Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2254/03.1TBCLD.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: LOPES DO REGO
Descritores: PRESCRIÇÃO PRESUNTIVA
EXPLORAÇÃO AGRO-PECUÁRIA
EMPRESA COMERCIAL
Data do Acordão: 02/23/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
Não se enquadram no âmbito da al. b) do art. 317º do CC, enquanto norma delimitadora dos pressupostos da figura da prescrição presuntiva, os créditos emergentes de fornecimentos de rações, essenciais ao exercício empresarial pelo devedor de actividade no sector agro-pecuário (suinicultura), realizada de forma habitual e com fins lucrativos, envolvendo exploração de razoável dimensão económica - por , neste caso, tais fornecimentos se destinarem ao exercício industrial do devedor , extravasando o estrito âmbito dos §§ 1º e 2º do referido art. 230º, não podendo, consequentemente, ser aquele considerado como mero explorador rural que faz fornecimentos dos produtos da respectiva propriedade.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

   1. AA, Lda instaurou acção declarativa, na forma de processo comum ordinário, contra BB, pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia de € 39.852,54, sendo € 26.927,39 de capital e € 12.925,15 de juros de mora vencidos, acrescida de juros legais vincendos sobre a quantia de € 26.927,39 à taxa legal de 12% ao ano, até ao efectivo recebimento daquele valor pela autora.

O réu apresentou contestação, onde se defendeu por excepção (de prescrição) e por impugnação, terminando o seu articulado sustentando que deveria a presente acção ser julgada improcedente por não provada e em consequência:

     - Quanto aos créditos respeitantes às facturas juntas como documentos 1 a 28 ser considerada procedente a prescrição invocada;

     - Quanto aos créditos respeitantes às facturas juntas como documentos 29 a 41, ser o réu absolvido do pedido por as mesmas não corresponderem a qualquer fornecimento de bens;

     - Ser a autora condenada como litigante de má fé em multa e indemnização ao réu, cujo quantitativo seria liquidado a final;

     - Quando assim se não entendesse, e a título subsidiário, ser o réu absolvido do pedido contra ele deduzido por as quantias em dívida se encontrarem pagas na totalidade.

     A autora respondeu à contestação na réplica, pugnando pela improcedência da defesa por excepção deduzida 

     -Na fase de saneamento e condensação, foi relegado para final o conhecimento da excepção de prescrição invocada pelo réu na sua contestação.

         Realizada a audiência final, foi proferida sentença a julgar improcedente a excepção peremptória de prescrição invocada pelo Réu, condenando-se este a pagar à autora a quantia de € 26.927,39, acrescida de juros de mora à taxa legal de que são titulares as empresas comerciais, às taxas legais atrás indicadas, juros esses vencidos e vincendos, contados desde 23/11/1999 até integral pagamento, absolvendo ainda a Autora do pedido de condenação como litigante de má fé.

    Inconformado, o R. recorreu, tendo, porém, a Relação negado provimento ao recurso.

   Após caracterizar a figura da prescrição presuntiva e o modo como, face à lei civil, a mesma pode ser ilidida, considerou a Relação:

   No caso dos autos o tribunal deu como provado que as facturas de fls. 6 a 33 não se encontram pagas e fundamentou a sua decisão no depoimento das testemunhas CC e DD. Tratando-se de crédito sujeito ao prazo prescricional do art. 317 do C.Civil, a prova do não cumprimento só poderia ser feita por confissão do devedor, mas este deveria alegar o cumprimento, estando dispensado, face a presunção, de provar o pagamento.

Conforme resultou provado e foi acima referido as facturas decorrem de contratos de compra e venda de produtos que o embargante utiliza na sua actividade que é a engorda de suínos e compra e venda de leitões, que tem uma componente comercial.

A presunção de cumprimento prevista no art. 317 do C.Civil aplica-se a vendas de comerciantes e industriais a quem não é comerciante ou não é industrial ou, sendo-o, não destina os produtos à sua actividade.

Tendo por finalidade evitar dificuldades de prova aos consumidores por não ser comum guardar comprovativos de pagamentos durante largos períodos.

