Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
290/07.8TTSTS.P3.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO LEONES DANTAS
Descritores: DEVER DE LEALDADE
DEVER DE OBEDIÊNCIA
JUSTA CAUSA DE DESPEDIMENTO
Data do Acordão: 10/08/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Área Temática:
DIREITO DO TRABALHO - CONTRATO DE TRABALHO / DIREITOS, DEVERES E GARANTIAS DAS PARTES / DEVERES DO TRABALHADOR / CESSAÇÃO DO CONTRATO / CESSAÇÃO POR INICIATIVA DO EMPREGADOR / DESPEDIMENTO COM JUSTA CAUSA.
Doutrina:

- MARIA do ROSÁRIO PALMA RAMALHO, Direito do Trabalho, Parte II – Situações Laborais Individuais, 3.ª Edição, 2010, Almedina, pp. 415, 422, 423, 425, 899, 900, 903 e 904.
- MONTEIRO FERNANDES, Direito do Trabalho, 12.ª Edição, Almedina, 2004, p. 233; Direito do Trabalho, 13.ª Edição, Almedina, 2006, p. 564; Direito do Trabalho, 2009, Almedina, 14.ª Edição, p. 591.
- PEDRO ROMANO MARTINEZ, Direito do Trabalho, 2010, 5.ª Edição, Almedina, p.p. 529 e 530.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 608.º, N.º 2, 663.º, N.º 2, 679.º.
CÓDIGO DO TRABALHO (CT) / 2003: - ARTIGOS 121.º, N.º1, ALÍNEAS A), C), D) E E), 396.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 2 DE DEZEMBRO DE 2013, PROCESSO N.º 1445/08.3TTPRT.P2.S1, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
1.º – A noção de justa causa de despedimento, consagrada no artigo 396.º, do Código de Trabalho de 2003, pressupõe um comportamento culposo do trabalhador, violador de deveres estruturantes da relação de trabalho, que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência do vínculo laboral;

2.º − Viola grave e culposamente os deveres de obediência, de zelo, de lealdade, e de respeito para com os colegas de trabalho, consagrados, respetivamente, nas alíneas a), c), d) e e) do n.º 1 do artigo 121.º, do Código do Trabalho de 2003 e no n.º 2 do mesmo artigo, o trabalhador que exerce funções de chefia no setor de sinistros graves do departamento de sinistros de acidentes de trabalho de uma instituição seguradora, que, em violação de diretivas internas de serviço, determina a um subordinado que processe o pagamento de umas despesas, sem que apresente os documentos que as titulam, inviabilizando o controlo da respetiva regularidade.

3.º – A conduta do trabalhador descrita no número anterior afeta de forma intolerável a confiança que o empregador nele deposita e a imagem pública de confiança, prestígio e segurança da instituição seguradora, tornando inexigível a manutenção da relação de trabalho, integrando, por tal motivo, justa causa de despedimento.
Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:


I


AA intentou a presente ação emergente de contrato de trabalho, com processo comum, contra COMPANHIA DE SEGUROS BB, S.A., pedindo que seja declarada a ilicitude do despedimento de que foi objeto e que a Ré seja condenada: a) A reintegrar a A., salvo se esta optar pela indemnização, no valor de € 30.086,55; b) - A pagar à A. as retribuições que deixou de auferir desde a decisão de despedimento até ao trânsito em julgado da decisão que vier a ser proferida; c) - A pagar-lhe a importância de € 2.184,12 a título de fecho de contas e a quantia de € 2.674,36, a título de prémio variável anual e, ainda, a quantia que vier a ser apurada, relativamente à prestação de trabalho extraordinário não remunerado.

Invocou como fundamento da sua pretensão que: - a) O procedimento disciplinar que lhe foi movido prescreveu; b) - Caducou o direito de aplicar a sanção; c) - Inexiste justa causa de despedimento; d) - Não corresponde à verdade que tenha aposto pelo seu punho no documento manuscrito qualquer indicação relativa ao processo onde deveria ser imputado o movimento; e) - Deu cumprimento a todas as suas obrigações; f) - Agiu com base em documentos e procedeu à criação de processo físico que enviou para o arquivo; g) – Pode ter cometido um lapso de leitura ou de escrita; h) – A decisão de despedimento deve ser revogada.

A ação prosseguiu seus termos, vindo a ser decidida por sentença de 17 de setembro de 2009, que que a julgou parcialmente procedente e, consequentemente, declarou a ilicitude do despedimento e condenou a Ré a reintegrar a Autora, com a mesma categoria, antiguidade e retribuição e a pagar-lhe a quantia de € 30.394,00, a título de retribuições vencidas desde 09/04/2007 até 09/02/2009; as retribuições que se vencerem desde aquela última data até ao trânsito em julgado da sentença e a quantia de € 2.184,12 a título de fecho de contas. E do restante peticionado absolveu a Ré.

Inconformada com esta sentença dela recorreu a Ré para o Tribunal da Relação do ... que, por acórdão de 3 de maio de 2010, anulou a decisão recorrida de forma a proceder-se à ampliação da base instrutória.

Tendo a Autora falecido em 4 de novembro de 2010, foram habilitados como herdeiros, por sentença de 4 de outubro de 2011, os seus pais CC e DD.

Alterada a base instrutória em conformidade com o decidido, procedeu-se a audiência de discussão e julgamento, tendo sido proferida sentença, datada de 14 de junho de 2012, que julgou a ação procedente por provada e, em consequência, condenou a Ré a pagar aos habilitados AA. a quantia global de € 62.095,37, acrescida dos juros moratórios legais, a contar do trânsito em julgado da sentença até efetivo e integral pagamento.

Ainda não conformada com o assim decidido, de novo recorreu a Ré para o Tribunal da Relação do ... que veio a conhecer do recurso por acórdão de 8 de abril de 2013, tendo decidido conceder provimento ao recurso, «declarando a nulidade decorrente da deficiente gravação dos depoimentos» e ordenado a «repetição da audiência de discussão e julgamento».

Realizada de novo a audiência de julgamento, veio a ser proferida sentença, datada de 16 de janeiro de 2014, que condenou a Ré nos termos da decisão anteriormente proferida.

Não satisfeita com o decidido recorreu a Ré, de novo, para o Tribunal da Relação do ..., fazendo-o igualmente os habilitados, de forma subordinada, vindo o Tribunal a conhecer dos recursos em causa, por acórdão de 2 de março de 2015, que integra o seguinte dispositivo:

«Nestes termos, sem outras considerações, na parcial procedência do recurso da Ré e na improcedência do recurso subordinado dos AA., acorda-se:

1-) em declarar nula a sentença na parte em que condenou a Ré a pagar aos AA. habilitados “juros moratórios legais a contar do trânsito em julgado desta sentença até efetivo e integral pagamento”.

2-) em revogar a sentença na parte em que condenou a Ré a pagar aos AA. a quantia de 62.095,37, condenando-se a Ré Companhia de Seguros EE, S.A. a pagar aos AA. habilitados, a quantia global de 61.220,22 (sessenta e um mil duzentos e vinte euros e vinte e dois cêntimos), à qual deve ser descontado pela Ré e entregue à Segurança Social o valor do subsídio de desemprego eventualmente recebido pela A. e

3-) no mais, julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.

                                                                                              *

Custas a cargo da Ré recorrente e dos AA. habilitados recorridos, na proporção de 1/3 e 2/3, respetivamente.

Custas do recurso subordinado a cargo dos AA. habilitados recorrentes.»

Ainda inconformada com aquela decisão dela recorre, agora de revista para este Supremo Tribunal, a Ré, integrando nas alegações apresentadas as seguintes conclusões:

«l. Companhia de Seguros BB, S.A. (ora designada como BB - Companhia de Seguros, S.A.), Ré nos autos à margem referenciados, em que é Autora AA, não se conformando com o douto Acórdão de fls. ..., que decidiu - e bem - alterar a matéria dada como provada nos Pontos 34. e 35. (que correspondem aos quesitos 19° e 20° da Base instrutória), decidindo que não existiam os documentos de suporte às despesas invocadas pela Autora, para justificarem o pedido de emissão de recibo e de um cheque reportado a essas mesmas despesas (cujos documentos não existiam), acabou por decidir - mas mal - que inexiste justa causa de despedimento, julgando ilícito o despedimento, decidindo" ... na parcial procedência do recurso da ré .... " Decidindo condenar a ré "a pagar aos habilitados, a quantia global de € 61.220,22 (sessenta e um mil duzentos e vinte euros e vinte e dois cêntimos)", vem da mesma douta sentença recorrer para a Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça.

2. À presente ação é aplicável o novo Código do Processo Civil, com exceção do art° 671.º, n.º 3, de harmonia com o disposto no art° 7°, n° 1, da Lei n° 41/2013, de 26 de janeiro, uma vez que a mesma foi instaurada antes de 1.1.2008 e o douto Acórdão recorrido foi proferido depois da entrada em vigor da referida Lei n.º 41/2013, de 26 de janeiro (que entrou em vigor em 1.9.2013).

