Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
29/04.0TBBRSD.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: CAMINHO PÚBLICO
DOMÍNIO PÚBLICO
CASO JULGADO FORMAL
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
ABUSO DE DIREITO
PRINCÍPIO DA CONCENTRAÇÃO DA DEFESA
INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL
INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 02/03/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Legislação Nacional: - CÓDIGO CIVIL, ARTIGO 334º
- CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, ARTIGO 489º, 510º, Nº 3, 661º, 676º, 690º, 690º-A
- ESTATUTO DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS APROVADO PELA LEI Nº 13/2002, DE 19 DE FEVEREIRO, AL.J) DO Nº 1 DO ARTIGO 4º
- DL Nº 39/95, DE 15 DE FEVEREIRO
- DL Nº 34.593, DE 11 DE MAIO DE 1945
Jurisprudência Nacional: ASSENTO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE 19 DE ABRIL DE 1989 (DIÁRIO DA REPÚBLICA, I, E 2 DE JUNHO DE 1989);

ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DA JUSTIÇA, DISPONÍVEIS EM WWW.DGSI.PT, DE:

- 14 DE OUTUBRO DE 2004, PROC. 04B2576
-13 DE MARÇO DE 2008, PROC. 08A542
- 18 DE DEZEMBRO DE 2008, WWW.DGSI.PT, PROC.Nº 07B3434
- 10 DE SETEMBRO DE 2009, WWW.DGSI.PT, PROC. Nº 374/09.8YFLSB.
- 3 DE DEZEMBRO DE 2009 (WWW.DGSI.PT, PROC. Nº 1665/05.2TBVIS.C1.S1.
20 DE JANEIRO DE 2010, WWW.DGSI.PT, PROC. Nº 09B195

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DOS CONFLITOS DE 28 DE SETEMBRO DE 2010, WWW.DGSI.PT, PROC. Nº 923/09
Sumário : 1. É da competência dos tribunais administrativos uma acção que decorre entre duas pessoas colectivas de direito público, na qual a autora pretende que se declare que um caminho pertence ao seu domínio público (al. j) do nº 1 do artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, em vigor à data da propositura da acção).

2. O trânsito em julgado da decisão, proferida no despacho saneador, que atribuiu competência aos tribunais judiciais para conhecer concretamente desta questão impede o Supremo Tribunal de absolver o réu da instância por incompetência em razão da matéria.

3. O princípio da concentração da defesa na contestação obsta a que o réu venha alegar, depois da contestação, factos então não alegados.

4. Os recursos visam modificar a decisão de que se recorre, e não conhecer de questões novas, não submetidas à apreciação do tribunal recorrido.

5. Os poderes de cognição do tribunal estão limitados pelo pedido.

6. Só nos limites definidos pelo nº 2 do artigo 722º e pelo nº 2 do artigo 729º do Código de Processo Civil é que o Supremo Tribunal da Justiça pode, na revista, alterar a decisão relativa à matéria de facto; tal limitação não impede o controlo da forma como o Tribunal da Relação utilizou os poderes de reapreciação da decisão de facto da 1ª instância que lhe são conferidos pelos nºs 1 e 2 do artigo 712º do Código de Processo Civil, ou interpretou e aplicou o princípio da livre apreciação da prova.

7. O princípio da livre apreciação da prova vale em 1ª e em 2ª Instância.

8. Para que um caminho de uso imemorial se possa considerar integrado no domínio público exige-se a sua afectação a utilidade pública, ou seja, que a sua utilização tenha por objecto a satisfação de interesses colectivos de certo grau e relevância.

9. Os caminhos vicinais, ou seja, que se destinam ao trânsito rural entre duas localidades da mesma freguesia, pertencentes ao domínio público de uma freguesia à data da revogação do Decreto-Lei nº 34.593, continuam a integrá-lo.
Decisão Texto Integral: Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:



1. Em 4 de Fevereiro de 2004, a Junta de Freguesia de F... instaurou uma acção contra o Município de R... pedindo que o réu fosse condenado:
“1- a reconhecer que o caminho” denominado ‘Caminho das P... à R...’, situado nos limites da Freguesia de F..., “é um caminho vicinal, cuja administração compete exclusivamente à A., por estar dentro do seu domínio público;
2- a reconhecer que o muro” construído sob as ordens e direcção do réu e “o aterro depositado” na respectiva parte poente “foi por si edificado e depositado, respectivamente, sobre o caminho vicinal (…);
3- a reconhecer que, com as obras referidas no pedido 2, ocupou ilegal e abusivamente, numa área de 19 m2, terrenos do domínio público da A.”
E, consequentemente, que fosse ainda condenado a
“4- restituir o caminho vicinal das “P... do R... ao seu trajecto original, deixando-o livre e desocupado de qualquer construção;
5- demolir o muro e remover o aterro (…), repondo o largo do seu estado original, de molde a restituí-lo às suas ancestrais funções (…)” de “ceder mútua passagem quando nele [os munícipes de F..., ‘há mais de 20, 50 e 100 anos e já a memória dos vivos o não lembra’] transitavam com carros de bois” e de permitir pousar “carregos que transportavam às costas” (petição inicial).
O Município de R... contestou. Invocou a incompetência do tribunal em razão da matéria, por caber aos tribunais administrativos a competência para conhecer do pedido, nos termos da al.j) do nº 1 do artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro; alegou tratar-se de trabalhos relativos ao abastecimento de água à povoação de F..., impugnou quase todos os factos alegados pela autora e sustentou não ter ocupado “com o dito muro” nenhum caminho cuja jurisdição lhe pertencesse.
A autora replicou. Sustentou a competência do tribunal, pois está “em apreço o domínio privado – pese embora de utilidade pública – da A.”, e ainda “o facto de saber se tal terreno é público ou privado” e contestou que o réu tenha procedido “no lugar identificado (…) a qualquer instalação de rede de abastecimento de águas e esgotos”.
No despacho saneador, a fls.59, o tribunal declarou-se competente, por aplicação dos artigos 51º, nº 1, f) e 4º, nº 1, e) e f) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e do artigo 66º do Código de Processo Civil; supõe-se que o despacho se esteja a referir ao anterior Estatuto, ou seja, ao Decreto-Lei nº 129/84, de 27 de Abril, já revogado quando a acção foi proposta.
O réu interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto; mas o recurso veio a ser julgado deserto, por falta de alegações (a fls. 101).
Pela sentença de fls. 414, a acção foi julgada improcedente. Em síntese, a sentença entendeu não ter sido feita prova, sucessivamente, nem da natureza pública do caminho, nem de que se tratasse de caminho vicinal, sujeito a administração da Junta de Freguesia, nem de que se tivesse verificado “a privação da utilização do caminho”, apesar da demonstração de “que o largo do caminho foi destruído e o caminho estreitado”.
A sentença foi revogada pelo acórdão do Tribunal da Relação do Porto de fls. 143, que julgou a acção totalmente procedente, “com a limitação referente à área ocupada (…), a qual se fixa em cerca de 19 m2”, condenando o réu em todos os pedidos.
A Relação deu como assente tratar-se de um caminho público sob jurisdição da freguesia, que com a destruição do largo (que se integrava no caminho) “o R. praticou um acto impeditivo da utilização do caminho tal como foi feita desde tempos imemoriais”, privando “os habitantes da freguesia do direito” de assim o usar, e que “o facto de a ocupação do largo ter surgido na sequência de obras da competência do Município (…) é, para o caso, irrelevante e não legitima o acto”.
O réu foi, assim, condenado:
“1. A reconhecer que o caminho identificado em 1) da p.i. é um caminho vicinal, cuja administração compete exclusivamente à A., por estar dentro do seu domínio público;
2. A reconhecer que o muro a que alude o artigo 2° e seguintes e o aterro depositado na obra a que se refere o artigo 18° (ambos da p.i.) foi por si edificado e depositado sobre o caminho vicinal;
3. A reconhecer que com as obras referidas no pedido 2 ocupou ilegal e abusivamente, numa área de cerca de 19 metros quadrados, terrenos do domínio público da A.;
4. A restituir o caminho vicinal ao seu trajecto inicial, deixando-o livre e desocupado de qualquer construção,
5. A demolir o muro e remover o aterro referido em 2. repondo o largo no seu estado original.”

2. O réu recorreu para o Supremo Tribunal da Justiça. O recurso, ao qual não são aplicáveis as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, foi admitido como revista, com efeito devolutivo.
Nas alegações que apresentou, o recorrente formulou as seguintes conclusões:

“1.ª - A compatibilização do princípio da livre apreciação da prova deferido ao tribunal da 1ª instância pelo artigo 655.° do CPC, com o princípio do duplo grau de jurisdição do julgamento da matéria de facto, consagrado no artigo 712º do CPC, impõe, para que possa ser alterada a resposta à matéria de facto pela 2ª instância, que ocorra uma flagrante desconformidade entre as provas produzidas e a decisão não servindo para tal alteração uma convicção diferente daquilo que as testemunhas disseram.
2.ª - O que impõe ou determina que o Tribunal de 2.ª Instância fundamente a sua decisão de alteração, com indicação precisa, do erro grosseiro cometido no julgamento da matéria de facto pelo Tribunal de 1ª Instância e não com simples convicção diferente acerca daquilo que as testemunhas disseram.
3.ª - Verifica-se, pelo Acórdão recorrido, que o Tribunal de 2.ª Instância, para além de não indicar qual a desconformidade e o erro grosseiro cometido pela 1.ª Instância, apenas altera a respostas aos quesitos 7.º e 1 5.º da Base Instrutória, por ter urna convicção diferente daquilo que as testemunhas disseram.
4.ª Foi, assim, violado pelo Acórdão recorrido o princípio da livre apreciação da prova e do duplo grau de jurisdição do julgamento da matéria de facto consagrados nos artigos 655.º e 712.° ambos do CPC, ao alterar as respostas aos quesitos 7.º e 15.° da Base Instrutória por não se verificarem os pressupostos para tal alteração.
5.ª - Os interesses que a Pessoa Colectiva Município leva a cabo no exercício das suas atribuições e da competência dos seus órgãos, como seja o abastecimento de água potável às populações e o saneamento básico, são superiores e sobrepõem-se aos interesses que a pessoa colectiva freguesia prossegue no [sic]
5ª [sic] - O Tribunal da 2.a Instância, ao alterar o julgamento do quesito 15º de ‘não provado’ para ‘provado apenas que ampliou o prédio rústico, propriedade de HH, que a sul confina com a obra que realizou’, com recurso a prova testemunhal, fez incorrecta aplicação da lei e do direito e violou os artigos 362º, 363º, nº 2 e 359º do CC, já que ‘ampliar prédio rústico pertencente a HH’ é uma conclusão de direito e a tratar-se de um facto só por documentos (certidão do registo predial donde conste como do titular inscrito aquele HH, presumindo-se ser ele o titular do direito) é que podia ser provado.
6.ª – Os interesses que a Pessoa Colectiva Município leva a cabo no exercício das suas atribuições e da competência dos seus órgãos, como seja o abastecimento de água potável às populações e o saneamento básico, são superiores e sobrepõem-se aos interesses que a pessoa colectiva Freguesia prossegue no exercício da suas atribuições, como seja a defesa do seu domínio público rodoviário, razão pela qual a lei não permite que esta impeça aquele de utilize seu domínio público rodoviário para no seu subsolo colocar as condutas de água e saneamento e executar as respectivas obras.
7.ª. O Douto Acórdão recorrido ao condenar o Município de R... a reconhecer que ocupou ilegal e abusivamente 19 m2 que correspondiam a um penedo existente no interior do caminho que servia para as pessoas nele pousarem os carregos que transportavam às "costas" e ao condená-lo a restituir o mesmo ao seu estado inicial, deixando livre e desocupado de qualquer construção, obrigando-o, em sede de execução de sentença, a proceder à remoção de condutas de água potável e saneamento e à colocação do penedo no seu estado anterior, está, na prática, a negar aos habitantes da povoação de F... o direito de acesso a água potável e saneamento básico e a permitir que a população utilizadora do caminho continue a cometer o flagelo no seu corpo ao transportar os carregos às ‘costas’ já que vão ter ao seu dispor o penedo para nele pousar e descansar.
8.ª O exercício deste direito, agora reconhecido pelo Tribunal de 2ª Instância, e que consiste na faculdade da pessoa colectiva Freguesia de F... obrigar, com recurso à força, a pessoa colectiva Município de R..., a remover as condutas de água e saneamento colocadas no subsolo do caminho cuja administração compete àquela, que abastecem a população, excede os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social e económico do mesmo.
9ª É, pois, abusivo o exercício do direito da recorrida Freguesia de F..., razão pela qual o Tribunal recorrido, ao não ponderar as consequências da sua decisão, fez incorrecta aplicação da lei e do direito, violando o artigo 334º do C.C.
10.ª - A recorrida Freguesia de F... não alegou, nem provou, o título aquisitivo do direito de propriedade pública sobre o caminho das P... à R..., sendo que os factos dados como provados apenas provam a natureza do domínio publico do caminho para o distinguir do domínio privado ou de caminho de servidão, não tendo o condão de provar actos administrativos que aquela pessoa colectiva tenha praticado ao longo de mais de 20 anos seguidos, na convicção de que era proprietária do caminho e que sobre ele exerceu poderes de facto para, desta forma, adquirir por usucapião o direito de propriedade pública, suprindo desta forma os títulos válidos de aquisição do domínio sobre a propriedade,
11.ª - Para que o Tribunal recorrido condenasse o Município de R... a restituir à Freguesia de F... o direito de propriedade sobre o caminho das P... à R... com fundamento no artigo 1311.º do C.C., como fez, tinha de declarar ou dizer qual o título de aquisição deste direito
12.ª - Não tendo feito fez incorrecta aplicação da lei e do direito violando os artigos 342º nº 1 e 1311º ambos do C.C.
13.ª – E, a entender-se, como parece ser o entendimento do Tribunal recorrido, que o título aquisitivo do direito de propriedade sobre o caminho é o D.L. 34.593, de 11 de Maio de 1945, então estamos perante aplicação de normas material e organicamente inconstitucionais já que a definição de quais os bens que integram o domínio público do Estado, das Regiões Autónomas e das Autarquias Locais, bem como o seu regime, condições de utilização e limites, é da competência exclusiva da Assembleia da República nos termos dos artigos 84º nº 2 e 165º, nº 1, alínea v) da Constituição da República Portuguesa.
14.ª – Razão pela qual o Acórdão recorrido aplicou normas jurídicas inconstitucionais, cometendo erro na aplicação da lei e do direito.
15ª – E, mesmo que assim não seja, sempre o D.L. 34.593 e as normas jurídicas inovadas e aplicadas pelo Tribunal recorrido que após a entrada em vigor da Constituição da República Portuguesa de 1976 fixaram as atribuições e competências das autarquias locais, numa interpretação que impedisse o Município, no exercício das suas atribuições e competências, de executar as obras e colocar condutas de água potável e saneamento para abastecimento da população no subsolo do domínio público rodoviário da Freguesia, seriam inconstitucionais por violação do princípio da dignidade da pessoa humana ínsito no princípio de Estado de Direito Democrático consagrado no artigo 2º daquela Constituição.
16.ª – Também o Acórdão recorrido fez incorrecta aplicação da Lei e do Direito violando o princípio da dignidade da pessoa humana e o direito universal do Homem a água potável e saneamento adoptado pela ONU de que Portugal é membro.
Termos em que deve ser julgado procedente o presente recurso e a final concedida a revista, deve manter-se a sentença proferida em 1ª Instância (…)”.

