Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1238/20.OT8PTG.E1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: ROSA TCHING
Descritores: ARRENDAMENTO RURAL
COMPROPRIEDADE
DIVISÃO DE COISA COMUM
EXTINÇÃO DO CONTRATO
OPOSIÇÃO À RENOVAÇÃO
DENÚNCIA
INCONSTITUCIONALIDADE
PROPRIEDADE PRIVADA
ATO INÚTIL
SANAÇÃO OFICIOSA DE ERRO NO PROCEDIMENTO
RECURSO SUBORDINADO
AMPLIAÇÃO DO ÂMBITO DO RECURSO
RECURSO INDEPENDENTE
CONVOLAÇÃO
CORRECÇÃO OFICIOSA
Data do Acordão: 02/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Nas situações em que foram deduzidos um pedido principal e um pedido subsidiário, a parte vencedora da ação se pretender sindicar a decisão do pedido principal, que foi julgado improcedente, deverá fazê-lo através da interposição de um recurso independente ou subordinado, nos termos do artigo 633º, do Código de Processo Civil e não mediante uma ampliação do âmbito do recurso, nos termos do artigo 636º, do mesmo código.

II. O artigo 193º, nº 3, do Código de Processo Civil, tem por objeto a correção do erro cometido pela parte quanto ao meio processual utilizado para a prática de determinado ato, caso em que se impõe ao tribunal a convolação oficiosa do ato indevidamente qualificado pela parte para o meio processual de que deveria ter-se socorrido, desde que o seu conteúdo seja adequável com este último.

III. Tendo a autora, por erro de qualificação, requerido nas alegações da sua resposta a ampliação do âmbito do recurso quanto ao pedido principal de resolução do contrato de arrendamento com fundamento na falta de pagamento de rendas, cuja decisão lhe foi desfavorável, mas resultando claro do teor dessas alegações que a mesma pretendia a reapreciação daquele pedido, recai sobre o tribunal o dever de convolar, oficiosamente, a requerida ampliação do âmbito do recurso em recurso subordinado, a não ser que tal convolação se venha a traduzir na prática de um ato inútil.

IV. O contrato de arrendamento rural de prédio rústico pertença de dois comproprietários não é afetado pela extinção da compropriedade operada por via de ação de divisão de coisa comum.

V. É relativamente à totalidade do prédio objeto do contrato de arrendamento rural e não apenas a uma parte dele que se poderá fazer valer a oposição à renovação ou denúncia por iniciativa do locador, tal como resulta do estabelecido no artigo 19º, nº 2, do DL n.° 294/2009, de 13/10.

VI. É que se assim não fosse deixaríamos nas mãos do locador a possibilidade de reduzir unilateralmente o objeto do contrato de arrendamento rural, nomeadamente a área do prédio locado, o que, para além de frustrar o resultado prático que se pretendeu alcançar com a celebração do contrato de arrendamento, sempre redundaria na modificação unilateral do objeto do contrato, em violação do princípio da pontualidade inserto no artigo 406.° n.° 1 do Código Civil e numa extinção parcial do contrato através de oposição à renovação ou denúncia por iniciativa do locador, não consentida pelo  nº 2 do citado artigo 19º.

VII. A interpretação da norma deste artigo 19º, nº 2 no sentido de que o âmbito da cessação por oposição à renovação e por denúncia de uma das partes abrange obrigatoriamente todo o objeto do contrato, não podendo a oposição à renovação do contrato nem a denúncia ser invocadas de forma parcial, não interfere com o núcleo essencial do direito de propriedade dos senhorios que continuam a extrair do imóvel o proveito económico que corresponde a uma forma típica de exploração dos prédios rústicos, não constituindo, por isso, violação do princípio constitucional do direito à propriedade privada consagrado no artigo 62º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

2ª SECÇÃO CÍVEL




***


I. Relatório


1. AA demandou a ré, Sociedade Agrícola das Algueireiras e Anexos, SA, pedindo que esta seja condenada:

«a) A ver declarada a resolução do contrato de arrendamento rural (doc. n.° 1), quanto à área de 215,9950 ha pertencentes à A., com fundamento na falta de pagamento de parte da renda devida do 2.° semestre do ano de 2019 (3.000,00 Euros) e pela falta de pagamento da totalidade do valor da renda devida do ano de 2020 (Art° 17 n° l e 2 alínea a) do Dec-Lei 294/2009 de 13/10) com a consequente obrigação para a R. de entrega imediata à A. da área rústica com 215,9950 ha que a esta pertence, representada na planta junta como Doc. n.° 7;

b) A pagar à A. o valor das rendas não pagas, pela R., referentes dos anos de 2019 (parte) e 2020 (totalidade), cujo valor ascende à quantia de 13.000,00 Euros, acrescido de juros de mora à taxa legal, desde a citação até integral pagamento;

c) A pagar as custas e demais encargos legais com o presente pleito nos termos do Regulamento das Custas Processuais;

e subsidiariamente,

d) A ver denunciado o contrato de arrendamento rural (Doc. n.° 1) no que respeita à área rústica que pertence à A. com 215,9950 hectares a qual se localiza a parte poente da EN ... tal como melhor resulta da planta cadastral junta aos autos como Doc. n.° 7 e de folhas 18 e 26 do Relatório Pericial que consta da Certidão Judicial junta (Doc. n.° 9)

e) A pagar as custas e demais encargos legais com o presente pleito nos termos do Regulamento das Custas Processuais.»

Alegou, para tanto e em síntese, que ela e o seu irmão celebraram com a ré, em março de 2006 e pelo prazo de 7 anos, um contrato de arrendamento rural através do qual cederam àquela o prédio rústico denominado A..., com a área aproximada de 400 ha, de que ambos eram comproprietários, para exploração agrícola dessa área, onde se incluem instalações urbanas de apoio à exploração agrícola, mediante  renda  que vinha sendo paga em partes iguais a si e a seu irmão.

Por sentença judicial proferida em ação de divisão de coisa comum, transitada em julgado, foi adjudicada à autora a propriedade exclusiva da parte poente do prédio rústico arrendado, com a área de 215,9950 há, pelo que o referido contrato de arrendamento passou a vigorar entre ela e a ré apenas quanto à área que lhe coube em divisão.

E porque a ré deixou de pagar-lhe pontualmente as rendas devidas desde 31/09/2019, assiste-lhe o direito à resolução do contrato, assim como a ver reconhecida a denúncia, findo o prazo de renovação, à luz do NRAR aprovado pelo DL n.° 294/2009, de 13/10.


2. A ré contestou, excecionando a ilegitimidade da autora, por preterição de litisconsórcio necessário ativo, nos termos do disposto no art. 1024º, do C. Civil e a caducidade do direito de resolução, atenta a realização do depósito do montante das rendas em falta, acrescido da indemnização de 50%.

Mais invocou a inoponibilidade da sentença de divisão de coisa comum, sustentando ser abusivo o   exercício do direito de denúncia do contrato de arrendamento rural.

Concluiu pela improcedência da ação e, em sede de reconvenção, deduziu oposição à denúncia do contrato, invocando que o despejo coloca em risco sério a subsistência económica do projeto que vem sendo desenvolvido no prédio de 400 ha.


3. A autora respondeu, sustentando a improcedência das invocadas exceções e da oposição à denúncia.


4. Após a realização de audiência prévia, foi proferido despacho saneador-sentença que julgou improcedente a invocada exceção de legitimidade e:

a) Em consequência do pagamento superveniente efetuado pela Ré, declarou a impossibilidade superveniente da lide quanto ao pedido de resolução contratual, julgando extinta a instância nessa parte, nos termos do artigo 277.º, alínea e) do NCPC.

b) Em consequência do pagamento superveniente efetuado pela Ré, declarou a inutilidade superveniente da lide quanto ao pedido de pagamento das rendas vencidas, julgando extinta a instância nessa parte, nos termos do artigo 277.º, alínea e) do NCPC.

c) Julgou integralmente improcedente, por não provado, o pedido reconvencional deduzido nos autos pela Ré, dele absolvendo a A.

d) Julgou integralmente procedente, por provado, o pedido subsidiário deduzido nos autos pela A., e em consequência, condenou a Ré a ver cessado o contrato de arrendamento rural, por oposição à renovação por parte da senhoria, com efeitos reportados a 31 de Dezembro de 2021, no que respeita à área rústica que pertence à A., com 215,9950 hectares, a qual se localiza na parte poente da EN ....


