Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07P4375
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: RAÚL BORGES
Descritores: RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
VÍCIOS DO ARTº 410 CPP
ÓNUS DA IMPUGNAÇÃO ESPECIFICADA
COMPETÊNCIA DA RELAÇÃO
DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO
ERRO DE JULGAMENTO
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
QUESTÃO NOVA
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
CRIMES DE PERIGO
INCÊNDIO
VALOR ELEVADO
REGIME PENAL ESPECIAL PARA JOVENS
ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA
CULPA
PREVENÇÃO ESPECIAL
PREVENÇÃO GERAL
Nº do Documento: SJ200806120043753
Data do Acordão: 06/12/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário :
I - A partir da reforma de 1998 passou a ser possível impugnar (para a Relação) a matéria de facto de duas formas: a já existente revista (então cognominada de ampliada ou alargada) com invocação dos vícios decisórios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, com a possibilidade de sindicar as anomalias ou disfunções emergentes do texto da decisão, e uma outra, mais ampla e abrangente – porque não confinada ao texto da decisão –, com base nos elementos de documentação da prova produzida em julgamento, permitindo um efectivo grau de recurso em matéria de facto, mas impondo-se na sua adopção a observância de certas formalidades.
II - No primeiro caso estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas als. a), b) e c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, cuja indagação, como resulta do preceito, apenas se poderá fazer através da leitura do texto da decisão recorrida, circunscrevendo-se a apreciação da matéria de facto ao que consta desse texto, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos estranhos ao texto, mesmo que constem do processo. Nesta forma de impugnação os vícios da decisão têm de emergir, resultar do próprio texto, o que significa que os mesmos têm de ser intrínsecos à própria decisão como peça autónoma.
III - No segundo caso, a apreciação já não se restringe ao texto da decisão, mas à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre a partir de balizas fornecidas pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do CPP, tendo em vista o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento e visando a modificação da matéria de facto, nos termos do art. 431.º, al. b), do mesmo diploma.
IV - A alteração do art. 412.º do CPP operada em 1998 visou tornar admissível o recurso para a Relação da matéria de facto fixada pelo colectivo, dando seguimento à consagração do direito ao recurso resultante do aditamento da parte final do art. 32.º, n.º 1, da CRP na revisão da Lei Constitucional n.º 1/97, vindo a ser “confirmada” pelo acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 10/2005, de 20-10-2005 (in DR, I Série-A, de 07-12-2005), que estabeleceu: «Após as alterações ao Código de Processo Penal, introduzidas pela Lei n.º 59/98, de 25/08, em matéria de recursos, é admissível recurso para o Tribunal da Relação da matéria de facto fixada pelo tribunal colectivo».
V - Esta possibilidade de sindicância de matéria de facto, não sendo tão restrita como a operada através da análise dos vícios decisórios – que se circunscreve ao texto da decisão em reapreciação –, por se debruçar sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre, no entanto, quatro tipos de limitações:
- desde logo, uma limitação decorrente da necessidade de observância, por parte do recorrente, de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta delimitação precisa e concretizada dos pontos da matéria de facto controvertidos, que o recorrente considera incorrectamente julgados, com especificação das provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso;
- já ao nível do poder cognitivo do tribunal de recurso, temos a limitação decorrente da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações e/ou, ainda, das transcrições;
- por outro lado, há limites à pretendida reponderação de facto, já que a Relação não fará um segundo/novo julgamento, pois o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em 2.ª instância; a actividade da Relação cingir-se-á a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação;
- a juzante impor-se-á um último limite, que tem a ver com o facto de a reapreciação só poder determinar alteração à matéria de facto se se concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão.
VI - O erro de julgamento da matéria de facto existe quando o tribunal dá como provado certo facto relativamente ao qual não foi feita prova bastante e que, por isso, deveria ser considerado não provado, ou então o inverso, e tem a ver com a apreciação da prova produzida em audiência em conexão com o princípio da livre apreciação da prova constante do art. 127.º do CPP.
VII - Constitui entendimento pacífico há muito estabelecido que não há erro na apreciação da prova quando o que o recorrente invoca não é mais do que uma discordância sua quanto ao enquadramento da matéria de facto provada.
VIII - A questão da qualificação jurídica não foi suscitada pelo recorrente no recurso para a Relação, sendo que constitui jurisprudência uniforme a de que os recursos se destinam a examinar decisões proferidas por jurisdição inferior e não a obter decisões sobre questões novas, não colocadas perante aquelas jurisdições.
IX - Porém, não haverá impedimento a que se aborde tal pretensão, pois o que está em causa é o enquadramento jurídico-criminal, cabendo indagar da justeza da subsunção feita.
X - Os crimes de perigo caracterizam-se pela não exigência típica de efectiva lesão do bem jurídico tutelado, razão pela qual a consumação se basta com o risco (efectivo ou presumido) de lesão do bem jurídico, risco que se consubstancia numa situação de perigo, a qual só por si é objecto de tutela.
XI - O crime de incêndio é um crime de perigo comum; de perigo, porque não existe ainda qualquer lesão efectiva para a vida, a integridade física ou para bens patrimoniais de grande valor; e de perigo comum, porque é susceptível de causar um dano incontrolável sobre bens juridicamente tutelados de natureza diversa.
XII - Neste crime estão em causa condutas cujo desvalor de acção é de pequena monta e se repercutem, amiúde, num desvalor de resultado de efeitos não poucas vezes catastróficos – cf. Ac. do STJ de 04-06-1992, Proc. n.º 42673.
XIII - O crime p. e p. pelo art. 272.º do CP reveste 3 modalidades, a saber: no n.º 1, crime voluntário; no n.º 2, crime doloso, com criação de perigo por negligência; no n.º 3, crime negligente – incêndio causado por negligência (naturalmente incompatível com o perigo intencional).
XIV - Tendo ficado provado que o incêndio foi voluntariamente provocado, agindo o arguido movido por propósito de vingança, com consciência do perigo que provocava, que dele resultou destruição de bens pertença de EP – sendo que o que sobreleva, para além do dano concreto verificado, é o perigo criado, de forma intencional, não só para a vida e integridade física do irmão do EP, invisual, que se encontrava no barraco onde vive com aquele, como para as barracas, quer a do EP, quer a (anexa) dos familiares, onde igualmente viviam a irmã daquele, o cunhado e um sobrinho, só não tendo efeitos maiores face à intervenção dos bombeiros –, e que, mesmo que a questão se colocasse relativamente apenas às duas barracas, há que considerar que eram a habitação dessas pessoas, assumindo para elas um óbvio elevado valor, pois são pessoas pobres, sendo essa “a sua casa”, dúvidas não se levantam a que o caso cabe de pleno no n.º 1, al. a), do art. 272.º do CP.
XV - O instituto previsto no regime penal especial para jovens adultos corresponde a um dos casos expressamente previstos na lei a que alude o n.º 1 do art. 72.º do CP, não constituindo uma mera faculdade do juiz, mas antes um poder dever vinculado que o juiz deve (tem de) usar sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos, sendo a aplicação, em tais circunstâncias, obrigatória e oficiosa ou, pelo menos, não dispensando equacionar a sua pertinência ou inconveniência, justificando a opção, ainda que se considere inaplicável o regime.
XVI - Pressuposto material da atenuação da pena, autónomo ou integrado pela intervenção valorativa das situações exemplificativamente enunciadas no art. 72.º, n.º 2, do CP, é a acentuada diminuição da culpa ou das exigências de prevenção.
XVII - As diferenças de campo de aplicação nas duas previsões esbateram-se a partir de 01-10-1995, pois que dantes, enquanto à faculdade ou possibilidade de atenuação à luz do art. 73.º do CP82 – «o tribunal pode atenuar» – correspondia uma injunção nos termos do art. 4.º do DL 401/82 – «o juiz deve» – actualmente, de acordo com o art. 72.º do CP, «o tribunal atenua». A diferença substancial entre os dois regimes será marcada pelo facto de, como resulta do art. 4.º, a finalidade ressocializadora se sobrepor aos demais fins das penas.
XVIII - Existem divergências quanto à consideração, ou não, na análise e ponderação a realizar, da natureza do crime e seu modo de execução.
XIX - No sentido da possibilidade e legitimidade dessa consideração, tendo por base o que consta do ponto n.º 7 do preâmbulo do DL 401/82, podem ver-se os Acs. do STJ de 20-12-1989, BMJ 392.º/263, de 27-11-2003, Proc. n.º 3393/03 - 5.ª, de 03-04-2003, CJSTJ 2003, tomo 2, pág. 157, de 18-05-2006, CJSTJ 2006, tomo 2, pág. 180, de 31-10-2007, Proc. n.º 3484/07 - 3.ª, de 09-04-2008, Proc. n.º 698/08 - 3.ª, e de 21-05-2008, Proc. n.º 998/08 - 3.ª, aí se defendendo que no juízo de avaliação da vantagem da medida deve ponderar-se, em cada caso concreto, a personalidade do jovem, a sua conduta anterior e posterior ao crime, a natureza do crime e seu modo de execução, bem como os seus motivos determinantes, a gravidade do crime cometido, aferida pela medida da pena aplicável, procedendo-se a uma apreciação conjunta do circunstancialismo factual da prática do crime e de tudo aquilo que o tribunal tenha podido apurar acerca das condições pessoais e personalidade do jovem.
XX - Noutra linha jurisprudencial entende-se que no juízo de prognose positiva imposto ao aplicar o art. 4.º há que considerar a globalidade da actuação e da situação pessoal e social do jovem, o que implica o conhecimento da sua personalidade, das suas condições pessoais, da sua conduta anterior e posterior ao crime, não se podendo atender de forma exclusiva (ou desproporcionada) à gravidade da ilicitude ou da culpa do arguido – neste sentido os Acs. do STJ de 01-03-2000, Proc. n.º 17/00 - 3.ª, SASTJ n.º 39, pág. 53, e BMJ 495.º/59, de 09-05-2002, CJSTJ 2002, tomo 2, pág. 193, de 29-04-2004, CJSTJ 2004, tomo 2, pág. 177, e de 06-09-2006, CJSTJ 2006, tomo 3, pág. 181, em que se pondera que «a gravidade do crime praticado e o grau de ilicitude do facto (…) não podem aqui ser considerados senão para efeitos da medida concreta da pena, depois de achada a moldura aplicável ao caso».
XXI - Ainda noutra perspectiva, em alguma jurisprudência há uma chamada de atenção para a imposição de um limite às considerações de reinserção social, invocando-se prementes razões de defesa da ordem jurídica – cf. os Acs. do STJ de 17-09-2007, CJSTJ, 1997, tomo 3, pág. 173, de 09-05-2002, CJSTJ, 2002, tomo 2, pág. 193, onde se defende que, mesmo em caso de prognose favorável, há que erigir como última barreira a defesa da ordem jurídica que em caso algum pode ser ultrapassada, e de 21-10-2004, CJSTJ, 2004, tomo 3, pág. 192, em que se assinala que a ressocialização, sendo sem dúvida um dos fins associados à aplicação de qualquer pena, só funciona, «na medida do possível», isto é, depois de assegurada a necessária protecção dos bens jurídicos, tal como emerge do disposto no art. 40.º do CP, limite que não pode ser ultrapassado. Neste sentido, ver também os Acs. de 28-10-1998, BMJ 480.º/83, de 09-12-1999, BMJ 492.º/193, e de 22-09-2004, CJSTJ, 2004, tomo 3, pág. 159.
XXII - Em sentido diverso, os Acs. de 24-10-2007 e de 14-11-2007, nos Procs. n.ºs 3263/07 e 3859/07, ambos da 3.ª Secção, em que se considera que, relativamente aos jovens condenados, a finalidade ressocializadora se sobrepõe aos demais fins das penas, não podendo, portanto, recusar-se a atenuação especial com fundamento na prevenção geral ou na retribuição; os interesses da prevenção geral deverão ser secundarizados e mesmo postergados se for de concluir que a atenuação especial favorece a ressocialização do arguido.
Decisão Texto Integral:
No âmbito do processo comum com intervenção de Tribunal Colectivo nº 204/02.1GDMTS, do 2º Juízo Criminal da Comarca de Matosinhos, foi submetido a julgamento o arguido AA, solteiro, vendedor ambulante, filho de C. N. O. e M. J. da S., nascido em 09.02.1983, na freguesia e concelho de Matosinhos e residente na Travessa………….., n° ….., Custóias, Matosinhos, por factos susceptíveis de integrarem, em autoria material, um crime de incêndio, explosões e outras condutas especialmente perigosas, p. p. pelo artigo 272º, nº 1, a), do Código Penal.
Por acórdão do Colectivo do Círculo Judicial de Matosinhos, de 6 de Dezembro de 2006, foi deliberado:
Condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material, de um crime de incêndio, explosões e outras condutas especialmente perigosas, p. p. pelo artigo 272º, nº 1, alínea a), do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão.

