Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2796/18.4T8LRA.C2.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: ANA PAULA LOBO
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
DEVER DE INFORMAÇÃO
MEDIADOR
ACIDENTE DE VIAÇÃO
PROVA DESPORTIVA
INTERPRETAÇÃO
CONDUÇÃO AUTOMÓVEL
SEGURO OBRIGATÓRIO
Data do Acordão: 03/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
I - O dever especial de esclarecimento não é aplicável aos contratos de seguro em cuja negociação ou celebração intervenha mediador de seguros, art.º 22.º, n.º 4 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro - DL n.º 72/2008, de 16 de Abril -.

II - Ter um carro desportivo não significa que a seguradora deva entender que a utilização habitual do veículo como meio de transporte inclui inevitavelmente praticar desporto motorizado em testes, provas ou treinos oficiais ou não oficiais dentro ou fora de kartódromos.

Decisão Texto Integral:

I – Relatório

I.1 – Questões a decidir

Caravela – Companhia de Seguros, S.A., Ré, ora Recorrente, tendo sido notificada do Acórdão proferido, pelo Tribunal da Relação de Coimbra, em 14 de Junho de 2022 que julgou parcialmente procedente o Recurso de Apelação interposto, pelos habilitados do (primitivo) Autor – veio dele interpor recurso de revista onde requer a revogação do acórdão recorrido, apresentando as correspondentes alegações, que terminam com as seguintes conclusões:

1. O Tribunal da Relação de Coimbra (Tribunal “a quo”) não tem qualquer razão para decidir como decidiu, no Acórdão recorrido.

2. Tal Decisão terá que ser revogada e alterada por outra, que julgue a presente Acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, totalmente, improcedente, por não provada, e, consequentemente, que absolva, integralmente, a Ré, ora Recorrente, da mesma, e, designadamente, de todos os pedidos, nela, formulados, pelo primitivo Autor (ao qual sucederam os seus habilitados, ora Recorridos).

3. Como tinha sido, anteriormente, decidido, pelo Tribunal de 1.ª (Primeira) Instância (Juízo Central Cível ... – Juiz ... do Tribunal Judicial da Comarca ...), cuja sua Decisão foi, agora, revogada pelo Tribunal da Relação de Coimbra (Tribunal “a quo”).

4. O presente Recurso de Revista assentará no erro de interpretação – factual e jurídica – que o Tribunal da Relação de Coimbra (Tribunal “a quo”) cometeu, no Acórdão que, agora, proferiu, ou seja, incidirá na fundamentação e na argumentação (factual e jurídica) que alicerçou toda aquela Decisão, designadamente, no erro notório na aplicação do direito à factualidade (provada), no âmbito destes autos, e, até, na violação da lei!

5. Sendo que, neles, está (definitivamente) fixada, pelo Tribunal da Relação de Coimbra (Tribunal “a quo”), a matéria de facto/factualidade, constante das páginas 18 (dezoito) a 22 (vinte e dois) do Acórdão recorrido – 22 (vinte e dois) Factos Provados.

6. Ora, os factos (provados), constantes do Acórdão recorrido, são claros, directos, objectivos correctos e precisos.

7. Não admitindo interpretações/enquadramentos (jurídicos) díspares/diferentes àquelas(es) que foram – e muito bem! – feitas(os), pelo Tribunal de 1.ª (Primeira) Instância (Juízo Central Cível ... – Juiz ... do Tribunal Judicial da Comarca ...).

8. Sendo que foi, efectivamente, isso (e nada mais) que – muito mal! – fez o Tribunal da Relação de Coimbra (Tribunal “a quo”), no Acórdão/Decisão que, agora, proferiu.

9. Na verdade, resulta da factualidade dada como provada, pelo próprio Tribunal da Relação de Coimbra (Tribunal “a quo”), algo que não pode ser, de forma alguma, contrariado e/ou desmentido, por quem quer que seja, designadamente, por aquele.

10.  É que, o (primitivo e falecido) Autor, AA, na data (.../.../2017) e no momento (16h00m) da ocorrência do acidente/sinistro que é, agora e aqui, objecto dos presentes autos, circulava, com o seu veículo automóvel, com o seu carro desportivo, de alta cilindrada, da marca Porsche, modelo 911 GT3 RS, com a matrícula ..-SH-.., titulado pela Apólice n.º ...54 (relativa ao contrato de seguro celebrado entre as partes), numa pista de 1 (um) Kartódromo (Kartódromo do NDM... – Núcleo de Desportos Motorizados de ... –, também denominado por Kartódromo Internacional de ...).

11. Pista essa que é destinada à prática de desportos motorizados (que não apenas de Karts!).

12. De acesso restrito, de acesso condicionado (a corredores, a pilotos, de automóveis)!

13. E na qual não é exigível a observância de quaisquer normas e regras estradais, designadamente, as previstas no Código da Estrada e no Regulamento de Sinalização de Trânsito.

14. O (primitivo e falecido) Autor, AA (condutor habitual de provas motorizadas, conforme consta do Documento n.º 4 da Contestação, a fls. dos presentes autos), estava, pois, a utilizar, naquele dia, naquele momento e naquele local, aquele seu carro desportivo, de alta cilindrada, para fim (muito) diverso daquele que é usual, que é normal, ou seja, o da circulação nas vias públicas ou equiparadas e, até, privadas.

15. O que comportava, dessa forma e necessariamente, 1 (um) significativo aumento do normal risco inerente à utilização regular do mesmo.

16. Na realidade, independentemente do tipo de veículo automóvel que seja objecto do contrato de seguro, o risco que este cobre, na ausência de contratação específica de outro âmbito, é, como não poderia deixar de ser, o decorrente de 1 (uma) normal utilização do mesmo, na vida quotidiana e, portanto, nas vias públicas ou vias equiparadas e, até, privadas.

17. E foi, precisamente, isso que, aqui, não sucedeu, neste acidente/sinistro e no contrato de seguro (de “danos próprios”) celebrado entre ambas as partes, ou seja, entre o (primitivo e falecido) Autor, AA, e a Ré, ora Recorrente.

18. Uma vez que as mesmas não contrataram 1 (um) seguro para que o (primitivo e falecido) Autor, AA, pudesse utilizar aquele seu veículo automóvel, com a matrícula ..-SH-.., em pistas de corrida, como aquela onde ocorreu o acidente/ sinistro que é, agora, objecto dos presentes autos.

19.  Ora, não é por 1 (um) veículo automóvel ser topo de gama, de alta cilindrada, e com perfil, essencialmente, desportivo que 1 (um) qualquer e normal contrato de seguro, como o que está, aqui, em causa, abrange a garantia de indemnização por danos decorrentes da utilização dessa viatura em pistas de corridas destinadas, apenas, à prática desportiva (mesmo que não seja em prova e/ou nos seus respectivos treinos).

20. E isto, porque, é, inequívoco, que a utilização de 1 (um) veículo automóvel em vias deste tipo acarreta, necessariamente, 1 (um) risco maior, 1 (um) risco mais elevado.

21. Desde logo, porque, os utilizadores deste tipo de vias, de pistas, de circuitos, não estão sujeitos às regras e às normas estradais, designadamente as constantes do Código da Estrada e da demais legislação rodoviária em vigor, que impõem cuidados específicos e a observação de determinadas condutas no exercício da condução, nomeadamente, ao nível do respeito por certos limites de velocidade.

