Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A1464
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SEBASTIÃO PÓVOAS
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
DIREITO À VIDA
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
DANOS PATRIMONIAIS
PENSÃO DE SOBREVIVÊNCIA
Nº do Documento: SJ200606080014641
Data do Acordão: 06/08/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA.
Sumário : 1) A morte é uma lesão indemnizável autonomamente, já que a tutela do direito à vida impõe a obrigação de ressarcir a sua perda.

2) Sendo a vida um valor absoluto, o seu valor ficcionado não depende da idade, condição sócio-cultural ou estado de saúde da vítima. Estes factores podem, apenas, ser ponderados para apurar o "quantum" indemnizatório do dano não patrimonial próprio da vitima, consistente no sofrimento e angustia nos momentos que precederam a morte, na perspectiva da aproximação desta, já que é diferente o estoicismo e a capacidade de resignação perante o sofrimento físico e moral.

3) Na indemnização pelos danos não patrimoniais dos lesados há que buscar uma quantia que, de alguma forma, possa proporcionar ao lesado momentos de prazer que contribuam para atenuar a dor sofrida, recorrendo a critérios de equidade.

4) O dano patrimonial mediato consistente na perda de rendimentos deve ser calculado na ponderação de critérios financeiros, como meros elementos de orientação, mas tendo em conta que deve representar um capital que se extinga no fim da vida activa do lesado e susceptível de garantir prestações periódicas durante esta.

5) As pensões de sobrevivência e o subsídio de funeral pagos pelo Centro Nacional de Pensões devem ser deduzidas no "quantum" indemnizatório dos danos patrimoniais, sob pena de cumulação indevida de indemnizações.

6) Não sendo cumuláveis as prestações da Segurança Social com a indemnização por factos ilícitos, o CNP fica subrogado no direito às importâncias que pagou, a prestar pelo lesante ou pela seguradora.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"AA" e BB, intentaram acção com processo ordinário, na Comarca de Loulé, contra a "Empresa-A", pedindo a sua condenação a pagar-lhes a quantia de 40.723000$00, acrescido de juros desde a citação, como indemnização por danos sofridos com a morte de CC, respectivamente mulher e mãe dos Autores, ocorrida em acidente de viação.

A 1ª instância julgou a acção parcialmente procedente e condenou a Ré a pagar aos Autores a quantia global de 24.667 694$00 (123.041,93 euros).

Apelaram Autores e Ré.

A Relação de Évora negou provimento ao recurso da Ré mas deu parcial provimento ao dos Autores alterando o "quantum" indemnizatório.

A Ré pede revista concluindo:

- As indemnizações arbitradas são exageradas e irrealistas;

- O dano morte deve ser fixado entre 30 e 35000,00 euros;

- Os danos morais da vítima são de 2500,00 euros;

- Os danos não patrimoniais dos Autores não devem exceder, em conjunto, os 20 a 25000,00 euros;

- São inaceitáveis os danos patrimoniais futuros, já que o Acórdão faz aplicação de tabelas financeiras com introdução de factores aleatórios e irrealistas;

- Considerou, mal, a esperança média de vida em 78 anos e a taxa de inflação de 4%;

- Considerou rendimentos anuais brutos e não líquidos;

- Deve manter-se a indemnização arbitrada na 1ª instância;

- Os Autores receberam do Centro Nacional de Pensões, a titulo de pensões de sobrevivência, 10 115,00 euros e vão continuar a recebe-las;

- A manter-se o Acórdão recorrido receberiam um total de 134 814,48 euros, de danos patrimoniais e pensões, ou seja, o correspondente a 22,77 anos de vencimento líquido;

- Às indemnizações pelos danos futuros devem ser deduzidas as pensões pagas pelo CNP;

- O Acórdão violou o disposto nos artigos 496º, 562º, 563º, 564º e 566º do Código Civil e 515º do Código de Processo Civil.

Contra-alegaram os Autores defendendo o Acórdão recorrido.

