 a 458;

n) em taxas moderadoras, no ano de 2015, junto do Centro de Saúde ...: € 60,00 – fls. 458v. a 460v e 461v.;

o) tratamentos realizados no ano de 2015 no Centro de Saúde ...: € 6,00 – fls. 462 e 462v.;

p) duas consultas de cirurgia plástica no CH... a 16/03/2015 e a 14/09/2015: € 18,50 – fls. 463 e 463v.;

q) consultas médicas de ortopedia junto da Clínica ... no ... no ano de 2015: € 539,00 – fls. 464 a 465v.;

r) exames de diagnóstico (RX) junto da clínica ... no ... no ano de 2015: € 8,40 – fls. 466 a 468v.;

s) fazer e mudar pensos em ferida viva que se manteve na perna esquerda, junto da Clínica ... no ..., no ano de 2015: € 60,00 – fls. 469 a 470;

t) em medicação e tratamentos medicamentosos ao longo do ano de 2015: € 428,88 – fls. 470v. a 480v.;

u) em taxas moderadoras, no ano de 2016, junto do Centro de Saúde ...: € 60,00 - fls. 481 a 484;

v) consultas médicas de ortopedia junto da Clínica ... no ... no ano de 2016: € 317,00 – fls. 484 a 485;

w) exames de diagnóstico (RX e TAC) junto da clínica ... no ... no ano de 2016: € 18,60 – fls. 485v. a 487v.;

x) consulta de cirurgia plástica no CH... a 20/06/2016: € 7,00 – fls. 486;

y) em medicação e tratamentos medicamentos ao longo do ano de 2016: € 247,01 – fls. 486v. a 493;

z) em taxas moderadoras, no ano de 2017, junto do Centro de Saúde ...: € 25,00 – fls. 493v. a 494v.;

aa) consultas médicas de ortopedia junto da Clínica ... no ... no ano de 2017: € 320,00 – fls. 495 e 495v.;

bb) exames de diagnóstico (RX e TAC) junto da clínica ... no ... no ano de 2017: € 2,80 - fls. 496 e 496v.;

cc) consultas de cirurgia plástica no CH... a 22/05/2017 e a 30/06/2017: € 14,00 – fls. 497 e 497v.;

dd) intervenção cirúrgica de ortopedia efetuada a 23/08/2017 na Clínica ..., no ..., para retirada dos fixadores externos da perna esquerda: € 751,82, pelo serviço da equipa médica, e € 248,18, pelo uso da sala de cirurgia e materiais – fls. 498 e 498v.;

ee) em medicação e tratamentos medicamentosos ao longo do ano de 2017: € 484,55 – fls. 499 a 506;

ff) em taxas moderadoras, no ano de 2018, junto do Centro de Saúde ...: € 11,50 – fls. 506v. e 507;

gg) consultas médicas de ortopedia junto da Clínica ... no ... no ano de 2018: € 240,00 – fls. 507v. e 508;

hh) exames de diagnóstico (RX) junto da clínica ... no ... no ano de 2018: € 12,20 – fls. 508v. a 510;

ii) em taxas moderadoras, no ano de 2019, junto do Centro de Saúde ...: € 2,50 – fls. 510v.;

jj) consultas médicas de ortopedia junto da Clínica ... no ... no ano de 2019: € 80,00 – fls. 511;

kk) exame de diagnóstico (RX) junto da clínica ... no ... no ano de 2019: € 1,40 – fls. 511 v..

80 – De março de 2014 a janeiro de 2015, o A. deslocou-se 34 vezes ao ..., 3 vezes a ..., 2 vezes a ... e 1 vez a ..., no carro dos seus pais, para consultas e tratamentos.

81 – A distância de ... ao ..., em viatura automóvel, é de 86,20 km, pelo que a viagem de ida e regresso é de 172,40 km.

82 – O A. despendeu em portagens em cada viagem ao ... € (4,50x2=) 9,00.