5. Inconformada com esta decisão, dela apelou a ré para o Tribunal da Relação ... que, por acórdão proferido em 25 de novembro de 2021, julgou procedente o recurso, concluindo, ante o art. 1024º do C. Civil, pela ilegitimidade da autora, por preterição de litisconsórcio necessário ativo, mas ao abrigo do disposto no art. 278º, nº 3, do CPC, proferiu decisão de mérito e revogou a decisão recorrida na parte respeitante ao pedido de reconhecimento da denúncia do contrato de arrendamento relativamente à área que pertence à autora, dele absolvendo a ré e mantendo, no mais, a decisão do Tribunal de 1ª instância.


6. Inconformada com esta decisão, a autora dela interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem:

«1 - Os dois pedidos formulados pela A., ora recorrente, de resolução do contrato e, subsidiariamente, de denúncia do contrato para terminar no fim do prazo de renovação, em curso, não se confundem quanto aos seus fundamentos de facto ou de direito.

2 - Os dois pedidos foram devidamente autonomizados na sua sustentação, de facto e de direito, tendo sido objecto de apreciação totalmente separada na sentença proferida em 1ª instância pelo Tribunal da Comarca ....

3 - De acordo com os considerandos e apreciação que a A. escreveu, nesta parte do seu articulado de alegações, mais precisamente da análise dos factos provados (mora no pagamento das rendas) e direito que lhe deve ser aplicado (Artº 13 nº 3 e 17 nº 2 alínea a) do Dec. Lei 294/2009 de 13.10) poderá concluir-se que a A. reagiu ao recurso interposto pela Ré com a, simultânea, pretensão de discussão do julgado proferido pela 1ª instância, no que tange ao pedido principal de “resolução do contrato de arrendamento rural”.

4 - Os considerandos expendidos pela A. a folhas 1 (parte final), 2, 3, 4, 5 e 6, das suas alegações de resposta, permitem-nos concluir que a A., no plano técnico-jurídico, não se limitou a analisar e por em causa simples “fundamento” ou questão “lateral” da decisão proferida em 1ª instancia, antes, nesta parte da sua peça processual de recurso colocou em causa e em crise a decisão proferida pelo Tribunal da Comarca ..., em 1ª instância, quanto ao pedido principal da acção.

5 – A argumentação, terminologia e pretensão recorrente formulada pela A. traduz e representa a interposição de um autêntico “recurso subordinado”, embora sob a designação incorreta de “ampliação do âmbito do recurso”.

6 – Nos termos do Artº 5º nº 3 do C. Proc. Civil que “O juiz não está sujeito às alegações das partes não tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito”, pelo que este Tribunal Superior deve considerar e determinar que a invocada “ampliação da apreciação do recurso”, requerida pela A., nas suas alegações de resposta ao recurso interposto pela Ré para o Tribunal da Relação ..., corresponde e configura, de facto e de direito, um “recurso subordinado” (Artº 633 nº 2 do C. Proc. Civil) interposto pela A. quanto à decisão proferida pelo Tribunal da Comarca ..., em 1ª instância, na parte que julgou improcedente o pedido principal ali formulado pela A., de “resolução do contrato de arrendamento rural”;

7 – Entendendo este Tribunal Superior que, tal interpretação e faculdade do Tribunal de recurso seria/será correta, deverá proceder-se à apreciação e julgamento do “recurso subordinado interposto pela A., apesar de incorretamente designado como “ampliação da apreciação do recurso” (Artº 636 do C.P.C.) ou entendendo este Tribunal Superior que o mesmo deverá ser apreciado e julgado pelo Tribunal da Relação ..., remeter os autos para sua apreciação e julgamento no Tribunal da 2ª instância, com simultânea revogação pelo S.T.J., nesta parte, do Acórdão proferido pelo T.R. ....

8 - O Artigo 19, nº 2 do NRAR só pode ser interpretado no sentido que “a oposição à renovação ou a denúncia do contrato de arrendamento inclui obrigatoriamente todo o seu objecto”, enquanto se mantiverem os pressupostos e circunstancialismos da sua celebração, quer quanto ao seu objecto – área arrendada – quer quanto às partes nele intervenientes como senhorio(s) ou arrendatário(s).

9 - Quando, como na situação “sub judice”, ocorra alteração contratual lícita, quer quanto ao seu objecto quer quanto aos sujeitos nele intervenientes, o contrato terá necessariamente de se adaptar à nova realidade, sem prejuízo dos direitos e deveres que assistem a cada uma das partes na sua condição de senhorio ou arrendatário (Art. 42 nº 1 do NRAR e Artº 1057 do C. Civil).

10 - Sempre que ocorra modificação, subjectiva ou objectiva, do contrato de arrendamento ou transmissão do prédio arrendado deverão ser respeitados os compromissos assumidos pelas partes iniciais no que respeita aos direitos e obrigações que pela sua natureza devam manter-se e são transmissíveis (renda, data do seu vencimento, actualizações, benfeitorias, duração do prazo inicial e suas renovações, benfeitorias, etc), sempre, “sem prejuízo das regras do registo (Artº 1057 do C, Civil);

11 - A A. concretizou por forma lícita a divisão judicial do prédio arrendado, com recurso ao procedimento judicial de divisão de coisa comum, pondo termo à compropriedade do prédio arrendado que mantinha, ao tempo da celebração do contrato de arrendamento rural, com seu irmão BB, tendo elevado a registo predial (Doc. Nº 3 junto à p.i.) a aquisição a seu favor da parte do prédio arrendado (H...) com a área de 215,9950 horas que lhe foi adjudicada em propriedade na divisão de coisa comum (Artº 925 do C. Proc. Civil).

12 - De tal divisão judicial (Fracionamento), totalmente lícita e admitida consensualmente pela legislação civil e processual (Artº 1412 e 1413, ambos, do C. Civil e Artº 925 e seguintes, do C. Proc. Civil), resultou que o prédio arrendado à R. sociedade deixou de ser um único prédio, compropriedade dos dois senhorios iniciais, para se converter em duas unidades prediais rústicas separadas e independentes, uma delas, pertencente exclusivamente à A. com 215,9950 hectares de área e, outra, pertencente ao consorte BB com a área de 184,8350 ha.

13 - Os dois, novos e únicos, plenos proprietários (Artº 1302 e 1305 do C. Civil e Artºs 62 e 82 nº 3 da Constituição) dos dois novos prédios rústicos passaram a ter, nos termos da lei geral e da Constituição da República Portuguesa, o domínio privado do prédio rústico que a cada um deles foi adjudicado no Tribunal da Comarca ....

14 - Tal significa que a A. recorrente, no exercício dos direitos e faculdades inerentes à titularidade da propriedade e domínio sobre a parte das Herdades ... que lhe foi adjudicada (215,9950 ha) em propriedade exclusiva, tem necessariamente, de se lhe reconhecer que ocupa a posição de senhorio unicamente quanto à parte do prédio rústico que agora lhe pertence. (215,9950 ha).

15 - Após o fracionamento do prédio arrendado os direitos e obrigações de ambas partes nesse contrato são aferidos, no que se refere ao senhorio, pelas novas relações de propriedade decorrentes da divisão judicial/fracionamento da Herdades ... de que resultou a criação de dois novos prédios rústicos, cujo “uso e fruição”, de ambos, se manteve na disponibilidade, uso e exploração agrícola da R. Sociedade (Artº 20 nº 1 do Dec. Lei 294/2009 de 13.10):

16 - Após a concretização da divisão judicial a A. recorrente e seu irmão (ex-comproprietários) apenas têm o domínio da propriedade (prédio rústico) que lhes pertence.