Vêm assentes os seguintes factos:

- Pelas 2 horas e 45 minutos do dia 18 de Dezembro de 1999, ao quilometro 82,4 da Estrada Nacional nº125, na Comarca de Loulé, ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes o veiculo KA, conduzido pelo seu proprietário DD e Nº-0 conduzido pela sua proprietária EE;

- O DD transferiu para a Empresa-A" a responsabilidade civil pelos danos de circulação do veículo KA, através da apólice nº 60/6.586.437;

- O veículo Nº-0 seguia pela EN125 no sentido Boliqueime-Faro a uma velocidade não superior a 50 km/hora, na meia faixa de rodagem reservada ao seu sentido de trânsito e com as luzes médias/cruzamentos ligadas;

- A condutora seguia atenta ao trânsito;

- Ao atingir o km 82,4 surgiu-lhe inesperadamente o veículo KA que circulava em sentido contrário ocupando a meia faixa direita atento o sentido do IG;

- A velocidade não inferior a 95 km/hora;

- O condutor do KA seguia distraído, sem qualquer atenção ao trânsito ou às condições da via;

- Com uma taxa de alcoolemia de 1.76 gramas por litro;

- A condutora do IG ainda guinou à esquerda para tentar desviar-se;

- Mas não conseguiu evitar o embate atenta a rapidez e a imprevisibilidade do KA;

- O embate deu-se na mão de trânsito do IG entre a lateral direita deste e a frente direita do KA;

- O Autor AA era casado com CC, de quem o Autor BB é filho;

- A CC era transportada no Nº-1;

- Como consequência do embate, veio a falecer em 24 de Dezembro de 1999;

- Nasceu no dia 19 de Janeiro de 1956;

- Amava o marido e o filho, sendo uma mãe dedicada;

- O BB nasceu no dia 5 de Fevereiro de 1982;

- Os Autores despenderam 1112,32 euros com o funeral da CC;

- O Autor AA recebe do Centro Nacional de Pensões uma pensão de sobrevivência mensal de 131,52 euros e o Autor BB de 41, 05 euros;

- Até 8 de Maio de 2003 o CNP pagou aos Autores, a título de subsídio de morte e pensões de sobrevivência, 10 115,00 euros;

- A CC auferia à data do acidente o salário mensal de 106.667$00 num total anual bruto de 1 443 384$00;

- Era pessoal trabalhadora, bem-humorada, próxima dos amigos e disponível;

- Amava a vida, gostava de viajar e era estimada por amigos e colegas;

- Após o acidente foi transportada de urgência ao Hospital de Faro onde foram feitos os primeiros exames;

- Em virtude da gravidade do seu estado de saúde foi transferida para o Hospital de S. José, em Lisboa, onde permaneceu na UCI até à sua morte;

- Sofreu graves lesões no crânio, fracturou o maxilar, ficou com o braço e a mão esfacelados, sofreu fractura numa perna e várias escoriações por todo o corpo;

- Esteve ligada a um ventilador durante 6 dias;

- Foi submetida a cirurgia à mão;

- Sofreu fortes dores no embate e nos tratamentos;

- Apercebeu-se da eminência do embate;

- Tendo angustia e desespero por não o poder evitar;

- O Nº-2 embateu exactamente no lado em que seguia a CC;

- Sofreu angustia no período em que esteve internada, apercebendo-se que ia morrer;

- Gemia e chorava durante o internamento;

- Com o marido e filho constituía uma família com respeito e carinho mútuos;

- A sua morte abalou profundamente os Autores;

- Que sempre choram quando dela se fala;

- Assistiram ao seu sofrimento e aperceberam-se que ia falecer;

- O Autor AA passou a isolar-se de amigos e familiares apenas prestando atenção ao filho;

- Antes era uma pessoa alegre e bem disposta;

- O BB era estudante;

- Refugia-se em casa, deixando de sair à noite com os seus amigos;

Foram colhidos os vistos.

Conhecendo,

O objecto do recurso foi limitado ao montante dos danos.

1) Perda do direito à vida.
2) Danos não patrimoniais da vitima.
3) Danos patrimoniais mediatos.
4) Danos não patrimoniais dos Autores.
5) Conclusões.

1- Perda do direito à vida.