83 - A distância de ... ao ..., em viatura automóvel, é de 41,30 kms., pelo que a viagem de ida e regresso é de 82,60 kms.

84 - A distância de ... a ..., em viatura automóvel, é de 30 kms., pelo que a viagem de ida e regresso é de 60 kms.

85 – De março de 2015 a abril de 2019, o A. deslocou-se 29 vezes ao ... e 5 vezes a ... para consultas, intervenções cirúrgicas e tratamentos, em carro próprio.

86 – A distância de ... ao ..., em viatura automóvel, é de 86,20 km, pelo que a viagem de ida e regresso é de 172,40 kms., tendo o A. percorrido 4.999,60 (29x172,40) kms..

87 - A distância de ... ao ..., em viatura automóvel, é de 41,30 kms., pelo que a viagem de ida e regresso é de 82,60 kms., tendo o A. percorrido 413 (5x82,60) kms.

88 – O A. despendeu € 400,00 pela realização do “... no âmbito do Direito Civil” – fls. 324/330 e fls. 498v..

89 – O Instituto da Segurança Social, IP, pagou ao A., a título de subsídio de doença, no período de 09/09/2013 a 15/07/2015, a quantia de € 15.503,85 – fls. 198.

O Tribunal de 1ª instância considerou não provados os seguintes factos:

a) o motociclo e o veículo GNR-.... circulavam nas respetivas hemifaixas quando ocorreu o acidente;

b) na altura do acidente a via não tinha marcas rodoviárias visíveis;

c) o A. não reduziu a velocidade ao entrar na curva referida em 4 dos Factos Provados, tendo invadido a hemifaixa de rodagem contrária (nascente - poente);

d) quando iniciou a travagem o veículo GNR-.... encontrava-se a 0,80 metros da berma direita (sentido nascente – poente);

e) o veículo GNR-.... circulava a velocidade não inferior a 70 km/hora;

f) o veículo GNR-.... deixou marcado no pavimento um rasto de travagem duplo de 8,25 metros, totalmente na hemifaixa contrária (poente – nascente);

g) o A. necessitará para toda a vida do auxílio de terceira pessoa; h) e de fazer obras de adaptação da casa dos pais;

i) de fazer sessões de fisioterapia.

O Direito:

No caso dos autos, a 1." instância considerou o seguinte:

“O art. 483.°, n.° 1. do C. Civil, consagra o princípio geral de indemnização derivado de responsabilidade por factos ilícitos estabelecendo que aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.

Para que exista responsabilidade civil por facto ilícito é, assim, necessário a verificação simultânea dos seguintes pressupostos: a) que haja um facto voluntário do agente; b) que esse a facto seja ilícito: c) que exista um nexo de imputação do facto ao agente; d) que a violação do direito absoluto seja causadora de um dano; e) que haja um nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima.

Quer dizer, o Estado Português não deve indemnização ao A. por facto ilícito se o acidente - o embate entre o veículo ligeiro e o motociclo - não for devido a culpa do condutor daquele - arts. 7.° a 10.° da Lei n° 67/2007. de 31/12 - Lei da Responsabilidade Civil do Estado e demais Entidades Públicas (LRCEEP). E a Seguradora Fidelidade não deve indemnização ao Estado Português se a culpa do acidente não for do A. AA - art. Art. 483.°. n° 1. do C. Civil.

(...) Não se tendo provado qual dos dois condutores foi o responsável pelo acidente, temos de nos socorrer da responsabilidade pelo risco.

O n.° 1 do art.° 506.° do CPC estabelece que "se da colisão entre dois veículos resultarem danos em relação aos dois ou em relação a um deles, e nenhum dos condutores tiver culpa no acidente, a responsabilidade é repartida na proporção em que o risco de cada um dos veículos houver contribuído para os danos; se os danos forem causados somente por um dos veículos, sem culpa de nenhum dos condutores, só a pessoa por eles responsável é obrigada a indemnizar".

