Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A3624
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: JOÃO CAMILO
Descritores: ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
LEGITIMIDADE PASSIVA
Nº do Documento: SJ200611140036246
Data do Acordão: 11/14/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO.
Sumário : A legitimidade para o pedido da autora é aferida pela relação jurídica tal como aquela a configura.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


"AA" moveu no Tribunal Judicial de Porto de Mós e em 4/04/1999, acção declarativa na forma ordinária contra BB, pedindo que seja declarado o direito dela A. ficar com a obra levada a efeito pela R., pagando-lhe o seu valor segundo as regras do enriquecimento sem causa e a determinar através de prova pericial e condenada a R. a ver declarado esse direito e a desocupar o imóvel em causa, entregando-o à sua proprietária.
Para tanto alega que é dona e legítima possuidora de um prédio urbano sito em Mira de Aire adquirido por inventário por morte dos seus pais, sendo ela na altura casada.
Mais tarde, foi decretado o divórcio e em inventário de partilha dos bens do casal, foi-lhe o mesmo adjudicado.
Entretanto e sobre as ruínas de uma casa ali existente, a R que vivia então com o ex-marido da A., edificou uma outra casa com dois pisos, com o consentimento do companheiro, mas sem autorização sua, bem sabendo um e outro que ela lhe pertencia, datando a licença de construção de 1988 e tendo a sentença de divórcio sido decretada em 1985, agindo ambos de má fé, com o inerente direito de sobre ela R. fazer valer a acessão, como de resto reconhecera o Acórdão do Supremo proferido em anterior acção para reconhecimento do seu direito de propriedade.
Contestou a R. dizendo que há mais de 30 anos vive com o ex-marido da A. e que logo a seguir à adjudicação do imóvel por óbito dos pais da A., ela começou a construir conjuntamente com o seu companheiro no local indicado na petição, tendo sido quando o edifício já estava construído em tosco, que o terreno foi adjudicado à A., no inventário para separação de bens.
Mais disse que a construção que ela concluiu em seu nome por consentimento do ex-marido da A. foi sempre do conhecimento da A. que a autorizou e chegou até a propôr a sua compra quando terminada, acompanhando sempre o andamento da obra.
E nessa base, veio pois deduzir pedido reconvencional para que seja declarado o direito a haver, para si, o terreno identificado no artº 2º e onde levou a efeito a construção do actual edifício, com a obrigação de pagar à A. o valor que o prédio tinha antes da construção e remetendo os seus fundamentos para o anteriormente alegado, mais referindo que o edifício valia na data da conclusão esc. 20.000.000$00 enquanto que o terreno adjudicado à A. valia apenas Esc. 200.000$00.
A A. reagiu, impugnando o pedido reconvencional e mantendo a posição inicial.
Oportunamente foi proferido despacho saneador que afirmou a bondade dos pressupostos e organizou-se a base instrutória .
Realizou-se, em seguida, a audiência de julgamento, sendo depois proferida a sentença que julgou procedente em parte o primeiro pedido da A, declarando o direito desta a ficar com a obra, pagando à A. o respectivo valor de harmonia com as regras do enriquecimento sem causa, absolvendo a R. do mais e, consequentemente, desatendendo o pedido reconvencional, dele absolvendo a reconvinda.
A R., irresignada com tal desfecho recorreu de apelação e a A. interpôs recurso subordinado, tendo na Relação sido julgada a ré como parte ilegítima e sido absolvida a mesma da instância, abstendo-se a Relação de conhecer das apelações.
Mais uma vez inconformada, a autora veio interpor o presente recurso que já neste Supremo foi mandado seguir a forma de agravo.
Nas respectivas alegações a autora formulou conclusões que por falta de concisão não serão aqui transcritos.
A agravada não contra-alegou.
Corridos os vistos legais, urge apreciar e decidir.
Como é sabido - arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil, a que pertencerão todas as disposições a citar sem indicação de origem -, o âmbito dos recursos é delimitado pelo teor das conclusões dos recorrentes.
Das conclusões da aqui agravante se vê que a mesma, para conhecer neste recurso, levanta apenas a seguinte questão:
A ré deve ser considerada parte legítima ?