Atentos os produtos referidos nas facturas e a actividade desenvolvida pelo Apelante, os mesmos foram usados na sua actividade pelo que a prescrição prevista no art. 317 do CC não se aplica às facturas de fls. 6 a 33.

Deste modo competiria ao Apelante fazer prova do pagamento do preço ( art. 342, do CC).

E também não estava a Apelada impedida de fazer prova do seu não cumprimento por qualquer meio de prova admitido por lei e sujeito a livre apreciação do julgador (art. 655  do CPC), o que fez com sucesso.

Assim, embora por motivos diversos, considera-se que não se verifica a prescrição invocada pelo Apelante relativamente às facturas 6 a 33 dos autos, devendo pagar o seu valor à Apelada, acrescida de juros legais, tal como referido no sentença recorrida.

   3. Inconformado com tal sentido decisório, interpôs o R. a presente revista, que encerra com as seguintes conclusões que lhe delimitam o objecto:

A – O conceito normativo de agricultura engloba a silvicultura e a pecuária.

B – Dos arts. 230º ,§§1º e 2º, nºs 2 e 4  do C. Com., resulta que o agricultor, detentor de uma exploração rural, cujo produto da sua actividade é a base da sua economia familiar, não faz da prática de actos de comércio a sua profissão, não exercendo profissionalmente o comércio nos termos do art. 13º, nº1, do C. Com.

C- Não sendo o R. comerciante, é aplicável in casu o disposto na primeira parte da al. b) do art. 317º do CC.

D – Deverá ser julgada procedente a excepção peremptória de prescrição presuntiva prevista na 1ª parte da al. b) do art. 317º do CC.

   4.As instâncias fizeram assentar a solução do litígio na seguinte matéria de facto:

1. A autora é uma sociedade que se dedica ao comércio de rações compostas para animais (A).

2. O réu dedica-se à criação de suínos (B).

3. No exercício da sua actividade a autora, a pedido do réu, vendeu e entregou ao réu os artigos das facturas juntas a fls. 6 a 33 dos autos, nomeadamente:

     - Factura n.° 56278, de 02/10/1998, no valor de 349,20 euros (70.009$00);

    - Factura n.° 56303, de 02/10/1998, no valor de 48,31 euros (9.686$00);

    - Factura n.° 56364, de 08/10/1998, no valor de 1.101,42 euros (220.815$00);

    - Factura n.° 56583, de 16/10/1998, no valor de 300,89 euros (60.323$00);

    - Factura n.° 56692, de 21/10/1998, no valor de 1.149,73 euros (230.501$00);

    - Factura n.° 57011, de 22/12/1998, no valor de 612,77 euros (122.850$00);

     - Factura n.° 57175, de 29/12/1998, no valor de 657,43 euros (131.802$00);

     - Factura n.° 57446, de 05/01/1999, no valor de 566,30 euros (113.532$00);

     - Factura n.° 57543, de 11/01/1999, no valor de 111,30 euros (22.313$00);

     - Factura n.° 57389, de 15/01/1999, no valor de 807,87 euros (161.963$00);

     - Factura n.° 57650, de 20/01/1999, no valor de 313,98 euros (62.948$00);

     - Factura n.° 57836, de 27/01/1999, no valor de 1.214,02 euros (243.390$00);

     - Factura n.° 57962, de 05/02/1999, no valor de 660,56 euros (132.431$00);

    - Factura n.° 59030, de 12/02/1999, no valor de 993,74 euros (199.227$00);

   - Factura n.° 59261, de 18/02/1999, no valor de 442,87 euros (88.788$00);

    - Factura n.° 59327, de 24/02/1999, no valor de 1.133,76 euros (227.299$00);

     - Factura n.° 59409, de 03/03/1999, no valor de 365,57 euros (73.290$00);

    - Factura n.° 59548, de 09/03/1999, no valor de 1.212,58 euros (243.101$00);

    - Factura n.° 59630, de 18/03/1999, no valor de 715,53 euros (143.451$00);

    - Factura n.° 59812, de 24/03/1999, no valor de 1.303,98 euros (261.424$00);

   - Factura n.° 59912, de 31/03/ 1999, no valor de 715,53 euros (143.451$00);