O art.° 11.°. n.° 1 da Lei n° 67/2007, de 31/12 (LRCEEP) estabelece, por sua vez. uma cláusula geral de responsabilidade pelo risco: "o Estado e as demais pessoas coletivas de direito público respondem pelos danos decorrentes de atividades, coisas ou serviços administrativos especialmente perigosos".

O risco tipificado no art.° 11.° da Lei n° 67/2007 só existe se as atividades forem especialmente perigosas; isto é, especialmente propensas a gerar danos. E só é excluído quando, "nos termos gerais, se prove que houve força maior ou ocorrência de culpa do lesado, podendo o Tribunal, neste último caso, tendo em conta todas as circunstâncias, reduzir ou excluir a indemnização''. A parte final desta norma tem de aproximar-se do art. 570.° do C. Civil, que repete.

De notar que, de alguma forma, o n.° 1 do art.º 11.° da Lei n° 67/2007 não faz as restrições do n.° 1 do art. 503.° do C. Civil pelo que respeita à direção efetiva do veículo e à utilização no próprio interesse por, em nosso entender, dar tais requisitos por assentes. E também não coloca os limites máximos do art. 508.° do C. Civil. Quanto a estes pontos, a Lei n° 67/2007 foi mais generosa que a lei civil. Daí que Carla Amado Gomes tenha apelidado a generosidade do art. 11.° da Lei n.° 67/2007 de "solução arriscada".

No caso, não há dúvidas de que a condução de veículos é uma atividade especialmente perigosa. Daí os arts. 503.° e 506.° do C. Civil terem incluído os acidentes causados por veículos na subsecção "Responsabilidade pelo Risco".

Tendo no acidente intervindo um veículo particular e um veículo do Estado, à falta de apuramento da culpa no acidente, quer o particular (no caso, a seguradora por ele) quer o Estado respondem na proporção do risco dos próprios veículos.

E prudente e equilibrada a fixação de 2/3 e 1/3, respetivamente, para um automóvel e motociclo, na criação do risco”.

Porém o A., em sede de apelação, sustentou que, sendo aplicável ao caso a norma especial do art.° 11.°, n.° 1, do diploma Anexo à Lei n.° 67/2007, de 31-12, estava, por virtude dela, afastada a aplicação da repartição do risco prescrita no artigo 506.° do CC, pelo que o Estado R. deveria responder pela totalidade do dano causado pelo acidente em causa.

Neste particular, no acórdão recorrido, foi ajuizado então o seguinte:

“Não permitindo o substracto factual apurado afirmar, pela positiva, que o ajuizado acidente de viação tenha resultado da infracção de quaisquer regras de direito estradal ou deveres de cuidado por parte de algum dos condutores que teve intervenção no mesmo, impõe-se - tal como se entendeu na sentença recorrida - que as concretas pretensões de tutela jurisdicional que cada uma das partes aduziu nestes autos sejam apreciadas à luz da responsabilidade pelo risco, já que, como salienta ANTUNES VARELA, quando o demandante pede em juízo "a condenação do agente na reparação do dano num dos domínios onde vigore a responsabilidade objetiva, mesmo que invoque a culpa do demandado, ele quer presuntivamente que o mesmo efeito seja judicialmente decretado à sombra da responsabilidade pelo risco, no caso de a culpa não se provar".

Nessas circunstâncias a obrigação de indemnizar nasce do risco próprio de certas atividades e integra-se nelas independentemente de dolo ou culpa. E com base neste risco que no âmbito dos acidentes de viação vigora o princípio da responsabilidade objectiva.

Da conjugação entre o disposto no n.° 1 do art. 503.° e no art. 505.° do Cód. Civil não resulta a exclusão, in casu. da responsabilidade objectiva de qualquer um dos inter­venientes no acidente, seja do Estado Português enquanto proprietário do veículo auto­móvel (cfr. art. 11.°, n.° 1, da Lei n.° 67/2007, de 31.12), seja da seguradora Tranquilidade (para quem o autor AA transferiu a responsabilidade civil por danos causados a terceiros com a circulação do seu motociclo - cfr. arts. 15° e 64°. n° 1 ai. a), ambos do DL n° 291/2007, de 21.08).