Inconformado, o arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto, apresentando a motivação de fls. 315 a 318, invocando erro na apreciação da prova, previsto no artigo 410º, nº 2, alínea c), do CPP, e no âmbito da medida da pena, a não aplicação do Decreto-Lei nº 401/82, de 23-09, e por considerar a pena aplicada manifestamente excessiva.
Por acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27 de Junho de 2007, constante de fls. 353 a 365, foi negado provimento ao recurso.
De novo inconformado, o arguido interpôs recurso para este Supremo Tribunal, apresentando a motivação de fls. 386 a 391, que remata com as seguintes conclusões (em transcrição):
I. O acórdão recorrido, padece de nulidade, que expressamente se invoca, o tribunal da Relação conhece de facto e de direito.
a) o entender não conhecer o recurso em matéria de facto, com o fundamento que não foram indicadas as provas que impunham entendimento diferente/ bem como suportes técnicos, incorreu em omissão de pronuncia pois deveria o recorrente ser convidado a suprir as deficiências suscitadas, o que não foi o caso, devendo o processos ser re-enviado para ser dado cumprimento a tal.
b) Caso tal não se entenda sempre se verifica o erro de fundamentação, pois não se percebe qual o raciocínio lógico encetado, pela análise exaustiva dos depoimentos, constata-se estarem os mesmos em oposição á prova documental.
c) O reconhecimento do arguido baseou-se em prova fotográfica/ prova essa que induziu em audiência o reconhecimento, veja-se a tal propósito auto de notícia o suspeito é completamente diferente do arguido.
d) Volvidos cinco anos sobre a prática dos factos e o inquérito que se protelou no tempo, certo é que os elementos probatórios são sobremaneira escassos/ e a prova testemunhal ouvida contraria a documental, verificando-se nesta parte erro notório nos termos do art°. Do n°. 2 C do C.P.P. (sic).
II. A dar-se assente a matéria de facto entende a defesa que o arguido deveria ter sido condenado pelo n°. 2 do art°. 272 do C.P. e não pelo seu n°. 1.
Porquanto:
a) se o objectivo era a pessoa do arguido, não era a outra pessoa que aí se encontrava, ademais, não ficou provado que o arguido soubesse exactamente quem aí residisse, nomeadamente a pessoas que aí s e encontrava, veja-se que o incêndio foi no barraco do BB e não outro, por isso o alvo era ele, ora, se aí não se encontrava, não se deu como provado que sabia quem aí permanecia.
b) Mais, estavam no local pessoas muito próximo e auxiliaram. O perigo no nosso modesto entendimento foi mais aparente, por outro lado não resultaram quaisquer sequelas/ferimentos, para além dos prejuízos patrimoniais.
c) Deveria ter sido aplicado ao arguido o regime legal para jovens delinquentes, o período temporal decorrido é deveras significativo.
d) O Tribunal não ponderou circunstâncias anteriores e posteriores ao crime que diminuem de forma acentuada a i1icitude do facto a culpa do agente ou a necessidade de pena vide art.º 72 do C.P.
e) o arguido é jovem, toda a sua vivência posterior é demonstrativa de inserção pessoal e familiar.
III - A pena aplicada ao arguido é desproporcional e desadequada, deveria ser reduzida no seu "quantum", razões de prevenção geral e especial, não são tão e elevadas como se patenteia no acórdão.
IV - Termos em que tendo em conta a filosofia pedagógica e ressocializadora do nosso ordenamento jurídico vigente, deveria reduzir-se a pena e ponderar-se a suspensão da sua execução, ainda que sujeitar o arguido a deveres de conduta, nomeadamente indemnizar o lesado e outras que se entendam pertinentes e a determinar.

O Mº Pº junto do Tribunal da Relação do Porto, a fls. 394 a 396, defendeu ser manifesta a improcedência do recurso.
Neste Supremo Tribunal a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, tendo-lhe os autos ido com vista, a fls. 399, colocou “visto”.

Colhidos os vistos e realizado o julgamento, cumpre apreciar e decidir.

A decisão recorrida é o acórdão da Relação do Porto de 27-06-2007, que confirmou acórdão final condenatório proferido por tribunal colectivo de Matosinhos.

Definindo os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, dispõe o artigo 434º do CPP, que, sem prejuízo do disposto no artigo 410º, nºs 2 e 3, o recurso interposto para este Tribunal visa exclusivamente o reexame da matéria de direito.

Conforme jurisprudência pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – vícios decisórios ao nível da matéria de facto e nulidades referidas no artigo 410º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal - é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que expõe e sintetiza as razões do pedido (artigo 412º, nº 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.


Questões a apreciar

Face ao teor das conclusões extraídas pelo recorrente são as seguintes as matérias a abordar no presente recurso:

I - Omissão de pronúncia
II – Erro notório na apreciação da prova
III - Requalificação do crime
IV - Da não aplicação do artigo 4º Decreto-Lei nº 401/82
V - Medida da pena


Face às questões colocadas importa ter em consideração a facticidade apurada pela primeira instância e aceite no acórdão recorrido.


Factos provados.

1) Em data não concretamente apurada e por questões relacionadas com o tráfico de estupefacientes, o arguido, também conhecido pela alcunha de Tolinhas”, desentendeu-se com BB, irmão de CC, circunstâncias em que o arguido ameaçou incendiar o barraco onde o BB vivia, o qual é anexo ao barraco da irmã deste.
2) Neste contexto, por vingança, no dia 21 de Março de 2002, no início da noite, o arguido, acompanhado de dois indivíduos, cuja identidade não se logrou apurar, deslocaram-se ao dito barraco, sito na Viela da …. em Custóias, Matosinhos, fazendo-se transportar num veículo automóvel de cor vermelha.
3) Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, encontravam-se no interior do barraco o irmão do BB, de nome DD, invisual, encontrando-se no barraco da irmã CC, anexo ao do BB, o marido desta, EE e o filho de ambos FF.
4) Aí chegados, o arguido, dirigiu-se ao barraco do BB onde entrou e derramou um recipiente de combustível que trazia na mão. Após, acendeu um isqueiro com o qual ateou o fogo, que de imediato se propagou na habitação.
5) O referido incêndio alastrou-se a toda a habitação do BB, queimando todos os seus haveres e só não se alastrou aos barracos contíguos, porque foi controlado pelos bombeiros.
6) De seguida colocou-se em fuga em direcção do veículo onde o aguardavam os indivíduos supra aludidos, após o que os ofendidos conseguiram fugir para o exterior não tendo sofrido quaisquer queimaduras.
7) Com a conduta descrita o arguido causou um prejuízo ao BB no valor de pelo menos € 2.000,00.
8) O arguido agiu de forma livre e consciente, querendo incendiar o referido barraco, bem sabendo que dessa forma estava a colocar em perigo, como colocou, a vida a integridade física e o património de todos os que ali viviam, bem sabendo que a sua actuação era reprovável e punida por lei.
9) Na altura dos factos o arguido, apesar de não ter carta de condução, possuía um veículo de marca BMW, com a matrícula …-…-…, que conduziu, pelo menos, nos dias 2 e 31 de Maio de 2002, conforme resulta das certidões juntas aos autos a fls. 151 e ss. Factos porque foi julgado e condenado nos processos aí referidos.
10) O arguido é casado segundo o ritual da raça cigana, tem 3 filhos de 7, 4 e 2 anos de idade, vive com a mãe da mulher, tem o 6º ano de escolaridade.
11) O arguido foi condenado em 31.05.02, factos de 02.05.02, pela prática de um crime de condução ilegal em pena de multa; em 18.11.02, factos de 03.07.01, pela prática de um crime de detenção ilegal de arma, p. p. pelo artº 6º da Lei nº 22/97, de 27.06, na pena de multa; em 23.01.03, factos de 06.01.03, pela prática de condução ilegal, na pena de multa.
12) O arguido não demonstrou arrependimento.

Factos não provados.

Com pertinência e relevância ao objecto dos autos, não se provou que:
a) No barraco onde vivia o BB vivesse também a irmã, o marido e o filho destes.
b) O veículo em que o arguido se fez deslocar fosse da marca BMW.
c) Aquando do incêndio a CC, o marido desta EE, o filho de ambos, FF estivessem no barraco do BB.

Apreciando.


