Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06S251
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PINTO HESPANHOL
Descritores: RECONVENÇÃO
PROCESSO DE TRABALHO
ADMISSIBILIDADE
Nº do Documento: SJ200605030002514
Data do Acordão: 05/03/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário : 1. O sentido da expressão «facto jurídico que serve de fundamento à acção» empregue na primeira parte do n.º 1 do artigo 30.º do Código de Processo do Trabalho, pelo seu exacto teor literal e pela sua inserção sistemática, só pode ser entendido como referindo-se à causa de pedir, «ao facto jurídico concreto e específico invocado pelo autor como fundamento da sua pretensão».
2. Por outro lado, o que se extrai do texto das conjugadas alíneas o) e p) do artigo 85.º da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, é que as relações de conexão aí em causa são as que emergem entre as questões reconvencionais e a acção, por acessoriedade, por complementaridade ou por dependência.
3. Assim, nos termos do n.º 1 do citado artigo 30.º, a reconvenção é admissível: (i) quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção; (ii) quando o pedido do réu está relacionado com a acção por acessoriedade, por complementaridade ou por dependência; (iii) quando o réu invoca a compensação de créditos.
4. Tendo o autor fundamentado a acção na ilicitude do despedimento promovido sem a precedência de processo disciplinar, não é admissível a reconvenção deduzida pela empregadora, cuja causa de pedir assenta no não cumprimento, por parte do autor, do contrato de trabalho celebrado entre as partes.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:


I

1. Em 21 de Setembro de 2004, no Tribunal do Trabalho do Porto, AA instaurou acção declarativa, com processo comum, emergente de contrato individual de trabalho contra Empresa-A, pedindo que fosse declarada a ilicitude do seu despedimento e a condenação da ré a reintegrá-lo no seu quadro de pessoal, como professor do ensino superior, e a pagar-lhe as retribuições devidas em consequência do despedimento, bem como a quantia de 50.000 euros, a título de danos não patrimoniais, e juros de mora, desde a propositura da acção até efectivo pagamento.

Alegou, em síntese, que foi admitido ao serviço da ré, mediante contrato de trabalho, com início em 1 de Outubro de 1989, para exercer funções de docente na Universidade Lusíada, com a categoria de professor auxiliar, o qual vigorou, sem interrupções, até 30 de Setembro de 2003, data em que o autor recebeu uma carta de despedimento, datada de 26 de Setembro de 2003 e subscrita pelo Director da Faculdade de Direito, imputando ao autor a violação flagrante do Regulamento Geral de Avaliação de Conhecimentos em vigor na Universidade Lusíada no respeitante à presidência dos júris das provas orais, e deste modo, «com perfeito conhecimento da ilicitude dos factos», a comissão de uma infracção disciplinar muito grave.

A ré contestou, por excepção e por impugnação, invocando a inexistência de qualquer despedimento, e que o contrato de docência cessou por iniciativa do autor, que se recusou, ilegitimamente, a leccionar a disciplina de Direito do Consumidor, no curso de Psicologia da Universidade Lusíada, e, também, que não se verificavam os pressupostos legais da pretendida indemnização por danos não patrimoniais.

A ré deduziu, ainda, pedido reconvencional, com o fundamento de que o autor foi director do Instituto Lusíada de Direito do Consumo e nessa qualidade cabia-lhe promover a realização de pós-graduações nessa área, o que nunca aconteceu, sendo certo que na qualidade de Presidente da Associação Portuguesa de Direito do Consumo organizou vários cursos de pós-graduação em Direito do Consumo, exercendo, por este modo, actividade concorrente com a da Universidade Lusíada, e, bem assim, que o autor se recusou a leccionar a disciplina de Direito do Consumidor já depois de iniciado o ano lectivo, obrigando a Universidade a transferir a referida disciplina para o 2.º semestre, o que originou protestos dos alunos e evidentes danos na imagem da Universidade.

O autor respondeu e contestou o pedido reconvencional.