22. A condução em vias destinadas, exclusivamente, à prática de desportos motorizados é, pois, 1 (uma) actividade que, pela sua natureza, sendo destinada a imprimir velocidade à viatura conduzida e a efectuar as manobras no limite da segurança, com espectacularidade e de modo temerário, tem 1 (uma) perigosidade, muito, superior à condução efectuada, por qualquer condutor, nas vias públicas ou equiparadas e privadas.

23. Pois, nessas vias, os seus utilizadores estão obrigados a realizar 1 (uma) condução prudente, moderada e subordinada a 1 (um) conjunto de regras específicas e sempre com os cuidados necessários a garantir a sua segurança e a dos demais utilizadores dessas vias, sob pena de se praticarem ilícitos contraordenacionais e/ou criminais.

24. O que não acontece quando se circula num circuito deste tipo, num Kartódromo, numa PISTA DE CORRIDAS!

25. Aí, não há regras, não há normas, não há condutas, estradais a cumprir, a observar, nem os seus utilizadores estão sujeitos a qualquer jurisdição/penalização contraordenacional e/ou criminal, por violarem, constante e reiteradamente, toda a legislação rodoviária em vigor.

26. Ali, é, pois, tudo permitido, ali, excepciona-se o que está previsto, estatuído e regulamentado no nosso ordenamento jurídico estradal e rodoviário, ali, está excluída, por qualquer condutor (a), a observação e o cumprimento das suas respectivas regras gerais, especiais e específicas.

27. Ali, não se faz, nunca e de forma alguma, 1 (uma) utilização normal, regular e prudente de 1 (um) veículo automóvel.

28.  No caso em concreto no âmbito destes autos, foi por o (primitivo e falecido) Autor, AA, não fazer, precisamente, 1 (uma) utilização e condução normal, regular e prudente, é que ocorreu tal acidente/sinistro.

29. Que se despistou, sozinho, devido à condução imprudente, temerária e incauta que, ali, fazia.

30. Sendo certo que, se, no momento da celebração de tal contrato de seguro existente entre as partes, a Ré, ora Recorrida, soubesse, tivesse conhecimento, que o (primitivo e falecido) Autor, AA, utilizava aquele seu veículo automóvel, com a com a matrícula ..-SH-.., em pistas de corrida, jamais, teria aceite contratualizar com o mesmo, nos termos e nos modos em que o fez.

31. Já que não tinha, naturalmente, conhecimento desse (elevado) risco associado à utilização daquela viatura, com a matrícula ..-SH-.., por parte daquele.

32. A este propósito, e devido à factualidade e materialidade – provada, pelo Tribunal da Relação de Coimbra (Tribunal “a quo”) –, tem que vir, naturalmente, à colação a Cláusula 5.ª (quinta) e a Cláusula 38.º (trigésima oitava) das Condições Gerais daquele contrato de seguro celebrado entre as partes.

33. A Cláusula 5.ª (quinta) das Condições Gerais, que prevê as “Exclusões da Garantia Obrigatória”, estatui, na alínea e) do seu n.º 4, que se excluem da garantia obrigatória do mencionado contrato de seguro, e cita-se, “quaisquer danos ocorridos durante provas desportivas e respectivos treinos oficiais, salvo tratando-se de seguros de provas desportivas, caso em que se aplicam as presentes condições gerais com as devidas adaptações previstas para o efeito pelas partes.”.

34. A Cláusula 38.ª (trigésima oitava) das Condições Gerais, que prevê, também, as “Exclusões” de tal contrato de seguro, estatui, e cita-se, que, “Para além das exclusões constantes da cláusula 5ª das Condições Gerais da Apólice de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel que não tenham sido derrogadas, as quais igualmente se aplicam ao seguro facultativo, ficam também excluídos:

(…) d) Sinistros em que o veículo seguro seja utilizado em serviço diferente e de maior risco do que aquele que estiver mencionado nas Condições Particulares; (…)”.

35. Apesar da Ré, ora Recorrente, defender a abrangência destas 2 (duas) Cláusulas contratuais, neste acidente/sinistro – o que não foi a interpretação daqueles 2 (dois) Tribunais –, o certo é que, aqui, aplica-se, naturalmente e sem qualquer dúvida, a Cláusula 38.ª (trigésima oitava) das Condições Gerais – e, designadamente, a sua alínea d) – de tal contrato de seguro.

36. Como, muito bem, defendeu o Tribunal de 1.ª (Primeira) Instância (Juízo Central Cível ... – Juiz ... do Tribunal Judicial da Comarca ...), na sua Sentença, de fls. destes autos.

37. Pois, a utilização (e a condução) daquele veículo automóvel, com a matrícula ..-SH-.., naquele dia, naquele momento e naquele local, estava a ser feita para fim (muito) diverso daquele que é usual e habitual.

38. Que comportava 1(um) exponencial e significativo aumento do normal risco inerente à utilização normal e regular do mesmo.

39. O (primitivo e falecido) Autor, AA, estava, ali, a utilizar o seu veículo automóvel, de forma diferente, de maneira diversa, à que é usual e habitual.

40. Na verdade, o risco que 1 (um) qualquer contrato de seguro cobre – na ausência da contratação específica de outro âmbito – é o decorrente de 1 (uma) normal utilização da viatura, seu objecto.

41. O que não acontece em casos similares ao que se discute no âmbito dos presentes autos, onde a condução em vias deste tipo é 1 (uma) actividade (muito) perigosa.

42. Pelo que o tal acidente/sinistro está, assim, fora do âmbito de cobertura do contrato de seguro celebrado entre as partes, nos termos da Cláusula 38.ª (trigésima oitava) das suas Condições Gerais, e, designadamente, a sua alínea d).

43. Não impendendo, dessa forma, sobre a Ré, ora Recorrida, qualquer obrigação de indemnizar os habilitados do (primitivo) Autor, ora Recorridos, dos danos, dele, decorrentes.

44. No entanto, não foi isso que o Tribunal da Relação de Coimbra (Tribunal “a quo”) decidiu, no Acórdão recorrido.

45. Já que o mesmo considerou que tal acidente/sinistro está “coberto” pelo contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, previsto e regulamentado pelo Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto.

46. Ou seja, que tal contrato de seguro – neste caso, com a cobertura de danos próprios –, abrange os acidentes/sinistros que ocorram num Kartódromo), fora da provas desportivas e respectivos treinos, excluindo, liminarmente, a aplicação daquela Cláusula 38.ª (trigésima oitava) das Condições Gerais – e, também, da sua Cláusula 5.ª (Quinta) das mesmas –, bem como, ainda, chama à colacção a problemática das cláusulas contratuais gerais (no que concerne a esta última Cláusula).

47. Fundamentação essa que consta das páginas 24 (vinte e quatro), 25 (vinte e cinco) e 26 (vinte e seis) do Acórdão recorrido.

48. Sem qualquer razão!

49. Pois, os termos, os modos e as circunstâncias em que ocorreu o referido acidente/sinistro, configuram 1 (um) risco que não se encontrava coberto pelo contrato de seguro celebrado entre as partes, conforme resulta da Cláusula 38.ª (trigésima oitava) das suas Condições Gerais, e, designadamente, da sua alínea d).