   - Factura n.° 60995, de 07/04/1999, no valor de 1.318,38 euros (264.311$00);

   - Factura n.° 60642, de 13/04/1999, no valor de 728,62 euros (146.076$00);

   - Factura n.° 60841, de 23/04/1999, no valor de 241,57 euros (48.431$00);

   - Factura n.° 60842, de 23/04/1999, no valor de 988,29 euros (198.135$00);

   - Factura n.° 60010, de 28/04/1999, no valor de 284,48 euros (57.033$00);

   - Factura n.° 60024, de 30/04/1999, no valor de 488,52 euros (97.939$00);

   - Factura n.° 60129, de 05/05/1999, no valor de 929,22 euros (186.291$00)
(C).

   4. Ficou acordado que as facturas referidas em 3 tinham vencimento a 30 dias após a data da sua emissão (D).

   5. A autora forneceu e entregou ao réu artigos constantes das facturas de fis. 34 a 46 dos autos, nomeadamente:


    -   Factura n.° 60267, de 12/05/1999, no valor de 815,83 euros;

    -   Factura n.° 60329, de 17/05/1999, no valor de 1.055,07 euros;

    -    Factura n.° 60334, de 18/05/1999, no valor de 26,19 euros;

    -    Factura n.° 61653, de 24/06/1999, no valor de 754,18 euros;

   -    Factura n.° 61791, de 01/07/1999, no valor de 1.107,05 euros;

  -   Factura n.° 61876, de 08/07/1999, no valor de 61,41 euros;

    -   Factura n.° 61985, de 14/07/1999, no valor de 888 euros;

    -  Factura n.° 62109, de 20/07/1999, no valor de 390,18 euros;

    -   Factura n.° 62200, de 26/07/1999, no valor de 826,59 euros;

    -   Factura n.° 62340, de 06/08/1999, no valor de 445,83 euros;

   -  Factura n.° 62546, de 19/08/1999, no valor de 245,24 euros;

  - Factura n.° 63009, de 10/09/1999, no valor de 310,16 euros;

  - Factura n.° 63251, de 24/09/1999, no valor de 245,24 euros (1.°).

           6. Facturas que o réu recebeu (2.°).

            7. Ficou acordado que as facturas referidas em 5 tinham vencimentos entre 30 a 60 dias após a data da sua emissão, sendo que apesar disso a autora aceitava que o réu pagasse para além do prazo acordado sem que lhe exigisse juros de mora (3.°).

            8. O réu não pagou o preço titulado nas facturas referidas em 3 (4.°).

            9. O réu desenvolvia a actividade referida em 2 como detentor de uma exploração rural (5.°).

            10. Dedicando-se à engorda de leitões gerados nessa exploração, sendo que no período compreendido entre Agosto de 1998 e Dezembro de 1999 as respectivas declarações de existências de suínos foram as constantes de fls. 161 a 165, e dedicando-se também à compra e venda de leitões (6.°).

            11. Cujo produto das actividades referidas em 10 era a base da sua economia familiar (7.°).        

   4. O objecto da presente revista circunscreve-se, pois, à questão da interpretação da norma constante do art. 317º, alínea b), do CC, enquanto define os pressupostos da aplicabilidade do instituto da prescrição presuntiva a créditos emergentes de actividades comerciais ou industriais do credor, estabelecendo que a dita prescrição de 2 anos é aplicável aos créditos dos comerciantes ou industriais pelo fornecimento de mercadorias ou produtos , desde que a contraparte – o devedor - os não destine ao seu comércio ou ao exercício industrial .

   Estando em causa, na situação dos autos , a verificação de uma prescrição presuntiva, não pode naturalmente perder-se de vista a essencial fisionomia desta figura jurídica.