O dano morte - perda do direito à vida - como dano não patrimonial próprio da vítima foi computado na 1ª instância em 14963,94 euros e em 49879,79 euros pela Relação.
Como direito pessoal, inerente à personalidade, é de aquisição automática sendo a sua perda indemnizável. (cf."Indemnização Dano Morte", Prof. Leite de Campos, 42 ss).
Mas sendo a vida um valor absoluto, independente da idade, condição sócio-cultural, ou estado de saúde, irrelevam na fixação desta indemnização quaisquer outros elementos da vitima, que não a vida em si mesma. Importam, tão somente os outros critérios do artigo 494º, aplicável "ex vi" do nº3 do artigo 496º do Código Civil.
Daí que não seja de acolher a tese que privilegia a vida que desempenha um "papel excepcional" na sociedade ("um cientista, um escritor, um artista") em relação a uma vida "normal" ou a uma vida "sem qualquer função especifica na sociedade (uma criança, um doente ou um inválido)" acenada pelo Cons. Dário Martins de Almeida, in "Manual de Acidentes de Viação", 188.
Aqueles factores poderão ser ponderados nos cômputos indemnizatórios dos danos morais próprios dos herdeiros da vítima ou do dano patrimonial mediato por eles sofrido em consequência da perda.
Em acerto de tese pode também ser feita uma ponderação de factores culturais, de personalidade ou etários na fixação da indemnização pelo sofrimento da vitima (dano não patrimonial próprio) nos momentos que precederam a morte, na percepção da aproximação desta, no estoicismo ou capacidade de resignação perante as dores físicas e morais.
A vida, porém, não tem um valor relativo.
Vale por si mesma, em todas as suas formas, sendo que a morte, como eliminação da vida humana, é o factor desencadeador da perda do mesmo valor.
Não se acolhe, assim, a tese da Ré "Empresa-A" ao pretender relacionar a indemnização pela perda do direito à vida com a idade da vítima.
É adequada a indemnização arbitrada pela Relação (embora, sendo o euro a moeda oficial, fosse preferível a quantificação em quantia mais simples - 50 000,00 euros - o que implicaria um mero acréscimo de 120, 21,que não por conversão dos 10 000 000$00 meramente cambial).

2- Danos não patrimoniais.

O "pretium doloris" da vítima pelo sofrimento durante os seis dias que precederam a morte, com transferência do Hospital de Faro para o Hospital de S. José, internamento na Unidade de Cuidados Intensivos, ligada ao ventilador, cirurgia a uma mão, fortes dores e angústia perante a percepção da morte, foi calculada em 9975,96 euros (2 000 000$00).
Valendo aqui critérios de equidade, e na ponderação dos factos descritos, crê-se equilibrada a indemnização de 7000,00 euros para ressarcir este dano.

Trata-se, enfim, de encontrar um expediente compensatório pela impossibilidade de fixar um preço à angústia pré-morte.

3- Danos patrimoniais mediatos.

3.1- No cômputo indemnizatório deve atentar-se no "distinguo" entre os danos próprios da vítima (transmissíveis "jure hereditário" e danos sofridos pelos requerentes da compensação.

Aqueles são integrados, como vimos, pela perda do direito à vida e pelo dano moral consistente no sofrimento que precedeu a morte.
Os Autores alegaram que em virtude da morte de sua mulher e mãe deixaram de receber a sua contribuição mensal para o orçamento familiar.
É irrealista multiplicar a quantia mensalmente afectada ao orçamento familiar pelo número de anos de vida previsível da vítima e considerar que foi esse o dano patrimonial mediato.
A assim não se entender, a quantia encontrada asseguraria a percepção de um rendimento muitíssimo superior ao efectivamente perdido.
É que, muito diferente é receber uma quantia mensal do que receber um "quantum" total, olvidando que traduziria um lucro ilegítimo, por envolver uma antecipação de rendimentos que só seriam acumulados ao fim de anos.
Ora, somando o juro que seria susceptível de produzir, esse capital excederia em muito o dano efectivo.
A indemnização mais não deve representar do que um capital que se extinga ao fim da vida activa do lesado e susceptível de garantir prestações periódicas durante esta.
O apelo a critérios financeiros ou fórmulas matemáticas deve ser mera base de raciocínio tendente a encontrar uma medida que conduza ao equilíbrio patrimonial do lesado.
A Relação ponderou esses critérios mas ficcionou a esperança de vida em 71,40 anos para os homens e 78, 65 anos para as mulheres (quiçá, pecando por defeito já que em 2002 tais valores situavam-se, respectivamente, em 73,68 e 80,56 - "Women and Men in Portugal", 2004, 15) e considerou a média de vida em 70 anos, pressupondo que a vitima viveria até aos 78 anos.
Porém, não é esta idade que releva, pois o que está em causa é o período de vida útil - ou laboral - que, em média, se situa entre os 60 e os 65 anos, mais próximo dos 60, tratando-se de uma empregada de limpeza.
Assim, considerando o salário liquido auferido, os mais 17 anos de vida activa, não desconsiderando a formula utilizada pela Relação mas entendendo-a como um elemento de referencia, ponderando que a vitima reservaria para si cerca de 1/3 do seu salário e, finalmente, evitando uma antecipação de rendimentos só perceptível ao fim de alguns anos, entende-se adequado indemnizar este dano com 45 000,00 euros.