I - Omissão de pronúncia

Na conclusão I. a), defende o recorrente ter o acórdão recorrido incorrido em omissão de pronúncia por não ter sido convidado a suprir as deficiências aí suscitadas, devendo o processo ser reenviado a fim de ser dado cumprimento a despacho que vise colmatar tais deficiências.
Desde já há que dizer que o recorrente incorre em manifesto equívoco, não havendo qualquer omissão de pronúncia.
Na verdade, a imputação do recorrente baseia-se numa confusão entre três aspectos, que terão como denominador comum a sindicância da matéria de facto, mas que são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências, estando em causa o erro notório na apreciação da prova, o erro na apreciação e valoração das provas, que se reconduz a erro de julgamento da matéria de facto e a impugnação da matéria de facto possível com a abrangência consentida pelo artigo 412º, nºs 3 e 4, do CPP.
A partir da reforma de 1998 operada pela Lei nº 59/98, de 25-08, entrada em vigor em 1 de Janeiro de 1999, pretendendo o recorrente impugnar um acórdão final de tribunal colectivo, pode fazer uma de duas coisas: visando exclusivamente o reexame de matéria de direito, dirige o recurso directamente ao Supremo Tribunal de Justiça; se não visar exclusivamente este reexame, dirige-o então, de facto e de direito, à Relação, caso em que da decisão desta, não sendo caso de irrecorribilidade nos termos do artigo 400º do CPP, poderá depois recorrer para o STJ.
Neste caso, porém, o recurso - agora puramente de revista - terá que visar exclusivamente o reexame da decisão recorrida (a da Relação) em matéria de direito, com exclusão dos eventuais vícios, processuais ou de facto, do julgamento da 1ª instância, admitindo-se que o Supremo, em certos casos, se possa abster de conhecer do fundo da causa e ordenar o reenvio nos termos processualmente estabelecidos.
A partir da reforma de 1998 passou a ser possível impugnar (para a Relação) a matéria de facto de duas formas: a já existente revista (então cognominada de ampliada ou alargada) com invocação dos vícios decisórios do artigo 410º, nº 2, com a possibilidade de sindicar as anomalias ou disfunções emergentes do texto da decisão e uma outra, mais ampla e abrangente, porque não confinada ao texto da decisão, com base nos elementos de documentação da prova produzida em julgamento, permitindo um efectivo grau de recurso em matéria de facto, mas impondo-se na sua adopção a observância de certas formalidades.
No primeiro caso estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas alíneas a), b) e c) do nº 2, do artigo 410º do CPP, cuja indagação, como resulta do preceito, apenas se poderá fazer através da leitura do texto da decisão recorrida, circunscrevendo-se a apreciação da matéria de facto ao que consta desse texto, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos estranhos ao texto, mesmo que constem do processo.
Nesta forma de impugnação os vícios da decisão têm de emergir, resultar do próprio texto, o que significa que os mesmos têm de ser intrínsecos à própria decisão como peça autónoma.
A possibilidade de introdução do Tribunal ad quem no domínio da facticidade sempre será parcial, mitigada, limitada e indirecta; a indagação não pode ir além do suporte textual, sem recurso a elementos estranhos àquela peça escrita.
Daí que, conforme jurisprudência uniforme e já remota, se entenda que os vícios têm que resultar da própria decisão recorrida, na sua globalidade, mas sem recurso a quaisquer elementos estranhos à peça decisória, que lhe sejam externos, constando do processo em outros locais, como documentos juntos ou depoimentos colhidos ao longo do processo – podendo ver-se neste sentido os acórdãos do STJ de 29-11-1989, processo 40255/89-3ª; de 19-12-1990, processo 41327/90-3ª, BMJ 402, 232; de 31-05-1991, BMJ 407, 377; de 03-07-1991, CJSTJ 1991, tomo 4, 12; de 16-10-1991, BMJ 410, 610; de 13-02-1992, BMJ 414, 389; de 22-09-93, CJSTJ 1993, tomo 3, 210; de 19-11-1997, processo 873/97-3ª; de 20-11-1997, processo 1242/97-3ª; de 28-10-1998 e 29-10-1998, BMJ 480, 83 e 292.
No segundo caso, a apreciação já não se restringe ao texto da decisão, mas à análise do que se contem e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre a partir de balizas fornecidas pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus imposto pelos nºs 3 e 4 do artigo 412º do CPP, tendo em vista o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento e visando a modificação da matéria de facto, nos termos do artigo 431º, alínea b), do CPP.
A alteração do artigo 412º do CPP, operada em 1998, visou tornar admissível o recurso para a Relação da matéria de facto fixada pelo Colectivo, dando seguimento à consagração do direito ao recurso resultante do aditamento da parte final do artigo 32º, nº 1 da CRP na revisão da Lei Constitucional nº 1/97, vindo a ser “confirmada” pelo acórdão de uniformização de jurisprudência nº 10/2005, de 20-10-2005, in DR, I Série-A, de 07-12-2005, que estabeleceu: “Após as alterações ao Código de Processo Penal, introduzidas pela Lei nº 59/98, de 25/08, em matéria de recursos, é admissível recurso para o Tribunal da Relação da matéria de facto fixada pelo tribunal colectivo”.
Esta possibilidade de sindicância de matéria de facto, não sendo tão restrita como a operada através da análise dos vícios decisórios - que se circunscreve ao texto da decisão em reapreciação - por se debruçar sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre, no entanto, quatro tipos de limitações.
Desde logo, uma limitação decorrente da necessidade de observância por parte do recorrente de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta delimitação precisa e concretizada dos pontos da matéria de facto controvertidos, que o recorrente considera incorrectamente julgados, com especificação das provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso.
A reapreciação por esta via não é global, antes restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, necessário sendo que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam, não bastando remeter na íntegra para as declarações e depoimentos de algumas testemunhas.
Já a nível do poder cognitivo do tribunal de recurso, temos a limitação decorrente da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações e /ou, ainda, como no caso, das transcrições.
Por outro lado, há limites à pretendida reponderação de facto, já que a Relação não fará um segundo/novo julgamento, pois o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em 2ª instância.
A intervenção da Relação cingir-se-á a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação.
A juzante impor-se-á um último limite que tem a ver com o facto de a reapreciação só poder determinar alteração à matéria de facto se se concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitam uma outra decisão.

O erro de julgamento da matéria de facto existe quando o tribunal dá como provado certo facto relativamente ao qual não foi feita prova bastante e que, por isso, deveria ser considerado não provado, ou então, o inverso e tem a ver com a apreciação da prova produzida em audiência em conexão com o princípio da livre apreciação da prova constante do artigo 127º do CPP.
É a verificação destes erros que se pretende averiguar através do tipo de análise permitido pela reponderação feita em sede de recurso da matéria de facto.
No primeiro recurso, embora invocando o erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410, nº 2, alínea c), do CPP, na realidade o que o recorrente fez foi coisa diversa, como de forma clara resulta das conclusões desse recurso - fls. 326.
Após na conclusão 1ª afirmar «Existe erro na apreciação da prova, nos termos do disposto no artigo 410 nº 2 al. c) do CPP», avança na conclusão 2ª: «Na verdade, temos que o tribunal de primeira instância não tomou em devida conta as discrepâncias existentes entre os diversos depoimentos prestados em sede de julgamento». E nas conclusões 3ª, 4ª e 5ª refere depoimentos e outros elementos de prova, como o auto de notícia e o auto de reconhecimento, que contradiriam o depoimento de algumas testemunhas inquiridas em julgamento.
Perante a arguição traçada com estes contornos, o Tribunal recorrido não podia tomar atitude diversa daquela que adoptou, por ser a única plausível e defensável à luz dos textos legais, assumindo de forma expressa uma posição, não se verificando, pois, qualquer omissão de pronúncia.
Versando a questão colocada pelo recorrente, discorreu assim o acórdão recorrido: «Embora fazendo referência à alínea c) do n.° 2 do artigo 410.° do C. P. Penal, o que resulta da motivação do recurso é que o arguido, em vez de querer invocar o vício do erro notório na apreciação da prova nos termos em que o mesmo deve ser considerado, o que na realidade quis foi pôr em causa a forma como o tribunal apreciou a prova produzida na audiência de julgamento, ou seja invocar o erro de julgamento da matéria de facto provada.. Na verdade, toda a sua argumentação, nomeadamente as apontadas discrepâncias entre os depoimentos das testemunhas inquiridas na audiência de julgamento e entre aqueles e outros elementos de prova, como é o caso do auto de notícia e dos autos de reconhecimento, aponta no sentido de que, face à prova produzida, o tribunal não podia ter dado como provado que foi ele o autor material dos factos provados. Significa isto que chamou erradamente de vício do erro notório na apreciação da prova a sua pretensão de invocar o erro de julgamento da matéria de facto provada, que são coisas totalmente distintas».
E explicitando, continua: «Ora, a fundamentação de facto do acórdão recorrido não patenteia qualquer erro notório na apreciação da prova, nos termos em que este deve ser considerado. Poder-se-á questionar se os depoimentos das testemunhas ouvidas na audiência de julgamento são suficientemente convincentes para se poder afirmar com segurança que o arguido foi o autor material do incêndio. Mas então estaremos perante um erro de julgamento da matéria de facto provada e não do vício do erro notório na apreciação da prova».
E prosseguindo com o passo em que o recorrente enxerga omissão de pronúncia, afirma-se ainda na decisão recorrida: «Se foi intenção do arguido invocar o erro de julgamento da matéria de facto provada, a sua pretensão não pode ser atendida, por não ter dado integral cumprimento ao disposto nas alíneas a) e b) do n.° 3 e no n.° 4 do art. 412.° do C. P. Penal, assim inviabilizando o conhecimento, por este tribunal, de tal questão. É que, nos termos daquelas alíneas a) e b), quando impugnar a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados e as provas que impõem decisão diversa da recorrida, e, nos termos daquele n.° 4, tendo as provas sido gravadas, deve fazer referência aos suportes técnicos.
Ora, o arguido não indicou nem de forma expressa nem tácita quais os factos que considera incorrectamente julgados, embora do conjunto da motivação e das conclusões se possa concluir que pretendeu pôr em causa os factos que lhe atribuem a autoria material do incêndio. Assim, se fosse esta a única omissão, ainda se poderia conhecer do recurso em matéria de facto. Acontece que o arguido não indicou quais as provas que impõem decisão diversa da recorrida. Na verdade, limitou-se a indicar discrepâncias existentes entre os depoimentos das testemunhas ouvidas na audiência de julgamento e entre aqueles e outros meios de prova. E omitiu totalmente a referência aos suportes técnicos. Não tendo indicado quais as provas que impõem decisão diversa da recorrida, para conhecer do recurso em matéria de facto este tribunal teria de apreciar toda a prova produzida na audiência de julgamento, ou seja, de proceder a um novo julgamento, como se o da 1ª instância não tivesse existido, sendo certo que o recurso em matéria de facto tem em vista remediar os males do julgamento da 1ª instância e não proceder a um novo julgamento, como se aquele não existisse.
Assim sendo, não é possível conhecer do recurso em matéria de facto.
Deste modo, e porque o acórdão recorrido não padece do apontado vício nem de qualquer dos enunciados no n.°2 do art. 410.° do C. P. Penal, considera-se definitivamente assente a matéria de facto dada como provada».