Contra-alegou a autora, sustentando que devia ser mantido o acórdão recorrido e que o recorrente deve ser condenado como litigante de má fé, “em condigna multa e indemnização a favor da recorrida”.
Em síntese, observou não ter ocorrido nenhuma infracção do princípio da livre apreciação da prova; salientou a diferença entre “o caminho vicinal das P... à R...” e “o L... do P..., parte integrante daquele, que desapareceu por acção do recorrente” e que, só ele, constitui “o objecto da demanda”; que “por ninguém foi referido, nem da sentença se extrai, e nem corresponde à verdade, que sob o L... do P... foram feitas as obras de saneamento e água”.

3. A 1ª Instância deu como provados os seguintes factos:

1. O caminho das P... à R... localiza-se nos limites da freguesia de F... e liga pedonalmente e com carro de bois aquelas localidades;
2. Na semana compreendida entre os dias 13 e 17 de Outubro de 2003, vários funcionários da R., por incumbência e sob as suas ordens e direcção, procedera à construção de um muro, orientado no sentido norte-sul, no caminho referido em A);
3. O muro foi erecto em blocos de cimento;
4. Com 7,30 metros de comprimento;
5. E 1,60 metros de altura no seu lado sul e 0,50 metros do lado norte, atenta a sua configuração descendente;
6. Na realização dessa obra, além dos materiais de construção referidos em 2º, foi pela R. transportado e aí depositado um aterro;
7. Que serviu de enchimento do espaço que dista do muro até à pavimentação que a R. igualmente fez nesse circunstancialismo de tempo e lugar, em cimento, e que alargou o caminho que acede à casa de habitação sita a poente, da residente local II;
8. Com a realização de tais obras a R. destruiu o largo que caminho ali desenhava, estreitando, assim, o caminho;
9. Há mais de 30, 50 e 100 anos, e já a memória dos vivos o não lembra, o espaço referido em 8 é utilizado pelos munícipes de F...;
10. Seja para cederem mútua passagem quando nele transitavam com carros de bois;
11. Seja para, na ladeira que ali se formava adjacentemente, pousarem carregos que transportavam às costas;
12. No local referido em 8 o largo era ladeado, no vértice sul-poente, por um penedo- denominado de "P... das P..."- que do caminho subia e desenhava uma elevação que possibilitava o pouso de carregos às costas;
13. A sul era delimitado por um muro em pedra e rocha, que delimitava um prédio rústico contíguo, localizado a sul;
14. A poente era delimitada por um caminho que acedia, nomeadamente, à casa da II;
15. Na data referida em 2), a R. partiu e removeu a maior parte do penedo com recurso a máquinas industriais;
16. Desde finais de Julho até Outubro de 2003 a Câmara Municipal de R... procedeu à execução de trabalhos relativos ao abastecimento de água à povoação de F...;
17. Trabalhos que consistiram na execução de depósito de água, baixada eléctrica e grupo electromecânico (bomba de água) para o furo e colocação de conduta de água em tubo PVC de ligação de furo á rede;
18. Foi ainda executada uma conduta de abastecimento às casas, na zona urbana, em tubo PVC;
19. E, em simultâneo à colocação desta conduta de água, aproveitando a abertura do pavimento, foi colocada conduta de saneamento para transporte dos esgotos das casas;
20. Essas condutas foram rasgadas no caminho das Poças, mencionado em A), iniciaram-se junto à estrada municipal e prolongaram-se até ao fim das casas;
21. No final foi edificado o muro referido em 2 onde foi colocado um ramal domiciliário de água.

Julgando a apelação interposta pela autora, na qual o réu não contra-alegou, a Relação alterou o ponto 8, que passou a ser “Com a realização das obras referidas, a R. destruiu e ocupou cerca de 19 m2 de terreno de um largo que o aludido caminho ali desenhava, estreitando assim o caminho” e acrescentou um ponto 15-A: “E ampliou o prédio rústico, propriedade de HH, que, a sul, confina com a obra que realizou”.


4. Cabe conhecer do recurso, cumprindo desde já assentar no seguinte:

– A presente acção não é da competência dos tribunais judiciais, mas sim dos tribunais administrativos, de acordo com o disposto na al. j) do nº 1 do artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais em vigor à data da propositura da acção, ou seja, do que foi aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, que revogou o anterior (cfr. artigo 9º da Lei nº 13/2002). Trata-se de uma acção que decorre entre duas pessoas colectivas de direito público, na qual a autora, como se escreveu do despacho saneador, “pretende (…) a qualificação de um caminho como pertencente ao seu domínio público”. O novo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais não contém nenhuma norma que exclua da jurisdição administrativa “os recursos e acções que tenham por objecto e) Qualificação de bens como pertencentes ao domínio público (…)” como constava da alínea e) do nº 1 do artigo 4º do anterior Estatuto (Cfr. acórdão do Tribunal dos Conflitos de 28 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 923/09).
No entanto, e uma vez que o réu Município deixou ficar deserto o recurso que interpôs da decisão que conheceu desta questão concreta de competência, tal decisão transitou em julgado, adquirindo força de caso julgado formal (nº 3 do artigo 510º do Código de Processo Civil) e impedindo este Supremo Tribunal de absolver o réu da instância por incompetência em razão da matéria;