No despacho saneador, decidiu-se não admitir o pedido reconvencional deduzido, com base nos seguintes fundamentos:

«A reconvenção, em processo laboral, está sujeita a requisitos mais rigorosos do que em processo civil; concretamente, está limitada aos casos previstos no artigo 30.º do Código de Processo do Trabalho e no artigo 85.º, alíneas o) e p), da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro.
No caso em apreço importa sublinhar que o pedido reconvencional deduzido pela R. nada tem a ver com o fundamento da acção; nesta invoca-se um contrato de trabalho que cessou de forma alegadamente ilícita, por a ré ter comunicado essa cessação fora do [...] condicionalismo legal e contratual; na reconvenção atribui-se conduta ao autor que terá originado a eclosão de danos na esfera jurídica da reconvinte; de igual modo - e agora considerando a exigência vertida na alínea o) do referido [artigo 85.º] da Lei n.º 3/99 - não se vislumbra interceder qualquer relação de acessoriedade, complementaridade ou dependência do pedido reconvencional relativamente ao pedido formulado pelo autor.
Finalmente, nos termos da alínea p) do referido artigo 85.º da Lei n.º 3/99, é possível a reconvenção quando se pretenda operar a compensação, o que, manifestamente, não é o caso: a ré não declara pretender compensar o crédito que reclama do autor - pelos invocados danos patrimoniais e não patrimoniais - com os créditos peticionados pelo autor, que a ré não reconhece existirem.»

2. Inconformada, a ré agravou para a Relação, que confirmou o despacho recorrido, negando provimento ao agravo, sendo contra esta decisão que a ré agora se insurge, mediante agravo de 2.ª instância, em que formula as seguintes conclusões:

a) O artigo 30.º, n.º 1, do Código de Processo de Trabalho determina a admissibilidade da reconvenção quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento da acção e ainda no caso previsto na alínea p) do artigo 85.º da Lei n.º 3/99;
b) A citada alínea p) refere-se não só aos casos de compensação, mas também aos referidos na alínea o) do mesmo artigo;
c) A referida alínea o) indica como elemento de conexão relevante a relação de trabalho (e não os concretos factos invocados pelo autor);
d) Daqui resulta que a reconvenção, em processo laboral, será admissível sempre que a causa de pedir da reconvenção seja conexa com a relação de trabalho que serve, ainda que mediatamente, de fundamento ao pedido do autor;
e) Os pedidos reconvencionais formulados pela recorrente resultam, inequivocamente, da relação contratual estabelecida entre recorrido e recorrente, como aliás se reconhece no douto acórdão recorrido;
f) Estão por isso reunidos os pressupostos legais para a admissibilidade da reconvenção;
g) Sem prescindir, ainda que assim não se entendesse, «o facto jurídico que serve de fundamento à acção» é o contrato celebrado entre as partes e não a sua concreta [alegada] violação - com efeito, a existência de contrato é conditio sine qua non para a possível declaração judicial da sua violação, nos termos alegados, quer pelo recorrido, quer pela recorrente;
h) Deste modo, mesmo abstraindo das alíneas o) e p) do artigo 85.º da Lei n.º 3/99, sempre se deveria concluir, por interpretação sistemática do artigo 30.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho, que a expressão «facto jurídico que serve de fundamento à acção» é o contrato de trabalho, ou melhor, a relação jurídica complexa dele emergente, e não a violação concretamente invocada pelo autor;
i) A não se entender assim, concluir-se-ia forçosamente nunca ser admissível a reconvenção em processo laboral (excepto nos casos de compensação), conclusão manifestamente contraditória com a expressa admissibilidade da reconvenção plasmada no referido artigo;
j) Conclusão tanto mais contraditória quando se tenha em conta a ampla admissibilidade da reconvenção (em sede de atribuição de competência do Tribunal do Trabalho) resultante das alíneas o) e p) do artigo 85.º da Lei n.º 3/99;
l) Na verdade, não faria qualquer sentido que a Lei atribuísse ao Tribunal do Trabalho competência para conhecer, por via de acção ou reconvenção, quaisquer questões conexas com a relação de trabalho, ainda que com terceiros [cf. a citada alínea o)] e, por via da interpretação restritiva do artigo 30.º do Código de Processo do Trabalho, vedar-se generalizadamente a admissibilidade da reconvenção;
m) A admissibilidade de reconvenção em processo do trabalho está dependente dos seguintes pressupostos: i) identidade de causa de pedir ou, na sua falta, existência de conexão, por acessoriedade, por complementaridade ou dependência, entre o pedido reconvencional e a relação jurídica de trabalho; ii) independentemente da conexão, quando o reconvinte pretenda exercer compensação; iii) identidade da espécie de processo; iv) valor superior à alçada do tribunal;
n) A doutrina e a jurisprudência admitem, de modo uniforme, a reconvenção quando entre a (concreta) causa de pedir do autor e a (concreta) causa de pedir reconvencional exista uma relação de conexão por complementaridade, dependência ou acessoriedade, sendo este, também, o entendimento vertido no douto acórdão recorrido;
o) Tal conclusão não encontra acolhimento expresso no texto do artigo 30.º, n.º 1, do CPT, resultando da interpretação sistemática do referido artigo ou, em alternativa, da sua conjugação com as alíneas o) e p) do artigo 85.º da Lei n.º 3/99;
p) Aceitando-se que a remissão do artigo 30.º, n.º 1, do CPT para a alínea p) do artigo 85.º da Lei n.º 3/99 inclui também a remissão de segundo grau que nesta alínea se encontra para a alínea o) do mesmo artigo, forçoso é concluir-se que tal remissão há-de ser entendida para todo o teor da alínea o) e não apenas para parte dele;
q) E a referida alínea o) estabelece como elemento de conexão relevante para a admissibilidade da reconvenção a relação jurídica de trabalho e não a concreta causa de pedir do autor;
r) Assim sendo, terá de concluir-se que, fundando-se a causa de pedir dos pedidos reconvencionais formulados pela recorrente na relação jurídica de trabalho, deverá a reconvenção ser admitida, por estarem preenchidos os requisitos legais de que a mesma admissão depende;
s) O acórdão recorrido violou as disposições conjugadas dos artigos 30.º, n.º 1, do CPT e 85.º, alíneas o) e p), da Lei n.º 3/99.

Termina pedindo a revogação do acórdão recorrido em conformidade com as conclusões transcritas.
Em contra-alegações, o recorrido veio defender a confirmação do julgado.

Neste Supremo Tribunal, o Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto pronunciou-se no sentido de que o recurso de agravo não merece provimento, parecer que, notificado às partes, não suscitou qualquer resposta.

3. No caso vertente, sabido que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da pertinente alegação (artigos 684.º, n.º 3, e 690.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), a única questão suscitada consiste em saber se a reconvenção é ou não admissível.

Corridos os vistos, cumpre decidir.

II
1. Para além do acervo factual enunciado no ponto 1. do relatório que antecede, nenhuma outra factualidade importa referir com vista ao exame da questão suscitada no presente recurso.

2. No entender da recorrente, a remissão de segundo grau da alínea p) do artigo 85.º da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, para a alínea o) do mesmo artigo, há-de ser entendida não apenas para as relações de acessoriedade complementaridade ou dependência ali referidas, mas também para o elemento de conexão nela previsto: a relação de trabalho.

Nesta conformidade, defende que a reconvenção, em processo laboral, será admissível sempre que a causa de pedir da reconvenção seja conexa com a relação de trabalho que serve, ainda que mediatamente, de fundamento ao pedido do autor, por isso, fundando-se a causa de pedir dos pedidos reconvencionais formulados pela recorrente na relação jurídica de trabalho, deverá a reconvenção ser admitida, por estarem preenchidos os requisitos legais de que a mesma admissão depende.