3. Assim, apesar de o douto Acórdão confirmar a douta sentença (na parte de que agora se recorre) - sendo certo que existe fundamentação de facto diferente (pois a matéria dos Pontos 34. e 35. da matéria de facto, foi alterada pelo douto Acórdão) - não existe a limitação da "dupla conforme" para a interposição do recurso de revista.

4. Veja-se o douto acórdão, proferido pelo STJ, em 21.5.2014, com a referência 44/1999- A.E2S1, disponível em www.dgsi.pt. que decidiu o seguinte:

"I - O novo regime dos recursos, constante do CPC aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06, aplica-se a todas as decisões proferidas após 01-09-2013, independentemente da data da propositura da ação.

II - O objetivo do art. 7.º, n.º 1, da Lei 41/2013 - ao estabelecer o princípio da aplicabilidade imediata - foi o de uniformizar regimes de recurso, excluindo apenas o obstáculo da dupla conforme à admissibilidade do recurso de revista.

III - Sendo a ação anterior a 01-01-2008 e a decisão recorrida posterior a 01-09-2013, é de 30 dias o prazo de apresentação do requerimento de interposição de recurso, o qual já deverá conter a própria alegação de recurso. "

Mas:

5.Para a hipótese - sem conceder - de se entender que existe a limitação da dupla conforme, então, nessa hipótese, invoca-se desde já que a fundamentação de facto do douto Acórdão recorrido é diferente, uma vez que foi alterada a matéria constante dos Pontos 34. e 35. dos factos provados, pelo que (de acordo com o disposto no art° 6710, n.º 3 do CPC), sendo a fundamentação de facto diferente, não se verifica aquela limitação da "dupla conforme".

6. Se se entender que a fundamentação é igual (apesar de assentar em matéria de facto diferente) então interpõe-se o presente recurso de revista excecional, de harmonia com o disposto no art° 672.º, n.º 1, alínea b), do CPC, porquanto está em causa um interesse de particular relevância social.

7. De facto, trata-se de um comportamento adotado por um trabalhador do setor segurador, que é um setor de atividade económica de interesse social e público (cuja atividade é exaustivamente regulamentada e controlada por entidade autónoma - atualmente designada como Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões), setor este, cuja imagem pública de idoneidade e seriedade dos seus colaboradores é incompatível com o facto ter ao seu serviço - sob pena de cair no descrédito público e social - um trabalhador (com funções de chefia) que, apesar de não existirem documentos que suportem as despesas que apresenta para que seja emitido um recibo e o respetivo cheque, solicita no serviço, a emissão de recibo e cheque reportados a essas mesmas despesas, cujos documentos não existem. Assim, é um interesse de particular relevância social, aferir se aquele comportamento da trabalhadora é compatível com o exercício de funções na atividade seguradora e com a imagem de idoneidade e seriedade que este setor de atividade tem que ter no âmbito social.

8. Mas ainda na hipótese de se entender - não concedendo - que não se aplica o disposto no art° 671°, n.º 3 do novo CPC, mas que se aplica o disposto no art° 721°, n.º 3, do CPC anterior (na redação do Dec. Lei n° 303/2007, de 24 de agosto), de acordo com o qual o limite da dupla conforme existe, mesmo que a decisão recorrida confirme a decisão de primeira instância "ainda que por diferente fundamento", então também nessa situação, se interpõe aqui o presente recurso de revista excecional, ao abrigo do disposto no art° 721°-A, n.º 1, alínea b), do anterior CPC e 672°, n.º 1, alínea b), do atual CPC,

9. Invocando-se também aqui a fundamentação acima tecida.

De facto, trata-se de um comportamento adotado por um trabalhador do setor segurador, que é um setor de atividade económica de interesse social e público (cuja atividade é exaustivamente regulamentada e controlada por entidade autónoma - atualmente designada como Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões), setor este, cuja imagem pública de idoneidade e seriedade dos seus colaboradores é incompatível com o facto ter ao seu serviço - sob pena de cair no descrédito público e social - um trabalhador (com funções de chefia) que, apesar de não existirem documentos que suportem as despesas que apresenta para que seja emitido um recibo e o respetivo cheque, solicita no serviço, a emissão de recibo e cheque reportados a essas mesmas despesas, cujos documentos não existem. Assim, é um interesse de particular relevância social, aferir se aquele comportamento da trabalhadora é compatível com o exercício de funções na atividade seguradora e com a imagem de idoneidade e seriedade que este setor de atividade tem que ter no âmbito social.

10. Salvo o devido respeito, decidiu mal o douto acórdão recorrido.

11. Ficou provado no douto Acórdão a matéria que consta dos Pontos 1. a 38., transcritos no texto das presentes alegações, e descritos nas páginas 23 a 27 da douta sentença.

12. Nos pontos 34. e 35., cuja redação foi alterada pelo douto Acórdão recorrido (na sequência da impugnação de matéria de facto invocada pela recorrente) ficou provado o seguinte:

"34. Depois de receber o citado cheque, a autora não entregou qualquer documento justificativo daquela operação. (quanto ao art.º 19 da Base Instrutória, cuja matéria foi impugnada pela Recorrente e alterada pelo douto Acórdão)

35. Não existem documentos justificativos do pagamento que a autora ordenou, nem boletim de exame e alta, nem recibo de despesa de farmácia e transporte. (Quanto ao artº 20.º da Base Instrutória, cuja matéria foi impugnada pela Recorrente e alterada pelo douto Acórdão) "

13. A Recorrente tinha impugnado a matéria cantante dos Pontos 34. e 35. dos factos provados e o douto Acórdão recorrido alterou aquela matéria, nos termos acima descritos.

14. O que faz toda a diferença.

15. O doutro acórdão recorrido entendeu - e bem - que os documentos (que suportariam as invocadas despesas invocadas pela Autora para que fosse emitido um recibo e um cheque, que lhe foi entregue a si própria) não existem.

16. O que aliás decorreu (como se invocou aquando da apelação dos depoimentos prestados) dos depoimentos da testemunha FF (com início a 14.19.31 e termo 14.42.58), a mesma testemunha afirmou, quanto à matéria dos Quesitos 19° e 20°).

17. Daquele depoimento acima transcrito resulta que a Autora solicitou que a sua inferiora hierárquica FF emitisse o recibo com base num papel que a própria Autora preencheu, sem documentos (reportados a ITA, farmácia e transportes), sendo certo que aquela testemunha explicou que os documentos que suportam um pagamento só são entregues no arquivo após a emissão de recibo e pagamento.

18. Logo, cai o argumento da autora, de que "teria entregue a documentação no arquivo" mas que "não teria ficado com o comprovativo dessa entrega", - o que aliás o douto Acórdão recorrido, foi sensível, porquanto deu como provado que os documentos não existiam (cfr. Ponto 35)

19. É que - se existissem documentos - nunca os mesmos seriam entregues no arquivo, em momento anterior, ao momento em que o gestor (com base neles) emitisse o respetivo recibo e cheque.

20. Por isso, se existisse a documentação em causa, a Autora nunca a teria entregue no arquivo, sem antes a ter entregue - e não entregou - à referida FF, o que comprova que a documentação não existia, comprovando-se assim, a matéria constante dos quesitos 19° e 20° da Base Instrutória.

21. Também as testemunhas GG - por depoimento de 19.9.2013, passagens aos minutos 01.36 a 14.30, 14.40 a 15.16 e 15.39 a 21.30 -, bem como a testemunha HH (superior hierárquico da autora) - por depoimento de 19.9.2013, passagens aos minutos 02.01 a 13.17,13.27 a 20.04,20.25 a 20.50 e 21.59 a 27.35 - prestaram declarações no mesmo sentido, como acima se transcreveu.

22. Das referidas declarações, transcritas nas alegações, proferidas por aquelas três testemunhas, resultou que ficasse assente a matéria dos Pontos 34. e 35.

23.Ficou assim assente (cfr. Pontos 34. e 35 dos factos provados) que os documentos, NÂO EXISTEM.

24. Veja-se ainda o documento junto aos autos, por meio de requerimento da Ré de 1.8.2013.

25. Tal documento (apesar de o douto Acórdão recorrido não lhe ter dado relevância) consubstancia um relatório de averiguações, levado a cabo pela II, S.A, tendo sido elaborado em 2.6.2009.

26. O referido documento consubstancia uma averiguação feita, referente à situação reportada à Pessoa cujo nome a Autora indicou no documento junto a fls. 5 do processo disciplinar - Sr. JJ, em nome do qual foi emitido o cheque junto a fls. 7 do processo disciplinar).

27. De tal documento reforça o facto de inexistência da documentação em causa (Contactado o Sr. JJ - em nome do qual foi emitido o cheque - Cfr. Ponto 26 dos Factos Provados -, o mesmo não tinha presente qualquer sinistro reportado à Companhia BB; Contactado o Sr. KK, à ordem de quem foi depositado o cheque de 308,03 € - Cfr. Ponto 27 dos factos provados - o mesmo não conhecia o nome de JJ).