   Como se refere no Ac. de 9/2/10, proferido pelo STJ no P. 2614/06.6TBMTS.S1:

   O art. 312º, refere que “as prescrições de que trata a presente subsecção fundam-se na presunção de pagamento”.
As prescrições presuntivas constituem presunções de pagamento, tendo como fundamento e base obrigações que costumam ser pagas em prazo curto e em relação às quais não se costuma exigir recibo de quitação. Estas prescrições destinam-se “a proteger o devedor contra o risco de satisfazer duas vezes dívidas de que não é usual exigir recibo ou guardá-lo muito tempo”).
As prescrições presuntivas têm razão diversa das presunções extintivas. Enquanto estas têm a sua explicação em razões de segurança jurídica derivadas da inércia do credor, aquelas justificam-se para proteger o devedor da dificuldade de prova do pagamento, correspondendo, como já se disse, a obrigações que costumam ser pagas em prazo bastante curto em relação às quais não é costume exigir recibo de quitação.
As prescrições presuntivas não têm o mesmo efeito das prescrições extintivas. Nas prescrições presuntivas, decorrido o prazo legal, presume-se o pagamento, ficando o devedor dispensado da prova do pagamento. Isto é, parte-se do princípio que o devedor pagou, dispensando-o do ónus que sobre ele impenderia de provar o pagamento, de harmonia com o disposto no art. 342º nº 2 (facto extintivo do direito invocado). Nas prescrições extintivas o beneficiário tem a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito, como decorre do disposto no nº 1 do artigo 304º. Quer dizer, em contrário das prescrições extintivas, as prescrições presuntivas apenas dispensam o beneficiário do ónus de provar o pagamento. A presunção de pagamento por banda do devedor faz deslocar o ónus da prova do não pagamento para o credor. Ou seja, existindo a presunção de pagamento a favor do devedor, competirá ao credor ilidir essa presunção, demonstrando que aquele não pagou. Esta presunção de pagamento não dispensa, porém, o devedor de alegar o pagamento, como tem sido jurisprudência constante deste STJ.)
Refere o acórdão deste STJ de 22-1-2009 (a este propósito que “como este Supremo Tribunal já observou diversas vezes … e expressamente resulta da lei, a prescrição presuntiva não tem o mesmo efeito da prescrição extintiva; o decurso do respectivo prazo não confere ao “beneficiário a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito (nº 1 do artigo 304º do Código Civil); antes cria, apenas, a presunção de que o devedor cumpriu (artigo 312º do mesmo Código)”.
A ilisão da presunção de pagamento, só poderá ser feita por confissão expressa do devedor, sendo certo que a confissão extrajudicial só releva quando for realizada por escrito (art. 313º), ou por confissão tácita, considerando-se, neste contexto, confessada a dívida, se o devedor se recusar a depor ou a prestar juramento em tribunal, ou praticar em juízo actos incompatíveis com a presunção de cumprimento (art. 314º). Como referem a este propósito Pires de Lima e Antunes Varela) “visando as prescrições presuntivas … conferir protecção do devedor que paga uma dívida e dela não exige ou não guarda quitação, não poderia admitir-se que o credor contrariasse a presunção de pagamento com quaisquer meios de prova. Exige-se, por isso, que os meios de prova do não pagamento provenham do devedor”.
Quer dizer, ocorrendo a presunção de pagamento, fica dispensado o devedor do ónus de provar o pagamento, competindo ao credor ilidir essa presunção, demonstrando que ele não pagou, o que terá que fazer provando a confissão expressa ou tácita do devedor.
Os prazos (curtos) das prescrições presuntivas estão definidos nos arts. 316º e 317º, interessando-nos para o presente caso o disposto no art. 317º al. b), pois foi nesta disposição que as instâncias integraram o caso vertente, concluindo já ter decorrido o prazo de prescrição (de dois anos).
Estabelece este dispositivo que “prescrevem no prazo de dois anos… os créditos dos comerciantes pelos objectos vendidos a quem não seja comerciante ou os não destine ao seu comércio e bem assim os créditos daqueles que exerçam profissionalmente uma indústria, pelo fornecimento de mercadorias ou produtos, execução de trabalhos ou gestão de negócios alheios, incluindo despesas que hajam efectuado, a menos que a prestação se destine ao exercício industrial do devedor”.
Estabelece, pois, esta disposição a prescrição presuntiva relativamente a créditos de comerciantes, sobre coisas vendidas a quem não seja comerciante que se não destinem ao seu comércio (ou porque ele não se dedique a tal comércio ou porque dedicando-se, destine a coisa para uso próprio) e a créditos de industriais desde que a actividade desenvolvida pelo devedor se não destine à sua indústria.
Para que o beneficiário desta prescrição possa dela aproveitar, terá que alegar e provar, que está em causa um crédito de um comerciante (ou um crédito de pessoa que exerça profissionalmente uma indústria), que decorreu o prazo de dois anos sobre a venda (ou sobre o exercício da actividade industrial exercida) e que o objecto alienado (ou a actividade industrial exercida) não foi aplicado no comércio (ou na indústria). Provando estas circunstâncias, fica dispensado do ónus da prova do cumprimento da obrigação.
São, assim, elementos constitutivos desta prescrição presuntiva, o crédito ser de comerciante ou de industrial, o decurso do prazo de dois anos sobre a venda de bem (ou o exercício da actividade industrial exercida) e não ser o devedor comerciante (ou industrial), ou sendo-o, não destinar o bem ou a actividade ao seu comércio (ou ao seu exercício industrial).