50.  É isto que resulta da conjugação da factualidade provada (no Acórdão recorrido) com as normas/regras contratuais de tal contrato de seguro e de outras circunstâncias, já, explanadas, neste Recurso de Revista.

51.  Em 1.º (primeiro) lugar, ao contrário do que é referido no Acórdão recorrido, é, precisamente, por não estar previsto, nas Condições Particulares do referido contrato de seguro, 1 (um) risco acrescido – como seja o de circular numa pista de corridas (Kartódromo) –, é que tal acidente/sinistro não está coberto pelo mesmo.

52. Não há qualquer dúvida que circular, numa pista deste tipo, acarreta 1 (um) maior e acrescido risco à normal e circulação de 1 (um) veículo automóvel.

53. E era sobre o (primitivo e falecido) Autor, AA – que era 1 (um) piloto de automóveis em provas desportivas(com esta mesma viatura, com a matrícula ..-SH-..) –que impendia a obrigação de informar a Ré, ora Recorrente, no momento da celebração de tal contrato de seguro, que utilizava aquela em pistas de corridas (designadamente, em Kartódromos).

54. Jamais o fez (omitiu a verdade), jamais isso consta naquelas suas Condições Particulares!

55. Ora, 1 (um) contrato de seguro deste tipo (qualquer ele que seja) só cobre os riscos inerentes à normal e à regular utilização de 1 (um) veículo automóvel, e nenhum outro risco, se nada constar, a este propósito, das Condições Particulares do mesmo.

56.  E, aqui, no mesmo, nada constava!

57. Por isso, ao não constar esse maior e acrescido risco – de utilizar aquele seu veículo automóvel, com a matrícula ..-SH-.., em tais circunstâncias –, nas suas Condições Particulares (o que daria o aumento do seu respectivo prémio), estará, naturalmente, tal acidente/sinistro excluído da sua cobertura, da sua abrangência.

58. Esse maior e acrescido risco era, pois, 1 (uma) restrição – por não constar naquelas Condições Particulares de tal contrato de seguro – à total cobertura do mesmo.

59. Por outras palavras, não estando previsto qualquer risco acrescido naquele contrato de seguro – como o Tribunal da Relação de Coimbra (Tribunal “a quo”), muito bem, diz, no Acórdão recorrido –, o mesmo abrangerá, apenas, e tão só, a normal e a regular utilização do veículo automóvel, seu objecto.

60. Em 2.º (segundo) lugar, porque, na sua fundamentação, o Tribunal da Relação de Coimbra (Tribunal “a quo”) erra, no Acórdão recorrido, quando refere que o risco coberto por 1 (um) seguro de responsabilidade civil automóvel é o dos acidentes ocorridos na circulação de veículos terrestres a motor, independentemente, destes terem lugar em estradas públicas ou privadas, conforme resulta – segundo aquele aresto jurisprudencial – do disposto e do estatuído no artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto.

61. É verdade, mas não é isso que está, aqui, em causa, nestes autos!

62. Entre outros, o Tribunal da Relação de Lisboa (Tribunal “a quo”), aqui, não diferencia – como devia – o que é circular numa via pública e/ou equiparada e/ou privada e numa pista de corridas, fazendo crer, naquela sua interpretação, que é tudo igual!

63. Aqui estamos, diga-se, uma vez mais, num circuito onde “tudo é permitido”, até andar/circular a velocidades superiores a 120km/h (limite legal rodoviário nacional)!

64. O que não é possível em quaisquer outras vias públicas e/ou equiparadas e/ou privadas!

65. Pelo que há, aqui, neste contexto, 1 (uma), expressa, violação do regulamentado no Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto.

66. Em 3.º (terceiro) lugar, porque o Tribunal da Relação de Coimbra (Tribunal “a quo”), naquela sua fundamentação do Acórdão recorrido, também, diz algo que, com todo o respeito, não faz qualquer sentido.

67. É que para o mesmo se estivesse em causa, naquele recinto, 1 (um) treino oficial ou 1 (uma) prova desportiva, tal acidente/sinistro, já, estaria fora da cobertura do referido contrato de seguro.

68. Mas, como não era 1 (um) treino oficial ou 1 (uma) prova desportiva desportivo, então, o mesmo, já, está excluído da sua abrangência.

69. O que é, muito, estranho, pois, na verdade, material e objectivamente, qual a diferença?

70. É, intrinsecamente, igual!

71. O acidente/sinistro, aqui, em questão e em discussão, não se deu num recinto desses?

72.  Só por não ser oficial é que está excluído?

73. O legislador previu, no artigo 14.º, alínea e) do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, aquela catalogação de treinos e de provas desportivas, porque não é, nada, normal, que alguém entre num recinto desses para dar 1 (uma) “volta”, como, aqui, estranhamente, sucedeu!

74. Mas, objectiva e materialmente, não há qualquer diferenciação entre 1 (uma) circulação oficial e não oficial.

75.  Apenas há 1 (uma) diferença, meramente, formal (de oficialidade da circulação).

76. A perigosidade é, precisamente, a mesma (quer seja, em termos oficiais, quer seja em termos não oficiais)!

77. Aliás, é por isso mesmo, que o legislador, expressa e especificamente, previu, naquele diploma legal, a circulação de veículos automóveis, naquelas circunstâncias.

78. Pelo que não se percebe, minimamente, a diferenciação que o Tribunal da Relação de Coimbra (Tribunal “a quo”) faz, no seu Acórdão recorrido, quanto à abrangência de tal contrato de seguro em provas e treinos oficiais e quanto à não abrangência do mesmo em situações como a que é objecto dos presentes autos!

79. Em 4.º(quarto) lugar, o Tribunal da Relação de Coimbra (Tribunal “a quo”), ainda, pretende, como se viu, justificar aquela sua Decisão, com a problemática das cláusulas contratuais gerais.

80. Justificação essa que, até, contraria, e muito, o que o mesmo referiu, anteriormente, a esse propósito, em tal Acórdão.

81. O primitivo (e falecido) Autor, AA, conhecia, total e perfeitamente, os modos, os termos e as condições daquele contrato de seguro que celebrou com a Ré, ora Recorrente (até porque o mesmo estava, no momento da sua celebração, representado por profissionais do ramo/sector – correctora/mediadora).

82.  Sabia, perfeitamente, que, naquele dia, naquele momento e naquele local, ao conduzir o seu veículo automóvel, com a matrícula ..-SH-.., estava a “arriscar” e que, em caso de acidente/sinistro, este não estaria abrangido pelo respectivo contrato de seguros de danos próprios que tinha celebrado com a Ré, ora Recorrente.

83.  Até porque aquele, como resulta de documentação junta aos presentes autos, desde a comunicação/participação de tal acidente/sinistro, sempre, ocultou que o mesmo tinha ocorrido na pista (em plena pista) do referido Kartódromo.

84. Em 5.º (quinto) lugar, e por último, porque o Tribunal da Relação de Coimbra (Tribunal “a quo”), pura e simplesmente, omitiu (por não pronúncia), no Acórdão recorrido, algo, absolutamente, crucial para a boa, a correcta e a justa decisão final a proferir, no âmbito dos presentes autos.