Tal quantia será dividida pelos Autores, nas percentagens de 75% para o AA e 25% para o BB, considerando a idade deste e a imputação da quantia a título de alimentos.

3.2- A pensão de sobrevivência paga pelo CNP deve ser deduzida na quantia atribuída a título de indemnização pela quebra do rendimento familiar sob pena de cumulação indevida de ressarcimentos.
Por isso o CNP fica subrogada no direito às importâncias que pagou, quer a título de pensão de sobrevivência, quer de subsídio por morte, reembolso a prestar pela seguradora (cf v.g. os Acórdãos do STJ de 1 de Maio de 1995 -047034- de 7 de Fevereiro de 1996 -086184- de 15 de Dezembro de 1998 -98B827- de 21 de Outubro de 1999 -99B061- e de 5 de Junho de 2004 -04B1217).
Não é possível cumular as prestações da Segurança Social com a indemnização devida por factos ilícitos.
À quantia atribuída a título de indemnização pelos danos patrimoniais a pagar pela seguradora aos lesados serão, em consequência, subtraídas as quantias pagas pelo Centro Nacional de Pensões.

4- Danos não patrimoniais dos Autores.

Os danos não patrimoniais dos Autores (nº1 do artigo 496º do Código Civil) consistentes do desgosto e sofrimento moral e espiritual resultantes da perda da mulher e da mãe são calculados por recurso à equidade.
O fim da indemnização é proporcionar ao lesado meios para se "distrair da sua dor", devendo serem atendidas as circunstâncias referidas no artigo 494º do diploma substantivo (nº3 do artigo 496º).
A Relação - acolhendo o fixado pela 1ª instância - utilizou um critério equilibrado pelo que será de manter inalterado o "quantum" arbitrado.

5- Conclusões.

De concluir que:

a) A morte é uma lesão indemnizável autonomamente, já que a tutela do direito à vida impõe a obrigação de ressarcir a sua perda.
b) Sendo a vida um valor absoluto, o seu valor ficcionado não depende da idade, condição sócio-cultural ou estado de saúde da vítima. Estes factores podem, apenas, ser ponderados para apurar o "quantum" indemnizatório do dano não patrimonial próprio da vitima, consistente no sofrimento e angustia nos momentos que precederam a morte, na perspectiva da aproximação desta, já que é diferente o estoicismo e a capacidade de resignação perante o sofrimento físico e moral.
c) Na indemnização pelos danos não patrimoniais dos lesados há que buscar uma quantia que, de alguma forma, possa proporcionar ao lesado momentos de prazer que contribuam para atenuar a dor sofrida, recorrendo a critérios de equidade.
d) O dano patrimonial mediato consistente na perda de rendimentos deve ser calculado na ponderação de critérios financeiros, como meros elementos de orientação, mas tendo em conta que deve representar um capital que se extinga no fim da vida activa do lesado e susceptível de garantir prestações periódicas durante esta.
e) As pensões de sobrevivência e o subsídio de funeral pagos pelo Centro Nacional de Pensões devem ser deduzidas no "quantum" indemnizatório dos danos patrimoniais, sob pena de cumulação indevida de indemnizações.
f) Não sendo cumuláveis as prestações da Segurança Social com a indemnização por factos ilícitos, o CNP fica subrogado no direito às importâncias que pagou, a prestar pelo lesante ou pela seguradora.

Destarte, acordam conceder parcialmente a revista, condenando a Ré, nos termos acima referidos, quanto à indemnização pelos danos não patrimoniais próprios da vítima e pelo dano patrimonial mediato, mantendo no mais o Acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente e recorridos, nas proporções respectivas de 2/3 e 1/3.

Lisboa, 8 de Junho de 2006
Sebastião Póvoas
Moreira Alves
Alves Velho