– O princípio da concentração da defesa na contestação obsta a que o réu venha alegar, depois da contestação, factos então não alegados (nº 1 do artigo 489º do Código de Processo Civil). Não pode, assim, pretender que o Supremo Tribunal da Justiça, na revista, retire conclusões – que, aliás, implicariam ter como assentes factos não alegados e, portanto, não provados – das afirmações que faz sobre as implicações que a colocação do largo na situação em que estava anteriormente às obras, eliminando o muro e o aterro, teria nas obras de saneamento “obrigando-o, em sede de execução de sentença, a proceder à remoção de condutas de água potável e saneamento” (concl. 7ª);

– Como se sabe e o Supremo Tribunal da Justiça tem repetidamente recordado, os recursos visam modificar a decisão de que se recorre, e não conhecer de questões novas, não submetidas à apreciação do tribunal recorrido. O seu objectivo é eliminar eventuais erros de apreciação e de julgamento verificados naquela decisão, como aliás resulta da noção constante do nº 1 do artigo 676º do Código de Processo Civil e se pode confirmar, por exemplo, pela definição do conteúdo necessário das alegações de recurso e respectivas conclusões: cfr., em especial, os nºs 1 e 2 do artigo 690º ou o nº 1 do artigo 690º-A do mesmo Código.
Ressalva-se, naturalmente, a hipótese de se tratar de questões de conhecimento oficioso (veja-se, a título de exemplo e por todos, o acórdão deste Tribunal de 3 de Dezembro de 2009 (www.dgsi.pt, proc. nº 1665/05.2TBVIS.C1.S1).
Isto significa que o Supremo Tribunal da Justiça vai apreciar da alegação de abuso de direito, por ser de conhecimento oficioso; mas apenas com recurso aos factos alegados e provados, na sequência do que atrás de observou;

– Tendo em conta os pedidos formulados pela autora, que delimitam o âmbito dos poderes de cognição do tribunal (artigo 661º do Código de Processo Civil), não está em causa nesta acção saber se o Município pode ou não, e como, utilizar “o (…) domínio público rodoviário” da Freguesia “para no seu subsolo colocar as condutas de água e saneamento e executar as respectivas obras”, mas tão somente se a autora pode defender o seu domínio público contra uma actuação unilateral e de facto do réu, traduzida no que ficou provado.

5. O recorrente coloca assim as seguintes questões (nº 3 do artigo 684º do Código de Processo Civil), pela ordem que vão ser apreciadas:
– Violação do princípio da livre apreciação da prova e do princípio do duplo grau de jurisdição do julgamento da matéria de facto;
– Insuficiência da matéria de facto provada para reconhecer à Freguesia o domínio público sobre o caminho;
– Abuso de direito;
– Inconstitucionalidade orgânica e material.