28. Assim, não só a Autora não entregou - nem à FF, nem ao GG, nem a HH os documentos (referentes a ITA, farmácia e transportes), nem no dia 28.7.2005, nem posteriormente (factos 6., 7., 8., e Pontos 34 e 35 dos factos provados),

29.Como também não os entregou no arquivo, desde logo porque nunca teria fundamento sequer, pois - se existissem os documentos (e está provado que não existem) - tê-los-ia então entregue à colega FF - em momentos anterior ao envio para arquivo - pois justamente eram esses mesmos documentos que seriam o suporte para a FF proceder à emissão do recibo e cheque, o que a Autora não fez!

30.Também os supostos documentos (referentes a ITA, farmácia e transportes» não foram recebidos no arquivo - como a testemunha HH comprovou, pelo contacto que fez com o trabalhador LL (do arquivo), logo na 2.ª feira seguinte à ocorrência (como nunca poderiam ter sido entregues ao contrário do que a Autora alegou, pois os mesmos NÃO EXISTEM - cfr. Pontos 34. e 35).

31. Também os supostos documentos (referentes a ITA, farmácia e transportes) não estavam no "processo buraco", que estava à guarda da Autora (num armário atrás da sua secretária), e que a própria, quando inicialmente questionada pelo seu superior hierárquico (HH) resolveu dizer que lá estavam, tendo-o ido buscar, sendo certo que lá não estavam.

Nem podiam estar no "processo buraco" ao contrário do que a Autora alegou, pois os mesmos NÃO EXISTEM - cfr. Pontos 34. e 35).

32. Por último, se é certo que a Autora NÃO ENTREGOU TAIS DOCUMENTOS, tendo assim mentido na versão que traz aos autos, pois os documentos que a Autora afirmou ter entregue no arquivo e ter posto no "processo buraco", NÃO EXISTIAM. (cfr. Ponto 35)

33. NEM PODIAM EXISTIR.

34. No sistema informático da Ré NÃO EXISTIA nem o nome de "JJ" (que a Autora tinha escrito no canto superior direito do Doc. de fls. 5 do p.d., que é o papel por si escrito à mão e entregue à MM), como também, quanto ao número "…" (que a Autora escreveu no canto superior esquerdo, do mesmo papel por si escrito) tal número corresponde a um número de processo atribuído a NN, cuja pensão caducou por remissão efetuada em 18 de abril de 1994.

35. O descrito no parágrafo anterior resulta dos Pontos 21, 22 e 23 dos factos provados, e das declarações prestadas pelas testemunhas GG e HH, prestadas em 19.9.2013, e acima identificadas e transcritas.

36. Mas, para além do que - por um lado - ficou provado,

37. O que é certo é - por outro lado - a Autora não fez prova de que o cheque que ela própria pediu para emitir (sem ter entregue quaisquer documentos) e que lhe foi entregue a si própria pessoalmente e no próprio dia (porque ela também o pediu), tendo sido apresentado no Banco no dia seguinte e levantado - correspondesse a qualquer quantia que a Ré devesse pagar.

38. Pelo contrário, o que se comprovou é que a quantia paga pela Ré - por meio de cheque entregue à Autora por esta o ter pedido/ordenado - não correspondia afinal a qualquer montante devido pela Ré, a qualquer lesado.

39. A Ré - pela atitude da Autora, que ordenou a emissão de um cheque, sem papéis suporte, e que ficou na posse desse mesmo cheque que ordenou que lhe fosse entregue - ficou lesada no montante em causa.

40. E - salvo o devido respeito - por mais voltas que a Autora tentasse dar ao presente processo judicial, os factos são claros!

41. Da matéria dada como provada, resulta que, então, dos factos provados e descritos nos Pontos 1. a 38. do douto Acórdão recorrido, e com o comportamento aí descrito, a Autora praticou uma infração disciplinar gravíssima - tendo designadamente dado uma ordem para que uma sua inferior hierárquica emitisse um recibo, referente a um pensionista que não existia, e relativamente ao qual não existiam quaisquer documentos de suporte das despesas identificada no documento emitido pela Autora e que entregou à colega, tendo sido emitido um cheque, que no dia seguinte foi apresentado a pagamento e pago - que consubstancia justa causa de despedimento, sendo válido o despedimento operado.

42. Assim, deverá o douto Acórdão recorrido ser revogado e substituído por outra decisão judicial que decida que o comportamento da Autora consubstancia justa causa de despedimento, julgue válido o despedimento, absolvendo a Ré dos pedidos.

43. Mesmo na hipótese de - não concedendo - o Tribunal ad quem vier a confirmar a douta sentença recorrida e venha a julgar que inexiste justa causa de despedimento e considerando ilícito o despedimento, ainda assim, deverá também ser revogada a condenação proferida pela douta sentença que condenou a Ré ao pagamento à Autora (aos Habilitados) da quantia de 61.220,22 €, devendo também revogar-se o douto Acórdão, nesta parte, porquanto, não só tal valor não se encontra corretamente calculado, como ainda, mesmo que fosse julgado inválido o despedimento, haveria que se deduzir das retribuições reportadas ao período posterior ao despedimento (ocorrido em 22.12.2006, sendo que a petição inicial deu entrada em 9.5.2007), portanto haveria que se deduzir às remunerações reportada a um mês antes de entrada da ação (9.4.2007) até à data do falecimento da Autora (4.10.2010 cfr. Pág. 24 da sentença) as importâncias que a Autora tenha obtido com a cessação do contrato e que não receberia se não fosse o despedimento, bem como deveria deduzir-se o montante do subsídio de desemprego auferido pela trabalhadora, devendo nesse caso o empregado entregar tal montante à segurança social, de harmonia com o disposto no art° 437°, n.ºs 2, 3, 4 e 5 do Código do Trabalho aprovado pela lei n.º 99/2003 de 27 de agosto (que corresponde ao art° 390°, n.ºs 1 e 2, do Código do Trabalho aprovado pela lei n° 7/2009, de 12 de fevereiro), motivo pelo qual a condenação - se vier a ser julgado ilícito o despedimento - deverá ser no valor que se vier a apurar em sede de liquidação de sentença, confrontando o valor das retribuições e os valores previstos naquelas disposições legais.

44 - Ao decidir como decidiu, violou o douto Acórdão recorrido, designadamente, o disposto nos art°s 342° do Código Civil, bem como nos art°s 363°, 396°, n.ºs 1 e 2, 415°, n° 3, 435° nº 3 do Código do Trabalho aprovado pela lei n.º 99/2003, de 27 de agosto.

45. Deverá o douto acórdão ser revogado por outra decisão que absolva a Ré dos pedidos.

46. Ao decidir como decidiu, violou a douta sentença recorrida, designadamente, o disposto nos art°s 342°, 494.º, 496.º e 799.º do Código Civil, bem como nos art°s 28°, 29° e 394.º do Código do Trabalho.»

Termina referindo que «deverá o presente recurso interposto ser julgado procedente devendo em consequência revogar-se o douto Acórdão recorrido devendo absolver-se a Ré dos pedidos, assim se fazendo JUSTIÇA».

Os recorridos responderam ao recurso interposto integrando nas alegações apresentadas as seguintes conclusões:

«A) - O Recurso não deve ser recebido e por várias ordens de razões.

B) A primeira e por o Acórdão confirmar a Sentença da 1.ª Instância e nos termos do art.º 7° da Lei N° 41/2013.

"1 - Aos recursos interpostos de decisões proferidas a partir da entrada em vigor da presente lei em ações instauradas antes de 1 de janeiro de 2008, aplica-se o regime de recursos decorrente do Decreto Lei n° 303/2007 de 24 de agosto com as alterações agora introduzidas, com exceção do disposto no n.º 3 do artigo 671° do Código de Processo Civil, aprovado em anexo à presente lei".

C) Ora a Decisão em recurso (Acórdão) foi proferida aos 02/03/2015 e o presente processo deu entrada em Tribunal aos 9.5.2007.

D) Logo deve (tem) de ser aplicado o regime do Dec. Lei 303/ 2007.

E) Ocorre que nos termos do art.º 721° - n° 3 do anterior C.P.C. e introduzido pelo Dec. Lei 303/2207 "Não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme sem voto de vencido, ainda que por diferente fundamento, a decisão proferida em primeira instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte".

F) Primeira razão para não ser recebido o recurso.

G) A segunda razão para tal é: não estamos perante qualquer questão e peculiar relevância social e como tal não é aplicável quer o artigo 672°- 1 do atual CPC bem como o art.º 721°.- 3 introduzido pelo Dec. Lei 303/2007.

H) A terceira e última razão para o recurso não dever ser recebido é: a recorrente visa e tão só discutir matéria de facto.

I) Ora, no recurso de revista, apenas pode ser discutido o Direito e nunca a matéria de fato -vide artigos 674.º do atual CP.C e 722.º do anterior CP.C.