Mas mesmo que assim não se entendesse, o facto jurídico que serve de fundamento à acção é o contrato celebrado entre as partes e não a sua concreta violação, deste modo, mesmo abstraindo das alíneas o) e p) do citado artigo 85.º, sempre se deveria concluir, por interpretação sistemática do artigo 30.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho, que a expressão «facto jurídico que serve de fundamento à acção» é o contrato de trabalho, ou melhor, a relação jurídica complexa dele emergente, e não a violação concretamente invocada pelo autor.

A recorrente sustenta, ainda, que o pedido reconvencional deveria ter sido admitido, pelo menos, na parte em que se peticiona a condenação do autor no pagamento de indemnização por recusa em leccionar uma disciplina no Curso de Psicologia, pois tal recusa é, simultaneamente, fundamento da contestação e do pedido reconvencional, sendo manifesta a sua conexão com o fundamento da acção.

Importa, por razões de inteligibilidade, conhecer as normas em causa.

2.1. O artigo 30.º do Código de Processo do Trabalho estipula:

«Artigo 30.º
(Reconvenção)
1 - A reconvenção é admissível quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção e no caso referido na alínea p) do artigo 85.º da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, desde que, em qualquer dos casos, o valor da causa exceda a alçada do tribunal.
2 - Não é admissível reconvenção quando ao pedido do réu corresponda espécie de processo diferente da que corresponde ao pedido do autor.»

Por seu turno, dispõe a alínea p) do artigo 85.º da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro (Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais), que cabe aos tribunais do trabalho conhecer, em matéria cível, «[d]as questões reconvencionais que com a acção tenham as relações de conexão referidas na alínea anterior, salvo no caso de compensação, em que é dispensada a conexão»; enfim, «a alínea anterior», ou seja, a alínea o) do mesmo artigo 85.º, confere aos tribunais do trabalho competência para conhecer, em matéria cível, «[d]as questões entre sujeitos de uma relação jurídica de trabalho ou entre um desses sujeitos e terceiros, quando emergentes de relações conexas com a relação de trabalho, por acessoriedade, complementaridade ou dependência, e o pedido se cumule com outro para o qual o tribunal seja directamente competente».

A admissibilidade da reconvenção está, assim, dependente da verificação de requisitos de natureza substantiva, que se traduzem na exigência de uma certa relação de conexão entre o pedido principal e o pedido reconvencional, a par de outros, agora de carácter processual ou adjectivo, referentes à forma do processo e competência do tribunal.

O acórdão recorrido não põe em causa a falta de qualquer requisito de cariz processual, pelo que deles não há que conhecer.

Saliente-se que, enquanto a alínea a) do n.º 2 do artigo 274.º do Código de Processo Civil, admite a reconvenção «[q]uando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção ou à defesa», o n.º 1 do artigo 30.º do Código de Processo do Trabalho, restringe essa admissibilidade à situação em que o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção, pelo que, no domínio do processo laboral, não é admissível reconvenção com base no facto jurídico que serve de fundamento à defesa.

Tal como é acentuado no parecer do Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto, neste Supremo Tribunal, citando LEITE FERREIRA (Código de Processo do Trabalho Anotado, 4.ª edição, p. 167, in fine), esta restrição da admissibilidade da reconvenção no domínio do processo laboral visa claramente «evitar que o réu, normalmente a entidade patronal, se servisse da acção contra si proposta, em regra, por um trabalhador, para, fora do campo da defesa directa ou propriamente dita, passar a atacar este com uma contra-acção [...]».

Decorre do exposto que a solução do problema submetido à apreciação deste Supremo Tribunal passa, necessária e fundamentalmente, pela interpretação das normas conjugadas dos artigos 30.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho, e 85.º, alíneas o) e p), da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro.

Justificam-se, pois, as considerações genéricas que se seguem.

2.2. A interpretação jurídica tem por objecto descobrir, de entre os sentidos possíveis da lei, o seu sentido prevalente ou decisivo, sendo o artigo 9.º do Código Civil a norma fundamental a proporcionar uma orientação legislativa para tal tarefa.