85. É que o primitivo (e falecido) Autor, AA, como qualquer proponente/tomador do contrato seguro, tinha o dever de, no momento da celebração do mesmo, declarar o risco ou os riscos a transferir para a companhia de seguros (neste caso, a Ré, ora Recorrente) e todas as circunstâncias que conheça e que, razoavelmente, tenha por significativas.

86. Para que o segurador o(a)s possa avaliar de modo esclarecido, livre e equitativo, sem quaisquer vícios de vontade.

87. O que, aqui, não sucedeu, até porque, a este propósito, nada constava em tal contrato de seguro, nem na proposta que lhe está inerente e subjacente.

88. O primitivo (e falecido) Autor, AA, não agiu, assim, como qualquer proponente/tomador de seguro, mediamente zeloso, no momento da avaliação inicial do risco, pois não informou a Ré, ora Recorrente (enquanto seguradora) do destino competitivo que, igualmente, iria dar à sua viatura, com a matrícula ..-SH-..(sim, porque é isso que resulta da diversa documentação junta aos autos e, naquele dia, naquele momento e naquele local, só não “correu”, oficialmente, naquele Kartódromo, porque a corrida foi, entretanto, desmarcada e, por isso, foi dar aquela “volta”).

89. O primitivo (e falecido) Autor, AA, omitiu, pois, tal declaração, absolutamente, decisiva na ponderação de contratar ou de como contratar por parte da Ré, ora Recorrente, enquanto seguradora.

90. O mesmo tinha a obrigação de informar a Ré, ora Recorrente, desse risco.

91.  Ou, então, não utilizava o referido veículo automóvel, com a matrícula ..-SH-.., neste tipo de recintos desportivos (Kartódromos – que não têm, apenas, karts a utilizá-los, mas, sim, todo o tipo de viaturas).

92. Mas omitiu tudo isto, conscientemente, fê-lo, deliberada e propositadamente.

93. Se não o tivesse feito, a Ré, ora Recorrente, poderia avaliar tal risco, decidindo, aí, pela celebração ou não do referido contrato de seguro.

94. Caso a Ré, ora Recorrente, tivesse conhecimento, no acto da celebração de tal contrato de seguro, que o condutor fazia corridas com a sua viatura em circuitos velocipédicos, poderia, eventualmente, não aceitar o seguro em questão (ou, então, teria, naturalmente, aumentado o prémio de seguro que lhe está inerente e subjacente).

95.  A este propósito, o primitivo (e falecido) Autor, AA, violou, também, o disposto, o previsto e o estatuído no artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril (Lei do Contrato de Seguro).

96. Assim, por tudo o, supra, exposto, em sede de Alegações, é inexorável concluir que o acidente/sinistro que é objecto dos presentes autos se encontra excluído do referido contrato de seguro, sendo, aqui, aplicável a Cláusula 38.ª (trigésima oitava) das Condições Gerais do mesmo, e, designadamente, a sua alínea d).

97. O Tribunal da Relação de Coimbra (Tribunal “a quo”), no Acórdão recorrido, ao decidir pela abrangência de tal acidente/sinistro no contrato de seguro, aqui, em questão e em discussão, violou, pois, tal cláusula contratual.

98. Decidiu contra a factualidade que o mesmo deu como provada, no âmbito dos presentes autos.

99. Ao tutelar e ao validar a conduta do primitivo (e falecido) Autor, AA, naquele dia, naquele momento e naquele local, com a inclusão de tal acidente/sinistro na abrangência do referido contrato de seguro, violou, pois, as mais elementares normas, regras e regimes jurídicos, e, designadamente, violou o disposto, o previsto e o estatuído no Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto (Regime Jurídico do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel),no Decreto-Lei n.º72/2008, de 16de Abril(Lei do Contrato de Seguro), no Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio (Código da Estrada) e no Decreto Regulamentar n.º 22-A/98, de 1 de Outubro (Regulamento de Sinalização do Trânsito).

100.  Nesses termos, deve, pois, o presente Recurso de Revista proceder, na sua totalidade, nos termos, nos modos e com os fundamentos/argumentos, supra, expostos, em sede de Alegações!

Os recorridos contra-alegaram tendo apresentado as seguintes conclusões:

a) O tribunal a quo decidiu em conformidade com a legislação, doutrina e jurisprudência em vigor e com a matéria de facto dada como provada.

b) Entendemos que o Tribunal recorrido efectuou a correcta valoração do direito.

c) O Acórdão recorrido encontra-se devidamente fundamentado e o Tribunal a quo fez uma correcta interpretação e valoração do direito e da factualidade provada e apurada nos autos.

d) Recorreu a Ré do Acórdão proferido por entender que o acidente de viação ocorrido se encontra excluído ao abrigo do contrato de seguro outorgado.

e)  Entendem os recorridos/habilitados que nos termos expostos no douto Acórdão proferido o acidente ocorrido se encontra coberto pelas condições da apólice de seguros.

f)  Considerou o Acórdão recorrido que: uma interpretação do clausulado que exclua da cobertura dos danos próprios, os acidentes ocorridos em pistas desportivas, mesmo que fora de qualquer competição ou treino, revela-se diversa daquela que o texto contratual aparenta (na cláusula 5ª do contrato apenas se excluía expressamente “quaisquer danos ocorridos durante provas desportivas e respectivos treinos oficiais”), não se sendo perceptível para o aderente, mesmo que representado por um profissional do ramo dos seguros, o sentido dessa interpretação, salvo se a mesma lhe fosse especificamente explicada, pelo que tal leitura, a ser admissível, exigia o cumprimento do dever de informação previsto no art.º 6º, n.º 1, do RCCG, pela Ré;

g)  Dever de informação e comunicação que não foi cumprido pela Ré;

h) O acidente em causa está coberto pelo contrato de seguro celebrado, nomeadamente na parte em que se contratou a cobertura de danos próprios, pelo que deve a Ré ser condenada a pagar aos recorridos/habilitados os prejuízos materiais que dele decorreram.

i) Embora o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel não abranja os acidentes ocorridos no decurso de provas desportivas e respectivos treinos – art.º 14º, e), do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto -, ele não deixa de abranger os acidentes que ocorram num Kartódromo (uma pista destinada a nele serem realizadas corridas de karts), fora daquelas circunstâncias (provas desportivas e respectivos treinos).

j) O acidente não ocorreu, pois, no decurso de uma prova desportiva, nem em qualquer treino, pelo que o mesmo se encontrava incluído no risco objeto do contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, apesar de se ter verificado num kartódromo.

k) Entendemos que o Acórdão recorrido não enferma de qualquer vício ou reparo, devendo o mesmo ser confirmado, mantendo-se inalterado.

l) A recorrente/ré não tem razão, pelo que deverá improceder o seu recurso.

m) Deve o Acórdão recorrido ser confirmado e manter-se inalterado.


*

I.2 – Questão prévia - admissibilidade do recurso

Nos termos conjugados do disposto nos art.º 671.º, n.º 1 do Código de Processo Civil o recurso é admissível.

                                                   *

I.3 – O objecto do recurso

Tendo em consideração o teor das conclusões das alegações de recurso e o conteúdo da decisão recorrida, cumpre apreciar as seguintes questões:

1. O acidente ocorrido em kartódromo fora de treino ou prova desportiva está coberto pelo contrato de seguro com cobertura facultativa de danos causados na viatura invocado nos autos?                          