17 - A A. não tem quaisquer direitos (Artº 1305 e 1311 do C. Civil) nem pode interferir na administração e destino do prédio pertencente a seu irmão BB, nem este em relação ao prédio rústico (215,9950 ha) que coube e pertence à A. por força da divisão judicial do prédio mãe, pelo que à A. não assiste qualquer direito de interferir no contrato de arrendamento no que respeita à área rústica que lhe não pertence e, vice-versa, no que respeita ao seu irmão BB.

Pelo que

18 - A obrigatoriedade ou necessidade do exercício do direito de propriedade, em conjunto com quem não é seu titular, revela-se de incontornável falta de protecção legal (Artº 1057, 1305 e 1311, todos do C. Civil) e até de visível violação do direito constitucional à propriedade privada (Artº 62 e 82 nº 3 do C. R. Portuguesa).

19 - A interpretação plasmada no Acórdão recorrido (Artº 1024 nº 2 do C. Civil) quando impõe a proprietários distintos, de prédios rústicos diferentes, a consensualização obrigatória, entre ambos, das decisões quanto ao “uso e fruição” do prédio que ao outro pertence, é negar a titularidade do direito de propriedade que a cada um deles cabe, singularmente, sobre cada um dos dois prédios, com evidente violação do conteúdo e faculdades que a lei civil define para o próprio direito de propriedade (Artº 13051 e 1311 do C. Civil).

20 - Impor a administração conjunta de bens pertencentes exclusivamente a proprietários distintos é impor as regras da administração da compropriedade a quem não é comproprietário e onde não existe compropriedade.

21 - O princípio de que a oposição à renovação ou a denúncia do contrato de arrendamento rural inclui obrigatoriamente todo o seu objecto (Artº 19 nº 2 do NRAR) não pode ser interpretada como se pretende no Acórdão, ora, recorrido, proferido pelo Tribunal da Relação ...;

22 -Tal princípio será válido e deve ser interpretado por forma a respeitar-se a coerência do sistema jurídico vigente, sendo por demais evidente que a interpretação que se faz na decisão recorrida, (Artº 1024 nº 2 do C. C.), contende com a natureza e conteúdo do direito de propriedade (Artº 1305 e 1311 do C. Civil) e viola clamorosamente o princípio constitucional do direito à propriedade privada consagrado no Artº 62 e 82 nº 3 da Constituição da República Portuguesa.

23 - Da mesma forma que na herança e partilha, subsequente, entre os herdeiros das novas unidades prediais rústicas, obrigar ou impor a consensualização de decisões entre os diversos proprietários, dos vários prédios objecto do mesmo arrendamento, é impor a compropriedade a quem o não é nem desejou nela permanecer.

24 - Admitir tais realidades jurídicas (Partilha e Divisão de Coisa Comum) no âmbito do arrendamento rural, a coberto do Artº 1024 nº 2 “ex vi” Artº 42 nº 1 do NRAR, é negar, não só, a existência e conteúdo do direito de propriedade na sua dimensão civil (Artº 1305 e 1311 do C. Civil) e constitucional (Artº 62 e 82 nº 3 do C.R.P.), como também negar a validade e consequências do instituto jurídico-patrimonial da partilha, entre os herdeiros, e da divisão da coisa comum entre os seus comproprietários.

25 – A interpretação realizada no acórdão recorrido, contende, fere e viola princípios básicos e elementares de lógica e coerência do nosso Sistema Jurídico, como sejam o conteúdo, dimensão e faculdades inerentes à titularidade do direito de propriedade sobre um prédio arrendado (Artº 1305 e 1311 do C.C.) e à sua própria protecção constitucional (Artº 62 e 82 nº 3 da C.R.P.) ao extremo de tal interpretação, plasmada no aresto recorrido, impor e remeter a administração do(s) prédio(s) arrendado(s), detido por um único proprietário singular, para quem apesar de senhorio no arrendamento, não é dele proprietário, nem titular de qualquer outro direito, real ou não;

26 - A decisão da 1ª instância, que julgou procedente por provada a oposição à renovação do arrendamento, foi elaborada com absoluto respeito pelo NRAR bem assim pelos princípios e regras que a recorrente esgrime neste seu recurso para o Venerando Supremo Tribunal de Justiça, devendo nesta parte ser revogado o acórdão recorrido e manter-se a decisão proferida, em 1ª instância, pelo Tribunal da Comarca ....

Pois

27 - A circunstância de um prédio se encontrar arrendado não obsta a que um comproprietário possa pedir a divisão do bem comum em tribunal, se não obtém para tal o acordo do outro comproprietário, jamais podendo a Ré obstar a que a propriedade fosse dividida, ou impor que a A. permanecesse na indivisão.

28 - A divisão do prédio não alterou o contrato de arrendamento rural que permaneceu válido em toda a sua plenitude.

29 - A cessação da vigência do contrato não opera em consequência da divisão em substância do prédio, mas sim porque, por iniciativa da A. recorrente e quanto apenas à área que a esta pertence, terminou o prazo de renovação, já que a A. proprietária é livre de renovar ou não o contrato na parte que lhe coube na divisão».


Termos em que requer seja revogado o acórdão recorrido.


7. A ré respondeu, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem:

«1. O recurso subordinado, meio de reagir a decisão desfavorável através de impugnação autónoma da mesma, embora condicionada ao recurso a ser interposto pela contraparte, não se confunde com a ampliação do âmbito do recurso já interposto pela contraparte, enquanto meio processual adequado a reagir, preventivamente, à eventual procedência desse recurso sobre decisão favorável que a parte vencida impugnou.

2. O que a aqui Recorrente fez na resposta ao recurso de apelação da aqui Recorrida sobre a decisão de 1ª Instância foi requerer a reapreciação de um pedido em que resultou vencida sem ter interposto recurso para tal, motivo pelo qual o Tribunal da Relação ... a rejeitou.

3. Vem agora a Recorrente declarar, aberta e diretamente, que errou na escolha do meio processual, mas que, não obstante, deve o Supremo Tribunal admitir a reapreciação que a Relação rejeitou, com fundamento no disposto no art. 5.º, n.º 3, do CPC.

4. Recorrer de uma decisão pressupõe um descontentamento, uma discordância com a decisão, pretendendo vê-la alterada porque não corresponde, no seu entendimento, à solução correta.

5. Nada disso sucede nesta parte do recurso da Recorrente, onde sufraga o entendimento do Tribunal da Relação, não contesta a decisão em qualquer medida e nem sequer invoca qualquer argumento divergente do entendimento vertido no Acórdão de que recorre.

6. Como resulta expresso nas afirmações de que a Recorrente “interpôs um autêntico “recurso subordinado”, embora sob a designação incorreta de “ampliação do âmbito do recurso” e que “perspetivou o seu protesto recorrente – ampliação – quando deveria tê-lo configurado sob a forma de recurso subordinado”, não há qualquer vontade impugnatória.

7. Se a Recorrente não impugna a decisão, é porque a aceita, perdendo assim o direito a recorrer, nos termos do art. 632.º, n.º 2 e 3, o que deve ser reconhecido e declarado por Vossas Excelências, extinguindo-se a instância nesta medida.

8. A isto não obsta o facto de o recurso já se encontrar interposto e de a norma do art. 632.º, n.º 2, parecer colocar o acento tónico na apreciação da sua admissibilidade pelo Tribunal a quo, porquanto ao Exmo. Sr. Juiz Relator, nos termos do disposto no art. 652.º, n.º 1, al. b), “incumbe deferir todos os termos do recurso até final, designadamente: (…) b) Verificar se alguma circunstância obsta ao conhecimento do recurso”.

9. E senão por essa disposição, então sempre pela al. h) do mesmo preceito, ao prever a possibilidade de “julgar extinta a instância por causa diversa do julgamento ou julgar findo o recurso, por não haver que conhecer do seu objeto”.

10. Embora o erro na escolha do meio processual deva ser oficiosamente corrigido pelo Tribunal, os requisitos impostos no âmbito do regime de recursos e a própria natureza e finalidade dos meios processuais em causa, distintas e incompatíveis, não comportam convolações desta natureza (ampliação do âmbito do recurso num recurso que a parte não interpôs).

11. Tal como decidido pelo Tribunal da Relação ..., se a Recorrente pretendia a reapreciação do pedido em que ficou vencida, deveria ter interposto recurso da decisão.