A apreensão literal do texto, ponto de partida de toda a interpretação, é já interpretação, embora incompleta, pois será sempre necessária uma «tarefa de interligação e valoração, que excede o domínio literal» (cf. JOSÉ OLIVEIRA ASCENSÃO, O Direito, Introdução e Teoria Geral, 11.ª edição, revista, Almedina, 2001, p. 392).

Nesta tarefa de interligação e valoração que acompanha a apreensão do sentido literal, intervêm elementos lógicos, apontando a doutrina elementos de ordem sistemática, histórica e racional ou teleológica (sobre este tema, cf. KARL LARENZ, Metodologia da Ciência do Direito, 3.ª edição, tradução, pp. 439-489; BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 12.ª reimpressão, Coimbra, 2000, pp. 175-192; FRANCESCO FERRARA, Interpretação e Aplicação das Leis, tradução de MANUEL ANDRADE, 3.ª edição, 1978, pp. 138 e seguintes).

O elemento sistemático compreende a consideração de outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretada, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim, como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos). Compreende ainda o lugar sistemático que compete à norma interpretanda no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico.

O elemento histórico abrange todas as matérias relacionadas com a história do preceito, as fontes da lei e os trabalhos preparatórios.

O elemento racional ou teleológico consiste na razão de ser da norma (ratio legis), no fim visado pelo legislador ao editar a norma, nas soluções que tem em vista e que pretende realizar.

Segundo a doutrina tradicional, o intérprete, socorrendo-se dos elementos interpretativos acabados de referir, acabará por chegar a um dos seguintes resultados ou modalidades de interpretação: interpretação declarativa, interpretação extensiva, interpretação restritiva, interpretação revogatória e interpretação enunciativa.

Refira-se que, na interpretação declarativa, o intérprete limita-se a eleger um dos sentidos que o texto directa e claramente comporta, por ser esse o que corresponde ao pensamento legislativo.

Em matéria de interpretação das leis, o artigo 9.º do Código Civil consagra os princípios a que deve obedecer o intérprete ao empreender essa tarefa, começando por estabelecer que «[a] interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada» (n.º 1); o enunciado linguístico da lei é, assim, o ponto de partida de toda a interpretação, mas exerce também a função de um limite, já que não pode «ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso» (n.º 2); além disso, «[n]a fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados» (n.º 3).

2.3. O n.º 1 do artigo 30.º do Código de Processo do Trabalho estabelece a admissibilidade da reconvenção «quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção e no caso referido na alínea p) do artigo 85.º da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro».

Ora, quer o contrato de trabalho, quer o alegado despedimento ilícito, são factos jurídicos, já que consubstanciam eventos que produzem efeitos jurídicos.

No entanto, o sentido da expressão «facto jurídico que serve de fundamento à acção» empregue no primeiro segmento do preceito em exame, pelo seu exacto teor literal e pela sua inserção sistemática em capítulo intitulado «Instância», em que é regulada a cumulação sucessiva de pedidos e de causas de pedir (artigo 28.º), só pode ser entendido como referindo-se, precisamente, à causa de pedir, isto é, «ao facto jurídico concreto e específico invocado pelo autor como fundamento da sua pretensão» (cf. n.º 4 do artigo 498.º do Código de Processo Civil; também, VAZ SERRA, Revista de Legislação e Jurisprudência, 109.º, p. 313), no caso, o alegado despedimento ilícito do autor, e não, como pretende o recorrente, «o contrato de trabalho, ou melhor, a relação jurídica complexa dele emergente».

O segundo segmento da norma em exame remete para o caso referido na alínea p) do artigo 85.º da Lei n.º 3/99.

A remissão supõe uma regulação per relationem a outra regulação: a norma de remissão refere-se a outra ou outras disposições de forma tal que o conteúdo destas deve considerar-se parte integrante da normação que inclui a norma remissiva; o conteúdo do objecto da remissão incorpora-se ou estende a sua aplicabilidade ao âmbito de vigência da norma remissiva.