                                  

                                                *

I.4 - Os factos

As instâncias consideraram provados os seguintes factos:

1. No dia .../.../2017, pelas 16 horas, ocorreu um despiste em ..., ..., na pista de corrida do Kartódromo do NDM... – Núcleo de Desportos Motorizados de ..., em que foi interveniente o automóvel ligeiro de passageiros, marca Porsche, modelo 991 GT3 RS, com a matrícula ..-SH-.., conduzido pelo primitivo autor e a ele pertencente.

2. Na referida data, hora e local, quando circulava na identificada pista, após ter dado uma volta à mesma, já no decurso da segunda volta, na denominada recta das boxes, o primitivo autor perdeu o controlo do veículo automóvel que conduzia. Sentiu, então, o veículo a fugir para a esquerda, tendo perdido o seu controlo e havendo acabado por embater com a frente do mesmo no muro de cimento aí existente, com cerca de um metro de altura, o qual derrubou parcialmente. Seguidamente, o carro rodopiou e embateu, no mesmo muro, com a embaladeira lateral direita, com a embaladeira traseira, incluindo tampa da mala (capot do motor) e a traseira, tendo o veículo ficado virado e parado quase no mesmo sentido em que seguia inicialmente.

3. O acidente ocorreu numa faixa asfaltada, com bom piso e cerca de 10 metros de largura, dentro do circuito do Kartódromo, quando não se encontrava a decorrer qualquer prova desportiva, nem quaisquer treinos oficiais.

4. Essa pista encontra-se vedada e é de uso restrito, isto é, não é acessível a qualquer pessoa ou a qualquer condutor, mas antes é, habitualmente, usada para os fins a que se destina – isto é, desporto e organização de eventos de carácter motorizado -, estando o seu uso para qualquer outro fim dependente da autorização dos respectivos responsáveis.

5. Nessa mesma pista não existe qualquer sinalização de trânsito, nem os seus utilizadores estão sujeitos ao cumprimento das regras de circulação nas vias públicas ou equiparadas.

6. Na data referida em 1, estava prevista a realização de uma prova desportiva, que veio a ser cancelada.

7. Juntaram-se, naquele local, diversos sócios do Núcleo de Desportos Motorizados de ... para um encontro, sendo por esse motivo que o autor estava ali presente.

8. Tendo em conta o cancelamento da referida prova desportiva, o primitivo autor solicitou ao responsável do Kartódromo ali presente autorização para entrar na pista com o seu veículo automóvel, com o intuito de dar uma “volta”, o que lhe foi permitido.

9. Por contrato de seguro titulado pela apólice nº ...54, o primitivo autor transferiu para a ora ré a responsabilidade civil obrigatória e coberturas facultativas, por danos causados pela e na sua viatura, conforme documentos 1 e 2 juntos com a petição inicial.

10. De entre as coberturas facultativas contratadas constava a cobertura de seguro do veículo sinistrado relativamente aos danos decorrentes de choque, colisão ou capotamento.

11. Nas condições particulares da apólice foi contratada, entre o primitivo autor e a ré, uma franquia fixa de €2.000, 00.

12. A Cláusula 5ª das Condições Gerais do contrato de seguro mencionado em 9. prevê as “Exclusões da garantia obrigatória” do mesmo, estatuindo a alínea e) do seu nº4 de tal Cláusula (5.ª) que se excluem da garantia obrigatória do seguro “quaisquer danos ocorridos durante provas desportivas e respetivos treinos oficiais, salvo tratando-se de seguro de provas desportivas, caso em que se aplicam as presentes condições gerais com as devidas adaptações previstas para o efeito pelas partes”.

13. Também a Cláusula 38ª das Condições Gerais do mesmo contrato de seguro rege sobre as “Exclusões” do mesmo, estatuindo que:

Para além das exclusões constantes da cláusula 5ª das Condições Gerais da Apólice de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel que não tenham sido derrogadas, as quais igualmente se aplicam ao seguro facultativo, ficam também excluídos:

(…)

d) Sinistros em que o veículo seguro seja utilizado em serviço diferente e de maior risco do que aquele que estiver mencionado nas Condições Particulares;

(…)”

14. Por carta datada de 1 de Fevereiro de 2018, a ré comunicou ao primitivo autor ter concluído que a regularização do sinistro se encontrava excluída por força das cláusulas referidas em 12. e 13., o que reiterou por carta endereçada ao seu Ilustre Mandatário e datada de 16 de Fevereiro do mesmo ano.

15. O veículo identificado em 1. é um veículo automóvel de passageiros de cariz desportivo, de alta cilindrada (3996 cm3), estando homologado para circular na via pública ou em qualquer via similar.

16. Do descrito embate, resultaram diversos danos no veículo do primitivo autor, sobre o lado direito, frente direita e esquerda e traseira direita e central do mesmo, cuja reparação ascende à quantia de 72.611,65€.

17. Foi considerado necessário um período de oito dias para proceder a tal reparação, sendo que os danos causados no veículo o impediam de circular.

18. Por carta datada de 24.01.2018, a ré transmitiu ao primitivo autor que a reparação do veículo fora orçamentada em €68.911,65, pelos seus serviços técnicos, bem como que o processo se encontrava em fase de instrução, pelo que não se pronunciavam pela assunção de responsabilidade.

19. Mais informou que o primitivo autor, a partir daquela data, poderia ordenar a reparação do veículo sinistrado, por sua conta e risco.

20. Tendo em consideração a comunicação efectuada pela ré no sentido de declinar a responsabilidade pelo sinistro e em consequência declinar a reparação e pagamento dos danos ao primitivo autor, este procedeu, por sua iniciativa e expensas, à aquisição de peças e serviços para proceder à reparação parcial do veículo.

21. Para efectuar tal reparação parcial, de forma a que o veículo pudesse voltar a circular na via pública, o primitivo autor despendeu, com a aquisição de peças e serviços, junto do concessionário Porsche, em ..., V..., Lda., a quantia de €32.583,81.

22. Aquando da outorga do contrato de seguro referido em 9., a ré disponibilizou ao representante do primitivo autor as respectivas condições gerais, antes da sua entrega nos serviços da Ré da proposta relativa a esse contrato, assinada por aquele representante.


*

II – Fundamentação

1.O acidente ocorrido em kartódromo fora de treino ou prova desportiva está coberto pelo seguro?


O acidente em discussão nos autos ocorreu na pista de um Kartódromo fora de qualquer prova desportiva ou treino. O tomador do seguro pediu autorização ao responsável por aquela infra-estrutura desportiva para nela circular ao volante do seu veículo automóvel e, tendo-a obtido, na segunda volta que fez ao circuito, perdeu o controle do veículo e embateu violentamente, por duas vezes, num muro ali existente danificando o veículo automóvel.

O condutor e proprietário do veículo, através de um corrector de seguros celebrara com a ré um contrato de seguro mediante o qual transferiu a sua obrigação de indemnizar terceiros pelos danos que a estes fossem causados pelo veículo em circulação a que fez acrescer a cobertura facultativa dos danos decorrentes de choque, colisão ou capotamento do veículo sinistrado.