   Sendo evidente que, no caso dos autos, a A. forneceu ao R. rações compostas para alimentação dos animais por ele criados, no âmbito do exercício profissional e com fins lucrativos de uma  actividade agropecuária que garantia a sua subsistência económica, importa aferir se se verifica, quanto ao R./devedor, o requisito previsto na parte final do citado preceito legal: essa actividade de exploração agropecuária, nos termos concretos em que vinha sendo exercida, preenche ou não a fattispecie constante da referida norma legal – ou seja: poderá considerar-se que o devedor destinou as rações fornecidas ao seu comércio ou ao exercício de uma actividade de natureza industrial?

   A resposta a esta dúvida fundamental obriga-nos a ponderar duas questões:

 - a primeira delas passa pela análise e interpretação da norma constante do art. 230º do C. Comercial, enquanto parece excluir as actividades agrícolas do âmbito da actividade comercial e das empresas comerciais;

- a segunda prende-se com a exacta interpretação do regime normativo do art. 317º, al. b), do CC, feita à luz dos interesses especificamente tutelados pela figura da prescrição presuntiva ( e que podem não passar por uma automática transposição para esta sede do resultado normativo decorrente da interpretação do  referido conceito de empresa comercial, tal como se mostra delineado no citado art. 230º do C. Com.) : fará sentido aplicar a uma actividade de natureza empresarial, profissional e lucrativa, exercida pelo devedor no sector agro-pecuário, um regime normativo pensado para valer ao devedor no caso de dívidas que costumam ser pagas rapidamente e de cujo pagamento não é habitual exigir recibo? 

   Parece-nos efectivamente imprescindível proceder a uma interpretação actualista e funcionalmente adequada da norma do C.Com. definidora das empresas comerciais – e muito em particular dos §§ 1º e 2º, enquanto excludentes das actividades de cariz agrícola do âmbito dessas empresas: na verdade, esta opção de excluir a comercialidade das actividades agrícolas, se tinha sentido à data da edição do velho C. Comercial, .em 1888, revela-se, perante os padrões e formas de exercício económico produtivo actuais, amplamente anacrónica. Tais actividades eram fundamentalmente de subsistência e de auto-consumo. Não envolviam nem empresarialidade nem risco especulativo. Foi-lhes dado o estatuto civil. ( Pedro Pais de Vasconcelos, Direito Comercial, Vol. I, Pag. 92) , afirmando logo a seguir:

   Como construir um critério de concretização que possa distinguir eficientemente a agricultura artesanal da agricultura empresarial? A solução está no recurso ao método tipológico atrás proposto. Perante uma exploração agrícola ou agropecuária, ou silvícola , etc., não se deve recusar, desde logo e sem mais, a qualificação como empresa comercial por mera aplicação formal dos §§ do ar. 230º do Cód. Comercial.

   É preciso proceder a um exame analítico da actividade exercida. Se for consistente exclusivamente no cultivo da terra e colheita dos seus frutos, a conclusão será negativa. Se for exercida mais do que uma actividade, a qualificação deverá ser ainda recusada se a actividade exercida para além da fruição da terra se limitar ao fabrico ou manufatura dos frutos do cultivo da terra, ou ao seu fornecimento. Os §§1º e 2º do art. 230º só recusam a qualificação como empresa comercial à actividade de mera fruição, incluindo o fabrico e manufatura dos produtos do terreno que cultiva, acessoriamente à sua exploração agrícola e ainda o fornecimento desses produtos.