Como já se referiu, a alínea p) do citado artigo 85.º reporta-se às «questões reconvencionais que com a acção tenham as relações de conexão referidas na alínea anterior, salvo no caso de compensação, em que é dispensada a conexão».

Por sua vez, a sobredita alínea anterior, ou seja, a alínea o) do mesmo artigo 85.º, alude às «questões entre sujeitos de uma relação jurídica de trabalho ou entre um desses sujeitos e terceiros, quando emergentes de relações conexas com a relação de trabalho, por acessoriedade, complementaridade ou dependência, e o pedido se cumule com outro para o qual o tribunal seja directamente competente».

Deste modo, por remissão para a alínea p) do citado artigo 85.º, o antedito artigo 30.º prevê a admissibilidade da reconvenção, quando intercedam as relações de conexão aludidas na alínea o) do mesmo artigo 85.º entre o pedido reconvencional e a acção, e quando o réu invoca a compensação de créditos.

Que relações de conexão estão previstas nas referidas alíneas do artigo 85.º?

Em primeira linha, essas relações de conexão, pelo próprio teor literal da alínea p) do antedito artigo 85.º, devem estabelecer-se entre as enunciadas questões reconvencionais e a acção, o que, desde logo, afasta, por considerações sistemáticas, o entendimento propugnado pela recorrente no sentido de que essas relações de conexão se configurariam entre o pedido reconvencional e a relação de trabalho.

Doutro passo, a história dos preceitos vertidos nas alíneas em apreço revela que as mesmas reproduzem as alíneas o) e p) do artigo 66.º da Lei n.º 82/77, de 6 de Dezembro (Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais), embora, mais impressivamente, a redacção adoptada na alínea o) daquele artigo 66.º fizesse anteceder cada um dos tipos de conexão pela preposição «por», referindo competir aos tribunais do trabalho conhecer, em matéria cível, «[d]as questões entre sujeitos de uma relação jurídica de trabalho ou entre um desses sujeitos e terceiros, quando emergentes de relações conexas com a relação de trabalho, por acessoriedade, por complementaridade ou por dependência, e o pedido se cumule com outro para o qual o tribunal seja directamente competente».

Assim, o que se extrai do texto das conjugadas alíneas o) e p) do antedito artigo 85.º é que as relações de conexão aí em causa são as que emergem entre as questões reconvencionais e a acção, por acessoriedade, por complementaridade ou por dependência.

Tudo para concluir que o n.º 1 do artigo 30.º do Código de Processo do Trabalho, com a remissão para a alínea p) do citado artigo 85.º, prevê três situações de admissibilidade da reconvenção: (i) quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção; (ii) quando o pedido reconvencional está relacionado com o pedido do autor por acessoriedade, por complementaridade ou por dependência; (iii) quando o réu invoca a compensação de créditos.

E não se diga, como faz a recorrente, que a entender-se daquele modo, nunca seria admissível a reconvenção em processo laboral, excepto nos casos de compensação, conclusão que seria manifestamente contraditória com a expressa admissibilidade da reconvenção plasmada no artigo 30.º citado.
Na verdade, sem preocupação de exaustão, refira-se que no Acórdão da Relação de Évora, de 25 de Maio de 1999 (Boletim do Ministério da Justiça, n.º 487, p. 373), decidiu-se que «tendo o autor rescindido o contrato de trabalho com invocação de justa causa e reclamado a respectiva indemnização de antiguidade, é admissível o pedido reconvencional da ré a reclamar a indemnização correspondente à retribuição de base do período do aviso prévio, e é ainda admissível o pedido reconvencional respeitante a outros danos que a ré imputa à rescisão do trabalhador e que alega resultarem da cessação do contrato sem esse aviso [prévio]».