O acórdão recorrido não conheceu do recurso em matéria de facto, nem podia fazê-lo.
E não podia fazê-lo, desde logo, à luz do vício decisório invocado, porque na realidade não era disso que se tratava, mas antes da manifestação de discordância por parte do recorrente com o que havia sido dado por provado pelo Colectivo de 1ª instância, extravasando assim o recorrente o âmbito circunscrito em que é possível esta forma de sindicância da matéria de facto.
Patente resultava que o recorrente apenas se pretendia referir à existência de erro de julgamento da matéria de facto, tanto que para o sustentar apelou ao conteúdo concreto da prova produzida e não ao texto da decisão recorrida.
Não o podia fazer ainda da outra forma possível, pela simples razão de que o recorrente claramente abdicara de fazer uso de tal modo de impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto, como ressalta à evidência da leitura do texto da motivação então articulada.
Em tal situação o tribunal não podia nem devia sequer convidar à apresentação de novas conclusões, pois que o convite ao aperfeiçoamento, tal como de certo modo ocorre em processo civil na fase final dos articulados - artigo 508º, nº 3, do CPC - só faz sentido quando se destina a suprir ou completar insuficiências, a esclarecer imprecisões, a colmatar lacunas na concretização necessária, a corrigir deficiências e não quando se está perante uma falta total e completa de manifestação da pretensão do exercício de faculdade conferida pela lei, como é o caso, não passível de remédio.
Mesmo em casos em que o recorrente pretenda efectivamente exercer o modo de impugnação previsto, sempre se entendeu no STJ que nesses casos as deficiências verificadas nesse recurso não justificavam convite ao aperfeiçoamento.
O STJ tem-se pronunciado no sentido de que o não cumprimento do ónus de impugnação da matéria de facto não justifica o convite ao aperfeiçoamento, pois só se pode corrigir o que está mal cumprido e não o que se tem por incumprido - acórdãos de 08-03-2006, processo 185/06-3ª; de 04-10-2006, processo 812/06-3ª; de 04-01-2007, processo 4093/06-3ª e de 10-01-2007, processo 3518/06-3ª, podendo ler-se a este propósito no acórdão de 09-03-2006, processo 461/06-5ª: “Se o recorrente não faz, nem nas conclusões, nem no texto da motivação, as especificações ordenadas pelos números 3 e 4 do art. 412º do CPP, não há lugar ao convite à correcção das conclusões, uma vez que o conteúdo do texto da motivação constitui um limite absoluto que não pode ser extravasado através do convite à correcção das conclusões da motivação”.
No acórdão de 23-01-2008, processo 4570/07-3ª, defende-se não haver lugar a convite em caso em que a impugnação é infundamentada, não havendo lugar ao suprimento de qualquer deficiência, pois o que se verifica é, na realidade, carência de impugnação de factos.
O Tribunal Constitucional considera que tal solução não viola o direito ao recurso, como decidiu no acórdão nº 259/02, de 18-06-2002, in DR, II Série, de 13-12-2002, posição retomada no acórdão nº 140/2004, de 10-03-2004, processo nº 565/03, in DR, II Série, de 17-04-2004 e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 58º volume, p. 633 ss. aí se afirmando: «… o legislador processual pode definir os requisitos adjectivos para o exercício do direito ao recurso, incluindo o cumprimento de certos ónus ou formalidades que não sejam desproporcionados e visem uma finalidade processualmente adequada, sem que tal viole o direito ao recurso constitucionalmente consagrado. Ora, é manifestamente este o caso das exigências constantes do artigo 412º, nºs 3, alínea b) e 4, do Código de Processo Penal, cujo cumprimento (incluindo a referência aos suportes técnicos, com indicação da cassete em causa e da localização nesta da gravação das provas em questão) não é desproporcionado e antes serve uma finalidade de ordenamento processual claramente justificada. (…). Não pode, pois, concluir-se que os princípios constitucionais do acesso ao direito e do direito ao recurso em matéria penal impliquem que ao recorrente tivesse sido facultada a oportunidade para aperfeiçoar, em termos substanciais, a motivação de recurso deduzido quanto à matéria de facto, quando este não especificou as provas que impunham decisão diversa da recorrida, fazendo-o por referência aos suportes técnicos. (…). Como se disse no Acórdão nº 259/2002 (supra referido), tal “equivaleria, no fundo, à concessão de novo prazo para recorrer, que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso”.
Não pode, pois, considerar-se inconstitucional a norma em causa…».
Em sentido oposto, de que ao recorrente deve ser dada a oportunidade de suprir a falta de indicação, nas conclusões da motivação, das menções impostas, pronunciaram-se os acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 529/03, 322/04, de 5 de Maio, 405/04, de 2 de Junho (estes abrangendo também o nº 4 do artigo 412º do CPP) e 357/06, de 8 de Junho, mas ainda segundo esta orientação, nem toda a deficiência é suprível; para que o seja, necessário se torna que a impugnação da matéria de facto esteja suficientemente fundamentada no texto do recurso, pois de outra forma estaria a conceder-se ao recorrente como que um segundo recurso, ou pelo menos um novo prazo para contestar a decisão recorrida,
A fortiori, sempre se poderia adiantar que mesmo à luz do novo nº 3 do artigo 417º do CPP, introduzido pela Lei nº 48/07, de 29-08, não aplicável ao caso, o convite agora previsto dirige-se apenas às conclusões formuladas e não à formulação ex novo de pretensão ou ao exercício de uma outra possível, mas não querida nem exercitada, forma de impugnação da decisão de facto, que estava completamente fora do horizonte cognitivo da Relação traçado na motivação e pelas conclusões. E sempre será com as limitações acabadas de referir que deverá ser entendido o novo preceito constante do nº 3 do artigo 417º do CPP.
Há que não confundir duas situações. Uma, é haver incumprimento do ónus de impugnação especificada em caso em que o recorrente pretende impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto, e opta, clara e expressamente, por tal meio de impugnação, mas não cumpre os condicionamentos ou imposições estabelecidos no artigo 412º, nºs 3 e 4 do Código de Processo Penal, em ordem a delimitar os concretos pontos de facto e provas a reponderar.
Outra, completamente diversa, que consiste no não uso desse instrumento reactivo, caso em que obviamente não cabe incumprimento, não fazendo sentido falar em deficiência ou insuficiência, conceitos que se reportam a algo existente, quando no caso falta, inexiste, tal modo de impugnação.
A única forma que o recorrente teria de impugnar a matéria de facto e permitir ao Tribunal da Relação maior amplitude de intervenção era fazê-lo ao abrigo do dispositivo do artigo 412º, nºs 3 e 4 do CPP, alternativa de que prescindiu.
Como se referiu, o recorrente prescindiu desse tipo de recurso, não fazendo sentido em tal quadro, formular qualquer convite, pois não havia insuficiências, não havendo lugar a reenvio como pretende o recorrente.
O que o tribunal recorrido disse foi isto: a pretendida modificação da decisão proferida sobre a matéria de facto só seria possível e viável num quadro em que o recorrente lançasse mão do mecanismo previsto no artigo 412º, nºs 3 e 4, do CPP, suposto o cumprimento por parte daquele dos ónus, condições e requisitos ali previstos, o que de todo não era o caso
Conclui-se assim que não se verifica qualquer omissão de pronúncia por parte do acórdão recorrido, que, aliás, se debruçou sobre a questão posta, de forma clara, completa e justificada, como se pode ver de fls.359 a 361.
Inexiste, pois, a invocada nulidade do acórdão recorrido, que a existir, seria a da alínea c) e não da b) do nº 1 do artigo 379º do CPP, como refere o recorrente.

II – Erro notório na apreciação da prova

O recorrente na motivação dirige-se de novo ao acórdão da primeira instância, referindo-se à divergência entre o que foi dado por provado e o que em seu entender resultou do julgamento, defendendo resultar da “análise exaustiva dos depoimentos (…) estarem os mesmos em oposição à prova documental”, verificando-se nesta parte o aludido vício - alíneas b), c) e d) da conclusão I.
Repete o recorrente a arguição feita no primeiro recurso, embora agora em termos mais restritos, pois naquele fê-lo apreciando os depoimentos das várias testemunhas e agora nos termos da conclusão citada.
Não pode deixar-se de referenciar o facto de o recorrente no primeiro recurso, no afã de congregar elementos para composição do invocado erro, a fls. 320, chegou a perguntar quem era a testemunha D. C. enunciada a fls. 7 do acórdão, exclamando: «Nenhuma testemunha com este nome foi inquirida!»
A fls. 7 do acórdão da 1ª instância (fls. 283 do processo) consta: «…nenhuma credibilidade mereceu o depoimento da testemunha D. C.», tratando-se de mero lapso de escrita, pois referia-se indubitavelmente a D. F. R. C., única testemunha arrolada pelo arguido a fls. 235 e ouvida em audiência - acta de fls. 262 - que disse viver maritalmente com o arguido…, sendo que no acórdão, a fls. 6, se referira a «testemunha D. F. R., esposa do arguido segundo o ritual cigano (…)».

Face à arguição do vício decisório em causa é de colocar a questão de saber se o STJ pode conhecer dos vícios previstos no nº 2 do artigo 410º do CPP em recurso interposto de acórdão do Tribunal da Relação.
Como é sabido, a partir de 01-01-1999, na sequência da reforma do CPP, operada pela Lei nº 59/98, de 25-08, deixou de ser possível interpor recurso para o STJ com fundamento na verificação dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do CPP, isto é, a incursão do STJ no plano fáctico da forma restrita consentida pelo artigo 410º não é já possível face a questão colocada pelo interessado, a pedido do recorrente, mas por iniciativa própria deste Supremo Tribunal, para evitar que a decisão de direito se apoie em matéria de facto ostensivamente insuficiente, fundada em erro de apreciação, ou assente em premissas contraditórias detectadas por iniciativa do STJ, conforme é jurisprudência corrente - cfr. acórdãos deste Supremo Tribunal, de 17-01-2001, de 25-01-2001, de 22-03-2001, in CJSTJ 2001, tomo 1, págs. 210, 222 e 257, de 04-10-2001, CJSTJ2001, tomo 3, pág. 182 (aqui se declarando que o Tribunal de recurso tem o poder-dever de fundar a “boa decisão de direito” numa “boa decisão de facto”), de 30-01-2002, processo 3739/01-3ª, de 16-05-2002, CJSTJ 2002, tomo 2, 202, de 24-03-2003, tomo I, 236, de 27-05-2004, in CJSTJ 2004, tomo II, 209, (o STJ só pode/deve conhecer dos vícios se concluir que, por força da existência de qualquer deles, não pode chegar a uma correcta solução de direito), de 30-03-2005, no processo nº 136/05-3ª, de 03-05-2006, nos processos 557/06 e 1047/06, ambos da 3ª secção, de 18-05-2006, nos processos 800/06 e 1293/06, ambos da 3ª secção, de 20-12-2006, in CJSTJ 2006, tomo 3, 248, de 04-01-2007 no processo 2675/06-3ª, de 08-02-2007, no processo 159/07-5ª, de 15-02-2007 nos processos 15/07 e 513/07 (defendendo-se neste o conhecimento oficioso dos vícios como preâmbulo do conhecimento do direito), ambos da 5ª secção, de 21-02-2007 no processo 260/07-3ª, de 02-05-2007, nos processos 1017/07, 1029/07 e 1238/07, de 10-10-2007, processo 3315/07, todos da 3ª secção e ainda Simas Santos e Leal Henriques, Código de Processo Penal Anotado, 2ª edição, II volume, p. 967, citado no referido acórdão de 25 de Janeiro de 2001, onde se pondera: “O considerar-se que não podem invocar-se os vícios do nº 2 do art. 410º como fundamento do recurso directo para o STJ de decisão final do tribunal colectivo, não significa que este Supremo Tribunal não os possa conhecer oficiosamente, como ocorre no processo civil, e é jurisprudência fixada pelo STJ (…)”.
Na fundamentação do acórdão de uniformização de jurisprudência nº 10/2005, de 20-10-2005, in DR, I Série - A, de 07-12-2005, refere-se que a indagação dos vícios faz-se “no uso de um poder-dever, vinculadamente, de fundar uma decisão de direito numa escorreita matéria de facto”.
Por outro lado, continua em vigor o Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ, de 19-10-1995, in DR, I Série - A, de 28-12-1995 (Acórdão nº 7/95), que no âmbito do sistema de revista alargada decidiu ser oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº 2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.

