Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
13663/22.7T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: MÁRIO BELO MORGADO
Descritores: CEDÊNCIA OCASIONAL DE TRABALHADOR
ILICITUDE
ABUSO DO DIREITO
Data do Acordão: 03/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário :

I- A cedência ocasional de trabalhador é lícita quando, para além do mais, a duração da cedência não exceda um ano, renovável por iguais períodos até ao máximo de cinco anos


II- Celebrado, em 09.12.2014, acordo de cedência de trabalhador, pelo prazo de um ano, renovável por iguais períodos, é ilícito às partes celebrarem acordo com idêntico conteúdo em 09.12.2019.


III- Não age com abuso de direito quem atua no exercício de um direito legítimo e com respeito das finalidades de natureza económica e social subjacentes à sua conformação, tanto mais que o direito em causa se encontra expressa e especificamente consagrado na lei.

Decisão Texto Integral:

Revista n.º 13663/22.7T8LSB.L1.S1


MBM/DM/JG


Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça


I.


1. AA intentou ação declarativa, com processo comum, contra CTT Expresso, Serviços Postais e Logística S. A. e CTT Correios de Portugal, S. A., pedindo que seja declarada ilícita a sua cedência ocasional, feita pela 1.ª à 2.ª ré, e condenada esta a integrá-lo nos seus quadros com contrato sem termo, com reconhecimento de todos os inerentes direitos, como antiguidade, diuturnidades, vencimento base, categoria progressões, subsídios e demais direitos adquiridos, “em equidade com os trabalhadores em circunstâncias idênticas”.


Para tanto, alega, em síntese: é trabalhador da 1.ª ré; esta cedeu-o à 2.ª ré em 10.11.2014, pelo prazo de um ano, renovável, situação que terminou em 08.12.2019; no dia seguinte celebraram um novo contrato de cedência, tendo-se mantido as suas funções; a cedência perdurou, assim, 8 anos, o que excede o prazo de 5 anos legalmente previsto.


2. Ao contrário da 1.ª Instância, que julgou a ação improcedente, o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), concedendo provimento ao interposto recurso de apelação, condenou as rés no pedido.


3. As rés interpuseram recurso de revista, dizendo, essencialmente, nas conclusões da sua alegação:


– A Relação considerou que a cedência era ilícita. Mas qual das cedências considera ilícita? A 1ª? A 2ª? Apenas com a comunicação de maio de 20022 é que ela é ilícita?


– Não sabemos e a decisão proferida pela Relação também nada diz a este respeito, o que consubstancia uma nulidade,


– Em 09.12.2014, o recorrido e as recorrentes celebraram um contrato de cedência ocasional de trabalhador, tendo aquele passado a exercer as funções de CRT (Carteiro) para a recorrente CTT.


– O referido contrato de cedência terminou em 08.12.2019 sem que o recorrido tenha, no decurso do mesmo, levantado qualquer questão relacionada com a sua legalidade ou licitude.


– De igual modo, nunca o recorrido enviou qualquer comunicação às recorrentes a suscitar a questão de uma possível cedência ilícita ou a optar por permanecer ao serviço da recorrente CTT, nos termos e para os efeitos do artigo 292º CT.


– Em 09.12.2019 o recorrido e as recorrentes celebraram um novo contrato de cedência, o qual se mantinha em vigor à data de entrada da presente ação em Tribunal.


– O recorrido, ao celebrar o segundo contrato de cedência, deu o seu acordo à consolidação dessa situação (e da anterior) como válida. Poderemos até considerar que o recorrido vem agir em abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”.


– Só na pendência desta segunda cedência, em maio de 2022, é que o recorrido enviou comunicação às recorrentes, em cumprimento do disposto no artigo 292º do CT.


– A eventual ilicitude da cedência apenas se poderá colocar relativamente a esta segunda cedência.


– Não tendo o recorrido, em momento oportuno (até 08.12.2019, data em que a cedência terminou), formalizado o direito potestativo conferido pelo artigo 292º, nº 2, do CT o direito para exercer essa opção já tinha caducado e prescrito à data da propositura da presente ação.


– O regime que regula a cedência ocasional não prevê a proibição de sucessividade de contratos de cedência, como acontece com a contratação a termo.


– O artigo 289.º, n.º 1, d), só limita a duração quanto a cada contrato de cedência, não proibindo a sucessão de contratos.


4. Contra-alegou o A.


5. O Exmº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no sentido do improvimento do recurso, em parecer a que as partes não responderam.