12. Não o tendo feito, a decisão de 1ª Instância sobre o pedido em causa transitou em julgado, razão pela qual ficou vedada a reapreciação do mesmo pelas instâncias superiores, não sendo admissível a reapreciação do pedido.

13. O disposto no art. 5.º, n.º 3, do CPC tem o seu campo de aplicação mais na apreciação do mérito da questão decidenda do que no comportamento processual que as partes escolhem adotar, pois, aí, ainda terá de subsistir alguma responsabilidade das mesmas pelas escolhas que fazem.

14. Seja porque deve ser liminarmente rejeitado na primeira apreciação do Exmo. Sr. Juiz Conselheiro Relator ao abrigo do disposto no art. 652.º, dada a perda do direito a recorrer e o consequente trânsito em julgado da decisão de 1ª Instância, seja porque, subsidiariamente, não se deverá aqui permitir a correção oficiosa, o recurso da Recorrente deve ser rejeitado ou julgado improcedente nesta parte, respetivamente, por Vossas Excelências.

15. A Recorrente apenas se insurge contra a improcedência do seu pedido de reconhecimento da oposição à renovação do arrendamento, nada dizendo sobre a exceção dilatória de ilegitimidade julgada procedente, motivo pelo qual, tendo já decorrido o prazo para recurso, o Acórdão do Tribunal da Relação ... transitou em julgado nessa parte.

16. Assim, ainda que a decisão do Supremo Tribunal nos autos concedesse provimento ao recurso da Recorrente, a Recorrida sempre deveria ser absolvida da instância, pois, nesse caso, deixaria de se aplicar o disposto no art. 278.º, n.º 3, do CPC.

17. O ato de cessação do arrendamento é praticado pelo senhorio e não pelo proprietário, ou seja, pelo sujeito que ocupa ambas as posições, mas nas vestes de titular do contrato de arrendamento, não exercendo aí quaisquer poderes decorrentes do seu direito de propriedade.

18. Por isso, eventuais vicissitudes que afetem a relação jurídica de propriedade – neste caso, a divisão em substância do prédio indiviso dado de arrendamento – não afetam nem o contrato de arrendamento, nem os termos em que o senhorio – neste caso, os antigos comproprietários – pode ou não fazê-lo cessar.

19. São dois planos diferentes, o plano obrigacional, em que se insere o arrendamento que obriga os três sujeitos titulares do contrato independentemente de vicissitudes ocorridas fora dele, e o plano real, em que se insere a relação jurídica de propriedade da Recorrente com a sua nova parcela, sendo certo que uma não conflitua com a outra.

20. Caso contrário permitir-se-ia a uma modificação do contrato de arrendamento em total prejuízo dos direitos e obrigações adquiridos pelos seus titulares, por força da atuação de apenas dois deles, numa violenta subversão do art. 406.º, n.º 1, do Código Civil.

21. Se o contrato apenas se altera por mútuo acordo de todas as partes e as partes, desde a divisão do locado, nunca acordaram nesse sentido, então ele mantém-se nos exatos termos em que se encontrava à data da divisão, não havendo qualquer “alteração contratual lícita” ou ilícita.

22. Tratando-se de um direito à prestação e não de um direito sobre a coisa do arrendatário, o que importa após a divisão é continuar a assegurar o gozo da coisa, tal como se fazia até à divisão, o que é perfeitamente possível – e aliás tem ocorrido ininterruptamente – porque apenas se procedeu à delimitação geográfica dos terrenos, que lá continuam fisicamente no mesmo local.

23. Sairia gravemente prejudicada a arrendatária se forçada a ter dois arrendamentos: menor seria a segurança jurídica, na medida em que a cessação do vínculo dependeria apenas da vontade unilateral de cada senhorio, e propiciar-se-iam inúmeros constrangimentos derivados da separação do contrato em dois, em termos do aproveitamento e produtividade do prédio e até do próprio acesso (v.g. podia um senhorio vedar a sua parte do terreno face ao outro, impedindo o livre acesso).

24. A divisão do prédio em nada afeta a relação jurídica arrendatícia, que se mantém una, tal como estava à data da referida divisão: por prazo superior a 6 anos, sobre prédio indiviso, com dois senhorios e uma arrendatária.

25. O ato destinado a fazê-lo cessar, nomeadamente, por oposição à sua renovação, obedece não às regras gerais da (com)propriedade, mas antes à norma do art. 1024.º do Código Civil, que, segundo jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, constitui uma regra especial para arrendamentos de prédios indivisos que afasta o regime geral da compropriedade.

26. Teria, por isso, de ser praticado com o consentimento de ambos os senhorios, não obstante a divisão do locado, entretanto ocorrida.

27. Se o art. 19.º, n.º 2, do NRAR determina que tal oposição à renovação, sem prejuízo da necessidade do referido consentimento, inclui obrigatoriamente todo o objeto do arrendamento, então a oposição à renovação da Recorrente, para além de ilegítima porque feita sem o consentimento do outro senhorio, é totalmente inadmissível, porque dirigida a apenas metade dele – relação jurídica inexistente.

28. Os arts. 62.º, n.º 1, e 82.º, n.º 3, da CRP e o art. 1305.º do Código Civil invocados pela Recorrente não abalam minimamente o entendimento vertido no Acórdão do Tribunal da Relação ..., pois, em momento algum o direito de propriedade da Recorrente foi desrespeitado ou sequer posto em causa por qualquer decisão do Tribunal ou atuação da Recorrida.

29. Desde a divisão do prédio que a Recorrente tem poderes exclusivos sobre a sua parcela, podendo administrá-la como bem entender.

30. Só não pode é agir sobre o arrendamento como se estivesse sujeito às regras gerais dos poderes do proprietário (art. 1305.º do Cód. Civ.) e não às regras dos contratos em geral (art. 406.º, n.º 1) e da locação (art. 1024.º)!

31. Isto não obstante o art. 1024.º, n.º 2, falar apenas em “celebração” do arrendamento, pois as razões justificativas por detrás da norma (interesse individual não prevalecer sobre o interesse conjunto) verificam-se igualmente no momento de decidir sobre a sua cessação, mas também porque, tanto um como outro, provocam semelhante alteração patrimonial (receber rendas e deixar de receber rendas).

32. O que legitima assim esta interpretação do art. 1024.º, n.º 2, corretamente aplicado pelo Tribunal da Relação ... e não é afastado pela extinção da comunhão entretanto ocorrida, porquanto, embora deixem de ser comproprietários, Recorrente e seu irmão não deixaram de ser (co)senhorios!

33. Não ofendeu, por isso, o Acórdão do Tribunal da Relação ..., qualquer princípio constitucional sobre a propriedade privada nem quaisquer regras do NRAR ou do Código Civil, nem impôs à Recorrente qualquer regime que não fosse já o aplicável ao contrato desde o seu início.

34. Apresenta-se sem fundamento o recurso da Recorrente, apoiado numa solução jurídica inquinada deste início pela confusão entre o vínculo de propriedade nunca colocado em causa nos autos e a relação contratual de que é titular e que constituiu, a par do seu irmão e da Recorrida, de livre e espontânea vontade e, por isso, incompreensível.

35. Desde a divisão que o contrato tem sido igualmente cumprido como era antes, porquanto a Recorrida não deixou de ter o gozo da totalidade do (antigo) prédio, continuou a exercer nele a sua atividade agrícola nele como fazia anteriormente e paga pontualmente a renda, por sua vez recebida – não só mas também – pela Recorrente, tudo nos termos do contrato e mantido à presente data sem qualquer alteração.

36. A Recorrente não pode, pois, opor-se à sua renovação “por metade” como fez (art. 19.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 294/2009, de 13 de Outubro), não obstante as normas do Código Civil e da Lei Fundamental invocadas, que em nada conflituam com as normas do art. 406.º, n.º 1, e 1024.º daquele primeiro diploma, que impõem a solução vertida no Acórdão da Relação ....