A partir da reforma de 1998, entrada em vigor em 1 de Janeiro de 1999, quem pretenda impugnar um acórdão final de tribunal colectivo, de duas uma: se visar exclusivamente o reexame de matéria de direito - artigo 432º, alínea d) - dirige o recurso directamente ao STJ; se não visar exclusivamente este reexame, dirige-o então, de facto e de direito, à Relação, caso em que da decisão desta, não sendo caso de irrecorribilidade nos termos do artigo 400º do CPP, poderá depois recorrer para o STJ.
Neste caso, porém, o recurso - agora puramente de revista - terá que visar exclusivamente o reexame da decisão recorrida (a da Relação) em matéria de direito, com exclusão dos eventuais vícios, processuais ou de facto, do julgamento da 1ª instância, admitindo-se que o Supremo se possa abster de conhecer do fundo da causa e ordenar o reenvio nos termos processualmente estabelecidos em certos casos.
Na verdade, mesmo nos recursos interpostos directamente deixou de ser possível recorrer-se com fundamento na existência de qualquer dos vícios constantes das três alíneas do nº 2 do artigo 410º, o mesmo se passando com os recursos interpostos da Relação, sendo jurisprudência constante e pacífica deste Supremo Tribunal que no recurso para este Tribunal das decisões finais do tribunal colectivo já apreciadas pelo Tribunal da Relação, está vedada a arguição dos vícios do artigo 410º, nº 2, do CPP, posto que se trata de matéria de facto, ou seja, de questão que se não contém nos poderes de cognição do STJ, o que significa que está fora do âmbito legal dos recursos a reedição dos vícios apontados à decisão de facto da 1ª instância, em tudo o que foi objecto de conhecimento/decisão pela Relação – cfr., quanto a este aspecto particular, os acórdãos de 11-12-2003, processo 3399-3ª; de 22-04-2204 e de 01-07-2004, CJSTJ 2004, tomo 2,165 e 239; de 08-02-2007, processo 159/07-5ª; de 21-02-2007 processo 260/07-3ª; de 28-02-2007, processo 4698/06-3ª, de 08-03-2007, processos 447/07 e 649/07-5ª; de 15-03-2007, processos 663/07 e 800/07-5ª; de 29-03-2007, processos 339/07 e 1034/07-5ª; de 19-04-2007, processo 802/07-5ª; de 03-05-2007, processo 1233/07-5ª.
Só com o âmbito restrito consentido pelo artigo 410º, nº 2, do CPP, com o incontornável pressuposto de que o vício há-de derivar do texto da decisão recorrida, o STJ poderá avaliar, nos casos em que considere imperioso o reexame, da subsistência dos vícios da matéria de facto, o que é aplicável a recurso interposto da Relação.

Para além da irrelevância que assume a manifestação de discordância do recorrente face ao que foi decidido - pois mais não faz do que exprimir a sua divergência quanto ao critério de valoração dos depoimentos e dos aludidos autos - a verdade é que o Tribunal da Relação se debruçou sobre a questão então colocada, nos termos já aludidos, o que fez, repete-se, de forma correcta, concluindo, como não podia deixar de ser, não se estar perante a invocação de um vício decisório com os contornos que o enformam para que se esteja face a vício, mas antes a mera manifestação de divergência com os resultados a que chegaram os julgadores.
Dir-se-á que na análise a efectuar há que ter em conta que a fixação da matéria de facto teve na sua base uma apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, nos termos do artigo 127º do CPP.
Mas mais do que isso, acontece que na realidade o que o recorrente faz é manifestar a sua discordância com o decidido ao nível do assentamento da facticidade dada como apurada, pretendendo impugnar a convicção adquirida pelos julgadores sobre os factos pertinentes à configuração do crime de incêndio, adiantando o que em seu entender estaria provado, olvidando por completo a regra da livre apreciação da prova ínsita no aludido artigo 127º do CPP.
Como esclareceu o acórdão de 21-05-1992, BMJ 417, 404, “O STJ, como tribunal de revista, não dispõe de poderes de crítica ou censura sobre o concreto desempenho do princípio da livre apreciação da prova exercitada pelo tribunal a quo” e o acórdão de 25-03-1998, BMJ 475, 502, “O STJ não pode sindicar a valorização das provas feita pelo Colectivo em termos de o criticar por não ter sido dada prevalência a uma em detrimento de outra” - cfr. acórdão de 11-02-1998, BMJ 474, 309, e mais recentemente, o acórdão de 08-02-2006, processo 98/06-3ª, no sentido de que “a deficiente apreciação da prova produzida é matéria que escapa aos poderes do STJ”.
Constitui entendimento pacífico há muito estabelecido que não há erro na apreciação da prova quando o que o recorrente invoca não é mais do que uma discordância sua quanto ao enquadramento da matéria de facto provada.
A divergência do recorrente quanto à avaliação e valoração das provas feitas pelo tribunal é irrelevante, de acordo com jurisprudência há muito firmada - acórdãos do STJ, de 19-09-1990, BMJ 399, 260; de 21-06-1995, BMJ 448, 278 (a versão do recorrente sobre a valoração da prova não integra o vício do erro notório); de 01-10-1997, processo 876/97-3ª; de 08-10-1997, processo 874/97-3ª; de 06-11-1997, processos 666/97 e 122/97; de 18-12-1997, processos 47325 e 930/97, Sumários de acórdãos do STJ, vol. II, p. 156, 158, 216 e 220; de 29-10-1998, BMJ 480, 292; de 24-03-1999, CJSTJ 1999, tomo 1, 247; de 19-01-2000, processo 871/99-3ª; de 06-12-2000, processo 733/00. Ou como se dizia no acórdão de 18-12-1997, processo 701/97, Sumários, ibid., p. 220, a convicção do tribunal não pode ser tida por errada apenas porque as partes, eventualmente, valoram a prova de modo diverso.
Ou no acórdão de 07-10-1998, processo 1103/98: “não se pode confundir o erro notório na apreciação da prova com a opinião que o recorrente formulou sobre a prova produzida, divergente da que veio a vingar.”
De forma mais abrangente é encarada essa irrelevância no acórdão de 12-11-1998, BMJ 481, 325: “se existe mera discordância do recorrente entre aquilo que o Colectivo teve como provado e aquilo que o recorrente entende não ter resultado da prova produzida não se verifica qualquer dos vícios do artigo 410º, nº 2, alíneas a) e c)”.
Mais recentemente, no acórdão de 20-12-2006, no processo 3379/06-3ª, pode ler-se: “Os vícios do artigo 410º-2 do CPP não podem ser confundidos com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, no respeito pelo princípio da livre apreciação da prova inscrito no artigo 127º do CPP. Neste aspecto, o que releva, necessariamente, é a convicção que o tribunal forme perante as provas produzidas em audiência, sendo irrelevante a convicção pessoal formada pelo recorrente e que ele próprio alcançou sobre os factos”- cfr. do mesmo relator, o acórdão de 27-06-2007 no processo 2057/07-3ª.

Como se referiu, o recorrente apenas pretende opor à livre convicção do tribunal expressa nos factos que teve por provados a sua mera afirmação de que não deveriam ter sido dados como provados os factos que o conexionam como sendo o autor do incêndio discutido nos autos.
Essa posição representa apenas a valoração pessoal de determinados elementos de prova indicados na motivação, nomeadamente do auto de notícia e do auto de reconhecimento, não convergente com a conclusão a que chegaram os julgadores.
É jurisprudência corrente a de que são totalmente irrelevantes as considerações do recorrente quanto à pretensão de ver discutida a prova feita no julgamento e de solicitar que o STJ modifique tal prova e passe a aceitar como realidade aquilo que o interessado pretende corresponder ao sentido do que teria resultado do julgamento e a que o Tribunal passasse a aceitar como definitiva a factualidade que invoca – acórdãos do STJ, de 12-01-1994, de 29-06-1994, de 12-01-1995, de 06-03-1996, de 04-06-1996, de 04-07-1996, de 10-07-1996, de 18-09-1996, de 08-01-1997, de 15-01-1997, de 13-01-1998, de 13-01-1999, in, respectivamente, BMJ 433, 231; CJSTJ 1994, tomo 2, 258; CJSTJ 1995, tomo 1, 181; CJSTJ 1996, tomo 2, 165; BMJ 458, 169; CJSTJ 1996, tomo 2, 243; BMJ 459, 178 e 283; 463, 189 e 429; 473, 307 e 483, 49.
Daqui resulta que se revelam processualmente inoportunas, impertinentes e irrelevantes as considerações contidas na conclusão supra referida.
A impossibilidade deste Tribunal sindicar a prova produzida conduz a que seja manifesta a improcedência do recurso neste segmento, que assim, digamos, tem um objecto impossível, devendo ser rejeitado, nos termos do artigo 420º, nº 1, alínea a) do CPP, preceito que nesta perspectiva não padece de inconstitucionalidade - cfr. acórdãos do Tribunal Constitucional nº 352/98, de 12-05-1998, in BMJ 477, 18 e nº 165/99, de 10-03-1999, in DR-II Série, de 28-02-2000 e BMJ 485, 93.
Como se referia no acórdão do STJ de 30-03-1995, BMJ 445, 355, é de rejeitar o recurso por manifesta improcedência quando o recorrente se limita a discutir matéria de facto e a livre apreciação do tribunal.
De igual sorte o acórdão de 21-06-1995, BMJ, 448, 278: “Apresenta-se como manifestamente improcedente, e, portanto, deve ser rejeitado, o recurso cuja fundamentação se circunscreve à interpretação da prova que se diz ter sido produzida em audiência, indicando-se os factos que deveriam ter sido considerados provados, em vez dos que foram dados por provados”. (Vejam-se os acórdãos de 19-09-1990, BMJ 399, 260; de 25-10-1990, AJ, nº 12, processo 41206; de 06-03-1991, AJ, nº 17, processo 41680; de 13-03-1991, AJ, nº 17, processo 41437; de 31-05-1991, CJSTJ 1991, tomo 3, 24; de 26-01-1994, processo 45847).
Em suma, estamos perante recurso manifestamente improcedente.
Estabelece o artigo 420º, nº 1, alínea a), do CPP, na versão actual, que o recurso é rejeitado sempre que for manifesta a sua improcedência.
A manifesta improcedência constitui um fundamento de rejeição do recurso de natureza substancial, visando os casos em que os termos do recurso não permitem a cognição do tribunal ad quem, ou quando, versando sobre questão de direito, a pretensão não estiver minimamente fundamentada ou for claro, simples, evidente e de primeira aparência que não pode obter provimento. Será o caso típico de invocação contra a matéria de facto directamente provada, de discussão processualmente inadmissível sobre a decisão em matéria de facto, ou de o recurso respeitar à qualificação e à medida da pena e não ser referida nem existir fundamentação válida para alterar a qualificação acolhida ou a pena que foi fixada pela decisão recorrida – acórdão do STJ, de 22-11-2006, processo 4084/06 - 3ª .
Ou, quando, através de uma avaliação sumária dos fundamentos do recurso, se puder concluir, sem margem para dúvidas, que o mesmo será claramente votado ao insucesso, que os seus fundamentos são inatendíveis – acórdãos de 17-10-1996, processo 633/96, de 06-05-1998, processo 113/98, de 05-04-2000, processo 47/00.
Improcede, pois, tal arguição, sendo o recurso de rejeitar por manifestamente improcedente neste segmento de tentativa de reapreciação de matéria fáctica.


III - Requalificação jurídica - Convolação para o tipo de crime p. p. no nº 2 do artigo 272º do Código Penal?