Mas antes vejamos os factos que a 1ª instância deu como provados e que são os seguintes:
1 - A A é dona de um prédio urbano, sito no Bairro..., Mira de Aire, composto de casa de rés do chão, destinada a comércio, 1º e 2º andares destinada a habitação, com a área de 243 m2 (al. a) da especificação);
2 - O prédio urbano sito no mesmo bairro composto de casa de rés do chão, destinada comércio, 1º e 2º andares destinados a habitação com a área de 243 m2 e logradouro de 628 m2, a confrontar do norte com CC , sul com DD, nascente com rua e poente com Socionimo-A, inscrito na respectiva matriz sob o artº 1200º, está descrito na Conservatória de Registo Predial de Porto de Mós e aí inscrito a favor da A ( al. b);
3 - O imóvel identificado foi adjudicado à A. no inventário que correu termos no mesmo tribunal com o nº 34/79 e a que se procedeu por óbito dos pais dela EE e FF (al. c);
4 - Nesse processo foi proferida sentença homologatória e aí o imóvel era identificado como "duas casas , uma de habitação e outra em ruínas " com quintal de terreno de semeadura com olivais e figueiras , sitas na R do ... (al. d) ;
5 - Á época em que correu termos esse inventário, a A encontrava-se casada com GG (al. e);
6 - Tendo sido decretado o divórcio com aquele, sendo ele considerado como único culpado;
7 - Em processo instaurado para partilha dos bens do casal, o referido imóvel foi adjudicado à A conforme documento junto aos autos a fls 33 a 37 (al g);
8 - A R. construiu um edifício composto de rés do chão com uma divisão, cozinha e quarto de banho, destinada ao comércio, 1º andar direito, destinado a habitação, com 4 divisões, quarto de banho e corredor, primeiro andar esquerdo, destinado a habitação com 4 divisões e cozinha, duas casas de banho e corredor , sótão direito e esquerdo para arrumos e logradouro (al h);
9 - Através do documento de fls 51 e 52, a R requereu a licença de construção (al. i);
10 - Á época em quer a construção foi iniciada e já há alguns anos antes , a R vivia com o ex-marido da A , como se marido e mulher fossem (al. j);
11 - A A , por si e antepossuidores, desde há mais de 40 anos que retém e frui o imóvel que onde se encontra a casa referida na al. a), e, bem assim, o logradouro de 628m2 , com as confrontações supra e inscrito na matriz sob o artº 1200º (resp. ao q. 1º);
12 - Sem interrupção e à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém (resp. ao q. 2º);
13 - Na convicção de ser ela a única dona do mesmo ( resp. ao q. 3º );
14 - No quintal do terreno de semeadura que se refere na al. d), a R e GG construíram um edifício, mencionado na al. h) com as características e composição já referidas no ponto 8 (resp. ao q. 4º);
15 - A A. nunca autorizou a construção do prédio da R (resp. ao q. 6º );
16 - A R. e o ex- marido da A. sabiam que o quintal do terreno de semeadura sobre o qual eles construíram a casa referida na resposta ao q. 4º não lhe pertencia, mas sim à A (resp. ao q. 7º );
17 - A A. - consta da sentença de 1ª instância e do acórdão R., por lapso evidente - opôs-se à construção da casa;
18 - Tendo-se iniciado a construção após o imóvel ter sido adjudicado no inventário aberto por óbito dos pais da A. (resp. ao q. 10º);
19 - O imóvel foi adjudicado à A. no processo de partilhas dos bens comuns do casal , conforme referido na al. G) e a R e o ex-marido da A começaram a construção referida na resposta ao q. 4º , em data não concretamente apurada , mas situada antes de 1988 (resp. ao q. 11º );
20 - Quando a R e o ex-marido da A. começaram a construção da casa , a A estava a residir e a trabalhar em França ( resp. ao q. 15º);
21 - O edifício construído pela R. e o ex-marido da A. na data da sua conclusão valia a quantia de € 94.731, 50 (resp. ao q. 18º);
22 -O imóvel onde esse prédio se encontra implantado valia na mesma data a quantia de € 7.521, 95( resp. ao q. 19º).
Vejamos a questão acima levantada como objecto deste recurso.
Pese embora o muito respeito devido pela douta opinião expressa no acórdão recorrido, estamos em inteiro desacordo com a mesma decisão.
Antes de mais, há que analisar cuidadosamente a componente fáctica aqui em apreço.
A autora - então casada em regime de comunhão geral de bens com um tal GG - recebera em inventário um imóvel constituído por uma casa de habitação e outra em ruínas com quintal de semeadura.
Posteriormente a autora divorcia-se litigiosamente do marido GG, sendo este considerado único culpado.
Após este divórcio, em partilhas das respectivas meações, foi o mesmo imóvel adjudicado à autora.
Antes desta adjudicação, em parte do referido imóvel começou a surgir uma construção de um prédio não autorizada pela autora, construção esta que é o objecto desta acção.
A autora propusera uma anterior acção contra a ré e o ex-marido daquela a reivindicar o imóvel referido, tendo aí a ré defendido que fora ela quem construíra a casa e pedindo em reconvenção a declaração de propriedade da casa a seu favor - fundamentando-se na acessão industrial - e a declaração de nulidade da inscrição matricial e da descrição e inscrição registral do prédio a favor da autora - cfr. acórdão de fls. 9 e segs.
Nesta acção foi pelas instâncias julgado procedente o pedido de reivindicação da autora e improcedente o da ré, sendo tal revogado pelo Supremo Tribunal de Justiça que referiu que a autora para obter a casa tem de pedir a aquisição por acessão industrial, pagando o valor da obra, por a mesma ter sido efectuada de má fé, e absolvendo a ré do pedido da autora.