 O acidente ocorreu dentro do circuito do Kartódromo, numa faixa asfaltada, com bom piso e cerca de 10 metros de largura, quando não se encontrava a decorrer qualquer prova desportiva, nem quaisquer treinos oficiais.

O referido Kartódromo é um espaço vedado, de uso restrito, não acessível a qualquer pessoa ou a qualquer condutor, sendo habitualmente, usada para os fins a que se destina – isto é, desporto e organização de eventos de carácter motorizado.

Nessa mesma pista não existe qualquer sinalização de trânsito, nem os seus utilizadores estão sujeitos ao cumprimento das regras de circulação nas vias públicas ou equiparadas.

Na data em que ocorreu o acidente estava prevista a realização de uma prova desportiva, que veio a ser cancelada. Juntaram-se, naquele local, diversos sócios do Núcleo de Desportos Motorizados de ... para um encontro, sendo por esse motivo que o autor estava ali presente.

O acórdão recorrido considerou que:

“Nas Condições Particulares não se encontrava previsto qualquer risco acrescido, além daqueles que resultam da condução do veículo automóvel segurado, e que se encontram cobertos pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, uma vez que a cobertura facultativa de danos próprios foi incluída num contrato de seguro obrigatório daquele tipo, sem que tenha sido objecto de qualquer restrição o âmbito do risco obrigatoriamente contratado.

O risco coberto por um seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel é o dos acidentes ocorridos na circulação de veículos terrestres a motor, independentemente destes terem lugar em estradas públicas ou privadas 2, conforme resulta do disposto no art.º 4º, do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto.

Embora o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel não abranja os acidentes ocorridos no decurso de provas desportivas e respectivos treinos – art.º 14º, e), do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto -, ele não deixa de abranger os acidentes que ocorram num Kartódromo (uma pista destinada a nele serem realizadas corridas de karts), fora daquelas circunstâncias (provas desportivas e respectivos treinos).

O acidente em causa nos presentes autos ocorreu quando, após ter sido cancelada uma prova desportiva que se encontrava programada para aquele dia, o primitivo autor solicitou ao responsável do Kartódromo, ali presente, autorização para entrar na pista com o seu veículo automóvel, com o intuito de dar uma “volta”, o que lhe foi permitido.

O acidente não ocorreu, pois, no decurso de uma prova desportiva, nem em qualquer treino, pelo que o mesmo se encontrava incluído no risco objeto do contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, apesar de se ter verificado num kartódromo.”

Como consta das disposições preliminares de carácter geral do contrato de seguro celebrado entre as partes e invocado neste processo – aplicação subsidiária - As disposições constantes da Parte Uniforme das Condições Gerais da Apólice de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel que fazem parte integrante deste contrato, aplicam-se também às garantias facultativas por ele conferidas, em tudo o que não seja, no âmbito específico das mesmas, objecto de regulamentação própria.

Deste modo, muito embora estejamos na discussão de garantias facultativas conferidas pelo contrato de seguro, na sua globalidade, este contrato tem por fim cumprir a obrigação de seguro de responsabilidade civil automóvel, fixada no artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, à data da respectiva celebração, a que as partes adicionaram mais coberturas ás obrigatoriamente estabelecidas pelo seguro obrigatório de protecção de terceiros que venham a ser lesados num acidente de viação.

No âmbito de cobertura do seguro obrigatório os danos na viatura estavam excluídos pela clausula 5.ª, n.º 4 a). Porém, foi adicionada uma cobertura opcional dos danos próprios que garantem os danos sofridos pelo automóvel seguro ainda que o condutor seja responsável pelo acidente, em caso de choque ou colisão, pelo que a seguradora responde perante o seu segurado por quaisquer danos causados pelo embate do veículo, em circulação, em qualquer corpo fixo.

Não está em causa neste recurso a responsabilidade civil automóvel extracontratual do primitivo autor perante terceiros, que, por via do contrato de seguro obrigatório, se encontra transferida para a ré, mas a responsabilidade civil contratual da seguradora perante o seu segurado, face à obrigação por ela assumida de indemnizar este pelos danos causados na viatura, entre outros, por choque.

O direito do segurado à reparação dos danos causados na sua viatura pelo choque no muro, com fundamento no contrato de seguro de danos próprios depende da prova da existência dos danos sofridos pelo veículo e da prova de que esses danos foram causados por um dos riscos cobertos pelo seguro.

A existência de tais danos e sua quantificação, mostra-se assente pelo que apenas haverá que averiguar se esses danos foram causados por um dos riscos cobertos pelo contrato de seguro.

A recorrente invoca que os danos sofridos pelo veículo do primitivo autor foram consequência da sua actuação voluntária de proceder à sua utilização desportiva na pista do kartódromo, à margem de qualquer prova ou treino oficial, actuação esta que tem enquadramento na exclusão do risco expressamente prevista no contrato, nomeadamente a cláusula n.º 38.º das Condições Gerais que é uma cláusula de exclusão da cobertura do seguro:

“(…) ficam também excluídos sinistros em que o veículo seguro seja utilizado em serviço diferente e de maior risco do que aquele que estiver mencionado nas Condições Particulares”.

Uma das exclusões gerais previstas contratualmente refere-se aos danos ocorridos durante provas desportivas e respectivos treinos oficiais, salvo tratando-se de seguro de provas desportivas, caso em que se aplicam as presentes condições gerais com as devidas adaptações previstas para o efeito pelas partes – cláusula 5.ª, n.º 4 e) relativa a exclusões da garantia obrigatória -.

Por opção do legislador, a regulamentação do que se passe no âmbito desportivo é diversa do que se passe no âmbito de circulação rodoviária, mesmo quando esteja em causa o desporto automóvel.

O art.º 8.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, com a epígrafe seguro de provas desportivas – que transpõe parcialmente para ordem jurídica interna a Directiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio, que altera as Directivas n.ºs 72/166/CEE, 84/5/CEE, 88/357/CEE e 90/232/CEE, do Conselho, e a Directiva 2000/26/CE, relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis («5.ª Directiva sobre o Seguro Automóvel») - exclui da garantia do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel os danos causados aos participantes e respectivas equipas de apoio e aos veículos por aqueles utilizados, bem como os causados à entidade organizadora e pessoal ao seu serviço ou a quaisquer seus colaboradores. Tal exclusão que apenas sabemos reportar-se a provas desportivas tendo em conta a epígrafe do artigo, não se aplica apenas a provas desportivas e treinos oficiais, mas a todas as provas desportivas como são os testes com automóveis num kartódromo e relativamente aos danos causados aos participantes nesses eventos desportivos e seus veículos abrangendo, assim o primitivo autor e o seu veículo. Para estes casos estão previstos outros seguros obrigatórios específicos dos organizadores dos eventos, dos proprietários das infra-estruturas desportivas, dos proprietários detentores e condutores dos veículos em virtude de acidentes causados por esses veículos.

Temos um condutor que, em desconformidade com a lei, decidiu dar duas voltas numa pista de Karts com o seu Porsche e o esmagou contra um muro, pretendendo que a ré pague a reparação do veículo que ele danificou.