Na conclusão II defende o recorrente que, a dar-se como assente a matéria de facto, deveria ter sido condenado pelo nº 2 do artigo 272º e não pelo nº 1, explicitando os seus pontos de vista nas alíneas a) e b).
O recorrente coloca esta questão no presente recurso pela primeira vez, não tendo suscitado esse diverso enquadramento jurídico criminal no primeiro recurso.
Trata-se de questão nova, de invocação de requalificação jurídica, que corresponde em absoluto à colocação de uma outra questão em primeira mão, de problema novo, que o recorrente não propôs à consideração do Tribunal da Relação.
Os recursos ordinários visam o reexame da decisão proferida dentro dos mesmos pressupostos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento em que a proferiu.
Sendo os recursos meios de impugnação e de correcção de decisões judiciais e não meio de obter decisões novas, não pode o tribunal de recurso ser chamado a pronunciar-se sobre questões não suscitadas ao tribunal recorrido
Constitui jurisprudência uniforme a de que os recursos se destinam a reexaminar decisões proferidas por jurisdição inferior e não a obter decisões sobre questões novas, não colocadas perante aquelas jurisdições.
O Tribunal Superior, visando apenas a reapreciação de questões colocadas anteriormente e não de outras novas, não pode conhecer de argumentos ou fundamentos que não foram presentes ao tribunal de que se recorre - acórdãos do STJ de 27-07-1965, BMJ 149, 297; de 26-03-1985, BMJ 345, 362; de 02-12-1998, BMJ 482, 150; de 12-07-1989, BMJ 389, 510; de 09-03-1994, processo 43402; de 01-03-2000, processo 43/00, SASTJ, nº 39, 55; de 05-04-2000, processo 160/00; de 06-06-2001, processo 1874/02-5ª (não pode o STJ conhecer em recurso trazido da Relação de questões não colocadas perante este Tribunal Superior, mesmo que resolvidas na decisão da 1ª instância); de 28-06-2001, processo 1293/01-5ª; de 26-09-2001, processo 1287/01-3ª; de 16-01-2002, processo3649/01-3ª; de 30-10-2003, processo 3281/03-5ª (os recursos, como remédios jurídicos que são, não se destinam a obter decisões ex novo sobre questões não colocadas ao tribunal a quo, mas sim a obter o reexame das decisões tomadas sobre pontos questionados, procurando obter o cumprimento da lei), de 22-10-2003, processo 2446/03-3ª, SASTJ, nº 74, pág. 147; de 27-05-2004, CJSTJ 2004, tomo 2, 209; de 20-07-2006, processo 2316/06-3ª; de 02-05-2007, processo 1238/07-3ª; de 10-10-2007, processo 3634/07-3ª.
Pese embora estarmos perante uma efectiva questão nova, não haverá, porém, impedimento a que se aborde a pretensão colocada, pois o que está em causa é enquadramento jurídico criminal, cabendo indagar da justeza da subsunção feita.
Este Supremo Tribunal não está impedido de indagar, por iniciativa própria, da correcção da subsunção jurídica feita no acórdão recorrido, como tem sido entendido por este Tribunal em vários arestos, invocando-se o Acórdão 4/95, de 07-06-1995, in DR, I Série, de 06-07-1995, e BMJ 448, 107, que então decidiu: “O Tribunal Superior pode, em recurso, alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal efectuada pelo tribunal recorrido, mesmo para crime mais grave, sem prejuízo, porém, da proibição da reformatio in pejus”.
Mesmo quando o recorrente não ponha operativamente em causa a incriminação definida pelas instâncias, não pode nem deve o STJ - enquanto tribunal de revista e órgão por excelência e natureza, mentor de direito - dispensar-se de reexaminar a correcção das subsunções.
Como se diz no acórdão de 15-02-2007, processo 15/07-5ª: “Constitui, pois, núcleo essencial da função de julgar, o enquadramento jurídico dos factos apurados, a determinação do direito, pelo que não está limitada por errado enquadramento que haja sido feito pelos interessados ou pelas partes”- cfr. acórdãos de 04-12-1997, CJSTJ 1997, tomo 3, 246; de 08-02-2001, processo 2745/00-5ª, SASTJ, nº 48, 62; de 04-10-2001, CJSTJ 2001, tomo 3, 178; de 13-12-2001, processo 3745/01-5ª; de 17-01-2002, CJSTJ 2002, tomo 1, 183; de 20-03-2003, processo 504/03-5ª; de 05-02-2004, CJSTJ2 004, tomo 1, 195; de 04-03-2004, processo 3293/03-5ª; de 04-12-2004, processo 3293/03-5ª; de 12-07-2006, CJSTJ 2006, tomo 2, 239; de 24-01-2007, processo 3647/06-3ª; de 23-01-2008, processo 4560/07-3ª e de 02-04-2008, processo 4197/07-3ª.

Podendo/devendo este Tribunal reexaminar a correcção da qualificação da conduta do recorrente, passa-se a efectuar a análise correspondente.
O arguido foi condenado pela prática, em autoria material, de um crime de incêndio, explosões e outras condutas especialmente perigosas, p. p. pelo artigo 272º, nº 1, alínea a), do Código Penal.
Estabelece tal preceito na redacção conferida pela terceira alteração ao Código Penal operada pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15-03:
1. Quem:
a) Provocar incêndio de relevo, nomeadamente pondo fogo a edifício ou construção, a meio de transporte, a floresta, mata, arvoredo ou seara
(…) [b), c), d), e), f)]
e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos.
2. Se o perigo referido no número anterior for criado por negligência, o agente é punido com pena de prisão de um a oito anos.
3. Se a conduta referida no nº 1 for praticada por negligência, o agente é punido com pena de prisão até 5 anos.
A nova redacção conferida à alínea a) pela Lei nº 59/2007, de 04 de Setembro, «Provocar incêndio de relevo, nomeadamente pondo fogo a edifício, a construção ou meio de transporte» não altera os dados do problema.
Este preceito “sucede” ao artigo 253º do Código Penal na versão originária de 1982, lendo-se no ponto 23 do preâmbulo do Decreto-Lei nº 400/82, de 23-09, que o novo Código acolheu duas grandes tendências do moderno pensamento penal, sendo uma num forte sentido da descriminalização e outra uma vocação para a neo-criminalização, sendo esta quase exclusivamente restrita aos crimes de perigo comum.
No ponto 31, a justificar a inserção do capítulo III do Título II, dedicado aos crimes de perigo comum, assinala-se que «O ponto crucial destes crimes (…) reside no facto de que condutas cujo desvalor é de pequena monta se repercutem amiúde num desvalor de resultado de efeitos não poucas vezes catastróficos. Clarifique-se que o que neste capítulo está primacialmente em causa não é o dano, mas sim o perigo. A lei penal, relativamente a certas condutas que envolvem grandes riscos, basta-se com a produção do perigo (concreto ou abstracto) para que dessa forma o tipo legal esteja preenchido. O dano que se possa vir a desencadear não tem interesse dogmático imediato. Pune-se logo o perigo, porque tais condutas são de tal modo reprováveis que merecem imediatamente censura ético - social. Adiante-se que devido à natureza dos efeitos altamente danosos que estas condutas ilícitas podem desencadear, o legislador penal não pode esperar que o dano se produza para que o tipo legal de crime se preencha. Ele tem de fazer recuar a protecção para momentos anteriores, isto é, para o momento em que o perigo se manifesta».
Lopes Rocha, in Jornadas de Direito Criminal, A Parte Especial do Novo Código Penal, p. 370/1, pondera que o recuo da protecção penal para momentos anteriores, ou seja, quando o perigo se manifesta, atira para plano secundário a ponderação do dano, nessa fase dificilmente comensurável, por aleatório.
E mais adiante «A complexidade das situações possíveis levou o legislador a encarar diferentes critérios punitivos, prevendo, sucessivamente, a hipótese de conduta intencional com perigo também intencional, a imputação do perigo a título de negligência no caso de o facto ser intencional e a imputação do facto a título de negligência sem que se possa falar em perigo intencional. Daí a escalada degressiva da punição».
Os crimes de perigo caracterizam-se pela não exigência típica de efectiva lesão do bem jurídico tutelado, razão pela qual a consumação se basta com o risco (efectivo ou presumido) de lesão do bem jurídico, risco que se consubstancia numa situação de perigo, a qual só por si é objecto de tutela.
O crime de incêndio é um crime de perigo comum; de perigo, porque não existe ainda qualquer lesão efectiva para a vida, a integridade física ou para bens patrimoniais de grande valor; e de perigo comum, porque é susceptível de causar um dano incontrolável sobre bens juridicamente tutelados de natureza diversa.
Neste crime estão em causa condutas cujo desvalor de acção é de pequena monta e se repercutem, amiúde, num desvalor de resultado de efeitos não poucas vezes catastróficos - acórdão do STJ de 04-06-1992, processo 42673.
É crime de perigo concreto, como se disse na Comissão Revisora; pune-se não a sua violação, mas sim o simples por em perigo dos valores protegidos pela norma.
O crime em referência reveste 3 modalidades, a saber:
No nº 1 - Crime voluntário;
No nº 2 – Crime doloso, com criação de perigo por negligência;
No nº 3 - Crime negligente - incêndio causado por negligência (naturalmente incompatível com o perigo intencional).

Como se diz no acórdão do STJ de 29-11-1989, BMJ 391, 280, a propósito do antecedente artigo 253º, do Código Penal de 1982, nestas três modalidades o incêndio é sempre um crime de perigo, aí se estabelecendo a seguinte síntese:
No nº 1 – Contem-se o tipo fundamental - Incêndio intencional com perigo também intencional - Acção dolosa e criação dolosa de perigo - O perigo foi criado dolosamente.
No nº 2 – Acção dolosa e criação negligente de perigo - Incêndio intencional com perigo causado/provocado por negligência – O perigo é provocado por negligência, apesar de o incêndio ter sido intencional.
Em ambos os casos o incêndio foi provocado com dolo, isto é, provocado intencionalmente.
No nº 3 – Acção negligente – Incêndio causado por negligência.
No acórdão do STJ, de 02-10-1991, no processo 42020, enunciam-se como pressupostos do crime, então p. p. no artigo 253º, nº 1, do Código Penal de 1982:
a) que o agente provoque o incêndio e crie um perigo para a vida ou integridade física de outrem ou para bens patrimoniais de grande valor;
b) a intenção de provocar o incêndio e a de criar um perigo para a vida ou integridade física ou para bens patrimoniais de grande valor de outra pessoa.
Segundo o acórdão de 04-03-99, CJSTJ 1999, tomo 1, 235, a lei exige que o agente provoque incêndio, criando um perigo para a vida, ou integridade física ou para bens patrimoniais de grande valor.
No Comentário Conimbricense ao Código Penal, Parte Especial, tomo II, expende Faria Costa, a págs. 877, a propósito do nº 2, que é necessário que o agente esteja convicto de que não criará nenhum resultado de perigo-violação, que esteja convicto de que não criará perigo para a vida de ninguém, de que não porá em risco a integridade física de quem quer que fosse e de que, do mesmo modo, não arriscará bens patrimoniais alheios. Sucede que esta última convicção se terá de basear em juízos pouco prudentes, reveladores, portanto, de negligência. «Vale por dizer: o resultado de perigo-violação foi representado e querido de maneira negligente».

Versando o caso concreto.

Face ao que ficou provado no ponto 8 dos factos dados por provados, dúvidas não se levantam a que o caso cabe de pleno no nº 1, alínea a), do artigo 272º.
O incêndio foi voluntariamente provocado, agindo o arguido movido por propósito de vingança, tendo consciência do perigo que provocava e dele resultou destruição de bens pertença de Eduardo Pinto, mas o que sobreleva, para além do dano concreto verificado, é o perigo criado, de forma intencional, quer para a vida e integridade física do irmão do Eduardo, invisual, que se encontrava no barraco onde vive com aquele, bem como para as barracas, quer do Eduardo, quer dos familiares que é anexa, onde igualmente viviam a irmã daquele, o cunhado e um sobrinho, só não tendo efeitos maiores face à intervenção dos bombeiros. Mesmo que a questão se colocasse relativamente apenas às duas barracas, há que considerar que eram a habitação dessas pessoas, assumindo para elas um óbvio elevado valor, pois são pessoas pobres, sendo essa “a sua casa”.