Também no recente Acórdão deste Supremo Tribunal, de 26 de Janeiro de 2006, proferido no processo n.º 1175/05 (Agravo), da 4.ª Secção, entendeu-se que «[s]e a autora pede a reintegração no seu posto de trabalho e o pagamento das retribuições que deixou de auferir desde a data do despedimento, fundando tais pedidos na ilicitude do despedimento, por considerar que os factos constantes da nota de culpa que a entidade empregadora contra ela deduziu eram insubsistentes, é admissível, nos termos da primeira parte do n.º 1 do artigo 30.º do Código de Processo do Trabalho, que a ré empregadora deduza reconvenção em que pede o pagamento de certa quantia, a título de indemnização pelos prejuízos originados pelo comportamento ilícito e culposo da autora, uma vez que os alegados factos ilícitos e culposos que terão dado causa aos prejuízos cuja indemnização se pede são, precisamente, os mesmos que, embora numa perspectiva oposta, servem de fundamento à acção».

3. No caso em apreço, o autor cumulou diversos pedidos contra a ré, tendo alicerçado essas suas pretensões na alegada ilicitude do despedimento promovido pela entidade empregadora sem a precedência de processo disciplinar, o que gera os efeitos estipulados no n.º 1 do artigo 13.º do regime jurídico da cessação do contrato individual de trabalho e da celebração e caducidade do contrato a termo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 64-A/89, de 27 de Fevereiro.

Já quanto ao pedido reconvencional, a causa de pedir assenta no não cumprimento ou no cumprimento defeituoso, por parte do autor, do contrato de trabalho celebrado entre as partes, ajuste contratual que investe o trabalhador e a empregadora num complexo de direitos e obrigações, que a lei lhes reconhece e impõe (cf. artigos 1.º e 19.º a 21.º do Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho, anexo ao Decreto-Lei n.º 49.408, de 24 de Novembro de 1969).

Ora, tal como se afirma no acórdão recorrido, «o pedido reconvencional nada tem a ver com o fundamento da acção - o despedimento. E apesar de ambos os pedidos - da acção e da reconvenção - terem um ponto comum, a celebração de um contrato de trabalho, [o] certo é que o fundamento da acção não é a celebração do contrato de trabalho mas antes a cessação ilícita do mesmo por parte da Ré (despedimento ilícito).»

Tanto basta para que se possa concluir que o pedido reconvencional não emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção, como se exige na primeira parte do n.º 1 do artigo 30.º do Código de Processo do Trabalho.

Contudo, a recorrente sustenta, ainda, que deveria ter sido admitido o pedido reconvencional, pelo menos, na parte em que se peticiona a condenação do autor no pagamento de indemnização por recusa em leccionar uma disciplina no Curso de Psicologia, pois essa recusa é, simultaneamente, fundamento da contestação e do pedido reconvencional, sendo manifesta a sua conexão com o fundamento da acção.

Ora, como igualmente se concluiu no acórdão recorrido, entre o pedido reconvencional e o pedido do autor não se verifica qualquer interligação por acessoriedade, por complementaridade ou por dependência.

E logo acrescenta o mesmo acórdão:

«Na verdade, a haver qualquer relação de conexão ela é apenas indirecta, porque derivam ambas da existência de um contrato de trabalho. Mas ambas as violações contratuais (quer as imputadas à ré quer as imputadas ao autor) têm um conteúdo próprio e independente na medida em que qualquer dessas violações pode ocorrer sem o concurso da outra.
E se assim é, não se verifica, no caso, uma conexão directa por os prejuízos invocados pela ré não estarem numa situação de acessoriedade relativamente ao pedido do autor, ou mesmo de complementaridade e/ou dependência.»

Face a todas as precedentes considerações, a reconvenção, tal como se encontra formulada pela ré, não é admissível face ao disposto no n.º 1 do artigo 30.º do Código de Processo do Trabalho, conjugado com o estipulado nas alíneas o) e p) do artigo 85.º da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro.

III
Pelos fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao agravo e confirmar o acórdão recorrido.
Custas pela agravante.

Lisboa, 3 de Maio de 2006
Pinto Hespanhol
Vasques Dinis
Fernandes Cadilha