Não consta do contrato de seguro que o tomador do seguro haja indicado que pretendia, pelo menos de vez em quando dar “umas voltas” ou fazer teste naquela ou outras pistas similares, o que era de particular relevância para a celebração do contrato de seguro dada a diversidade do risco da condução automóvel, ainda que em infracção à lei e em alta velocidade, e a sua utilização num treino ou teste numa pista de kartódromo onde a utilização é desportiva, corrida de automóveis, sem qualquer sujeição às regras do código da estrada, sem limite de velocidade e para testar a destreza do condutor para dominar, em pista, e, em situações limite, o veículo automóvel. Muito menos indicou o primitivo autor que o faria fora de qualquer prova ou treino oficial, sendo certo que para este tipo de eventos existe um controlo regulamentar extenso e pormenorizado que visa garantir uma maior segurança, e, presumivelmente diminuir o risco de produção de danos.

A exploração dos Kartódromos obedece a estritas regras legais impondo aos responsáveis por aquelas infra estruturas desportivas entre muitas outras obrigações, a realização de seguro desportivo obrigatório, de que são beneficiários os agentes desportivos, os praticantes de actividades desportivas em infra-estruturas desportivas abertas ao público e os participantes em provas ou manifestações desportivas – art.º 2.º DL 10/2009 - Regime jurídico do seguro desportivo obrigatório e 42.º  e 43.º da Lei n.º 5/2007, de 16 de Janeiro, respondendo nos casos de falta de seguro nos termos em que responderia a seguradora, e sendo penalizadas em sede contra-ordenacional pela omissão da obrigação de celebrar o seguro obrigatório.

Os Kartódromos, são zonas restritas de acesso condicionado ao público onde se realizam eventos e actividades de desporto motorizado incluindo corridas, competições, treinos, testes e demonstrações que nos termos do disposto no art.º 9.º, n.º 2, f) do Decreto-Lei n.º 141/2009, de 16 de Junho, na redacção dada DL n.º 110/2012, de 21/05, em vigor à data do sinistro, são qualificadas como instalações desportivas especiais para o espectáculo desportivo. Para funcionarem, em conformidade com a lei, têm de dispor de um alvará de licença de funcionamento onde constem as actividades desportivas a que se destinam, art. 17.º, n.º 3 c) do DL 317/97, de 25 de Novembro. Têm de dispor de um responsável técnico, licenciado em estabelecimento de ensino superior na área da educação física ou desporto, com formação adequada ao exercício das funções, consoante a tipologia da respectiva instalação desportiva, com presença obrigatória na instalação desportiva durante o seu período de funcionamento, a quem compete zelar pela sua adequada utilização e assegurar o seu controlo e funcionamento.

No que respeita à validade da clausula 38.ª antes mencionada o acórdão recorrido entendeu tratar-se de uma clausula contratual geral que, por omissão do dever de informação se deve ter por excluída do contrato, nos termos do art.º 8º, b), do Regime jurídico das cláusulas contratuais gerais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 446/85 de 25 de Outubro.

Para serem juridicamente operantes, incluídas na economia do contrato, as cláusulas contratuais gerais carecem de aceitação por parte do aderente, de uma efectiva comunicação e informação.

Não acompanhamos a posição assumida pelo acórdão recorrido de que do dever de comunicação abrange, por ser mais lato, o incumprimento do dever de informação. O dever de comunicação e o dever de informação são deveres diversos, ainda que complementares.

O dever de comunicação, constante do art.º 5.º Regime jurídico das cláusulas contratuais gerais aprovado pelo DL n.º 446/85 de 25 de Outubro consiste na obrigação de, neste caso a seguradora, proceder a uma comunicação integral das cláusulas contratuais gerais ao segurado que se limitou a subscrevê-las ou a aceitá-las, de modo adequado e com a antecedência necessária para que, tendo em conta a importância do contrato e a extensão e complexidade das cláusulas, se torne possível o seu conhecimento completo e efectivo por quem use de comum diligência.

O cumprimento deste dever há-de preencher os critérios consagrados pelo legislador para que possa ser considerado verificado que se desdobram no modo e antecedência de comunicação, importância do contrato, extensão e complexidade das cláusulas a serem globalmente analisadas, com ponderação personalizada, em concreto, tendo em conta a capacidade e o nível cultural do interessado, não podendo deixar de se atender também ao nível de diligência concretamente exigível do segurado - conhecimento completo e efectivo por quem use de comum diligência -. Mas o dever de comunicação terá também em linha de conta que o segurado há-de usar de diligência comum.

Por seu lado, o dever de informação constante do art.º 6.º que se desdobra em dever da seguradora de prestar informação sobre os aspectos nelas compreendidos cuja aclaração se justifique, e, prestar todos os esclarecimentos razoáveis solicitados pelo segurado, e, o dever do segurado de solicitar os esclarecimentos razoáveis que careça para que a sua vontade de contratar seja livre e esclarecida, pressupõe o prévio cumprimento do dever de comunicação. Como clarificado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 03 de Outubro de 2017 no processo n.º 569/13.0TBCSC.L1.S1, acessível em www.dgsi.pto dever de comunicar corresponde à obrigação de o predisponente facultar ao aderente, em tempo oportuno, o teor integral das cláusulas contratuais de modo a que este tome conhecimento, completo e efetivo, do seu conteúdo; […] o dever de informar dirige-se essencialmente à perceção do conteúdo e corresponde à explicação desse conteúdo quando não seja de esperar o seu conhecimento real pelo aderente.”.

O dever de comunicação e o dever de informação não coincidem nem se incluem um no outro, diversamente, como bem se mostra explicado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 08 de Abril de 2010 no processo n.º 3501/06.3TVLSB.C1.S1, acessível em www.dgsi.pt : “Este dever de comunicação, situado na fase de negociação ou pré contratual, destina-se a que o aderente possa conhecer, com a necessária antecipação relativamente ao momento da consumação do negócio, o respetivo conteúdo contratual, de modo a poder apreendê-lo, nas suas efetivas e reais consequências prático-jurídicas, outorgando-lhe, deste modo, um espaço de reflexão e ponderação sobre o âmbito e dimensão das vinculações que lhe irão resultar da celebração do negócio. […] A tal dever de comunicação da entidade que se socorre de cláusulas contratuais gerais acresce o dever de informação prescrito no art. 6º: desde logo, o dever de prestar todos os esclarecimentos razoáveis que o outro contraente - o aderente – tome a iniciativa de solicitar, nos termos do nº 2; mas também o dever de espontaneamente o informar, nos termos do nº 1, de aspetos carecidos de aclaração ou da prestação de esclarecimentos complementares, em função das concretas circunstâncias do caso.”

Sabemos que o segurado se fez representar quer na fase pré-negocial, quer na outorga do contrato de seguro, quer até para participação do sinistro à ré por uma empresa correctora de seguros.

Estamos, pois, perante um contrato que foi celebrado entre uma empresa seguradora e uma empresa especializada em seguros cuja actividade consiste em procurar para os seus clientes os seguros disponíveis no mercado que melhores condições estabeleçam para o pretendido seguro.

O corrector de seguro é uma categoria de mediador de seguro em que a pessoa exerce a actividade de mediação de seguros de forma independente face às empresas de seguros, baseando a sua actividade numa análise imparcial de um número suficiente de contratos de seguro disponíveis no mercado que lhe permita aconselhar o cliente tendo em conta as suas necessidades específicas. - art.º 8.º, c) – do DL 144/2006, de 31 de Julho.