37. Deverá o presente recurso, ele sim destituído de qualquer lógica jurídica, ofensivo da dogmática do nosso sistema e de preceitos como os arts. 26.º, n.º 1, e 61.º da Constituição da República Portuguesa e os arts.º 405.º, 406.º e 1024.º do Código Civil, ser julgado totalmente improcedente por Vossas Excelências, assim se mantendo o Acórdão do Tribunal da Relação ... nos seus precisos e exatos termos, que não merece, em nosso entendimento, a mais pequena censura».


8. Após os vistos, cumpre apreciar e decidir.



***



II. Delimitação do objeto do recurso


Como é sabido, o objeto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação dos recorrentes, nos termos dos artigos 635.º, n.º 3 a 5, 639.º, n.º 1, do C. P. Civil, só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa[1].


Assim, a esta luz, as questões a decidir consistem em saber se:


1ª- sobre o Tribunal da Relação recaía a obrigação de convolar a ampliação do âmbito do recurso, peticionada pela autora em sede do recurso de apelação, em recurso subordinado;


2ª- é válida a oposição à renovação do contrato de arrendamento levada a cabo pela autora.


***



IV. Fundamentação


3.1. Fundamentação de facto


A - Os factos provados em 1ª Instância:

1. A A. e o seu irmão BB foram donos, em partes iguais, do prédio rústico denominado "A.…", sito na freguesia de ..., concelho de ..., com a área aproximada de 400 hectares, inscrito sob o Art° ...8 da Secção ... da matriz cadastral rústica.

2. Por acordo datado de março de 2006, a A. e o seu irmão acordaram ceder à R. a utilização do referido prédio, para fins de exploração agrícola, incluindo as várias instalações urbanas de apoio à exploração agrícola que nele se encontram.

3. O acordo tinha um prazo de duração de sete anos, renovável por períodos sucessivos de um ano cada, com início em 1 de janeiro de 2005, tendo-se nele estipulado que o fim do ano agrícola coincide com o dia 31 de dezembro de cada ano.

4. Mais acordaram que, em contrapartida pela utilização do referido prédio, a Ré pagava à A., e irmão, a renda de 13.820,00€, acrescida da quantia de 2.500,00€, pela utilização e fruição de todas as instalações urbanas existentes no prédio, bem como pela lenha resultante dos serviços de limpeza e poda anual do arvoredo que a R. Sociedade faz sua, perfazendo o valor global de renda anual de 16.320,00€, a pagar em duas prestações semestrais de 15 a 31 de Janeiro, e de 15 a 31 de Agosto, do mesmo ano.

5. Acordaram ainda as partes em excluir do acordo toda a cortiça proveniente dos sobreiros implantados e existentes no prédio.

6. O acordo foi entregue no Serviço de Finanças ... em 17.03.2006.

7. Posteriormente, por acordo entre as partes, há cerca de dez anos, a renda anual, inicialmente estipulada, foi aumentada para a quantia de 20.000,006, sendo metade desse valor pago diretamente à A., e a outra metade paga ao seu irmão.

8. Nessa medida, a R. vem pagando, em cada ano, à A., em duas prestações iguais, a quantia de 5.000,00€, entre 15 e 31 de janeiro, e 5.000,00€, entre 15 e 31 de Agosto.

9. A A., por pretender pôr termo à indivisão da Herdades ... e não ter chegado a acordo extrajudicial com o seu irmão BB, requereu judicialmente a sua divisão, cuja ação correu termos sob o n.° de processo 275/19...., neste tribunal, na qual a Ré não teve qualquer intervenção.

10. Mediante sentença homologatória, já transitada em julgado, proferida nos referidos autos, em sede de conferência de interessados, realizada no dia 14.10.2020, foi adjudicada à A., em propriedade exclusiva, a parte poente do prédio rústico arrendado, denominado Herdades ..., com a área de 215,9950 hectares, tal como consta da respetiva planta de demarcação e descriminação de áreas.

11. A R. não procedeu ao pagamento da totalidade do valor da parte da renda devida à A., referente ao ano agrícola de 2019, tendo pago a 1ª prestação de janeiro completa, e apenas a quantia de 2.000,00€, referente ao valor de 5.000,00€, que estava obrigada a pagar entre 15 e 31 de Agosto de 2019.

12. A R., no ano agrícola e civil de 2020, não pagou à A. nenhuma das duas prestações da renda, vencidas entre 15 e 31 de janeiro, e 15 e 31 de agosto, do ano de 2020, no valor de 10.000,00€.

13. A 5/02/2021, a Ré depositou na CGD, à ordem deste tribunal, o valor de 19.500,00€ relativo às rendas em atraso (13.000,006), e à indemnização de 50% (6.500,006).

14. No dia 11 de Novembro de 2020, a A. dirigiu à R., à Presidente do Conselho de Administração da R., DD, e ao sócio/acionista da R. Sociedade, CC, três comunicações com idêntico teor, através de escrito registado com aviso de receção, no qual comunicou a estes a sua pretensão de pôr termo ao acordo de cedência de utilização, no que se refere à área e parte do prédio que lhe pertence, para o fim do prazo da renovação, em curso, a 31.12.2021.

15. A carta enviada para a sede da R. veio devolvida por não ter sido reclamada, ao passo que as outras duas foram recebidas a 13 e 12/11/2020, respetivamente.

Mais está documentalmente provado que (cfr. doc. n.° 1 junto com a p.i.):

- o acordo mencionado foi reduzido a escrito com data de março de 2006;

- dele consta a identificação dos outorgantes, a indicação dos números de identificação fiscal dos senhorios, a morada destes e a sede social da arrendatária bem como a identificação do prédio objeto do arrendamento pela respetiva denominação, localização e inscrição matricial;

- mais consta que o arrendamento se destina à exploração agrícola, em termos de utilização regular e contínua, da área rústica e das instalações urbanas de apoio à exploração agrícola bem como para a cria e recria de gado;

- o acordo escrito contempla o valor estipulado para a renda;

- o contrato foi participado no serviço de finanças.



***



3.2. Fundamentação de direito


Conforme já se deixou dito, o objeto do recurso interposto pela autora prende-se, essencialmente, com as questões de saber se sobre o Tribunal da Relação recaía a obrigação de convolar a ampliação do âmbito do recurso, peticionada pela autora em sede do recurso de apelação, em recurso subordinado e se é válida a oposição à renovação do contrato de arrendamento operada pela autora.


3.2.1. Convolação da ampliação do âmbito do recurso, peticionada pela autora em sede do recurso de apelação, em recurso subordinado.


Sustenta a autora que, tendo formulado o pedido principal de resolução do contrato de arrendamento com fundamento  na falta de pagamento de rendas e, subsidiariamente, o pedido de denúncia deste mesmo contrato, perante os considerandos por ela expendidos, a folhas 1 (parte final), 2, 3, 4, 5 e 6, das suas alegações de resposta, em sede de recurso de apelação, impõe-se concluir que a mesma, no plano técnico-jurídico, não se limitou a analisar e a colocar em causa simples “fundamento” ou questão “lateral” da decisão proferida em 1ª instância, tendo, antes, impugnado a decisão proferida pelo Tribunal de 1ª Instância que julgou improcedente aquele pedido principal da ação, pelo que, nos termos do disposto no art. 5º , nº 3 do CPC, deve este Tribunal  determinar que a “ampliação da apreciação do recurso” por ela requerida ao abrigo do art. 636º, nº 1, do CPC corresponde e configura a interposição de um “recurso subordinado”, nos termos  do artº 633º, nº 2 do CPC e, consequentemente, conhecer desse recurso ou remeter, para esse efeito, os autos ao Tribunal da Relação ....


Vejamos.


