Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02B329
Nº Convencional: JSTJ00042922
Relator: NEVES RIBEIRO
Descritores: TRANSACÇÃO
DANOS FUTUROS
CASO JULGADO MATERIAL
ÂMBITO
Nº do Documento: SJ200203140003297
Data do Acordão: 03/14/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 900/01
Data: 10/11/2001
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: DIR CIV - DIR RESP CIV.
Legislação Nacional: CPC95 ARTIGO 498 N3 ARTIGO 671 N1 ARTIGO 673.
Sumário : 1 - A transacção celebrada em acção por acidente de viação em que se pedia indemnização por danos futuros e em que se assinalaram «todos os danos» só pode respeitar os danos previsíveis na altura.
2 - Ficam excluídos, assim, de força de caso julgado material os danos supervenientes que, à data da transacção, não eram previsíveis.
Decisão Texto Integral: I - Razão do Agravo
1. A, propôs contra B, acção de condenação, com processo sumário, alegando ter ficado afectado de epilepsia pós-traumática advinda das lesões cranianas sofridas em consequência de acidente de viação, entre o velocípede a motor de matrícula ...-CSC-OS-..., em que se fazia transportar, e o veículo automóvel de matrícula EE-...-..., propriedade da Ré, então conduzido pelo Réu, a quem imputa a culpa exclusiva do mesmo.
Pede a condenação dos réus a pagar-lhe a quantia de 8000000 escudos, acrescida dos juros legais, indemnização compreensiva de danos patrimoniais e danos não patrimoniais relativos à dita epilepsia, que lhe sobreveio após o trânsito da sentença que homologou uma transacção que celebrou a seu tempo com os réus, no processo 1387/86, 3º Juízo, 1.ª secção, do tribunal judicial de Cascais.

2. Os réus contestaram, arguindo, entre outras excepções, que para aqui não são relevantes, a excepção de caso julgado.

3. No despacho saneador foi proferida decisão que julgou procedente a excepção de caso julgado e absolveu os Réus da instância.
Agravou o autor. E a Relação de Lisboa julgou procedente o recurso, revogando a decisão recorrida, ordenando que a instância prossiga.
Daí novo agravo, agora sustentado pelos réus, defendendo a formação de caso julgado anterior sobre a matéria da causa e, como assim, impeditiva da continuação desta.
II
Objecto do agravo:
Em síntese, e condensando-as, são as seguintes as conclusões de todos os réus/agravantes ( fls. 341 e 343):
I - O artigo 564, n. 2, do Código Civil, destina-se a regular a actividade do tribunal e a definir, na sequência da prova produzida, quais os danos que podem ser considerados previsíveis e os que não poderão ser previstos durante o processo.
II - O A. e ora recorrido, no primeiro processo alegou a possibilidade de vir a sofrer danos futuros e pediu a condenação dos RR ora recorrentes, num valor como indemnização pelos referidos danos.
III - Ao acordar no montante global para a indemnização as partes estão a substituir-se a actividade do Tribunal e a fixar elas próprias o montante indemnizatório e os danos cobertos.
IV - Ao definir que o valor acordado se refere a todos os danos inerentes ao acidente, as partes estão a abranger todos os danos possíveis incluindo os futuros.
V - A fixação do valor indemnizatório sem qualquer referência a renúncia a direitos, é admissível e não constitui renúncia antecipada aos direitos do credor.
VI- A epilepsia pós-traumática é um dano previsível na sequência de acidente de viação, nomeadamente havendo lesões na zona da cabeça.
VII- Entre o presente processo e o anterior há identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir.
VIII . O acórdão recorrido ao decidir como decidiu, violou o caso julgado formado no processo n°. 1387/86, da 1ª. Secção do 3°. Juízo do Tribunal Judicial de Cascais.
III
Direito aplicável:
1. A questão colocada pelo presente agravo cinge-se em saber se há ou não caso julgado. Que sim, dizem os réus: que não, diz o autor!
Naturalmente, que o caminho da averiguação passa por saber o que é que foi julgado antes, ou seja, o que é que ficou decidido no processo de Cascais, já mencionado, que findou por transacção judicial, devidamente homologada.(Fls. 228).
Mas, entretanto, e para enquadramento jurídico / temático do problema que vem suscitado, e que acaba de ser enunciado, antecipemos uma nota introdutória:

2. « Do caso julgado direi muito pouco e muito brevemente: porque sobre o vastíssimo tema pouco resta dizer, que não seja inútil» - Professor Castro Mendes, Limites Objectivos do Caso Julgado, página 16, nota 6, citando uma frase, que ficou célebre para a história do caso julgado, do autor italiano, Chiovenda, numa conferência por este produzida, em Nápoles, em 1905.
Vão quase cem anos sobre a afirmação. E o conceito material de caso julgado e o seu alcance objectivo, não mudou.
Daí que, também nós próprios, nos limitemos a uma breve síntese de introdução compreensiva do tema em debate.
Toda a sentença vale apenas rebus sic stantibus, razão pela qual o Professor Alberto dos Reis referia que «o caso julgado material subsiste enquanto se mantém o condicionalismo que o ditou; por isso se rompe quando desaparece a base em que assentava». (Código de Processo Civil, anotado, V, Página 178.)
O que significa em termos de lei, que o objecto do recurso convoca especialmente, as disposições dos artigos 498º-3 e 4, 671º-1 e 673º,do Código do Processo Civil, como referências ponderativas sobre os limites materiais do caso julgado.

3. Feita esta introdução, lembremos a parte útil do artigo 498º, que acaba de mencionar-se, e que, desde já, ocorre à trajectória do discurso:
«Repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra, quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir....
Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.
Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico ...»
É inquestionável que, salvo a seguradora, as partes - o autor e os réus - são as mesmas na acção que correu em 1986, no tribunal de Cascais.
Nem os recorrentes tal contestam.
Importa, então, analisar se são idênticos os pedidos na acção anterior, e nesta, se são as mesmas as respectivas causas de pedir e, finalmente, qual o exacto alcance do conteúdo negocial homologado judiciariamente. (Fls. 227/228).

4. Vejamos, primeiro, o pedido anterior formulado pelo autor perante o Tribunal de Cascais:
O pedido é o efeito jurídico pretendido pelo autor. E é idêntico quando em ambas as causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico - diz o artigo 498º-3, transcrito.
Não é necessária uma rigorosa identidade formal entre o pedido nas duas acções. Basta que seja coincidente o objectivo fundamental de uma e de outra das acções.
Há identidade de pedidos quando nas duas acções ambos são qualitativamente iguais, embora quantitativamente diferentes, se referidos à mesma causa geradora. E não têm que coincidir ponto por ponto.
Têm apenas que visar essencialmente o mesmo efeito.

4.1. Ora, no caso em análise, o efeito jurídico solicitado pelo autor nesta, como na anterior acção, é o mesmo: O que o autor pretendeu ( e volta a pretender agora) foi uma indemnização pelos danos decorrentes do acidente de viação, causa geradora do pedido accionado no processo n.º 1387/86, que correu pelo tribunal de Cascais.
O mesmo tipo de solicitação está agora em causa.
A pretensão deduzida numa e noutra das acções é em tudo qualitativamente idêntica: o direito a ser indemnizado, em virtude dos danos que o autor sofreu, como resultantes do acidente de viação de que tratou a primeira acção, que terminou por transacção entre as partes, nos termos que adiante são considerados.
Consequentemente, não custa aceitar que os pedidos possam ser qualitativamente iguais. Mas seguramente divergindo, relativamente à extensão do dano indemnizável, e à correspondente causa geradora em que se baseia, como se verá a seguir.