6. Em face das conclusões da alegação de recurso, e inexistindo quaisquer outras de que se deva conhecer oficiosamente (art. 608.º, n.º 2, in fine, do CPC), as questões a decidir1 são as seguintes: i) se o acórdão recorrido enferma de nulidade, por ambiguidade/obscuridade que o torna ininteligível; ii) se, celebrado (em 09.12.2014) acordo de cedência de trabalhador a empresa do grupo da empregadora pelo prazo de um ano, renovável por iguais períodos, é ilícito às partes celebrarem acordo com idêntico conteúdo em 09.12.2019.


Decidindo.


II.


7. Com relevo para a decisão, foi fixada pelas instâncias a seguinte matéria de facto:


1. Entre a 1.ª Ré e o Autor foi celebrado um contrato de trabalho, com início em 06.09.1999, ao abrigo do qual o Autor se obrigou a prestar à 1.ª Ré as funções inerentes a Distribuidor;


2. O Autor é sócio do SINCOR ‒ Sindicato Independente dos Correios de Portugal desde 11 de Dezembro de 2020;


3. Em 09.12.2014 o Autor e as Rés celebraram um contrato de cedência ocasional de trabalhador ao abrigo do qual o Autor passou a exercer as funções de CRT (Carteiro) para a 2.ª Ré, no CPL…, em termos e condições que constam de fls. 11 dos autos (…);


4. Pelo referido contrato, o Autor passou a exercer a sua atividade profissional com funções de Carteiro – CRT, incluindo condução de veículos pesados. As referidas funções seriam desempenhadas no Centro de Produção e Logística ... – CPL…, sito na Rua ...;


5. O contrato teve o seu termo a 08 de Dezembro de 2019;


6. Em 09.12.2019 o Autor e as Rés celebraram um novo contrato de cedência, em termos e condições que constam de fls. 12v dos autos e cujo teor se dá por integralmente reproduzido;


7. Contrato cuja vigência se mantém data de entrada da presente ação;


8. As duas Rés pertencem ao mesmo grupo empresarial ‒ Grupo CTT, ou seja, têm (…) uma relação de grupo;


9. O Autor enviou às Rés as cartas de fls. 15 a 18 dos autos (…);


10. Desde a celebração do primeiro contrato até à data atual as funções do A. mantiveram-se com a exceção de terem sido retiradas funções de cais, as quais desapareceram para todos os trabalhadores daquele local, sendo que no mais nada nas funções do A. mudou.


III.


a) – Se o acórdão recorrido enferma de ambiguidade/obscuridade que o torna ininteligível.


8. Do acórdão recorrido consta, designadamente:


" A consequência da ilicitude da cedência ocasional de trabalhador é a enunciada no art.º 292.º do Código do Trabalho: (1) confere ao trabalhador cedido o direito de optar pela permanência ao serviço do cessionário em regime de contrato de trabalho sem termo; (2) podendo fazê-lo até ao termo da cedência, mediante comunicação ao cedente e ao cessionário por carta registada com aviso de receção".


Deste modo, considerando que a cedência ocasional se tem por ilícita (a segunda), que a mesma ainda está em curso e que o apelante comunicou às 1.ª (CTT Expresso, Serviços Postais e Logística S. A.) e 2.ª (e CTT Correios de Portugal, S. A.) apeladas a sua pretensão em ser integrada nesta última, resta decidir em conformidade, vale dizer, conceder a apelação, revogar a sentença recorrida e, em consequência, declarar ilícita a cedência ocasional do apelante feita pela 1.ª à 2.ª ré e condenar esta a integrá-lo nos seus quadros com contrato sem termo e a reconhecer-lhe todos os direitos tais como antiguidade, diuturnidades, vencimento base, categoria progressões, subsídios, direitos adquiridos em equidade com os trabalhadores".2


É patente que a decisão recorrida não padece de qualquer ambiguidade ou obscuridade [cfr. art. 615ª, nº 1, c), do CPC], caracterizando sem margem para dúvidas a cedência tida por ilícita (a “segunda”), pelo que improcede a arguida nulidade.


b) – Se, celebrado (em 09.12.2014) acordo de cedência de trabalhador a empresa do grupo da empregadora pelo prazo de um ano, renovável por iguais períodos, é ilícito às partes celebrarem acordo com idêntico conteúdo em 09.12.2019.