Por se estar em presença de um acidente de trânsito que se processou através da colisão entre um motociclo e um veículo ligeiro de passageiros, o juiz a quo, convocando o disposto no n.° 1 do art.0 506.° do Cód. Civil, considerou prudente e equilibrado fixar em 2/3 a responsabilidade do condutor do veículo automóvel pertencente ao Estado Português e em 1/3 a responsabilidade do autor AA.”

Portanto, o caso tem a ver com um acidente de viação entre um velocípede com motor e um veículo automóvel da GNR, em que as instâncias consideraram que nenhum dos condutores teve culpa e, remetendo o caso para a responsabilidade pelo risco e para o art. 506º do Código Civil, repartiram o risco em 2/3 para o automóvel e 1/3 para o velocípede, calculando as indemnizações nessa proporção.

Persiste o A., na presente revista, na tese de que é aplicável ao caso a norma especial do art. 11°, n.° 1, do diploma Anexo à Lei n.° 67/2007, de 31.12., sustentando que o indicado normativo, na parte em que exclui esse risco quando, nos termos gerais, se prove que houve força maior ou concorrência de culpa do lesado, afasta a aplicação do regime de repartição do risco estabelecido no artigo 506° do CC; ou seja, que, fora essas duas hipóteses, o Estado responderá, a título de risco, pela integralidade do dano ocorrido.

A questão que suscita está, pois, em saber se a norma contida no art. 11.º do Regime anexo à Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, afasta a aplicação do disposto no art. 506º do CC, em termos de impor que o Estado responda pela integralidade dos danos resultantes da colisão entre dois veículos quando nenhum dos condutores – o particular e o agente da Administração - teve culpa no acidente.

Parte o recorrente do pressuposto de que a actividade de circulação de veículos do Estado é sempre, em qualquer circunstância, uma actividade “especialmente” perigosa para os efeitos do citado art. 11º.

Porém, não é esse, manifestamente, o entendimento da doutrina e da jurisprudência.

Em primeiro lugar, comecemos pela factualidade provada.

Ora, dela apenas consta que o veículo automóvel de marca ..., modelo ..., de matrícula GNR-...., era conduzido por BB, militar da GNR, a prestar serviço, à data, no Posto ... (A), não constando sequer o BB conduzisse em serviço. Porém, estando alegado no art. 138º da petição que “…o réu Estado Português sempre responderia pelos danos atrás alegados independentemente da culpa que assiste ao condutor que circulava ao seu serviço – cfr. artigos 501º e 500º do Código Civil “(destaque nosso), artigo que o réu não impugnou, vamos conceder que BB conduzia “em serviço”, circunstância que as partes não colocam em causa.

Todavia, considerando a definição de função administrativa prevista no nº 2 do art. 1 º da Lei 67/2007, segundo a qual “para os efeitos do disposto no número anterior, corresponde ao exercício da função administrativa as acções e omissões adaptadas no exercício de prerrogativas de poder público ou reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo“, já cremos que não existem elementos que permitam afirmar que o condutor, ainda que “em serviço do Estado” estivesse, ao circular com a viatura que dirigia, a desempenhar uma função materialmente administrativa.