Não há dúvida que, na sequência do recurso de apelação interposto pela ré do despacho saneador/sentença proferido pelo Tribunal de 1ª Instância, na parte em que julgou procedente o pedido subsidiário deduzido pela autora, condenando a ré a ver cessado o contrato de arrendamento rural por oposição à renovação por parte da senhoria com efeitos reportados a 31 de Dezembro de 2021, no que respeita à área rústica que pertence à A., com 215,9950 hectares, a qual se localiza na parte poente da EN ..., a autora requereu nas suas contra-alegações a ampliação do objeto do recurso, nos  termos do disposto no art. 636º, nº 1, do CPC, afirmando, nas respetivas conclusões,  que:

« (…)  4- Assiste direito à A. recorrida, nos termos do Artº 636, nº 1 do C.Proc.Civil, de solicitar ao Tribunal de recurso, neste caso ao Tribunal da Relação ..., a ampliação de apreciação do recurso interposto pela R. recorrente quanto ao pedido principal de resolução do contrato de arrendamento rural, formulado pela A. recorrida, com fundamento na falta de pagamento das rendas, em mora por período superior a seis meses, relativamente ao que a A., vencedora na acção, “decaiu”;

(…)

7- A Sentença recorrida deve ser nesta parte revogada e o pedido principal de resolução do contrato de arrendamento rural, cuja reapreciação ora se vos solicita nos termos do Artº 636, nº 1 do C. Proc. Civil, ser julgado procedente, decretando-se a resolução imediata do contrato com fundamento na falta de pagamento pela Ré das rendas devidas por período de tempo e mora superior a seis meses, tudo nos termos dos Artigos 13 nº 3 e 17 nº 2 alínea a), ambos, do Dec. Lei 294/2009 de 13.10, com todas as consequências, legais, incluída a entrega da área rustica arrendada à A., em 31.12.2021 sem prejuízo do disposto no Artº 15 nº 2 do Dec. Lei Nº 294/2009 de 13.10.

(…)

Nestes termos e nos demais de direito que este Tribunal Superior doutamente suprirá deve o recurso interposto pela Ré, Sociedade Agrícola das Algueireiras e Anexos, S.A. ser julgado completamente improcedente por total falta de fundamento das motivações de recurso invocadas, outrossim, se julgando procedente, em sede de ampliação da apreciação deste recurso (Artº 636, nº 1 do C.Proc.Civil), o pedido principal formulado pela A. Recorrida decretando-se a resolução imediata do contrato de arrendamento rural, revogando-se/alterando-se a sentença recorrida nos termos e pela forma que se faz constar das conclusões antecedentes. » .  


De realçar, por outro lado, que a ampliação do recurso a requerimento do recorrido prevista no citado art. 636º e o recurso subordinado previsto no art. 633º, ambos do CPC, são realidades completamente distintas uma da outra.

A ampliação do recurso, tal como ensina Abrantes Geraldes[2], não se apresenta como um verdadeiro recurso, pois «afinal sempre falta ao recorrido a qualidade de parte vencida relativamente ao resultado final do processo que serve de critério aferidor da legitimidade, através do segmento decisório, nos termos dos arts. 631º, nº 1 e 633º, nº 1», pelo que o vencedor que se prevalecer desta faculdade não terá o estatuto próprio do recorrente» e só serão apreciadas «as questões suscitadas se porventura forem acolhidos os argumentos arrolados pelo recorrente (ou de que oficiosamente forem conhecidos) com repercussão na modificação da decisão recorrida».

No dizer deste mesmo autor[3], a ampliação do objeto do recurso corresponde à solução legal prevista para situações de sucumbência circunscrita aos fundamentos da ação ou da defesa e que proporciona à parte vencedora « a possibilidade de suscitar perante o tribunal ad quem a reapreciação de questões cuja resposta tenha sido desfavorável, esconjurando os riscos derivados de uma total adesão do tribunal de recurso aos fundamentos apresentados pelo recorrente para alcançar a revogação ou anulação da decisão».

Diversamente, o recurso subordinado é interposto pela parte sobre o segmento decisório em que ficou vencida, ficando a apreciação do mérito do recurso subordinado dependente das vicissitudes formais do recurso independente interposto pela contraparte ( art. 633º, nº 3 do CPC), mas uma vez admitido este último recurso, permite à parte vencida  quanto ao resultado da ação, ou seja, quanto a um pedido ou a um segmento do pedido, confrontar o tribunal ad quem com a impugnação da decisão recorrida, na parte em que a mesma lhe foi desfavorável, possibilitando a alteração do respetivo resultado.

Abarca os casos em que « uma das partes faz depender a sua atuação da posição adotada pela parte contrária: optando por se abster de recorrer na parte em que a decisão lhe é desfavorável, reserva, contudo, o exercício do direito para a eventualidade de a parte contrária, também vencida, interpor recurso» ou em que, « atento o valor da sucumbência, a lei impede a parte de interpor recurso autónomo ( art. 629º, nº1)» [4].

Não pode, pois, como adverte Abrantes Geraldes[5] «confundir-se a interposição de recurso subordinado com a ampliação do objeto do recurso», pois, «para além de serem diferentes os objetivos que se pretendem alcançar com um e com outro instrumento processual, são diversas as circunstâncias que os motivam, já que o recurso subordinado implica que a parte ficou vencida em relação ao resultado declarado  na sentença, ao passo que a ampliação do objeto do recurso pressupõe apenas  que não foi acolhido o fundamento (ou fundamentos) invocado pela parte para sustentar a decisão que, apesar disso, lhe foi favorável ou se verifica alguma  nulidade da decisão».

De sublinhar ainda que, quando o citado art. 636º fala em «fundamentos da ação ou da defesa» está a reportar-se a causas de pedir inerentes a determinado pedido, aos fundamentos de facto e de direito que sustentam a defesa ou a verificação de alguma nulidade decisória que não tenha interferido (ainda) no resultado[6] e que a referência feita, no art. 633º, a decisões desfavoráveis reporta-se a pedidos julgados improcedentes.

Decorre, assim, com bastante clareza da leitura destes dois preceitos que nas situações em que foram deduzidos dois pedidos – um principal e um subsidiário – a possibilidade que a parte vencedora terá de fazer reapreciar o pedido principal que foi julgado improcedente é interpor recurso independente ou recurso subordinado.

De resto, foi precisamente na esteira deste entendimento que o acórdão recorrido decidiu que, não tendo a autora, no caso dos autos, ficado vencedora relativamente ao pedido de resolução do contrato de arrendamento rural com fundamento na falta de pagamento de rendas, já que em lª instância se decidiu pela impossibilidade superveniente da lide quanto a este pedido, nem tendo interposto recurso desta decisão da 1ª Instância, «não tem cabimento a apreciação dos fundamentos esgrimidos pela Recorrida relativamente a tal pedido, relativamente ao qual resultou vencida».

Ora, resultando claro das 4ª e 7ª conclusões das contra-alegações ter a autora requerido a reapreciação da decisão de 1ª instância, na parte em que julgou improcedente o pedido principal de resolução do contrato de arrendamento rural com fundamento na falta de pagamento de rendas pela ré das rendas devidas por período de tempo superior a seis meses, nos termos dos arts. 13º, nº 3 e 17º, nº 2, al. a), ambos do Dec. Lei 294/2009 de 13.10, e ter a mesma, por  erro de qualificação, formulado esta sua pretensão ao abrigo do disposto  no art. 636º, nº 1 do CPC, vejamos, então, se sobre o Tribunal da Relação recaía a obrigação de convolar a requerida  ampliação do objeto de recurso na interposição de recurso subordinado, nos termos do art. 633º, nº 1, por ser, a par do recurso independente, o meio concreto de que deveria ter-se socorrido.

E a este respeito diremos, desde logo, que, contrariamente ao defendido pela recorrente, uma tal convolação não encontra suporte legal no art. 5º, nº 3 do CPC, mas, antes, no art. 193º, nº 3, do mesmo código, que dispõe que «o erro na qualificação do meio processual utilizado pela parte é corrigido oficiosamente pelo juiz, determinado que se sigam os termos processuais adequados».

Trata-se de  uma norma inovatória, introduzida pela revisão do Código de Processo Civil operada pela Lei nº 41/2013, de 26 de Julho, com o objetivo de, conforme consta da  Proposta de Lei nº 113/XII, aprovada em Conselho de Ministro, em consonância com o princípio da prevalência do mérito sobre meras questões de forma e em conjugação com o reforço dos poderes de direção, agilização, adequação e gestão processual do juiz, se orientar toda a atividade processual «para propiciar a obtenção de decisões que privilegiem o mérito ou a substância sobre a forma, cabendo suprir-se o erro na qualificação pela parte do meio processual utilizado e evitar deficiências ou irregularidades puramente adjectivas que impeçam a composição do litígio ou acabem por distorcer o conteúdo da sentença de mérito, condicionado pelo funcionamento de desproporcionadas cominações ou preclusões processuais».