5. Haverá, ou não, identidade nas causas de pedir - eis a questão que segue analisar, conforme se enunciou, no ponto 3, parte final.
Há identidade da causa de pedir - diz a lei, o transcrito artigo 498º-4 - quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico.
Pergunta-se, quais são então, os factos juridicamente relevantes, donde procede a pretensão?
A causa de pedir nos acidentes é complexa, integrada por um conjunto de factores integrantes dos diferentes pressupostos, que são cumulativos, da obrigação de indemnizar que lhes corresponde.
A causa de pedir, lembre-se, diz-se idêntica quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico. «Trata-se do facto jurídico concreto ou específico invocado pelo autor, como fundamento da sua pretensão e destina-se, além do mais, a impedir que o demandado seja compelido a defender-se de toda e qualquer possível causa de pedir, só tendo que defender-se da concretamente invocada pelo autor». (Professor Vaz Serra, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 109º, página 313.)
Sucede, na situação em apreço, que a causa de pedir da primeira acção não foi invocado o facto da existência de manifestações epiléticas post traumáticas, desconhecidas, então, pelo lesado, porventura consequentes do acidente.
Nem os réus se puderam, por isso, defender dos factos reveladores, nem ambas as partes tiveram esses factos como circunstância ponderativa da indemnização que transaccionaram, nem o juiz a considerou, ao proceder à homologação da transacção. O que não está na causa, não pode estar no efeito.

5.1. Dissecando um pouco mais a matéria, podemos desenvolvê-la a outra luz de abordagem. Assim:
O quadro material em que se estrutura a acção anterior, enquanto substanciadora da causa de pedir, revelou uma conduta geradora da responsabilidade civil, integrante do tipo legal previsto pelo artigo 483 n. 1, do Código Civil.
Vale a pena recordar esses elementos integrantes: são os elementos que constituem os pressupostos da obrigação de indemnizar a que e reportam os artigos 562º e seguintes, tendo como referência a responsabilidade civil, convocada pelo indicado artigo 481 n. 1 e 2.
Os pressupostos são conhecidos, e actuam cumulativamente: A acção ou omissão; a culpa ( nos casos de responsabilidade subjectiva); a ilicitude ( se a conduta for proibida) a adequação causal; e, finalmente, o dano indemnizável.
É aqui - num destes pressupostos - que reside a essência do agravo: o pressuposto do dano, e dentro deste, do dano previsível.
Terá este sido contemplado na conduta geradora do tipo legal falado há pouco, quando se desencadeou a primeira acção?

5.2.Ponderemos,então, este aspecto: o dano indemnizável, para os efeitos aqui em vista, pode ser presente ou futuro, ou revestir ambas as modalidades.
Quanto aos danos futuros, assinala o artigo 564º-2, que, na fixação da indemnização, pode o tribunal atender aos danos futuros, desde que sejam previsíveis (Para que o tribunal possa atender aos danos futuros, é necessário que sejam previsíveis com segurança bastante, porque se não forem, não pode o tribunal condenar o responsável a indemnizar danos que não se sabe se virão a produzir-se; se não for seguro o dano futuro, a sua reparação só ode ser exigida quando ele surgir. (Revista de Legislação, Ano 113º página 326, anotação do Professor Vaz Serra, ao acórdão deste tribunal de 22 de Janeiro de 1980, publicado no B.M.J. nº293/327).).
É necessário que sejam danos normalmente previsíveis, não meramente conjecturas de verificação mais ou menos remota.
Não pode condenar-se um responsável por danos que, num contexto de ponderação normal, não sejam perspectiváveis de vir produzir-se.
Seria uma condenação aleatória. E a produzir-se, não poderia, por antecipação, um lesado renunciar ao cumprimento da correspondente obrigação, segundo os artigo 800º-2 e 809º.
Ora, que danos é que foram considerados na acção anterior e na consequente sentença homologatória da transacção?
Os seguintes:
Ao RR... comprometem-se a pagar aos autores por conta de todos danos inerentes ao acidente em causa a quantia de 2100000 escudos.
O juiz homologou a transacção cessando a causa nos seus precisos termos, e declarou extinta a instância ( fls. 228).
É verdade que na primeira acção foram alegados danos futuros, mas estamos sempre condicionados aos danos futuros previsíveis.
Os não previsíveis, por isso mesmo, não podem estar alegados, pois estão fora do âmbito da previsibilidade futura, das partes.
Não cabem na sua prognose.
A circunstância de na transacção se assinalar todos os danos, naturalmente que está condicionada à sua previsibilidade. Só podem ser todos os danos previsíveis .
Não pode indemnizar-se o dano que não é previsível.
E voltamos ao ponto de partida!