J) Se admitido, toda a matéria dada como provada apenas pode e quando tornar clara a afirmação do Douto Acórdão em recurso, qual seja "Desta forma os factos apurados apenas nos permitem concluir pela existência do citado comportamento negligente por parte da A."

L) Deve assim manter-se o Douto Acórdão em recurso.»

Neste Tribunal o Exmº Magistrado do Ministério Público proferiu proficiente parecer, nos termos do n.º 3 do artigo 87.º do Código de Processo do Trabalho, pronunciando-‑se no sentido da licitude do despedimento da Autora, concluindo no sentido de que a Ré deve ser absolvida dos «pedidos formulados, concedendo-se provimento ao recurso e revogando-se consequentemente o acórdão sub judice».

Notificado este parecer às partes, vieram os Habilitados tomar posição sobre o mesmo, manifestando a sua discordância, referindo, a final, que «o parecer respeitável do digno Representante do Ministério Público, parece-nos redutor e sobretudo longe da vida».

Sabido que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, nos termos do disposto nos artigos 635.º, n.º 3, e 639.º do Código de Processo Civil, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, está em causa na presente revista saber:

a) – Da licitude do despedimento da Autora;

b) – Se, no caso de ilicitude do despedimento, aos valores determinados no acórdão devem ser deduzidas as importâncias que a Autora tenha auferido e que não auferiria se não fosse o despedimento, nos termos do n.º 2 do artigo 437.º do Código do Trabalho de 2003.


II


As instâncias fixaram a seguinte matéria de facto:

«1. A autora foi admitida ao serviço da Ré em 11 de fevereiro de 1991, mediante contrato de trabalho, para, sob as suas ordens, direção e fiscalização, exercer as funções correspondentes à categoria profissional de Escriturária Estagiária – Nível 4.

2. O referido contrato cessou os seus efeitos por despedimento, com alegada justa causa, em 22 de dezembro de 2006.

3. À data do despedimento, a autora auferia o vencimento base mensal de 1.169,00 €.

4. À data do despedimento, a autora exercia funções de chefia no setor de sinistros graves do departamento de sinistros de acidentes de trabalho, da Companhia de Seguros BB, S. A., na Avenida …, na cidade do ....

5. No dia 28 de julho de 2005, a autora solicitou a emissão de um recibo à trabalhadora, FF, sua subordinada e gestora da pensão n.º 5.021.240.

6. Para o referido fim, limitou-se a entregar-lhe um papel manuscrito pelo seu próprio punho, nele inscrevendo vários dados por referência à citada pensão nº 5.021.240.

7. Nesse papel, a autora escreveu dados relativos a verbas que, a mesma autora, declarou à sua aludida subordinada deverem ser pagas a JJ, residente em ... …, …, …, a saber:

Indemnização por incapacidade temporária absoluta de 22 de março de 2005 a 08 de julho de 2005 79,18 €

Farmácia 132,25 €

Transportes 96,60 €

Total 308,03 €

8. No mesmo dia 28 de julho de 2005, a autora voltou a ordenar à mesma trabalhadora da Ré que emitisse o recibo destinado ao pagamento daquelas quantias e lhe entregasse, a ela própria, autora, o cheque que afirmou dever ser emitido para esse efeito à ordem do referido JJ.

9. A autora informou, por outro lado, nessa mesma data, a referida FF, de que o processo original fora destruído e deu-lhe indicação de que o recibo destinado ao pagamento das aludidas quantias deveria ser processado no processo buraco.

10. O processo buraco é um mecanismo de arquivo destinado a documentar e processar pagamentos em situações excecionais, designadamente a proceder a pagamentos de guias dos tribunais do trabalho em processos sem sinistro geral gravado no sistema informático (CICS).

11. A referida D. FF não tinha conhecimento de qualquer reclamação relativa à indemnização e às despesas que constavam do aludido papel manuscrito que a autora lhe entregou para processamento de pagamento sem suporte em quaisquer documentos.

12. O mencionado papel manuscrito que a autora entregou à sua referida subordinada, para além de conter os dados referidos em 7-), continha os seguintes dizeres: “emitir recibo proc. buraco”.

13. Perante uma tal situação, a referida FF ficou preocupada e nervosa, pelo que questionou junto das suas colegas OO e AA as aludidas instruções da autora.

14. A mesma FF questionou ainda o Sr. GG, gestor qualificado de sinistros graves, a quem descreveu a mencionada situação e as ordens que tinha recebido da autora e a quem pediu orientação quanto ao comportamento que devia adotar.

15. O citado gestor disse-lhe que face à ordem que tinha recebido da autora, devia proceder de acordo com as instruções dessa sua chefe, mas sugeriu-lhe que, cautelarmente, lhe solicitasse o “visto de chefia” no recibo a emitir.

16. Constatando o estado de nervosismo e de bloqueamento em que ficara a Sra. D. FF, perante a ordem da sua chefe, foi o próprio gestor, GG, quem decidiu emitir o recibo que a autora solicitou, e foi ainda ele próprio quem promoveu junto da tesouraria o cheque destinado ao pagamento que a autora ordenara.

17. Assim, de acordo com as mencionadas ordens da autora e em conformidade com os dados que a mesma lhe forneceu, para o cumprimento das suas ordens, do modo acima descrito, foi emitido o “recibo de indemnização” n.º 42482, no valor total de 308,03 €, com data de 28 de julho de 2005, do ramo acidentes de trabalho, por referência à apólice n.º …, a um sinistro com o número …  e a uma pensão com o n.º ….

18. Tal como, para o pagamento ordenado pela autora, foi emitido o cheque nº …, com data de 28 de julho de 2005, sobre a Caixa Geral de Depósitos, no valor de 308,03 €, à ordem de JJ, que foi apresentado a pagamento no dia 29 de julho de 2005, ou seja, no dia imediatamente subsequente ao da sua emissão e entrega à autora.

19. O dito cheque foi entregue à autora, tal como esta ordenara à sua subordinada, FF.

20. Tal situação suscitou dúvidas de regularidade ao citado gestor Sr. GG, o que o levou a proceder a consultas nos ficheiros informáticos NCR, no sentido de verificar se o nome do beneficiário como tal indicado pela autora – JJ – correspondia ou não ao nome do sinistrado da pensão nº … por referência à qual a autora ordenara o processado pagamento.

21. O sinistrado da pensão nº … era o Sr. NN e não um Sr. JJ.

22. A aludida pensão nº … caducara por remição efetuada a 18 de abril de 1994 e constava já de “arquivo morto”.

23. No sistema informático, quer no NCR, quer no CICS, não existe um único processo que possa relacionar-se com o indicado “sinistrado” para o qual a autora ordenou emissão de recibo e solicitou cheque para “pagamento”.

24. Os serviços clínicos de Hospitais Privados de Portugal – HPP Norte, S.A. não prestaram qualquer assistência a um sinistrado com o nome de JJ residente na morada que a autora indicou.

25. São esses os serviços de saúde que prestam assistência aos sinistrados do ramo acidentes de trabalho da Companhia de Seguros BB, S. A. no departamento de sinistros em que a autora exercia as suas funções.

26. O referido cheque mostra, no verso, na parte destinada a endosso, que aí se escreveu – com uma caligrafia desenhando letra a letra – o nome de JJ, à ordem de quem a autora solicitou o seu saque, tendo sido depositado na conta n.º …, não pertencente àquele.

27. No dia 28 de julho de 2005, a autora insistiu junto da sua subordinada, FF, para que esta emitisse o recibo e lhe entregasse o respetivo cheque, o que deixou aquela muito nervosa.

28. Havendo documentos de suporte, a autora deveria ter aberto uma pasta física de sinistro grave, por referência à pensão n.º 5021.240 que a autora invocou.

29. Ou, na falta da reabertura de uma pasta física de sinistro grave, devia a documentação de suporte ter dado lugar à abertura de Pasta no Documentum (arquivo digital).

30. No arquivo também não existia qualquer processo físico.

31. Também não havia processo informático referente ao aludido pensionista.

32. A autora entregou o referido documento manuscrito à colega PP para que esta procedesse à emissão do recibo adequado e solicitasse a emissão do referido cheque.

33. A ré pagava-lhe ainda um prémio anual variável correspondente a, pelo menos, 75% da sua retribuição base.

34. Depois de receber o citado cheque, a autora não entregou qualquer documento justificativo daquela operação (art. 19º da BI) (alterada a palavra sublinhada a negrito).[1]

35. Não existem documentos justificativos do pagamento que a autora ordenou, nem boletim de exame e alta, nem recibo de despesas de farmácia e transporte (art. 20º da BI) (alterada a frase sublinhada a negrito)[2].

36. A cópia do recibo emitido, na sequência das ordens da autora, não está acompanhada de qualquer documentação de suporte.

37. Não se encontram nos sistemas de arquivo da empresa qualquer documentação de suporte para a operação e pagamento que a autora ordenou.