Aliás, a propósito, e aproveitando a distinção entre actos de gestão pública e gestão privada – distinção que, como se sabe, deixou de relevar para efeitos processuais mas continua a ter interesse para a distinção substantiva, atenta a subsistência do conceito de gestão privada, que consta do art. 501º do CC- afigura-se-nos pertinente, para delimitação de responsabilidade por acções causados em acidentes de viação por viaturas da  propriedade do Estado, a conclusão extraída pelo Ac. STA de 15.10.2020, proc. 02431/09.1BELSB, em www.dgsi.pt, assim sumariado: “ I - A circulação na via pública de um veículo do Estado é um ato de gestão privada, por se processar de forma idêntica à dos outros utentes da estrada, com submissão às normas de direito privado constantes do Código da Estrada. II - Não obsta a tal conclusão o facto de o veículo do Estado em causa, afecto à P.S.P., circular com uma finalidade de interesse público, já que, por regra, todos os veículos do Estado circulam na via pública por razões de interesse público. III - Também não afasta aquela conclusão a circunstância de o dito veículo circular em marcha de urgência, assinalada por sinais luminosos, por se dirigir para o DIC (Departamento de Investigação Criminal) a fim de aí realizar diligências urgentes, pois que a marcha de urgência dos veículos na via pública é também regulada por normas de direito privado (art. 64º do Código da Estrada) tendo em vista situações de circulação de urgência ou de emergência de veículos públicos ou privados. IV - Só não será assim nos casos excecionais em que a circulação do veículo do Estado não seja meramente instrumental de uma finalidade de interesse público e se insira, ela mesmo, na realização de uma função pública (como, v.g., em ações de perseguição policial ou de manobras militares na via pública), em que essa circulação não se encontra sujeita aos mesmos direitos e deveres dos particulares. V- Assim, a responsabilidade extracontratual do Estado consequente da circulação do aludido veículo da P.S.P. é regulada pelas normas de direito privado constantes do Código Civil e não pelas normas constantes, à altura do acidente, do DL 48.051, de 21/11/1967.” (citado por Felipe Veríssimo Duarte, em artigo intitulado” A sinistralidade rodoviária na jurisdição administrativa” Revista Julgar nº 46, págs 134-135). Aliás, este acórdão cita, em seu abono, diversa jurisprudência, de que se destacam os seguintes: o Ac. STA de 23/2/1995 (36.392): “Em matéria de tráfego estradal e de acidentes de viação, a presença e a circulação de veículos do Estado em nada diferem das dos carros privados. Todos têm de seguir as mesmas regras técnicas, de obedecer aos mesmos regulamentos e de adoptar as mesmas precauções. Um motorista de viatura do Estado não tem de pautar-se, no exercício da condução, por normas de direito administrativo. Como qualquer piloto, tem de respeitar o estatuído no Código da Estrada e de manobrar com a perícia, a destreza e a prudência que se esperam de todos os utentes das vias públicas.
E as prioridades ou vantagens de que beneficie são as previstas na lei estradal”; e o Ac. STA de 25/3/1998 (42.971): “(…) apesar de o referido agente da PSP conduzir um veículo do Réu Estado em serviço, isso de modo nenhum implica ou significa que a sua eventual culposa conduta enquanto condutor desse veículo, porventura geradora de um litígio, seja disciplinada por normas de direito administrativo. A relação jurídica emergente dessa culposa conduta não está submetida ao direito público mas sim ao direito privado. No exercício da condução da viatura o referido agente não aparece investido do seu poder de autoridade, mas antes subordinado às normas legais aplicáveis à actividade análoga de um qualquer particular».

Assim, e reiterando, não estando provado que ao circular com o veículo da GNR, o agente, embora “ao serviço”, estivesse a realizar um concreto acto de gestão pública, não se pode afirmar que a circulação (aparentemente normal) do veículo da GNR integrasse qualquer actividade administrativa, que escapasse às regras de direito privado do Código da Estrada.