Estamos, assim, ante uma norma que já não respeita ao erro na forma de processo, mas antes ao erro relacionado com o meio processual utilizado pela parte para a prática de determinado ato com vista a evitar que, por meras razões de índole formal, deixe de ser apreciada uma pretensão deduzida em juízo.

Daí, em tais circunstâncias, impor-se ao juiz, em lugar do decretamento puro e simples da nulidade do ato, o dever de proceder à sua correção oficiosa, determinando que sejam seguidos os termos processuais adequados[7].

Ora, resultando claro ser o conteúdo da pretensão formulada pela autora/recorrida, nas 4ª e 7ª conclusões das suas contra-alegações, adequado ao recurso subordinado, temos por certo impor-se à Senhora Juíza Desembargadora relatora convidar a recorrida a efetuar tal correção ou fazê-lo oficiosamente, por forma a permitir a reapreciação do pedido de resolução do contrato de arrendamento rural com fundamento na falta de pagamento de rendas  em sede de julgamento do recurso de apelação.

Porém, não o tendo feito, a verdade é que, neste momento, uma tal convolação já não é suscetível de produzir o efeito pretendido pela ora recorrente.

Com efeito, tendo o acórdão recorrido reconhecido que a autora carecia de  legitimidade ativa para instaurar a presente ação, só não tendo decretado a absolvição da ré da  instância por ter optado preferencialmente pela decisão do mérito da causa, nos termos do disposto no art. 278º, nº 3 do CPC, e não tendo a autora impugnado, por via do presente recurso, a questão da sua ilegitimidade, evidente se torna que o trânsito em julgado do acórdão recorrido, nesta parte, obsta à reapreciação do referido pedido principal, tornando a requerida convolação na prática de um ato totalmente inútil, não consentido pelo art. 130º do CPC.


Daí inexistir fundamento para ordenar a requerida convolação, improcedendo, nesta parte, o recurso da autora. 



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3.2.2. Da cessação do contrato de arrendamento rural por oposição à renovação.


Nesta matéria   estipula o artigo 19.º, do NRAR que:

 «1- O contrato de arrendamento cessa por oposição à renovação ou por denúncia de uma das partes, mediante comunicação escrita.

2 - A oposição à renovação ou a denúncia do contrato de arrendamento inclui obrigatoriamente todo o seu objeto.

3 - O senhorio ou o arrendatário podem opor-se à renovação do contrato de arrendamento, com a antecedência de um ano relativamente ao termo do prazo do arrendamento ou da sua renovação, sem prejuízo do disposto no n.º 9.

(…)  ».


Daí que, perante este quadro legal e resultando dos factos provados e supra descritos nos nºs 1, 2, 3, 9, 10 e 14, respetivamente, que a autora e o seu irmão deram de arrendamento à ré o prédio  rústico denominado "A...", sito na freguesia de ..., concelho de ..., com a área aproximada de 400 hectares, de que eram proprietários, em partes iguais, e que por via de ação de divisão de coisa comum, extinguiu-se esta situação de compropriedade, tendo sido adjudicada à autora, em propriedade plena e exclusiva, a parte poente deste mesmo prédio, com a área de 215,9950 hectares, se coloque a questão de saber se à autora assiste, ou não, o direito de opor-se à renovação do referido contrato de arrendamento apenas quanto a esta parte do prédio de que se tornou única proprietária. 


No sentido afirmativo pronunciou-se a decisão de 1ª instância, argumentando, no essencial, que a cessação da vigência do contrato não opera em consequência da divisão em substância do prédio, mas sim porque terminou o prazo de renovação, e nessas circunstâncias, o proprietário é livre de renovar ou não o contrato na parte que lhe coube na divisão, pelo que, face ao disposto no art. 19º, nº 1 e 3, do NRAR, considerou válida e tempestiva a comunicação feita pela autora e, consequentemente, « condenou a Ré a ver cessado o contrato de arrendamento rural, por oposição à renovação por parte da senhoria, com efeitos reportados a 31 de Dezembro de 2021, no que respeita à área rústica que pertence à A., com 215,9950 hectares, a qual se localiza na parte poente da EN ...».


Diverso entendimento teve o Tribunal da Relação que considerou que, de harmonia com o disposto no nº 2 do citado art. 19, a oposição à renovação ou a denúncia do contrato de arrendamento tinha de  incluir obrigatoriamente todo o seu objeto, pois «de outro modo, em vez de consubstanciar uma causa de extinção dos contratos (cfr. art. 15.° n.° 1 do NRAR), redundaria na modificação unilateral do contrato, do respetivo objeto, em violação do regime inserto no art, 406.° n.° 1 do CC ».

Mais defendeu que «não está na disponibilidade do locador reduzir unilateralmente o âmbito do contrato de arrendamento rural, nomeadamente a área que é dada em locação, as estruturas e equipamentos contratualmente cedidos ao uso do locatário, elementos eventualmente relevantes para o sucesso da exploração agrícola que esteja a ser desenvolvida no locado».

E com base nesta argumentação concluiu pela «improcedência do pedido formulado pela A no sentido de ver denunciado o contrato de arrendamento rural no que respeita à área rústica que lhe pertence».

Deste entendimento dissente a autora, sustentando que o art. 19, nº 2 do NRAR só pode ser interpretado no sentido de que “a oposição à renovação ou a denúncia do contrato de arrendamento inclui obrigatoriamente todo o seu objecto”, enquanto se mantiverem os pressupostos e circunstancialismos da sua celebração.

Quando ocorrer, como na situação “sub judice”, alteração quer quanto ao seu objeto (área arrendada), quer quanto às partes nele intervenientes, o contrato terá necessariamente de se adaptar à nova realidade, sem prejuízo dos direitos e deveres que assistem a cada uma das partes na sua condição de senhorio ou arrendatário, nos termos do art. 1057º, do C. Civil, aplicável subsidiariamente ex vi art. 42º, nº 1, do NRAR.

Daí que, tendo o prédio arrendado, por via da ação de divisão de coisa comum ( arts. 1412º e 1413º, do CC e art. 925º e segs do CPC), deixado de ser um único prédio, compropriedade dos dois senhorios iniciais, para se converter em duas unidades prediais rústicas separadas e independentes, uma delas, pertencente exclusivamente à autora com 215,9950 hectares de área e, outra, pertencente ao consorte BB com a área de 184,8350 ha, tal significa, de harmonia com o disposto nos arts. 1302º e 1305º do C. Civil e 62º e 82º, nº 3 da CRP, que cada um deles passou a ter não só a propriedade e o domínio exclusivo sobre o prédio rústico que lhes foi adjudicado como a ocupar a posição de senhorio unicamente quanto ao respetivo prédio.

Assim sendo e porque com a divisão judicial do prédio arrendado em dois novos prédios rústicos, os direitos e obrigações quer dos senhorios, quer dos arrendatários passaram a ser aferidos em função das novas relações de propriedade daí decorrentes, evidente se torna que a interpretação plasmada no acórdão recorrido, quer quanto ao citado art. 19º, nº 2, do NRAR , quer ao impor, ao abrigo do artº 1024º, nº 2 do C. Civil,  a proprietários distintos de prédios rústicos diferentes, a consensualização obrigatória, entre ambos, das decisões quanto ao “uso e fruição” do prédio que ao outro pertence, não só contende com a natureza e conteúdo do direito de propriedade consagrado nos arts 1305º e 1311º do C. Civil como constitui violação do  princípio constitucional do direito à propriedade privada consagrado nos arts. 62º e 82º, nº 3 da CRP.


Vejamos.


O art. 2º do NRAR, aplicável ao caso dos autos, define, no seu nº 1, o arrendamento rural como sendo «a locação, total ou parcial, de prédios rústicos para fins agrícolas, florestais, ou outras actividades de produção de bens ou serviços associadas à agricultura, à pecuária ou à floresta».