38. Não existem na pasta física de documentos do mecanismo excecional de arquivo, designado por “processo buraco”, ao qual a autora, no seu papel manuscrito, fez menção, de qualquer documentação de suporte para a operação e pagamento que a autora ordenou.»


III

1 – Nas conclusões 1.ª a 9.ª das alegações a Ré e nas conclusões A) a G) da resposta dos recorridos, suscitaram as partes a questão da existência de uma situação de dupla conforme entre as decisões da 1.ª instância e a decisão recorrida, pronunciando-se em sentido contrário sobre essa questão e sobre a admissibilidade do presente recurso.

No despacho lavrado nos termos do artigo 652.º do Código de Processo Civil, não impugnado, disse-se expressamente que nada obstava ao conhecimento do presente recurso que prosseguiu seus termos.

Consigna-se, contudo, que o presente processo foi instaurado em 9 de maio de 2007, antes, portanto, de 1 de janeiro de 2008, pelo que, atento o disposto no artigo 7.º da Lei n.º 41/2003, de 26 de junho, ao presente recurso se aplica o regime dos recursos decorrente do Decreto-lei n.º 303/2007, de 24 de agosto, com as alterações decorrentes do Código de Processo Civil aprovado por aquela Lei, ou seja, as disposições do Código de Processo Civil em vigor, com a exceção do n.º 3 do artigo 671.º deste Código.

Deste modo, o direito ao recurso de revista não é limitado pela existência de uma situação de dupla conforme entre a decisão recorrida e a decisão da 1.ª instância que tenha sido objeto da mesma.

Nada obsta, pois, o conhecimento do presente recurso.

2 – Nas conclusões 24.ª, 25.ª, 26.ª e 27.ª e nas conclusões 37.º, 38.ª, 39ª das alegações da revista faz a recorrente apelo a factos que não resultam da matéria de facto dada como provada e que este Tribunal não pode tomar em consideração no âmbito da presente revista, embora a recorrente também não peça, expressamente, a alteração da matéria de facto dada como provada no que se refere a tais factos.

Na verdade, de acordo com o disposto no artigo 682.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, «aos factos materiais fixados pelo Tribunal recorrido, o Supremo aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado», sendo que «a decisão proferida pelo Tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, a não ser no caso excecional previsto no n.º 3 do art. 674.º».

Nos termos desta disposição, «o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de Lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova».

Deste modo, o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa só pode ser objeto do recurso de revista quando haja ofensa de «disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova».

A decisão do Tribunal da Relação quanto à matéria de facto não pode, assim, ser alterada pelo Supremo Tribunal de Justiça, salvo nas situações acima excecionadas, em caso de erro sobre regras de direito probatório material, que se não verificam no caso dos autos.

Com efeito, o documento referido nas conclusões 24.ª a 27.ª, que foi objeto do despacho de fls. 1022 e v/, é um relatório elaborado pelo GEP – Gestão de Peritagens Automóveis através do qual a Ré pretendia fazer prova sobre as circunstâncias em que foi apresentado a pagamento o cheque referido nos autos, documento esse que não se integra no n.º 3 do artigo 674.º do Código de Processo Civil, pelo que não pode motivar qualquer intervenção deste Tribunal sobre a matéria de facto dada como provada.  

Por outro lado, os factos invocados pelo recorrente, alheios à matéria de facto dada como provada, não podem, igualmente ser tomados em consideração por este Tribunal.

Será, pois, no quadro factual decorrente da decisão recorrida que se conhecerá do presente recurso.


IV

1 - A prática dos factos eventualmente integradores de justa causa de despedimento ocorreu em 22 de dezembro de 2006, na vigência do Código do Trabalho de 2003, diploma à luz do qual deverão ser ponderados.

Nos termos do n.º 1 do artigo 396.º daquele Código, «o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho constitui justa causa de despedimento», especificando o número 3 daquele artigo, de forma exemplificativa, várias situações que poderão preencher aquele conceito.

Deste modo, são elementos do conceito de justa causa de despedimento: a) a existência de uma conduta do trabalhador que evidencie uma violação culposa dos seus deveres contratuais; b) que essa conduta seja objetivamente grave em si mesma e nas suas consequências; c) e que por força dessa gravidade seja imediata e praticamente impossível a manutenção da relação laboral.

Na síntese de M. do ROSÁRIO PALMA RAMALHO, o conceito de justa causa exige a verificação cumulativa de «um comportamento ilícito, grave em si mesmo ou pelas suas consequências, e culposo do trabalhador (é o elemento subjetivo da justa causa); a impossibilidade prática e imediata de subsistência do vínculo laboral (é o elemento objetivo da justa causa); a verificação de um nexo de causalidade entre os dois elementos anteriores, no sentido em que a impossibilidade de subsistência do contrato tem de decorrer, efetivamente, do comportamento do trabalhador»[3].

Os factos integrativos do conceito de justa causa hão de materializar um incumprimento culposo dos deveres contratuais por parte do trabalhador, numa dimensão suscetível de ser considerada como grave, quer a gravidade se concretize nos factos em si mesmos, quer ocorra nas suas consequências.

Para além disso, exige-se que essa dimensão global de gravidade torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho, a que a Doutrina vem chamando elemento objetivo da justa causa.

A subsistência do contrato é aferida no contexto de um juízo de prognose em que se projeta o reflexo da infração e do complexo de interesses por ela afetados na manutenção da relação de trabalho, em ordem a ajuizar da tolerabilidade da manutenção da mesma.

Por isso mesmo, por força do disposto no n.º 2 do mesmo artigo, «na apreciação da justa causa, deve atender-se ao quadro de gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao caráter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso sejam relevantes».

A ponderação integral deste conjunto de circunstâncias permite projetar os factos imputados ao trabalhador no contexto da relação de trabalho e ponderar a partir daí o reflexo dos mesmos na estabilidade daquela relação, como base do juízo de tolerabilidade da sua manutenção.

A impossibilidade de manutenção da relação laboral deve ser apreciada no quadro da inexigibilidade com a ponderação de todos os interesses em presença, existindo sempre que a subsistência do contrato represente uma insuportável e injusta imposição ao empregador.

Segundo MONTEIRO FERNANDES, «o que significa a referência legal à “impossibilidade prática” da subsistência da relação de trabalho – é que a continuidade da vinculação representaria (objetivamente) uma insuportável e injusta imposição ao empregador» e que «[n]as circunstâncias concretas, a permanência do contrato e das relações (pessoais e patrimoniais) que ele supõe seria de molde a ferir de modo desmesurado e violento a sensibilidade e a liberdade psicológica de uma pessoa normal colocada na posição do empregador»[4].

M. do ROSÁRIO RAMALHO, debruçando-se sobre a construção jurisprudencial deste elemento da justa causa, afirma que «o requisito da impossibilidade de subsistência do vínculo laboral deve ser reconduzido à ideia de inexigibilidade, para a outra parte, da manutenção do contrato, e não apreciado como impossibilidade objetiva»; «a impossibilidade de subsistência do contrato de trabalho tem que ser impossibilidade prática, no sentido em que deve relacionar-se com o vínculo laboral em concreto»; «a impossibilidade de subsistência do contrato tem que se imediata»[5].

Sobre o conceito de justa causa referiu-se no acórdão desta Secção de 2 de dezembro de 2013, proferido na revista n.º 1445/08.3TTPRT.P2.S1[6], o seguinte:

«O despedimentosanção, correspondendo à ultima ratio das penas disciplinares, reserva-se aos comportamentos culposos e graves do trabalhador subordinado, violadores de deveres estruturantes da relação, que reclamem um forte juízo de censura, maxime quando a relação de confiança em que assenta o vínculo seja fatalmente atingida, tornando inexigível ao empregador a manutenção do contrato.

A impossibilidade prática da subsistência da relação juslaboral é um conceito normativo-objetivo (.), impossibilidade perspetivada enquanto inexigibilidade da sua constância, que se preenche com um comportamento que atinge, de modo irreparável, o suporte psicológico da relação, a confiança, o dever de lealdade, na sua faceta subjetiva, criando, irreversivelmente, a dúvida, no espírito do empregador, sobre a idoneidade da conduta futura do trabalhador arguido.

Na respetiva apreciação, para além das circunstâncias que se mostrem particularmente relevantes no caso concreto, ponderam-se, com objetividade e razoabilidade, os fatores a que alude o n.º 2 do art. 396.º, aferindo-se a final a gravidade do comportamento em função do grau de culpa e da ilicitude, como é regra do direito sancionatório, nela incluído necessariamente o princípio da proporcionalidade, convocado aquando da seleção da sanção disciplinar tida por adequada – art. 367.º.

O despedimento-sanção é, em suma, a solução postulada sempre que, na análise diferencial concreta dos interesses em presença, se conclua – num juízo de probabilidade/prognose sobre a viabilidade do vínculo, basicamente dirigido ao suporte psicológico e fiduciário que a interação relacional pressupõe – que a permanência do contrato constitui objetivamente uma insuportável e injusta imposição ao empregador, ferindo, desmesurada e violentamente, a sensibilidade e liberdade psicológica de uma pessoa normal colocada na posição do real empregador.»