Porém, e ainda que se entendesse que o condutor da GNR seguia não como particular mas como agente investido do seu poder de autoridade e que a circulação do veículo integrava, na circunstância, um acto de gestão pública e, por isso mesmo, uma actividade administrativa, ainda assim essa actividade estaria subtraída à previsão do art. 11º, na medida em que os danos nunca teriam decorrido de “actividade especialmente perigosa”. A igual conclusão se chegaria também mesmo que se entendesse, como alguma doutrina, que, tendo presente que os actos da gestão privada da administração públicas se regem ainda pelas regras e princípios de direito administrativo, nos termos do art. 2º, nº 5 do CPA, a responsabilidade decorrente de actividades de gestão privada da Administração Pública é disciplinada pelo RRCEEDEP  e não já pelo Código Civil (Rebelo de Sousa, Marcelo/Salgado de Matos, André, Direito Administrativo Geral, Actividade Administrativa, tomo III, 2ª edição, 2009, Dom Quixote, pág. 483, citado por  Felipe Veríssimo Duarte no citado artigo, a pág. 133); ou, noutra formulação, através de uma interpretação expansiva do conceito de gestão pública, que, atento o disposto no art. 1º, nº 3 da Lei 67/2007, assentasse na finalidade funcional do acto em si, por forma a considerar que o acto teria sido praticado no exercício das funções públicas do agente e causado por esse mesmo exercicio e, portanto, com funcionalidade pública (Martinho Lucas Pires, em Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Universidade Católica, págs 389-392). Em nenhuma das perspectivas, os danos decorreriam de actividade administrativa especialmente perigosa.

Com efeito, e em ordem à integração de tal conceito, escreve Carlos Cadilha,  em Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas – Anotado, Coimbra, Coimbra Editora, 2ª edição, 2011, a pág. 215: “Conforme a doutrina  e a jurisprudência têm considerado a qualificação dos serviços atividades ou coisas especialmente perigosas deve ser fixada casuisticamente sendo de entender que a perigosidade há-de derivar da própria natureza da atividade, é do especial grau de perigosidade íntrinseca ou, ainda, por lhe estar normalmente inerente uma alta probabilidade de causação de danos; e a pág. 216:  “A expressão [especialmente perigosa] tem assim o alcance de salientar a ideia de perigo tornando exigível a ocorrência de um perigo acentuado e não apenas de um perigo vulgar que é inerente a uma grande variedade de atividades públicas e que, na hipótese de causarem danos, devem estar sujeitas ao regime da responsabilidade por culpa (…) o que se pretende portanto é pôr em destaque a característica das atividades da administração às quais anda ligada a ameaça de danos a terceiros, a grande probabilidade de lesões ou a potencialidade de causação de danos: mais adiante, a pág. 218, pondera ainda: “O preenchimento do conceito necessita por conseguinte de uma mediação valorativa em função de cada situação concreta. Terá de ser o julgador a proceder em cada caso a essa qualificação, colocando-se no momento na prática do facto para mediante um juízo ex post e ponderadas circunstâncias em que esta teve lugar decidir se a fonte geradora dos danos – atividade, coisa ou serviço- se reveste ela mesmo de especial perigo (…). Como observam Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado Matos “ a natureza especial do perigo não deve ser averiguada em abstrato mas tendo em conta o concreto funcionamento do serviço, coisa ou atividade que esteja em causa” o que não significa que não se deva apenas considerar a sua propensão típica para gerar o dano com exclusão, por conseguinte, daquelas actuações que não sendo potencialmente privadas apenas ocasionam danos por efeito de meras ocorrências acidentais [nota 368- (…) em sentido contrário parece apontar Carla Amado Gomes (A responsabilidade administrativa pelo risco na Lei nº 67/2007 de 31 de dezembro in “ Três Textos sobre o Novo Regime de Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas,  págs 71-72) que propugna uma avaliação abstracta da especial perigosidade, independentemnte de um concreto circunstancialismo, em termos tais que a perigosidade apenas pode emergir de uma conjugação de fatores objectivos que possam razoavelmente, de acordo com as regras da experiência e da ciência, fundamentar um tal juízo. As posições não se afiguram, no entanto,  inconciliáveis; nada obsta a que em função do circunstancialismo no caso e da atividade concreta que está em causa se possa apurar a grande probabilidade ou potencialidade para a causação de danos)” [sublinhados nossos];. Ainda da autoria de Carla Amado Gomes, pode ler-se em “A responsabilidade administrativa pelo risco na Lei nº 67/2007 de 31/12” na revista “O Direito”, ano 140º, III, a pág 619: “ Como explica Schamps é imperativo que a atividade implique “uma propensão típica para gerar o dano”. O “risco caracterizado” resulta da conjugação de dois critérios: a probabilidade da ocorrência do dano e a intensidade do efeito lesivo. Bastar-se apenas com um deles significaria abrir de tal forma o universo de hipóteses possíveis do dano que desvirtuaria o instituto. A pura e simples verificação de um dano ainda que catastrófico adveniente do exercício de uma atividade/ manuseamento de uma coisa inócua não chega para operacionalizar a subsunção na responsabilidade pelo risco.” Em “O Regime de Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas - Comentários à Luz da Jurisprudência, AAFDL Editores, 2022, anotação ao art. 11.º, a pág. 782, a mesma autora Carla Amado Gomes, em conjunto com Ricardo Pedro e Tiago Serão, escreve, ainda: “ O que se deve ter em conta na avaliação da perigosidade é a probabilidade (não possbilidade)  de ocorrência do dano em face dos métodos tipicamente utulizados no desenvolvimento da actividade, ou por outras palavras - que o  STA utilizou no acórdão de 2 de Fevereiro de 2015 (proc. 01075/14)- o facto de o perigo lhe ser constitucional.”