6. O recorrente alega que o acórdão recorrido infringiu “o princípio da livre apreciação da prova e do duplo grau de jurisdição do julgamento da matéria de facto consagrados nos artigos 655º e 712º ambos do CPC, ao alterar as respostas aos quesitos 7º e 15º (…)”.
Seguindo de perto o que já em outros acórdãos se afirmou (cfr., em particular, os acórdãos de 18 de Dezembro de 2008, www.dgsi.pt, proc.nº 07B3434 e de 20 de Janeiro de 2010, www.dgsi.pt, proc. 09B195), só nos limites definidos pelo nº 2 do artigo 722º e pelo nº 2 do artigo 729º do Código de Processo Civil é que o Supremo Tribunal da Justiça pode, no âmbito do recurso de revista, alterar a decisão relativa à matéria de facto; tal limitação não impede (cfr. nº 1 do citado artigo 722º), todavia, o controlo da forma como o Tribunal da Relação utilizou os poderes de reapreciação da decisão de facto da 1ª instância que lhe são conferidos pelos nºs 1 e 2 do artigo 712º do Código de Processo Civil, ou interpretou e aplicou o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 655º do mesmo Código de Processo Civil (neste sentido ver, por exemplo, o acórdão deste Supremo Tribunal de 10 de Setembro de 2009, www.dgsi.pt, proc. nº 374/09.8YFLSB).
Como se sabe, foi o Decreto-Lei nº 39/95, de 15 de Fevereiro, que introduziu, no âmbito do Processo Civil, a documentação e registo da prova produzida na audiência final, assumidamente com o objectivo de permitir “um verdadeiro e efectivo 2º grau de jurisdição da matéria de facto, facultando às partes na causa uma maior e mais real possibilidade de reacção contra eventuais – e seguramente excepcionais – erros do julgador na livre apreciação da prova (…)”, como se escreveu no seu preâmbulo. E nesse mesmo preâmbulo, o legislador reconheceu que “a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso”.
Foi no exercício desses poderes que a Relação apreciou os pontos da decisão de facto que a autora impugnara no recurso de apelação, alterando as respostas dadas aos quesitos 7º e 15º e mantendo no que toca ao quesito 16º.
Segundo o recorrente, o acórdão recorrido desrespeitou os limites definidos para a sua intervenção, que apenas lhe permitem corrigir “os erros ou a desconformidade flagrante da 1ª instância”, pois valorou diferentemente depoimentos de testemunhas, baseou-se num relatório pericial do qual se não podia retirar a conclusão a que chegou e deu como provado que, com as obras, o réu ampliou “prédio rústico pertencente a HH” apesar de se tratar de um “facto” que é “conclusivo(…) ou assume(…) natureza de conceito(…) de direito” e que só por documento autêntico – certidão do registo predial – podia ser provado (a titularidade do direito de propriedade).
Em primeiro lugar, é inevitável reconhecer que, com o sistema introduzido pelo Decreto-Lei nº 39/95, a lei fez prevalecer a garantia do segundo grau de jurisdição sobre as vantagens da imediação na produção da prova testemunhal; e que aceitou que, para a 2ª Instância, esta falta de imediação não prejudicava a efectividade do princípio da livre apreciação da prova, que vale em ambas as instâncias. Nada impede que a Relação valore diferentemente os mesmos depoimentos e, de acordo com este princípio da livre apreciação da prova, altere a decisão de facto que neles se baseou; a sua intervenção não está de forma alguma reduzida à eliminação de desconformidades flagrantes entre a decisão da 1ª instância e a prova. Note-se que a lei garante plenamente o contraditório do recorrido (nº 3 do artigo 690º-A do Código de Processo Civil), no próprio recurso de apelação.
O mesmo se diga quanto às conclusões que a Relação retirou do relatório pericial.
Em segundo lugar, não é exacto que só por documento autêntico se possa provar a titularidade do direito de propriedade sobre um imóvel. A inscrição no registo faz presumir a existência e a titularidade do direito, apenas. De qualquer modo, não é relevante, no contexto desta acção, a determinação do concreto titular do prédio ampliado; o que, aliás, retira importância ao carácter eventualmente conclusivo da resposta.
Não há pois fundamento para censurar a aplicação, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão de facto, à luz do regime definido pelo nº 2 do artigo 712º do Código de Processo Civil; nem para concluir pela infracção do princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 655º do mesmo Código, que, repete-se, também vale para a 2ª Instância.