IV – Da aplicabilidade do Decreto-Lei nº 401/82


Na conclusão II, alíneas c), d) e e) o recorrente pede a atenuação especial, invocando para tanto a sua idade, face à possibilidade de aplicação do regime do Decreto-Lei nº 401/82, de 23-09.
O ora recorrente nasceu em 9 de Fevereiro de 1983, pelo que no dia em que os factos foram cometidos tinha 19 anos de idade, feitos recentemente, há pouco mais de um mês.
De acordo com o artigo 9º do Código Penal aos maiores de 16 anos e menores de 21 anos são aplicáveis normas fixadas em legislação especial.
Estabelece o artigo 4º do Decreto-Lei citado que, se for aplicável pena de prisão, deve o juiz atenuar especialmente a pena nos termos dos artigos 73º e 74º do Código Penal (artigos 72º e 73º após a versão de 1995), quando tiver sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado.
Refere-se no preâmbulo daquele diploma legal - nº 4 - que “trata-se, em suma, de instituir um direito mais reeducador do que sancionador, sem esquecer que a reinserção social, para ser conseguida, não poderá descurar os interesses fundamentais da comunidade, e de exigir, sempre que a pena prevista seja a de prisão, que esta possa ser especialmente atenuada, nos termos gerais, se para tanto concorrerem sérias razões no sentido de que, assim, se facilitará aquela reinserção”.
Como se assinala no nº 7 do mesmo exórdio: “As medidas propostas não afastam a aplicação - como ultima ratio - da pena de prisão aos imputáveis maiores de 16 anos, quando isso se torne necessário, para uma adequada e firme defesa da sociedade e prevenção da criminalidade, e esse será o caso de a pena aplicada ser a de prisão superior a dois anos”.

O acórdão proferido na primeira instância discorreu sobre essa possibilidade do modo seguinte: «De salientar que o Tribunal Colectivo entendeu não ser de aplicar ao arguido o disposto no artº 4º, do D. L. nº 401/82, de 23.09, porquanto a conduta do arguido foi de uma gravidade muito grande, veja-se o tipo de crime cometido, a forma de actuação, as consequências do crime, bem como a falta de arrependimento revelada pelo arguido, ou seja, pese se ter atendido à idade no âmbito de atenuação geral, no entanto, entende que não pode beneficiar da mesma a título de atenuação especial».
Na Relação o acórdão recorrido tomou posição sobre a questão nos seguintes termos: «À data da prática dos factos, o arguido tinha 19 anos, pelo que se impunha, tal como aconteceu no acórdão recorrido, apurar se se justifica a atenuação especial da pena nos termos estabelecidos no art. 4.° do D/L n.°401/82, de 23/09. (…) No caso, o tribunal recorrido decidiu-se pela não atenuação especial da pena, opção que fundamentou nos termos supra transcritos e com a qual estamos de acordo. Isto porque, para além de todas as circunstâncias já enunciadas sobre a medida da pena e que por isso nos dispensamos de aqui reproduzir, o arguido não assumiu a prática dos factos, não manifestando assim qualquer arrependimento, sinal inequívoco de que não interiorizou o desvalor da sua conduta, revelando uma impreparação notória para o convívio em liberdade com os seus semelhantes. Não se mostram assim fundadas expectativas de que da atenuação especial da pena resultem reais vantagens para a reinserção social do arguido».

O instituto previsto no regime penal especial para jovens adultos corresponde a um dos casos expressamente previstos na lei a que alude o nº 1 do artigo 72º do Código Penal, não constituindo uma mera faculdade do juiz, mas antes um poder dever vinculado que o juiz deve (tem de) usar sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos, sendo a aplicação em tais circunstâncias, obrigatória e oficiosa, ou pelo menos, não dispensando equacionar a sua pertinência ou inconveniência – cfr. a propósito os acórdãos do STJ, de 17-09-97, CJSTJ 1997, tomo 3, 173; de 15-10-97, CJSTJ 1997, tomo 3, 192; de 28-10-1998, BMJ 480, 83 (obrigatório é o dever de fundamentação relativamente à sua não aplicação); de 07-12-99, CJSTJ 1999, tomo 3, 234 e BMJ 492, 168; de 02-03-2000, processo 1129/99-5ª SASTJ, nº 39, 63 e BMJ 495, 100; de 29-04-04, CJSTJ 2004, tomo 2, 177 (182); de 22-09-04 e de 27-10-04, CJSTJ 2004, tomo 3, 159 e 212; de 20-12-2006, processo 3169/06-3ª; de 28-06-2007, processo 1906/07-3ª.
Sobre a oficiosidade do conhecimento da lacuna (não apreciação da possibilidade de atenuação especial à luz do dito DL) ver os acórdãos de 18-06-97 e de 15-10-97, CJSTJ1997, tomos 2 e 3, págs. 242 e 191.
Situando a abordagem no plano geral dos artigos 72º e 73º do Código Penal, inseridos é certo em perspectiva diversa, mas a eles podendo socorrermo-nos como apoio subsidiário, pois que está-se perante uma situação de atenuação especial fora da cláusula geral do artigo 72º do C. Penal - cfr. acórdão de 12-07-2000, BMJ 499, 199.
Estabelece o nº 1 do artigo 72º do Código Penal na redacção dada ao diploma pela 3ª alteração – Decreto-Lei nº 48/95, de 15/03 – e mantido inalterado pela 23ª alteração, introduzida pela Lei nº 59/07, de 4 de Setembro, que o tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.
O nº 2 do referido preceito elenca algumas das circunstâncias que podem ser consideradas para o efeito consignado, a saber:
a) Ter o agente actuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência;
b) Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida;
c) Ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados;
d) Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta.
Em anotação a este artigo Leal - Henriques e Simas Santos, Código Penal Anotado, I, consideram: “Seguiu-se neste art. 72º o caminho de proceder a uma enumeração exemplificativa das circunstâncias atenuantes de especial valor, para se darem ao juiz critérios mais precisos de avaliação do que aqueles que seriam dados através de uma cláusula geral de avaliação”.
Pressuposto material da atenuação da pena, autónomo ou integrado pela intervenção valorativa das situações exemplificativamente enunciadas, é a acentuada diminuição da culpa ou das exigências de prevenção.
Esclarece Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, p. 302/307, a propósito do paralelismo entre o sistema (ou o «modelo») da atenuação especial do artigo 72º e o sistema da determinação normal da pena previsto no artigo 71º, que tal paralelismo é só aparente, pois enquanto no procedimento normal de determinação da pena são princípios regulativos os da culpa e da prevenção, na atenuação especial tudo se passa ao nível de uma acentuada diminuição da ilicitude ou da culpa, e, portanto em último termo, ao nível do relevo da culpa, pelo que seriam irrelevantes as exigências da prevenção, o que não ocorre face a alguns dos exemplos ilustrativos da situação especialmente atenuante contida na cláusula geral do nº 1 do artigo 72º, ou seja, das situações aí descritas só significativas sob a perspectiva da necessidade da pena (e, por consequência, das exigências da prevenção), concluindo no § 451: princípio regulativo da aplicação do regime da atenuação especial é a diminuição acentuada não apenas da ilicitude do facto ou da culpa do agente, mas também da necessidade da pena e, portanto, das exigências da prevenção.
A atenuação especial resultante da acentuada diminuição da culpa ou das exigências da prevenção corresponde a uma válvula de segurança do sistema, que só pode ter lugar em casos extraordinários ou excepcionais, em que a imagem global do facto resultante da actuação da (s) atenuante (s) se apresenta com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo.

As diferenças de campo de aplicação nas duas previsões esbateram-se a partir de 01-10-1995, pois que dantes, enquanto à faculdade ou possibilidade de atenuação à luz do artigo 73º do C. Penal de 1982 - “o tribunal pode atenuar” - correspondia uma injunção nos termos do artigo 4º do DL 401/82 - “o juiz deve” -, actualmente, nos termos do artigo 72º do Código Penal, “o tribunal atenua”.
A diferença substancial entre os dois regimes será marcada pelo facto de, como resulta do artigo 4º, a finalidade ressocializadora se sobrepor aos demais fins das penas.
Todos estão de acordo em que a atenuação especial ao abrigo do regime especial dos jovens adultos não opera de forma automática, sendo a concessão vinculada, de aplicar sempre que procedam sérias razões para crer que da atenuação resultam vantagens para a reinserção social do jovem condenado, havendo a obrigação de equacionar a pertinência ou inconveniência da sua aplicação, justificando a opção, ainda que se considere inaplicável o regime – acórdãos do STJ de 15-01-1997, CJSTJ 1997, tomo 1, 182; de 12-01-2000, CJSTJ 2000, tomo 1, 163; de 14-02-2002, CJSTJ 2002, tomo 1, 213.
Diferenças já existem quanto à consideração, ou não, na análise e ponderação a realizar, da natureza do crime e seu modo de execução.
No sentido da possibilidade e legitimidade dessa consideração, tendo por base o que consta do ponto nº 7 do preâmbulo do Decreto-Lei nº 401/82, podem ver-se os acórdãos de 20-12-1989, BMJ 392, 263; de 27-11-03, processo 3393/03-5ª; de 03-04-2003, CJSTJ 2003, tomo 2, 157; de 18-05-06, CJSTJ 2006, tomo 2, 180; de 31-10-2007, processo 3484/07-3ª; de 09-04-2008, processo 698/08-3ª; de 21-05-2008, processo 998/08-3ª, aí se defendendo que no juízo de avaliação da vantagem da medida deve ponderar-se, em cada caso concreto, a personalidade do jovem, a sua conduta anterior e posterior ao crime, a natureza do crime e seu modo de execução bem como os seus motivos determinantes, a gravidade do crime cometido, aferida pela medida da pena aplicável, procedendo-se a uma apreciação conjunta do circunstancialismo factual da prática do crime e de tudo aquilo que o tribunal tenha podido apurar acerca das condições pessoais e personalidade do jovem.
Noutra linha jurisprudencial entende-se que no juízo de prognose positiva imposto ao aplicar o artigo 4º há que considerar a globalidade da actuação e da situação pessoal e social do jovem, o que implica o conhecimento da sua personalidade, das suas condições pessoais, da sua conduta anterior e posterior ao crime, não se podendo atender de forma exclusiva (ou desproporcionada) à gravidade da ilicitude ou da culpa do arguido – neste sentido os acórdãos de 01-03-2000, processo 17/00-3ª, SASTJ nº 39, 53 e BMJ 495, 59; de 9-05-2002, CJSTJ 2002, tomo 2, 193; de 29-04-2004 CJSTJ 2004, tomo 2, 177; de 06-09-2006, CJSTJ 2006, tomo 3, 181, em que se pondera “a gravidade do crime praticado e o grau de ilicitude do facto (…) não podem aqui ser considerados senão para efeitos da medida concreta da pena , depois de achada a moldura aplicável ao caso”.

Noutra perspectiva, em alguma jurisprudência, há uma chamada de atenção para a imposição de um limite às considerações de reinserção social, invocando-se prementes razões de defesa da ordem jurídica.
Assim, no acórdão de 17-09-97, CJSTJ 1997, tomo 3, 173, após se afirmar que o DL 401/82 tem subjacente uma preocupação de instituição de um direito mais reeducador que sancionador com adopção preferencial de medidas correctivas desprovidas de efeitos estigmatizantes, prevendo-se a atenuação especial da pena de prisão e que tem como nota dominante a predominância de razões de prevenção especial de socialização, adverte que não se pode prescindir do limite da pena necessária à garantia e protecção de bens jurídicos, e por essa via, à da validade da norma que os prevê e tutela.
No mesmo sentido, o acórdão de 09-05-02, CJSTJ 2002, tomo 2, 193, defendendo que, mesmo em caso de prognose favorável, há que erigir como última barreira a defesa da ordem jurídica que em caso algum pode ser ultrapassada e o acórdão de 21-10-04, CJSTJ 2004, tomo 3, 192, em que se assinala que a ressocialização, sendo sem dúvida um dos fins associados à aplicação de qualquer pena, só funciona, «na medida do possível», isto é, depois de assegurada a necessária protecção dos bens jurídicos, tal como emerge do disposto no artigo 40º do Código Penal, limite que não pode ser ultrapassado; neste sentido ver também os acórdãos de 28-10-1998, BMJ 480, 83; de 09-12-1999, BMJ 492,193; de 22-09-04, CJSTJ 2004, tomo 3, 159.
Em sentido diverso, os acórdãos de 24-10-2007 e de 14-11-2007, nos processos 3263/07 e 3859/07, ambos da 3ª secção, em que se considera que relativamente aos jovens condenados, a finalidade ressocializadora se sobrepõe aos demais fins das penas, não podendo, portanto, recusar-se a atenuação especial com fundamento na prevenção geral ou na retribuição; os interesses da prevenção geral deverão ser secundarizados e mesmo postergados se for de concluir que a atenuação especial favorece a ressocialização do arguido.