   Outras actividades que, para além delas, forem exercidas conjuntamente com o cultivo e fruição da terra poderão justificar a qualificação como empresa comercial se corresponderem mais ou menos intensamente a uma ou mais actividades listadas nos 7 nºs do art. 230º - já que o agricultor também pode praticar atos objetivamente comerciais como a compra para revenda, por exemplo, de vitelos para engorda e revenda, ou de aves ou plantas para criação e revenda, ou a produção industrial de ovos. Há uma infinidade de atividades que o agricultor pode exercer na sua propriedade, que não são agrícolas e que lhe podem proporcionar proventos até superiores ao da atividade propriamente agrícola. Estas atividades, se não forem meramente acessórias ao cultivo ou fruição da terra, podem qualificar como mercantil aquela empresa.

   Transpondo estas considerações para a especificidade da situação litigiosa, verifica-se que o R. se dedicava à criação de suínosengorda de leitões gerados na sua exploração agrícola e compra e venda de leitões, -sendo o lucro proveniente de tais actividades a base da sua economia familiar. A dimensão da exploração agro pecuária de que era detentor está bem patente, quer no valor das dívidas provenientes do fornecimento de rações – envolvendo, só em relação à A., o montante do capital peticionado, relativamente ao período temporal compreendido entre  2/10/98 e 24/9/99, e a detenção do número de suínos documentado nos autos – que chegou a atingir 162 em Dezembro de 1998.

   Daí que se entenda, perante este quadro factual, que a intensidade e a extensão da actividade agropecuária ( suinicultura), levada a cabo com intuito lucrativo pelo R. no seu prédio rústico – envolvendo nomeadamente a actividade de compra e venda de leitões - extravasa o estrito âmbito dos §§ 1º e 2º do referido art. 230º, não podendo, consequentemente, ser aquele considerado como mero explorador rural que faz fornecimentos dos produtos da respectiva propriedade ( cfr. sobre situação equiparável o Ac. Rel. Lisboa de 29/11/07, in CJ V/07, pag. 108).

   Estamos, deste modo, confrontados com o exercício profissional e lucrativo pelo R./devedor, na qualidade de empresário individual, de uma actividade económica no campo da indústria agropecuária , que transcende manifestamente o âmbito daqueles §§ 1º e 2º- devendo, deste modo, qualificar-se o fornecimento de mercadorias ( rações) pela A., essencial a tal actividade, como destinado ao exercício industrial do R na referida actividade económica, envolvendo exploração sistemática da capacidade produtiva dos animais criados.

   Acresce que uma interpretação funcionalmente adequada da teleologia subjacente ao instituto da prescrição presuntiva sempre levaria a excluir a respectiva aplicabilidade a casos, como o dos autos, em que está litígio o pagamento de fornecimentos feitos a um empresário do sector agro- pecuário, legalizado perante a Administração ( doc. de fls. 160 e segs.), detentor de exploração da dimensão que nos é revelada pela matéria de facto apurada – por não ser facilmente concebível que, no exercício profissionalizado dessa actividade económica – naturalmente sujeita a regras contabilísticas e fiscais minimamente exigentes – não guarde e conserve documentação essencial, referente a um dos mais relevantes custos de produção por ele suportados.

   Ou seja: não foi seguramente para tutela de situações de exercício de uma  actividade empresarial por parte do devedor do tipo da documentada nos presentes autos - obrigatoriamente sujeita a regras de organização contabilística minimamente exigentes - que o legislador delineou o regime das prescrições presuntivas, destinado a tutelar o legítimo interesse do devedor em não permanecer onerado, por períodos temporais prolongados, com a demonstração do pagamento de débitos normalmente exigidos de imediato e de que não seja habitual exigir documento de quitação.

   5. Nestes termos e pelos fundamentos apontados nega-se provimento à revista.

   Custas pelo recorrente.

Lisboa, 23 de Fevereiro de 2012

Lopes do Rego (Relator)

Orlando Afonso

Távora Victor