Importa, contudo, ter presente, conforme refere MONTEIRO FERNANDES, que «“a confiança” não pode ser senão um modo de formular o “suporte psicológico» de que a relação de trabalho, enquanto relação duradoura, necessita para subsistir. Ao fazer apelo às ideias de confiança, a jurisprudência reflete a perceção desse elemento mas deriva, não raro, para a deformação consistente em se atribuir relevância absoluta e indiscriminada à “confiança pessoal” do empregador no trabalhador»[7].

2 – Resulta do artigo 121.º, n.º 1. al. e) do Código do Trabalho de 2003, que, sem prejuízo de outras obrigações, o trabalhador deve «e) guardar lealdade ao empregador, nomeadamente não negociando por conta própria ou alheia em concorrência com ele, nem divulgando informações referentes à sua organização, métodos de produção ou negócio».

Consagra-se neste dispositivo o dever de lealdade que é um dos deveres acessórios autónomos da prestação principal e que onera o trabalhador no contexto da relação de trabalho.

Ao dever de lealdade é reconhecida pela Doutrina uma dimensão ampla e uma dimensão restrita, concretizando-se esta nos deveres de não concorrência e de sigilo que são objeto de consagração expressa naquela norma.

Em sentido amplo, o «dever de lealdade é o dever orientador geral da conduta do trabalhador no cumprimento do contrato», entroncando, por um lado, no dever geral de cumprimento pontual dos contratos, e, nesta perspetiva «não é mais do que a concretização laboral do princípio da boa fé, na sua aplicação ao cumprimento dos negócios jurídicos, tal como está vertido no artigo 762.º, n.º 2 do CC.»[8].

O dever de lealdade, nesta dimensão ampla, comporta ainda um duplo sentido que se materializa no «envolvimento pessoal do trabalhador no vínculo» e na «componente organizacional do contrato»[9].

O elemento «da pessoalidade explica que a lealdade do trabalhador no contrato seja, até certo ponto, uma lealdade pessoal, cuja quebra grave pode constituir motivo para a cessação do contrato. É este elemento de pessoalidade, traduzido na lealdade pessoal, que justifica por exemplo, o relevo de condutas extralaborais do trabalhador graves para efeito de configuração de uma situação de justa causa de despedimento, bem como o relevo da perda da confiança pessoal do empregador no trabalhador para o mesmo efeito».

Por outro lado, «a componente organizacional do contrato de trabalho justifica que o dever de lealdade do trabalhador não se cifre apenas em regras de comportamento para com a contraparte mas também na exigência de um comportamento correto do ponto de vista dos interesses da organização»[10], dependendo, nesta segunda dimensão, o grau de intensidade do dever de lealdade e as consequências do seu incumprimento «do tipo de funções do trabalhador e da natureza do seu vínculo de trabalho em concreto»[11].

Conforme refere MONTEIRO FERNANDES, «o que pode dar-se por seguro é que o dever geral de lealdade tem uma faceta subjetiva que decorre da sua estreita relação com a permanência de confiança entre as partes (nos casos em que este elemento pode considerar-se suporte essencial de celebração do contrato e da continuidade das relações que nele se fundam)», sendo necessário «que a conduta do trabalhador não seja em si mesma, suscetível de destruir ou abalar tal confiança, isto é, capaz de criar no espírito do empregador a dúvida sobre a idoneidade futura da conduta daquele», sendo certo que «este traço do dever de lealdade é tanto mais acentuado quanto mais extensa for a (eventual) delegação de poderes no trabalhador e quanto maior for a atinência das funções exercidas à realização final do interesse do empregador»[12].

3 – Resulta do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 121.º do Código do Trabalho de 2003, que o trabalhador deve «cumprir as ordens e instruções do empregador em tudo o que respeite à execução e disciplina do trabalho, salvo na medida em que se mostrem contrárias aos seus direitos e garantias» e do n.º 2 do mesmo artigo resulta que «o dever de obediência (…) respeita tanto às ordens e instruções dadas diretamente pelo empregador como às emanadas dos superiores hierárquicos do trabalhador, dentro dos poderes que por aquele lhes forem atribuídos».

Consagra este dispositivo o dever de obediência que é um dos deveres acessórios mais importantes do trabalhador, sendo um dos corolários da subordinação jurídica que caracteriza a situação do trabalhador no contexto da relação de trabalho e o reverso do poder de conformação da prestação de trabalho que caracteriza a posição do empregador.

Tal como refere MARIA do ROSÁRIO PALMA RAMALHO, «em termos extensivos, este dever envolve o cumprimento das ordens e instruções do empregador «respeitantes à execução ou disciplina no trabalho (…)», pelo que «o trabalhador deve obediência não apenas às diretrizes do empregador sobre o modo de desenvolvimento da sua atividade laboral (ou seja, o poder diretivo), mas também às diretrizes emanadas do poder disciplinar prescritivo, em matéria de organização da empresa, de comportamento no seu seio, de segurança, higiene e saúde no trabalho, ou outras»[13].

Por outro lado, resulta da alínea c) do n.º 1 do mesmo artigo 121.º do Código do Trabalho de 2003, que o trabalhador deve «realizar o trabalho com zelo e diligência», dispositivo que consagra como mais um dever do trabalhador, o dever de zelo.

O zelo colocado no cumprimento da prestação de trabalho reflete-se sobre a forma como o mesmo é prestado, permitindo aferir se há ou não cumprimento integral da prestação, ou seja se a atividade prestada preenche ou não os objetivos que dela se esperam no contexto da atividade prosseguida pelo destinatário da prestação, a entidade empregadora.

«A falta de zelo e a negligência têm de ser aferidas por parâmetros objetivos, segundo o padrão do bom pai de família, em face das circunstâncias de casa caso, variando em função da atividade a desenvolver»[14].

Na alínea a) do artigo 121.º do Código de Trabalho de 2003 consagra-se o dever de respeito e urbanidade, referindo-se que o trabalhador deve «respeitar e tratar com urbanidade e probidade o empregador, os superiores hierárquicos, os companheiros de trabalho e as demais pessoas que estejam ou entrem em relação com a empresa».

O dever de respeito, que não se confunde com o dever de urbanidade, tem uma dimensão múltipla direcionada para os superiores hierárquicos, para os colegas de trabalho e até para terceiros que entrem em relação com a empresa.

Na dimensão direcionada aos companheiros de trabalho, este dever atinge vários níveis de concretização, nomeadamente, quando se perspetiva uma relação de natureza hierárquica entre os trabalhadores envolvidos e não se confunde com o dever de obediência.

Na verdade, a obrigação de acatamento de ordens tem autonomia face à obrigação de respeito que impende sobre quem, igualmente na qualidade de subordinado, dirige outros colegas de trabalho.

A concretização deste dever depende, assim, da multiplicidade de fatores que caracterizam a situação do trabalhador no contexto da relação de trabalho e, como refere, a propósito da alínea a) do n.º 1 do artigo 128.º do Código do Trabalho de 2009, MARIA DO ROSÁRIO DA PALMA RAMALHO, «deve ter em conta o contexto específico de cada vínculo laboral»[15].


V


1 – As instâncias coincidiram relativamente à ilicitude do despedimento da Autora, tendo-se considerado em ambos os casos que os factos decorrentes da matéria de facto dada como provada, embora integrativos de ilícito disciplinar, não tinham gravidade para justificar a aplicação da sanção de despedimento.

Referiu-se, com efeito sobre essa questão na decisão recorrida o seguinte:

«Destes factos resulta que a A. ordenou a uma funcionária da Ré sua subordinada que emitisse o citado recibo para pagamento da quantia de € 308,03, entregando-lhe para o efeito um papel manuscrito com as citadas verbas de despesas e de indemnização por ITA e que lhe entregasse o cheque que devia ser emitido à ordem de JJ, o que veio a ocorrer. A A. não entregou qualquer documento justificativo daquela operação nem existem documentos justificativos do pagamento ordenado pela mesma, nem boletim de exame ou da alta, nem recibo de despesas de farmácia e transporte, documentos que não se encontram nos sistemas de arquivo da Ré nem na pasta física de documentos do mecanismo excecional de arquivo designado por “processo buraco”. Acresce que o sinistrado da pensão indicada pela A. não era JJ e tal pensão já caducara por remição efetuada em 18/04/1994.

Por fim, o citado cheque entregue à A. foi endossado e depositado numa conta não pertencente ao primitivo beneficiário do mesmo.

Ora, certo é que a A. não entregou quaisquer documentos de suporte da operação que ordenou que, aliás, não existiam e que não se encontram nos sistemas de arquivo da Ré nem na pasta do “processo buraco”.