7. O recorrente sustenta ainda que os factos provados não permitem ter como demonstrado que a Freguesia seja “titular do direito sobre o domínio público do caminho das P... à R...”. Afirma que “A Freguesia não alegou, nem provou, os actos administrativos que praticou ao longo dos tempos através dos quais se podia concluir pela aquisição da propriedade pública do caminho por usucapião”, como seria necessário.
O acórdão recorrido considerou “presentes os requisitos que atribuem natureza pública ao caminho: o uso directo e imediato pelo público e a imemorialidade de tal uso (Assento do STJ de 19 de Abril de 1989, DR, série I, de 2/6/1989) e a sua afectação a fins de utilidade pública”. E entendeu ainda que, tratando-se de um caminho vicinal, integra o domínio público da freguesia (quer porque considera em vigor, quanto aos caminhos vicinais, o Decreto-Lei nº 34.593, quer porque não houve desafectação dos caminhos públicos vicinais do domínio público das freguesias) e está sob a sua jurisdição, já que “a competência quanto à conservação e manutenção dos caminhos vicinais não foi transferida para os municípios, pelo que permanece na freguesia”.
A argumentação apresentada pelo recorrente foi expressamente rejeitada pelo Assento deste Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Abril de 1989 (Diário da República, I, e 2 de Junho de 1989), quando, para o efeito de determinar quais os requisitos que têm que estar preenchidos para que um caminho possa ser considerado público, decidiu que “são públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público.”
Estava então em discussão saber se, para se alcançar tal conclusão, bastava que os caminhos estivessem “no uso directo e imediato do publico” ou se antes era necessário, cumulativamente, que, “além de se encontrarem no uso directo e imediato do publico, tenham sido administrados pelo Estado ou outra pessoa de direito público”.
Escreveu-se então: “(…) entende-se que, quando a dominialidade de certas coisas não está definida na lei, como sucede com as estradas municipais e os caminhos, essas coisas serão públicas se estiverem afectadas de forma directa e imediata ao fim de utilidade pública que lhes está inerente. É suficiente para que uma coisa seja pública o seu uso directo e imediato pelo público, não sendo necessária a sua apropriação, produção, administração ou jurisdição por pessoa colectiva de direito público. Assim, um caminho é público desde que seja utilizado livremente por todas as pessoas, sendo irrelevante a qualidade da pessoa que o construiu e prove a sua manutenção. (…) esta orientação é a que melhor se adapta às realidades da vida, visto ser com frequência impossível encontrar registos ou documentos comprovativos da construção, aquisição ou mesmo administração e conservação dos caminhos, e assim se obstar a apropriação de coisas públicas por particulares, com sobreposição do interesse público por interesses privados. Basta, portanto, para a qualificação de um caminho como caminho público o facto de certa faixa de terreno estar afecta ao trânsito de pessoas sem discriminação.”
Sabe-se ainda que o Assento de 19 de Abril de 1989 tem vindo a ser interpretado restritivamente, exigindo-se, para que um caminho de uso imemorial se possa considerar integrado no domínio público, como se escreveu no acórdão deste Supremo Tribunal de 13 de Março de 2008, (disponível em www.dgsi.pt como proc. 08A542) “a sua afectação a utilidade pública, ou seja, que a sua utilização tenha por objecto a satisfação de interesses colectivos de certo grau e relevância (cf. os Acórdãos do STJ de 10 de Novembro de 1993 – BMJ 431-300 e “inter alia” de 10 de Abril de 2003 – P.º 4714/02-2.ª), numa clara adesão aos critérios do destino – na subespécie de uso público – e do carácter – na vertente de afectação”.
É certo que, no caso presente, o recorrente não discute a natureza pública do caminho, mas apenas a titularidade da autora. No entanto, a razão de ser do assento conduz a não exigir a prova da prática, pela Freguesia, de actos que permitam a aquisição por usucapião, mas a deslocar a atenção para as características do caminho e das utilidades que o mesmo vem proporcionando, relacionando-as com as atribuições das autarquias em que o mesmo se situe.
Foi justamente esta a perspectiva do acórdão recorrido, que não merece qualquer censura.
Vem provado que o caminho das P... à R... se situa dentro dos limites da Freguesia de F.... e liga pedonalmente e com carros de bois aquelas localidades; que tal caminho desenhava, num determinado ponto, um largo; que os munícipes de F... (não tem qualquer relevância a utilização da palavra munícipes, contrariamente ao que o recorrente sugere), ou seja, que a generalidade das pessoas de F... (cfr. a relevância desta utilização comum, por exemplo, no acórdão deste Supremo Tribunal de 14 de Outubro de 2004 (www.dgsi.pt, proc. 04B2576) utilizavam tal largo “há mais de 30, 50 e 100 anos, e já a memória dos vivos o não lembra”, “seja para cederem mútua passagem quando nele transitavam com carros de bois”, “seja para, na ladeira que ali se formava adjacentemente, pousarem carregos que transportavam às costas”.
Um caminho (e o largo que o integrava) com tais características deve ser qualificado como caminho vicinal, tendo em conta o seu destino – trânsito rural entre duas localidades da mesma freguesia. É aliás a qualificação que resulta da al. b) do artigo 6º do Decreto-Lei nº 34.593, de 11 de Maio de 1945, que procede à classificação das estradas e caminhos públicos, e que dispõe que os caminhos com aquelas características ficam a cargo das juntas de freguesia (al. c) do artigo 7º). E, quanto a este ponto, diga-se que não releva desconhecer-se, como se escreveu na sentença, “a largura do caminho, nomeadamente, se permite, ou não, o trânsito de carros”. Na verdade, o que a sentença descreve, por referência ao artigo 41º do Decreto-Lei nº 34.593, como “características técnicas dos caminhos públicos vicinais”, são aquelas que os mesmos deverão ter, no âmbito da adaptação que o artigo 46º determinou que sofressem as vias existentes.
A prova feita permite concluir que, quando este diploma foi revogado pelo Decreto-Lei nº 380/85, de 29 de Setembro, já o caminho (e o respectivo largo) integravam o domínio público da Freguesia de F..., não se tornando necessário averiguar se aquela revogação abrangeu ou não o que no Decreto-Lei nº 34.593 respeitava aos caminhos públicos.
Como igualmente se dá nota no acórdão recorrido, para o qual se remete neste ponto, não se encontra na legislação posterior qualquer base que permita afirmar que os caminhos vicinais tenham deixado de integrar o domínio público das freguesias.
Note-se, aliás, que o recorrente também entende que os caminhos vicinais existentes à data da revogação do Decreto-Lei nº 34.593 “continuaram a existir na esfera jurídica da pessoa colectiva a que pertencem” (alegações, fl. 524).
Nada mais releva, quanto a saber se o caminho (e o largo) em causa nesta acção integram ou não o domínio público da autora.