Nesta apreciação há que ter em consideração as circunstâncias do caso concreto, começando por assinalar-se que as razões por que se determinou a conduta do recorrente têm a ver com um desentendimento com Eduardo Rocha Pinto emergente de questões relacionadas com tráfico de estupefacientes, tendo desde logo formulado a ameaça de que incendiaria o barraco onde aquele vivia, tudo como resulta do ponto 1 dos factos provados, tendo tomado a resolução de provocar incêndio, por vingança, embora não se explique a concreta génese de tal motivação (ponto 2 dos factos provados), desconhecendo-se à luz dos factos provados se o recorrente teria sido vítima de banhada, ou se o BB se constituíra em devedor inadimplente face a fornecimentos de droga feitos por aquele.
Apenas em sede de motivação e de fundamentação de direito, ao abordar a questão da medida da pena, o colectivo da 1ª instância refere que estaria em causa uma dívida do BB, que será toxicodependente, para com o recorrente, por não lhe ter entregue dinheiro relativo a droga que este lhe dera para vender.
Ademais, actuou o recorrente a coberto da noite, fazendo-se deslocar até ao local de carro, de forma a facilitar a debandada e fazendo-se acompanhar por outros dois indivíduos.
A nota marcante é dada pela sua personalidade, face ao que ficou provado no ponto 12 dos factos provados: o arguido não manifestou arrependimento, tendo usado em audiência da faculdade legal de não prestar declarações sobre os factos.
Apreciando a conduta anterior do recorrente vemos que, atendendo ao que consta dos factos dados por provados, por factos praticados em 3 de Julho de 2001, então com 18 anos, veio a ser condenado por detenção ilegal de arma e posteriormente aos factos por que ora responde, por condução intitulada foi condenado por duas vezes.
Acontece que do certificado de registo criminal junto aos autos, que é documento autêntico, constituindo prova tarifada/legal/vinculada, e fazendo prova plena dos factos nele atestados – artigos 362º, 363º, nº 2, 369º, 371º, nº 1 e 372º do Código Civil e artigo 169º do Código de Processo Penal, dando o valor probatório dos documentos autênticos por idêntico ao do direito probatório material condensado no Código Civil – não se estando no domínio do princípio da livre apreciação da prova, ou seja, da apreciação feita segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, e a que as instâncias não conferiram o devido valor, certamente por uma ligeira leitura do mesmo, incorrendo em erro de julgamento, constam como certificadas outras condenações, tendo o arguido por factos de 02-09-2001, sido condenado em 23-02-2005, por detenção ilegal de arma (processo comum colectivo 800/01.4TAMTS do 2º Juízo Criminal de Matosinhos) – fls. 223/4 - e por factos ocorridos em 31-05-2002, por detenção de arma proibida e condução ilegal (processo comum singular 750/02.7PGMTS, do 3º Juízo criminal da Matosinhos) foi condenado em sentença de 11-06-2003, como das demais vezes, em penas de multa – fls. 221/2 - que foram pagas.
E no que respeita a condições pessoais, apenas se sabe que é casado segundo o ritual da raça cigana, sendo pai de 3 filhos, então com 7, 4 e 2 anos de idade, vive com a mãe da mulher e tem o 6º ano de escolaridade, desconhecendo-se se trabalha com regularidade e se tem hábitos de trabalho (neste aspecto a factualidade é omissa, apenas constando do relatório que é vendedor ambulante).
Não se apurou qualquer atenuante, para além da idade, restando apenas o factor essencial da idade, pressuposto formal da aplicabilidade do regime especial, mas que de per se não chega, não decorrendo daí automaticamente a decretação da atenuação, não constituindo isoladamente uma séria razão para aplicar a medida com o alcance de que a redução da gravidade da reacção punitiva favorecerá a ressocialização do arguido.
A idade será de considerar na determinação da pena como atenuante geral.
O quadro global da situação do arguido será merecedor de tratamento penal especializado?
O caso concreto não abona qualquer facto que possa suportar um juízo de prognose favorável à reinserção social do jovem recorrente, de modo a concluir a que se esteja face a razões sérias que levem a crer que da aplicação da moldura atenuada e mais benevolente resultante da atenuação possa resultar vantagem para a reinserção; os factos colhidos não tornam viável a afirmação de tal conclusão, pois não ficaram provados factos demonstrativos da interiorização do desvalor da conduta, não sendo possível formular um juízo ou ter uma expectativa optimista sobre a personalidade do recorrente.
Concluindo: no caso não se postulam sérias razões para acreditar que da atenuação especial resultem vantagens para a reinserção social do recorrente.

Para além desta vertente invocou ainda o recorrente atenuação especial nos termos gerais do artigo 72º do C. Penal, alegando que “o período temporal decorrido é deveras significativo” – referida conclusão II, alínea c), in fine.
No caso concreto não há qualquer hipótese de aplicação das circunstâncias previstas nas alíneas a) e b) do nº 2 daquele preceito e quanto à c) não houve qualquer arrependimento, nem tão pouco a reparação na medida do que era possível, ou seja, dos danos materiais resultantes do incêndio, em que se consumiu o recheio da habitação, que a ter-se efectivado, constituiria certamente sintoma de relevo de assunção de responsabilidades e interiorização do desvalor do acto cometido.
No que respeita à alínea d), não é suficiente o decurso de muito tempo sobre a prática do crime, sendo necessário que o agente mantenha boa conduta.
Ora, tendo os factos ocorrido há mais de 6 anos, verifica-se que o recorrente entretanto cometeu crimes em 2 e 31 de Maio de 2002 e em 6 de Janeiro de 2003, falecendo este último requisito.
Nestes termos, entende-se não ser caso de atenuar especialmente a pena, nos termos do artigo 4º do DL 401/82, nem à luz das circunstâncias do nº 2 e da cláusula geral do nº 1 do artigo 72º do Código Penal, improcedendo esta pretensão do recorrente.

V – Medida da pena

Nas conclusões III e IV defende o recorrente ser desproporcional e desadequada a pena aplicada, devendo ser reduzida e ponderada a suspensão da sua execução, ainda que sujeita a deveres de conduta, nomeadamente a indemnizar o lesado, reeditando o que alegara no 1º recurso.
Como é jurisprudência assente, observados os critérios legais de dosimetria concreta da pena, nomeadamente os do artigo 71º do Código Penal, há uma margem de actuação do juiz dificilmente sindicável, se não mesmo impossível de sindicar, só sendo admissível correcção perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada – cfr. acórdão deste STJ de 04-03-2004, CJSTJ 2004, tomo 1, 220.
A penalidade aplicável é a de prisão de 3 a 10 anos.
Na 1ª instância ponderou-se o seguinte: «Assim, ponderando todas as circunstâncias, nomeadamente a actuação dolosa directa, o grau da ilicitude, os danos foram de, pelo menos, €2000.00, atendendo-se ainda ao facto do ofendido ser uma pessoa de muito fracos recursos económicos, tendo ficado sem nenhum dos seus bens, entre eles o local onde vivia, o modus operandi do arguido foi deveras frio e indiferente, veja -se que foi de propósito ao local, de noite, com bidões de gasolina, acompanhado de terceiros, tanto mais que entrou na barraca onde se encontrava um invisual no seu interior, não se importando com a sorte das pessoas e dos bens que se encontrassem na barraca, o à vontade de actuação, o motivo fútil da actuação, vingança por o ofendido não lhe ter entregue o dinheiro relativo a droga entregue para vender, quer anterior, quer posteriormente aos factos o arguido, bem como a sua “família” andou a ameaçar o ofendido e a família para não deporem, o alarme social que provoca tal crime, a total falta de arrependimento denotada pelo arguido, a favor do arguido apenas o facto de na altura dos factos ainda só ter uma condenação por condução ilegal, tendo já sofrido outras condenações após os mesmos, a favor ainda o facto de na altura ter apenas 19 anos de idade, casado, tem 3 filhos».
No acórdão da Relação, que confirmou a pena aplicada, discorreu-se da seguinte forma: «Tendo em conta o modo de execução do crime, pode-se considerar como muito elevado o grau de ilicitude e de culpa do comportamento do arguido, sendo particularmente intenso o dolo, directo, que o animou. Com efeito, como se salientou no acórdão recorrido, ateou o fogo a uma barraca que servia de habitação e no momento em que se encontravam pessoas no seu interior, nomeadamente um invisual, sem curar de saber da sorte das pessoas que se encontravam no interior da mesma.
São significativas as exigências de prevenção especial, uma vez que, quer a forma como o arguido praticou os factos em causa e os motivos que o determinaram, quer as condenações anterior e posteriores à prática do crime são reveladoras de uma personalidade mal formada e avessa às exigências da ordem jurídica.
É certo que as outras condenações sofridas pelo arguido o foram por crimes de pequena gravidade, mas nem por isso mesmo podem ser desconsideradas na determinação da medida da pena nos presentes autos, pois são reveladoras da sua impreparação para levar uma vida em conformidade com os ditames da lei».
Atendendo aos elementos já referenciados, aos motivos que determinaram a actuação do recorrente, a não interiorização do desvalor da conduta e das consequências maléficas do acto cometido, a não reparação, obviamente possível, dos danos causados na habitação de BB e irmão invisual, bem como razões de prevenção geral, pois o incêndio é dos crimes que causam mais profundo alarme, repulsa e indignação na comunidade, não há razões para alterar a medida da pena, pois que não se mostram violadas regras de experiência nem se mostra desproporcionada a medida aplicada.
Mas atendendo à idade do arguido à data dos factos e à circunstância de os factos terem ocorrido há mais de 6 anos, entende-se ser de reduzir a pena aplicada em
Face à nova medida e à nova redacção do artigo 50º do C Penal poderia colocar-se a questão de saber se seria de suspender a execução da pena ou face ao que já se expôs a propósito do regime especial não é possível formular juízo de prognose favorável nos próximos 4 anos e
Pelo exposto, acordam neste Supremo Tribunal de Justiça em rejeitar o recurso, por manifesta improcedência, no segmento em que foi invocado erro notório na apreciação da prova, e no mais, negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, nos termos dos artigos 513º, nº 1 e 514º, nº 1, do CPP, fixando-se a taxa de justiça, nos termos dos artigos 74º, 87º, nº 1, alínea a) e 89º do CCJ, em 7 UC.
Nos termos do artigo 420º, nº 3, do CPP, pagará ainda o recorrente a importância de 4 UC.
Honorários de acordo com a Tabela constante da Portaria nº 1386/04, de 10 de Novembro - Anexo 3.4.1.


Lisboa, 12 de Junho de 2008

Raúl Borges (Relator)
Fernando Fróis
Santos Monteiro
Santos Cabral