E, assim sendo, este comportamento da A. afigura-se-nos negligente por contrário às normas de processamento dos pagamentos em caso de sinistros, mais concretamente, por falta de apresentação dos respetivos documentos de suporte, violando a A. o dever de realizar o seu trabalho com zelo e diligência (artigo 121.º, c), do C.T. de 2003).

Na verdade, se tal processamento pode, ainda, suscitar estranheza pela forma como se desenvolveu, os factos apurados não nos permitem concluir, sem mais, por uma atuação dolosa da A.. Os documentos de suporte não existiam nem foram entregues pela A.. Mas qual foi o motivo que presidiu a tal atuação? Tratou-se de um lapso a indicação do sinistrado e da pensão? A A. pretendia obter um benefício ilegítimo para si ou para terceiro? Não sabemos.

Na verdade, não se apuraram factos que nos permitam concluir pela atuação de má fé por parte da A. nem pela violação dos deveres de urbanidade e probidade para com a Ré empregadora e colegas de trabalho, nem pela violação do dever de lealdade à sua empregadora (artigos 119.º, 121.º, a) e e), ambos do C.T. de 2003). Nem dos mesmos resulta a desobediência ilegítima da A. a uma ordem da Ré, a violação de direitos e garantias de trabalhadores da empresa, nem a lesão de interesses patrimoniais sérios da empresa (artigo 396.º n.º 3, a) b) e e), do C.T. de 2003).

Quanto ao dever de lealdade cumpre, ainda, dizer que apenas se apurou que o cheque foi entregue à A. e, posteriormente, endossado a um terceiro e depositado na conta deste mas relativamente aos quais não foi apurada qualquer ligação com a A., razão pela qual, não podemos concluir que era intenção da A. obter para si ou para um terceiro um benefício ilegítimo.

Desta forma, os factos apurados apenas nos permitem concluir pela existência do citado comportamento negligente por parte da A..

Ora, este comportamento culposo do trabalhador não basta para se concluir pela existência de justa causa. Como já referimos, só aquele que pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho é que constitui justa causa de despedimento.

Esta está implicitamente ligada a um comportamento culposo e grave em si mesmo e nas suas consequências e que torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho (não exigibilidade da manutenção do vínculo pela entidade patronal).

Acresce que, <<a gravidade da infração deve ser avaliada tendo por base o grau de perturbação provocada no vínculo laboral, na organização e imagem empresariais; a afetação (real ou potencial) de interesses da empresa; a possibilidade de reincidência; os efeitos produzidos (presentes e futuros); o comportamento habitual dos restantes trabalhadores, etc. (…)

Na avaliação da culpabilidade do trabalhador, para efeitos de determinação da proporcionalidade da sanção disciplinar, o empregador deverá ter em consideração se o trabalhador atuou com dolo (e qual o tipo de dolo) ou negligência e, por outro lado, ponderar a existência de circunstâncias exteriores e sua influência para a determinação da conduta do agente. >>

Ora, todos os factos supra relatados (e a ausência de outros), nomeadamente, o comportamento isolado da A. e a duração da relação de trabalho que perdurou por mais de 15 anos, levam-nos a caracterizar de diminuta a culpa da trabalhadora e de pouca gravidade o seu comportamento quer em si mesmo quer nas suas consequências e que, assim, não torna imediata e praticamente impossível a manutenção da relação de trabalho, o que revela uma manifesta desproporcionalidade entre a sanção que lhe foi aplicada, a mais grave do elenco normativo (artigos 366.º e 367.º, ambos do C.T. de 2003) e a gravidade da infração e a culpabilidade do infrator.

Face ao que ficou dito, inexiste justa causa para o despedimento de que foi alvo a A. por parte da Ré recorrente e que, consequentemente, é ilícito – artigo 429.º, c), do C.T. de 2003.

Improcede, assim, esta conclusão da recorrente.»

Não podemos subscrever esta decisão.

2 – Resulta, em síntese, da matéria de facto dada como provada que a Autora «5. No dia 28 de julho de 2005, (…) solicitou a emissão de um recibo à trabalhadora, FF, sua subordinada e gestora da pensão nº 5.021.240» e que «6. Para o referido fim, limitou-se a entregar-lhe um papel manuscrito pelo seu próprio punho, nele inscrevendo vários dados por referência à citada pensão nº 5.021.240».

Além disso, resulta da matéria de facto que «7. Nesse papel, a autora escreveu dados relativos a verbas que, a mesma autora, declarou à sua aludida subordinada deverem ser pagas a JJ, residente em ... …, …, …, a saber: Indemnização por incapacidade temporária absoluta de 22 de março de 2005 a 08 de julho de 2005 79,18 €» e que «8. No mesmo dia 28 de julho de 2005, a autora voltou a ordenar à mesma trabalhadora da Ré que emitisse o recibo destinado ao pagamento daquelas quantias e lhe entregasse, a ela própria, autora, o cheque que afirmou dever ser emitido para esse efeito à ordem do referido JJ», tendo ainda a «9. A autora informou, por outro lado, nessa mesma data, a referida FF, de que o processo original fora destruído e deu-lhe indicação de que o recibo destinado ao pagamento das aludidas quantias deveria ser processado no processo buraco».

Flui ainda da matéria de facto dada como provada que «17. Assim, de acordo com as mencionadas ordens da autora e em conformidade com os dados que a mesma lhe forneceu, para o cumprimento das suas ordens, do modo acima descrito, foi emitido o “recibo de indemnização” nº …, no valor total de 308,03 €, com data de 28 de julho de 2005, do ramo acidentes de trabalho, por referência à apólice nº …, a um sinistro com o número … e a uma pensão com o nº …» e que «18. Tal como, para o pagamento ordenado pela autora, foi emitido o cheque nº …, com data de 28 de julho de 2005, sobre a Caixa Geral de Depósitos, no valor de 308,03 €, à ordem de JJ, que foi apresentado a pagamento no dia 29 de julho de 2005, ou seja, no dia imediatamente subsequente ao da sua emissão e entrega à autora», bem como que «19. O dito cheque foi entregue à autora, tal como esta ordenara à sua subordinada, FF».

Resulta também da matéria de facto que «21. O sinistrado da pensão nº … era o Sr. NN e não um Sr. JJ»; que «22. A aludida pensão nº … caducara por remição efetuada a 18 de abril de 1994 e constava já de “arquivo morto”» e que «23. No sistema informático, quer no NCR, quer no CICS, não existe um único processo que possa relacionar-se com o indicado “sinistrado” para o qual a autora ordenou emissão de recibo e solicitou cheque para “pagamento”», bem como que «24. Os serviços clínicos de Hospitais Privados de Portugal – HPP Norte, S.A. não prestaram qualquer assistência a um sinistrado com o nome de JJ residente na morada que a autora indicou» sendo certo que «25. São esses os serviços de saúde que prestam assistência aos sinistrados do ramo acidentes de trabalho da Companhia de Seguros BB, S. A. no departamento de sinistros em que a autora exercia as suas funções».

Flui ainda da matéria de facto que «28. Havendo documentos de suporte, a autora deveria ter aberto uma pasta física de sinistro grave, por referência à pensão nº … que a autora invocou» e que «29. Ou, na falta da reabertura de uma pasta física de sinistro grave, devia a documentação de suporte ter dado lugar à abertura de Pasta no Documentum (arquivo digital)», decorrendo ainda também da matéria de facto que «30. No arquivo também não existia qualquer processo físico» e que «31. Também não havia processo informático referente ao aludido pensionista.»

Por outro lado, decorre também da matéria de facto dada como provada que «34. Depois de receber o citado cheque, a autora não entregou qualquer documento justificativo daquela operação» e que «35. Não existem documentos justificativos do pagamento que a autora ordenou, nem boletim de exame e alta, nem recibo de despesas de farmácia e transporte», bem como que «36. A cópia do recibo emitido, na sequência das ordens da autora, não está acompanhada de qualquer documentação de suporte» e que «37. Não se encontram nos sistemas de arquivo da empresa qualquer documentação de suporte para a operação e pagamento que a autora ordenou» e que «38. Não existem na pasta física de documentos do mecanismo excecional de arquivo, designado por “processo buraco”, ao qual a autora, no seu papel manuscrito, fez menção, de qualquer documentação de suporte para a operação e pagamento que a autora ordenou».

3 - À luz desta matéria de facto pode concluir-se que a Autora desencadeou um processo tendente ao pagamento de um conjunto de despesas imputadas à sua empregadora, sem que fossem apresentados os documentos de suporte das mesmas que permitissem aferir da responsabilidade daquela pelo respetivo pagamento.

A necessidade de verificação da justeza das despesas cujo pagamento foi ordenado era agravada no caso pelas circunstâncias que rodearam as ordens dadas pela Autora à sua subordinada.

Com efeito, a subordinada a quem solicitou primeiro e ordenou depois a emissão do cheque, «não tinha conhecimento de qualquer reclamação relativa à indemnização e às despesas que constavam do aludido papel manuscrito que a autora lhe entregou para processamento de pagamento sem suporte em quaisquer documentos» e, depois de receber o cheque, a Autora não entregou qualquer documento justificativo da operação desencadeada, não existindo os documentos que sirvam de suporte aos pagamentos ordenados.