Já nesta acção apenas proposta contra a ré, foi na petição inicial alegado a aquisição do conjunto predial - na versão primitiva de duas casas, uma em ruínas e quintal - pela autora através do inventário por morte de seus pais e depois no inventário subsequente ao divórcio.
Mais alega que a ré procedeu à construção da casa em causa, no referido conjunto predial, sem autorização da autora, referindo que aquela então vivia maritalmente com o ex-marido da autora de quem teria obtido autorização para a construção, sabendo aquela que procedia à construção sem autorização da autora a quem pertencia o terreno.
Perante isto, a ré, na contestação, sem, de qualquer modo, alegar a sua ilegitimidade, aceita expressa e repetidamente o facto da petição inicial onde a autora dissera que fora a ré quem procedera à construção da casa - cfr. art. 10º da p.i. e arts. 19 e 22 da contestação .
Depois na mesma contestação, a ré tanto dá a entender que fora a mesma ré quem construíra a casa, a quem chama variadas vezes sua, como refere que fora ela e seu companheiro marital quem procedeu à mesma construção, mas falando sempre e apenas em ser a casa dela e não do "casal" - cfr. arts. 8º, 9º, 11º, 12º, 13º, 14º, 16º, 18º, 26º, 30º, 31º, 32º, 33º, , 34º, 36º, 37º do mesmo articulado -, nomeadamente, quando pede o reconhecimento do seu direito ao terreno onde construíra a casa por força da acessão industrial.
Da análise da contestação, parece-nos resultar que, independentemente de quem procedeu materialmente à construção da casa, foi a ré quem custeou a mesma, quem determinou a sua construção e em nome de quem a construção foi levada a cabo, até pelo simples facto de aquela ter alegado que obteve a autorização do companheiro marital.
Ora se fossem os dois a construir, não precisaria da autorização.
Mas mais importante e determinante do que isso, há outra razão para a discordância do doutamente decidido.
A reforma do Cód. de Proc. Civil levada a cabo pelo Dec.-Lei nº 329-A/95 de 12/12, para superar a conhecida disputa doutrinal entre J. A. dos Reis e Barbosa de Magalhães, sobre o conceito de legitimidade, veio determinar que a legitimidade seja aferida pela relação jurídica tal como é delineada pelo autor - nº 3 do art. 26º.
Assim, logo no relatório daquele diploma legal se escreveu que "decidiu-se (...) após madura reflexão, tomar expressa posição sobre a vexata questio do estabelecimento do critério de determinação da legitimidade das partes, visando a solução legislativa proposta contribuir para pôr termo à querela jurídico-processual que, há várias décadas, se vem interminavelmente debatendo na nossa doutrina e jurisprudência, sem que se haja até agora alcançado um consenso.
Partiu-se, para tal, de uma formulação da legitimidade semelhante à adoptada no Decreto-Lei nº 242/82 e assente, consequentemente, na titularidade da relação material controvertida, tal como a configura o autor, próxima da posição imputada a Barbosa de Magalhães, na controvérsia que historicamente o opôs a Alberto dos Reis ".
Foi aliás este o sentido do ac. deste Supremo Tribunal de Justiça de 29-01-03, proferido no recurso nº 4168/02 de que foi Relator o Cons. Abílio Vasconcelos.
No entanto, da petição inicial da autora resulta que foi a ré quem construíra o imóvel em terreno da autora sem autorização da mesma e de má fé, pelo que o pedido de aquisição da construção por acessão industrial prevista no art. 1341º do Cód. Civil, teria de ser apenas deduzido contra a autora da construção, ou seja, contra a ré, sendo esta apenas quem tem interesse em contradizer, nos termos do art. 26º.
Deste modo e em conclusão diremos:
- A legitimidade, nos termos do art. 26º, nº 3, tem de ser aferida pela relação jurídica tal como é configurada pelo autor.
- Tendo a autora alegado que fora a ré quem procedera de má fé à construção de uma casa em terreno da autora, o pedido de aquisição da mesma construção por esta, ao abrigo do art. 1341º do Cód. Civil, apenas tem de ser dirigido contra a mesma ré a quem fora, exclusivamente, atribuída a construção, independentemente, da relação jurídica que venha a ser julgada efectivamente verificada.
Procede, assim, por argumentos parcialmente diversos o fundamento do recurso.

Pelo exposto, dá-se provimento ao agravo, revogando-se o acórdão recorrido e julgando-se a ré parte legítima, determinando-se que, nos termos do art. 762º, nº 2, que a Relação, pelos mesmos Juízes, se possível, proceda ao conhecimento do objecto dos recursos de apelação.
Sem custas o recurso - art. 2º nº 1, al. o) do Cód. e Custas Judiciais, na redacção anterior ao Dec.-Lei nº 324/2003 de 27 de Dezembro, aqui aplicável, por força do art. 14º, nº 1 deste decreto-lei.

Lisboa, 14 de Novembro de 2006
João Camilo - Relator
Fernandes Magalhães
Azevedo Ramos.