8. O recorrente invoca abuso de direito, sustentando que é “abusivo o exercício do direito da Autora em pretender que o Réu remova aquelas condutas de água potável e saneamento que visam satisfazer um direito fundamental, com consagração constitucional e reconhecido como universal pela ONU, das pessoas que residem na povoação de F...”.
O direito a que o recorrente se refere é o que designa como “direito de acesso a água potável e saneamento básico”.
Cumpre pois saber se, ao defender o direito de propriedade pública sobre o caminho (em particular, na parte em que forma o largo), pretendendo a eliminação do muro e do aterro e a reposição no largo na sua configuração original, a autora actua abusivamente.
Não está em causa que tal forma de defesa do direito de propriedade respeite o respectivo conteúdo; mas apenas saber se a autora está a exercer os direitos que o domínio público implica de forma que manifestamente excede “os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito” (artigo 334º do Código Civil).
Ora a alegação do recorrente não aponta nenhuma actuação que assim possa ser qualificada:
– Como se disse já, não está evidentemente em causa a prossecução das actividades de construção de infra-estruturas de abastecimento de água e de saneamento básico por parte do Município, nem tão pouco a possibilidade de utilização do subsolo do domínio público da freguesia para nele implantar as necessárias condutas, nunca contestada pela recorrida, mas apenas a sua reacção contra actos materiais de ocupação e alteração da configuração do seu domínio público;
– O que a autora pediu nesta acção foi que o Município fosse condenado a demolir o muro e remover o aterro (…), repondo o largo do seu estado original” e não a eliminação de “qualquer construção, o que significa que sejam removidas as condutas de água e saneamento”, como o recorrente afirma nas alegações;
– Não está provado – nem o recorrente o alegou na contestação – que a demolição do muro e a remoção do aterro no largo inutilizem ou impeçam o abastecimento de água à população ou o saneamento;
– Também não ficou provado – nem foi alegado na contestação – que, após a intervenção do réu, o traçado do largo tenha ficado melhorado, permitindo a passagem de tractores agrícolas e de veículos automóveis;
– Para além disso, não procedem, ostensivamente, as considerações feitas pelo recorrente sobre o “direito à água potável e saneamento” ou sobre o princípio da dignidade da pessoa humana em confronto com a manutenção de um penedo que “servia para pousar os carregos enquanto as pessoas descansavam”, assim possibilitando que “a população de F... possa continuar a cometer o flagelo no seu corpo, transportando carregos, por continuarem a ter o penedo para nele pousarem e descansarem”, ou sobre a utilização de carros de bois no sec. XXI. A possibilidade de pousar uma carga e descansar não é decerto incompatível com a dignidade da pessoa humana. E aos tribunais não compete criar ou eliminar incentivos segundo objectivos de política social e económica, mas apenas julgar segundo a lei.

9. Finalmente, o recorrente alega:
– que “a entender-se (…) que o título aquisitivo do direito de propriedade sobre o caminho é o D.L. 34.593, de 11 de Maio de 1945, então estamos perante aplicação de normas material e organicamente inconstitucionais”, porque é da competência exclusiva da Assembleia da República a definição dos bens que integram o domínio público, respectivo regime, condições de utilização e limites (nº 2 do artigo 84º e al. v) do nº 1 do artigo 165º do Constituição).
Tratando-se de direito ordinário anterior à Constituição, a questão da inconstitucionalidade orgânica não pode ser aferida pelas respectivas normas, razão pela qual improcede a alegação correspondente.
E por isso mesmo, não se pode retirar do nº 2 do artigo 290º da Constituição a sua revogação, como pretende o recorrente.
Quanto à inconstitucionalidade material, a falta de identificação de qual norma afrontaria a Constituição e a ausência de qualquer fundamentação impedem a apreciação da questão;
– e que “mesmo que assim não seja, sempre o D.L. 34.593 e as normas jurídicas inovadas e aplicadas pelo Tribunal recorrido que após a entrada em vigor da Constituição da República Portuguesa de 1976 fixaram as atribuições e competências das autarquias locais, numa interpretação que impedisse o Município, no exercício das suas atribuições e competências, de executar as obras e colocar condutas de água potável e saneamento para abastecimento da população no subsolo do domínio público rodoviário da Freguesia, seriam inconstitucionais por violação do princípio da dignidade da pessoa humana ínsito no princípio de Estado de Direito Democrático consagrado no artigo 2º daquela Constituição.”
Não indicando as normas que pretende que sejam apreciadas, pois que apenas refere os diplomas de que constam – “da Lei 79/77, de 26/10; do D.L.100/84, de 29/3; da Lei 169/99, de 18/9, com as alterações introduzidas pela Lei 5-A/2002, de 11/1” – o recorrente não define nenhuma questão de constitucionalidade normativa que caiba apreciar; o Supremo Tribunal de Justiça não se lhe pode substituir na definição do âmbito do recurso.
Observa-se, no entanto, que, nem a Relação, nem este Supremo Tribunal interpretaram quaisquer normas, ou proferiram qualquer decisão, que impeça o Município de exercer as suas atribuições e competências, nomeadamente no âmbito do abastecimento de água ou de saneamento; e que sempre seria manifestamente improcedente, no contexto da presente acção e com relação a tais decisões, o apelo ao “princípio da dignidade da pessoa humana ínsito no princípio do Estado de Direito Democrático consagrado no artigo 2º da CRP" ou ao “direito universal da pessoa humana a água potável e saneamento reconhecido pela Organização das Nações Unidas de que Portugal é parte”, para fundamentar a sua improcedência.

10. A recorrida invoca má fé por parte do recorrente, por ter alegado factos objectivamente falsos no capítulo II das alegações. No entanto, da sua leitura integral não resulta uma alteração da verdade dos factos que possa ser qualificada como litigância de má fé. Não pode dizer-se que pretenda fazer crer que “o saneamento básico e a água potável” passem no subsolo do largo.
Indefere-se, por isso, o pedido de condenação do recorrente como litigante de má fé.


11. Nestes termos, nega-se provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente.

Supremo Tribunal de Justiça,

Lisboa, 3 de Fevereiro de 2011.

Maria dos Prazeres Beleza ( Relatora)
Lopes do Rego
Orlando Afonso