5.3. Em termos práticos e simples, pode perguntar-se, se a epilepsia superveniente, após o encerramento da acção anterior, em 1987, estava abrangida como causa de pedir na acção e, depois, foi considerada no consequente acordo/transacção efectuado pelas partes na acção identificada, que correu no tribunal de Cascais e, a montante, na causa de pedir que desencadeou o pedido e, quantitativamente, neste?
A nosso ver, a resposta é garantidamente negativa.
Este efeito lesivo é superveniente e não era expectável para as partes, mormente para o lesado, quando transigiu na dita acção, a que assim, aceitou pôr termo.(Fls.228).
Logo, não fazia parte da extensão do dano cujo montante as partes acordaram transaccionar. Não estava abrangido pela causa de pedir na acção anterior, não se incluía, por arrastamento, quantitativamente no pedido, não pôde ser considerado na transacção homologada.
Enfim, não foi nunca falado da acção anterior, sequer como dano latente, muito menos como consequência adequada do acidente.

5.3. De tudo, resulta uma nesga de causa de pedir, uma parte quantitativa do pedido, e por tabela, um segmento de ponderação da transacção homologada, que terão escapado ao objecto da acção anterior, partes essas susceptíveis de constituírem objecto de nova acção, sem que haja violação do princípio do caso julgado material.
Numa síntese, o que, por agora, parece seguro, é que o dano em toda a sua possível extensão, não foi abrangido pela primeira acção.
Não se integrava, nem poderia integrar, por total imprevisibilidade, na complexa causa de pedir por acidente de viação, da acção anterior, na parte concernente à real extensão do dano, nem, quantitativamente, no pedido ou no efeito jurídico que se queria fazer valer com a mesma acção.
Dito de outro modo: Nem na causa de pedir, nem quantitativamente o pedido, relativamente ao quantum indemnizatório, se continha a verdadeira e real dimensão do dano, porque havia, certa extensão a descoberto, dada imprevisibilidade da sua verificação.

6. É altura de retomar o discurso introdutório, coordenando, por fim, o percurso do exercício judiciário realizado: Toda a sentença vale apenas rebus sic stantibus.
Ora, não há dúvida que as condições pressupostas na sentença homologatória da transacção, e nesta, podem não ter sido as reais quanto à total dimensão do dano indemnizável.
É, por certo, um Quod erat demonstandum a que não deve fechar-se a porta ao autor, permitindo-lhe que a instância continue, para lhe facultar essa demonstração, sendo caso.
Logo, não pode impedir-se, sob invocação de caso julgado, que o credor/lesado, venha demonstrar a verdadeira realidade.

7. Em conclusão: Não está preenchido pressuposto da futuridade previsível de que fala o artigo 564 n. 2.
Por isso, não houve violação do caso julgado anterior, como pretendem os agravantes.
V
Decisão:
Termos em que, tudo ponderando, acordam no Supremo tribunal de Justiça,
Em negar provimento ao agravo, confirmando o acórdão recorrido.
Custas pelos agravantes.
Lisboa, 14 de Março de 2002
Neves Ribeiro,
Óscar Catrola,
Araújo de Barros.