Finalmente, permita-se-nos, ainda, a seguinte citação de Carlos Cadilha,  na obra citada, pág. 227, que condensa, em formulação, a que se adere, o entendimento atrás já expresso: “ A expressão atividades, coisas ou serviços administrativos permite abarcar o risco associado a uma grande variedade de intervenções administrativas (…); o ponto é que as atividades coisas ao serviço em causa se revelem potencialmente perigosos em termos de envolverem por natureza uma exposição ao perigo mais intensa do que a generalidade das manifestações de vida em sociedade [nota 392- Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado Matos incluem, ainda,  no conceito a realização de obras na via pública e a condução dos veículos prioritários (ambulâncias, veículos policiais) a velocidades normalmente não permitidas ( ob. cit, 39)] ( sublinhado nosso).

Revertendo ao caso concreto, e recorrendo aos subsídios doutrinários atrás expostos, verifica-se, portanto, que não se provou que, na circunstância do acidente, o condutor do veículo da GNR estivesse a executar qualquer actividade “especialmente perigosa”, que envolvesse por natureza uma exposição a um perigo mais intenso do que o porpicionado pela generalidade dos utentes da via.

Como assim, não sendo aplicável o art. 11º da Le 67/2007, deve a repartição do risco obeceder à previsão do art. 506º do CC, divisão ( 2/3 para o veículo da GNR e 1/3 para o velocípede com motor) que, ao abrigo de tal disposição, não vem, aliás, questionada (pois apenas o foi apenas na medida em que o recorrente sustentou a aplicação do art. 11º da Lei 67/2007 e a responsabilidade integral do Estado). Aliás, seria injusta a solução de fazer recair exclusivamente o risco do acidente sobre o veículo da GNR quando é certo que não se provou que o risco produzido por tal veículo fosse superior ao de um veículo particular, com as mesmas características e conduzido nas mesmas circunstâncias (isto é, sem especial perigo apurado para os demais utentes da via).

Sumário (art. 663º, nº 7 do CPC):

“1. Para efeitos do art. 11º da Lei 67/2007 de 31.12, as actividades administrativas são especialmente perigosas se envolverem por natureza uma exposição a um perigo mais intenso do que a generalidade das manifestações de vida em sociedade;

2. Não é o caso se o condutor conduzia o veículo da GNR, em circunstâncias em que não se alegou nem se provou que o condutor de tal veículo, que colidiu com um velocípede com motor particular, estivesse a desempenhar com esse veículo qualquer actividade que fosse, pela sua natureza, especialmente (acentuadamente) perigosa para os demais utentes da via”.

Pelo exposto, acorda-se em negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente.


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Lisboa, 17 de Janeiro de 2023


António Magalhães (Relator)

Jorge Dias

Jorge Arcanjo