O desconhecimento daquela subordinada é tanto mais significativo quanto é certo que parte das despesas em causa se referia ao pagamento de uma indemnização por ITA, associada à ocorrência de um acidente, sendo certo que o início de tal ITA era localizado em 22 de março de 2005, e a solicitação do cheque ocorreu em 28 de junho daquele ano.

Acresce que o hospital que assiste os sinistrados do ramo acidentes de trabalho do departamento de sinistros a que a Autora estava ligado não prestou assistência a nenhum sinistrado com o nome do beneficiário do cheque emitido e o processo a que o pagamento foi associado – pensão n.º … - referia-se a um sinistrado que nada tinha que ver com a pessoa a favor de quem o cheque foi emitido e a um processo encerrado em 1994.

A Autora desencadeou, assim, o procedimento tendente ao pagamento dessas despesas em violação das instruções de serviço descritas nos pontos n.º 27 a 29 da matéria de facto dada como provada.

Ao avançar com o processamento de despesas nesse contexto a Autora violou o dever de obediência às diretivas do serviço do empregador, pondo em causa os poderes de conformação da prestação de trabalho que àquele incumbem no quadro da subordinação jurídica que carateriza a posição do trabalhador no contexto da relação de trabalho subordinado, além dos deveres de zelo e diligência no desempenho das suas tarefas.

É verdade que não consta da matéria de facto dada como provada, nem sequer foi alegado, que o destinatário do pagamento titulado através do cheque emitido não tenha sido vítima de qualquer acidente de trabalho, cuja responsabilidade estivesse transferida para a Ré e que esse acidente, a ter ocorrido, tenha originado qualquer ITA, ou tenha motivado as despesas de transporte pagas.

Contudo, a circunstância desses factos não terem sequer sido alegados e não constarem da matéria de facto dada como provada, não permite afirmar que se está perante uma conduta negligente da Autora relativamente ao processamento de pagamentos, conforme resulta da decisão recorrida.

Importa que se tenha presente que estão em causa infrações de natureza disciplinar, que se preenchem com a mera violação do dever que lhes está subjacente, e que tem natureza formal, não integrando qualquer resultado em relação ao qual a vontade do agente tenha de se direcionar.

Esta, a vontade do agente, dirige-se apenas à atividade prosseguida, independentemente de qualquer resultado material que da mesma pode resultar, relevando este quando ocorra apenas no que se refere à ponderação da ilicitude da conduta.

A verdade é que os factos dados como provados estão muito para além de uma mero cumprimento negligente do dever de cuidado relativamente ao processamento de despesas e ao cumprimento das normas internas que o enquadram.

De facto, foi dado como provado que «depois de receber o citado cheque, a autora não entregou qualquer documento justificativo daquela operação» e que «não existem documentos justificativos do pagamento que a autora ordenou, nem boletim de exame e alta, nem recibo de despesas de farmácia e transporte».

Trata-se de factos que não integram apenas uma menor diligência no cumprimento do dever de cuidado no processamento de despesas e mostram que a Autora sabia da inexistência desses documentos quando desencadeou o processo tendente ao respetivo pagamento.

Com efeito, se ao nível da ordem de processamento do cheque se pode configurar, em abstrato, uma situação de violação do dever de cuidado – traduzida na não verificação dos documentos de titulariam a despesa, se eles existissem, já essa violação no caso dos autos é incompatível com a não apresentação desses documentos e com a respetiva inexistência.

A ter havido sinistro e despesas do mesmo derivadas, a corresponder a identidade do sinistrado a alguém em concreto que tivesse sofrido um acidente da responsabilidade da Ré, sempre seria possível uma reconstituição dos documentos que titulariam as despesas em causa e a sua integração no processo.

Ora o que se deu como provado é que tais documentos não existem e que depois de receber o cheque a Autora não entregou os documentos em causa.

Trata-se de factos que apontam para uma situação em que a Autora tem consciência de que está a desencadear um processo de pagamento de uma despesa que não pode titular de acordo com as normas de serviço e a que deve obediência.

O facto de não se terem provado as razões que estão subjacentes a esta forma de atuar, não põe em causa que se esteja perante uma conduta voluntária, direcionada e autocontrolada pela Autora no que se refere à realização dos pagamentos sem a existência dos documentos que titulem as despesas a que se referem.

Por outro lado, a Autora conhecia as normas que disciplinam o processamento de despesas a que devia obediência e não ignorava que a sua subordinada a quem determinou a realização daqueles pagamentos não os podia levar a cabo sem que os documentos em causa existissem, estando igualmente vinculada a essas normas.

Ao impor a essa subordinada o processamento dessas despesas em violação daquelas normas a Autora violou, também o dever de respeito para com os seus colegas de trabalho, nomeadamente, os subordinados.

4 - Ao provocar o processamento de despesas cuja documentação não era possível, a Autora quebrou de uma forma clara a relação de confiança que a ligava à Ré e que é a base da relação de trabalho e violou por esta via, em medida intolerável, o dever de lealdade para com o empregador.

Na verdade, a Autora provoca o processamento de despesas num contexto em que a empregadora estava privada da possibilidade de saber se as mesmas eram devidas ou não, pondo em causa a transparência, a objetividade e a responsabilidade dos intervenientes no procedimento de despesas que é essencial à segurança da gestão empresarial e à organização interna dos serviços.

Ao avançar para o processamento do pagamento das despesas sem que apresentasse à empregadora os documentos que as titulam e ao não providenciar pela sua apresentação, mesmo depois da entrega do cheque, a Autora motivou as dúvidas sobre o bem fundado dos pagamentos executados descritas no ponto n.º 20 da matéria de facto e as averiguações que decorreram dessas dúvidas.

O resultado das diligências desencadeadas concretizado na não apresentação dos documentos em causa e nas desconformidades existentes é de molde a quebrar a relação de confiança que deve existir entre as partes na relação de trabalho.

Na verdade, está em causa uma atividade, tal como a atividade bancária e outras, onde o dever de lealdade entre as partes na relação de trabalho atinge uma configuração agravada, dada a importância e o relevo que o mesmo tem no funcionamento da atividade seguradora e no papel desta na atividade económica e social do País.

Face à lesão dessa confiança decorrente da conduta da Autora não é exigível à Ré a manutenção da relação de trabalho com a Autora, pelo que se tem de concluir que os factos imputados à autora integram justa causa de despedimento.

O decidido relativamente à ilicitude do despedimento prejudica o conhecimento das questões suscitadas pela recorrente na conclusão n.º 43 das suas alegações relativamente à dedução nos valores fixados no acórdão das importâncias que a Autora tenha auferido e que não auferiria se não fosse o despedimento.

Por tal motivo, não se conhece da matéria enunciada na sobredita conclusão, nos termos do artigo 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aplicável aos acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do disposto nos conjugados artigos 663.º, n.º 2, e 679.º do citado Código.


VI


Termos em que se acorda em conceder a revista, revogando o acórdão recorrido e absolvendo a Ré da condenação resultante do ponto n.º 2 do dispositivo daquele acórdão.

As custas da revista e das instâncias ficam a cargo da Autora (herdeiros habilitados).

Junta-se sumário do acórdão.

Lisboa, 8 de outubro de 2015

António Leones Dantas (relator)

Melo Lima

Mário Belo Morgado

_______________________
[1] Redação resultante da decisão recorrida. A versão original era a seguinte: «34. Depois de receber o citado cheque, a autora não exibiu qualquer documento justificativo daquela operação.»
[2] Redação resultante da decisão recorrida. A versão original era a seguinte: «35. Não foram exibidos documentos justificativos do pagamento que a autora ordenou, nem boletim de exame de alta, nem recibo de despesas de farmácia e transporte.»
[3] Direito do Trabalho, Parte II – Situações Laborais Individuais, 3.ª Edição, 2010, Almedina, pp. 899 e 900.
[4] Direito do Trabalho, 2009, Almedina, 14.ª Edição, p. 591.
[5] Obra citada, pp. 903 e 904.
[6] Disponível nas Bases da Dados Jurídicas da DGSI.
[7] Direito do Trabalho, 13.ª Edição, Almedina, 2006, p. 564.
[8] MARIA do ROSÁRO PALMA RAMALHO, Direito do Trabalho, Parte II – Situações Laborais Individuais, 3.ª edição, Almedina, 2010, pp. 422 e 423.
[9] Idem, p. 423
[10] Ibidem.
[11] Ibidem.
[12] Direito do Trabalho, 12.ª Edição, Almedina, 2004, p. 233.
[13] Direito do Trabalho – Parte II Situações Laborais Individuais, 3.ª Edição, Almedina, 2010, p. 415.
[14] PEDRO ROMANO MARTINEZ, Direito do Trabalho, 2010, 5.ª Edição, Almedina, p.p. 529 e 530.
[15] Obra citada, p. 425.