Reportando-nos à definição legal de locação vertida no art. 1022º do C.C, podemos, assim, dizer que o contrato de arrendamento rural é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário, total ou parcial, de prédios rústicos para fins agrícolas, florestais, ou outras atividades de produção de bens ou serviços associadas à agricultura, à pecuária ou à floresta, mediante retribuição.

Tal como os demais contratos de locação, trata-se de um contrato que, estruturalmente, apresenta-se como um direito pessoal de gozo, de natureza obrigacional, não constituindo requisito para a sua celebração que o senhorio seja proprietário da coisa arrendada.

A qualidade de proprietário da coisa arrendada não é condição necessária para a celebração do contrato de arrendamento na qualidade de senhorio, tendo legitimidade para celebração do contrato de arrendamento, enquanto senhorio, múltiplas sujeitos que não são detentores da qualidade de proprietário em relação à coisa arrendada, sendo, inclusivamente, válidos contratos de arrendamento tendo por objeto coisa alheia.

Na verdade, tendo o contrato de arrendamento efeitos meramente obrigacionais, no âmbito deste contrato, o que o senhorio se obriga é a proporcionar ao arrendatário o gozo temporário sobre o prédio que lhe arrendou, pelo prazo entre eles convencionado, mediante a contrapartida deste lhe pagar a renda, sendo indiferente ao arrendatário se o senhorio é proprietário ou não da coisa arrendada.

O senhorio cumpre o contrato de arrendamento perante o arrendatário contanto que entregue a este o prédio e lhe assegure o gozo deste para os fins a que se destina durante o período de tempo entre ambos acordado para a vigência do contrato de arrendamento.

Ora, resultando dos factos provados que a autora e o seu irmão, na qualidade de comproprietários, em partes iguais, do prédio  rústico denominado “ A...” , cederam à ré o gozo temporário deste mesmo prédio, com a área aproximada de 400 hectares, mediante a obrigação desta lhes pagar a renda convencionada, é inquestionável que a autora, na qualidade de senhoria, obrigou-se a proporcionar à ré o gozo da totalidade do referido prédio.

Todavia e porque, posteriormente à celebração deste acordo, ocorreu a extinção da situação de compropriedade sobre o prédio rústico arrendado, operada por via da ação de divisão de coisa comum entre os dois referidos comproprietários, tendo sido adjudicada à autora a propriedade exclusiva da parte poente do referido prédio, denominado H..., com a área de 215,9950 hectares, impõe-se, na verdade, encontrar resposta para  a questão supra enunciada e que se traduz em saber se à autora assiste o direito de opor-se à renovação do referido contrato de arrendamento apenas quanto a esta parte do prédio de que se tornou única proprietária. 

E a este respeito diremos que a nossa resposta não pode deixar de ser negativa.


Desde logo porque, como afirma Manuel Henrique Mesquita[8], o contrato de arrendamento não é afetado «pela extinção da comunhão, quer esta extinção se opere pela divisão da coisa entre os comproprietários, quer pela sua adjudicação a um deles, quer pela alienação a terceiro».

Dito de outro modo e como, aliás, afirma a própria recorrente na 28ª conclusão das suas alegações de recurso «A divisão do prédio não alterou o contrato de arrendamento rural que permaneceu válido em toda a sua plenitude».

Com efeito, dirigindo-se o arrendamento à fruição do bem ou bens que constituam o seu objeto, para o arrendatário é completamente indiferente que o senhorio seja comproprietário ou proprietário pleno do prédio arrendado, visto que o que está em causa é tão só a relação obrigacional e contratual senhorio versus inquilino.

Vale tudo isto por dizer, no caso dos autos, que tendo sido dado de arrendamento à ré o prédio  rústico denominado “ A...” ,  com a área aproximada de 400 hectares, é relativamente a este prédio e não apenas a uma  parte dele que se poderá fazer valer a oposição à renovação ou denúncia por iniciativa do locador, tal como estabelece o art. 19º, nº 2 do NRAR.  

É que se assim não fosse deixaríamos nas mãos do locador a possibilidade de reduzir unilateralmente o objeto do contrato de arrendamento rural, nomeadamente a área do prédio locado, o que, para além de frustrar o resultado prático que se pretendeu alcançar com a celebração do contrato de arrendamento, sempre redundaria na modificação unilateral do objeto do contrato, em violação do princípio da pontualidade  inserto no art. 406.° n.° 1 do C. Civil [9],  e numa extinção parcial do contrato através de oposição à renovação ou denúncia por iniciativa do locador, não consentida pelo art. 19º, nº 2 , do NRAR[10].

E nem se diga, como o faz a recorrente, que a interpretação deste art. 19º, nº 2 no sentido de que o âmbito da cessação por oposição à renovação e por denúncia de uma das partes abrange obrigatoriamente todo o objeto do contrato, não podendo a oposição à renovação do contrato nem a denúncia ser invocadas de forma parcial, viola o direito à propriedade privada consagrado nos arts 1305º e 1311º do C. Civil e  nos arts. 62º e 82º, nº 3 da CRP.

É que, tal como nos dá conta o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 299/08, proferido em 29.05.2008, no processo nº 153/08[11], o art. 62º, nº 1 da CRP não garante o direito de propriedade em termos absolutos, mas apenas dentro dos limites e  “nos termos da Constituição” , ou seja, em «três componentes: i) o direito de aceder à propriedade; ii) o direito de não ser arbitrariamente privado  da propriedade; iii) o direito de transmissão da propriedade inter vivos ou mortis causa. Já o direito de usar e fruir os bens de que se é proprietário, que é a outra componente do direito de propriedade, não é explicitamente destacada neste preceito constitucional».

Podemos, assim, afirmar, na esteira da doutrina deste  acórdão, que a circunstância de o citado art. 19º, nº 2 do NRAR não permitir a extinção parcial do contrato de arrendamento rural através de oposição à renovação ou denúncia por iniciativa do locador, não interfere com o núcleo essencial do direito de propriedade dos senhorios que continuam a extrair do imóvel o proveito económico que corresponde a uma forma típica de exploração dos prédios rústicos, o que tanto basta para contrariar a afirmação feita pela recorrente de que tal norma contende com a natureza e conteúdo do direito de propriedade contemplado no art. 1305º, do C. Civil e constitui violação do princípio constitucional do direito à propriedade privada consagrado nos arts. 62º e 82º, nº 3 da CRP.


Termos em que, também quanto a este segmento, não pode deixar de improceder o recurso.



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IV – Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal em julgar improcedente o recurso de revista interposto pela autora, confirmando-se o acórdão.

As custas da revista ficam a cargo da recorrente.


Notifique


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Supremo Tribunal de Justiça, 24 de fevereiro de 2022

Maria Rosa Oliveira Tching (relatora)

Catarina Serra

João Cura Mariano


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[1] Vide Acórdãos do STJ de 21-10-93 e de 12-1-95, in CJ. STJ, Ano I, tomo 3, pág. 84 e Ano III, tomo 1, pág. 19, respetivamente.
[2] In “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª edição, Almedina, 2018, pág. 127.
[3] In “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª edição, Almedina, 2018, pág. 123.
[4] Cfr. Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª edição, Almedina, 2018, pág. 98.
[5] In “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª edição, Almedina, 2018, pág. 100. No mesmo sentido, cfr. Acórdão do STJ, de 30.09.2009, (proc. nº 09S0233), acessível in www.dgsi/stj.pt.
[6] Neste sentido, Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª edição, Almedina, 2018, pág. 125.
[7] Cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 5ª edição, 2018, Almedina, pág. 233.
[8] In “Direitos Reais”, Sumários das Lições ao Curso de 1966-1967, Coimbra, págs. 261 e 265.
[9] Neste sentido, e ainda que sobre a inadmissibilidade da extinção parcial subjetiva do contrato através de oposição à renovação ou denúncia por iniciativa do locador, cfr. Maria Olinda Garcia, in “O Arrendamento Plural . Quadro Normativo e Natureza Jurídica”, Coimbra Editora, 2009, págs. 231 e 232.  
[10] Cfr. Adalberto Costa, in “O Contrato de Arrendamento Rural”, VidaEconómica, 2013, pág. 39.
[11] Acessível in www.tribunalconstitucional.pt.