As pessoas singulares ou colectivas correctoras de seguros para poderem exercer a sua actividade têm de estar obrigatoriamente inscritas no registo de mediadores de seguro ou resseguro e a sua inscrição depende, entre outras condições, de qualificação adequada às características da actividade de mediação que pretendem exercer, de reconhecida idoneidade para o exercício da actividade de mediação, de possuírem experiência correspondente ao exercício, durante pelo menos cinco anos consecutivos ou durante os sete anos interpolados que antecedem a inscrição no registo, de actividades, art.º 10, 11 e 12.º, estando sujeitas às incompatibilidades e aos deveres para com o cliente e a entidade seguradora mencionados nos artigos 14.º, 29.º a 31.º todos do DL Decreto-Lei n.º 144/2006, de 31 de Julho, actualmente revogado pela Lei n.º 7/2019, de 16 de Janeiro mas sem reflexo quanto ao conteúdo das normas citadas, de que destacamos:

“(…) . Assistir correcta e eficientemente os contratos de seguro em que intervenha;

. Diligenciar no sentido da prevenção de declarações inexactas ou incompletas pelo tomador do seguro e de situações que violem ou constituam fraude à lei

. Informar, nos termos fixados por lei e respectiva regulamentação, dos direitos e deveres que decorrem da celebração de contratos de seguro;

. Aconselhar, de modo correcto e pormenorizado e de acordo com o exigível pela respectiva categoria de mediador, sobre a modalidade de contrato mais conveniente à transferência de risco ou ao investimento;”

Nos termos do disposto no art.º 17º n.º 1 do DL n.º 72/2008, de 16 de Abril que estabelece o regime jurídico do contrato de seguro sendo o contrato de seguro celebrado por representante do tomador do seguro, são oponíveis a este não só os seus próprios conhecimentos, mas também os do representante.

O art.º 22 do mesmo regime, sob a epígrafe dever especial de esclarecimento impõe que o segurador na medida em que a complexidade da cobertura e o montante do prémio a pagar ou do capital seguro o justifiquem e, bem assim, o meio de contratação o permita, antes da celebração do contrato, esclareça o tomador do seguro acerca de que modalidades de seguro, entre as que ofereça, são convenientes para a concreta cobertura pretendida.

No número 2 do preceito expressa o conteúdo desse dever de informação:

 “2 - No cumprimento do dever referido no número anterior, cabe ao segurador não só responder a todos os pedidos de esclarecimento efectuados pelo tomador do seguro, como chamar a atenção deste para o âmbito da cobertura proposta, nomeadamente exclusões, períodos de carência e regime da cessação do contrato por vontade do segurador, e ainda, nos casos de sucessão ou modificação de contratos, para os riscos de ruptura de garantia.” de molde particularmente coincidente com o dever de informação consagrado no art.º 6º do Regime jurídico das cláusulas contratuais gerais.

Porém, no seu número 4 exclui a aplicação de tal dever de informação, aos contratos de seguro em cuja negociação ou celebração intervenha mediador de seguros, sem prejuízo dos deveres específicos que sobre este impendem nos termos do regime jurídico de acesso e de exercício da actividade de mediação de seguros.

A razão de ser desta exclusão prende-se directamente com os deveres específicos de informação do segurado por parte deste técnico especializado em seguros que tenha intervenção na celebração do contrato de seguro – do art.º 29.º do DL n.º 72/2008, de 16 de Abril.

Deste modo, em concreto neste contrato, tendo em conta os dados disponíveis, os conhecimentos específicos sobre a actividade seguradora, a definição do risco, o significado das exclusões, e a escolha que fez deste contrato por o entender mais adequado aos interesses do seu cliente por parte da entidade correctora de seguros que, em representação do primitivo autor celebrou este contrato, e os diversos regimes legais antes abordados, não há qualquer fundamento jurídico, muito menos com base do não cumprimento do dever de informação para considerar excluída do contrato de seguro a cláusula n.º 38.º das Condições Gerais que é uma cláusula de exclusão da cobertura do seguro:

“(…) ficam também excluídos sinistros em que o veículo seguro seja utilizado em serviço diferente e de maior risco do que aquele que estiver mencionado nas Condições Particulares”.

O contrato de seguro rege-se pelo princípio da liberdade contratual, art.º 11 do DL n.º 72/2008, de 16 de Abril.

O Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel contém normas, maioritariamente supletivas relativas à definição concreta dos riscos cobertos e dos riscos excluídos nos diversos tipos de contrato de seguro deixando uma grande margem de autonomia às partes para conformarem o contrato. A par de proibir a cobertura de certos riscos, também admite que seja contratualmente estipulado que determinadas coberturas sejam excluídas do âmbito do contrato.

Analisando o teor da cláusula 38.ª e, estabelecendo o confronto entre a circulação de um automóvel em estradas públicas e privadas e a sua utilização para testagem numa pista de kartódromo, é manifesto tratar-se de uma utilização do veículo muito diversa daquela prevista neste contrato de seguro e com um risco de produção do sinistro exponencialmente superior que o coberto pelo seguro de responsabilidade civil automóvel celebrado por ambas as partes. Em causa, na presente situação esteve não a utilização do veículo automóvel na sua função habitual, como meio de transporte ou de locomoção autónomos, risco próprio dos contratos de seguro automóvel obrigatório, mas como instrumento de prática desportiva automóvel sem que esta actividade se mostre expressa ou implicitamente considerada no contrato como adicionada ao risco da utilização do veículo automóvel na sua função habitual.

Ter um carro desportivo não significa, como pretende o A. na petição inicial, que a seguradora deva entender que a utilização habitual do veículo como meio de transporte inclui inevitavelmente praticar desporto motorizado em testes, provas ou treinos oficiais ou não oficiais dentro ou fora de kartódromos. Podendo os veículos automóveis ter utilizações diversas da sua utilização habitual como meio de transporte, tal utilização, se for passível de ser objecto de contrato de seguro, terá de individualizar o risco respectivo em causa, sempre diverso e, neste caso consideravelmente superior porque potencialmente gerador de maiores danos que o atinente àquela utilização habitual. A anormalidade da situação sempre imporia, por parte do segurado, o dever de ter solicitado esclarecimento, parte do dever de informação que sobre si impende, sobre se o seguro cobria ou não esta actividade na hipótese, improvável, de equacionar que o risco coberto por este seguro poderia também abranger os danos que causasse ao seu veículo com a prática de desporto automóvel com ou sem enquadramento regulamentar previsto para a prática dessa modalidade.

A validade da clausula contratual n.º 38.º e o seu teor conduzem inexoravelmente à conclusão de que a utilização efectuada pelo primitivo autor com o seu veículo automóvel que causou os danos cuja indemnização peticiona neste processo se mostra não coberta pelo contrato de seguro que invocou, improcedendo, pois, totalmente a pretensão que formulou nestes autos.

Pelos fundamentos expostos, procede, pois, a revista.


***

III – Deliberação


Pelo exposto, concede-se a revista, revoga-se o acórdão recorrido e julga-se a presente acção totalmente improcedente.

Custas pela ré em todas as instâncias, atento o seu decaimento.


*

Lisboa, 2 de Março de 2023

Ana Paula Lobo (Relatora)

Afonso Henrique Cabral Ferreira

Maria Graça Trigo