8. “A cedência ocasional consiste na disponibilização temporária de trabalhador, pelo empregador, para prestar trabalho a outra entidade, a cujo poder de direção aquele fica sujeito, mantendo-se o vínculo contratual inicial" (art. 288.º, do CT), sendo que a cedência ocasional de trabalhador é lícita quando, para além do mais, “a duração da cedência não exceda um ano, renovável por iguais períodos até ao máximo de cinco anos (art. 289º, nº 1, d), do mesmo diploma).


Quanto às consequências da inobservância desta última norma, dispõe o art. 292.º, n.º 1, do CT, que "a cedência ocasional de trabalhador fora das condições em que é admissível, ou a falta do acordo nos termos do n.º 1 do artigo 290.º confere ao trabalhador cedido o direito de optar pela permanência ao serviço do cessionário em regime de contrato de trabalho sem termo".


Sobre esta problemática, refere, em termos que não suscitam qualquer dúvida, o acórdão recorrido:


«(…) [A] cedência ocasional de trabalhador caracteriza-se por ser uma exceção na regra estabelecida de que nos contratos de trabalho aquele deve prestar a sua atividade para com quem inicialmente acordou trabalhar, mas ainda assim e considerando a dinâmica económica das empresas relativamente às suas necessidades de mão-de-obra, que umas vezes é excessiva aqui e outras deficitárias ali, previu-se, a par de outros, este mecanismo de flexibilização de gestão deste fator de produção. Mas lá está, ciente de que poderia gerar fortes constrangimentos na vida pessoal dos trabalhadores, sempre a parte mais fraca na relação laboral, a lei fez acompanhar essa possibilidade da necessidade imperativa do seu consentimento e restringiu-a a um ano, ainda que renovável até ao máximo de cinco anos. (…) E se é verdade que é permitido o alargamento convencional dos prazos, certo é que em caso algum isso se pode traduzir numa fraude à lei. Ou seja, usando as palavras de Guilherme Dray, escritas a propósito da citada alínea d) do n.º 1, do art.º 290.º, "por força deste preceito, delimita-se a natureza temporária a cedência ocasional de trabalhadores, por forma a evitar a cedência ad æternum, susceptíveis de transformar a proclamada natureza da cedência numa fórmula vazia"».


E, quanto ao caso em apreço, em termos que também se nos afiguram indiscutíveis, remata assim:


“E foi isso que ocorreu com a celebração do acordo tripartido celebrado entre o autor e as rés no dia 09-12-2014, sendo certo que foi acordado o prazo máximo legal (um ano) e também o de renovações (cinco), no final das quais já não poderia ser acordada entre as partes nova cedência ocasional nos temos em que o foi, sob pena, desde logo, de se entrar numa evidente espiral de contradição nos termos que na prática equivaleria a igualar a cedência ocasional de trabalhador à sua cedência permanente, o que, como vimos, não foi objetivo pretendido pela lei e torna a cedência ilícita, seguramente pelo menos desde a comunicação feita pelo apelante às apeladas de que pretendia exercer o direito a ser integrado na segunda, CTT – Correios de Portugal, S.A. (praticamente decorridos oito anos de cedência ocasional, como resulta do facto provado n.º 9).


A consequência da ilicitude da cedência ocasional de trabalhador é a enunciada no art. 292.º do Código do Trabalho: (1) confere ao trabalhador cedido o direito de optar pela permanência ao serviço do cessionário em regime de contrato de trabalho sem termo; (2) podendo fazê-lo até ao termo da cedência, mediante comunicação ao cedente e ao cessionário por carta registada com aviso de receção".


9. Sustentam as recorrentes que, não tendo o A. o exercido o direito potestativo até 08.12.2019, data em que a primeira cedência terminou, tal direito caducou, em conformidade com o disposto no art. 292º, nº 2, do CT (cfr. pontos 3 a 6 da matéria de facto).


Manifestamente sem razão, uma vez que a situação jurídica em causa não pode deixar de ser perspetivada em bloco, unitariamente, sendo irrelevante o facto de, no plano formal, terem sido celebrados dois contratos.


A não se entender assim, uma vez que o primeiro contrato não ultrapassou o prazo-limite de 5 anos, estaria encontrado o expediente para, em fraude à lei, “transformar a proclamada natureza da cedência numa fórmula vazia” (nas palavras já supra citadas).


Como bem refere o Exmº Procurador-Geral Adjunto, no seu douto parecer: “[O] facto de não se prever expressamente no art. 289.º, do CT, a proibição de sucessividade de contratos de cedência não pode conduzir à conclusão que a mesma pode existir. Pelo contrário, o facto de não constar essa proibição é precisamente porque a mesma seria redundante em face do limite máximo estabelecido na al. f) do n.º 1 daquela norma. A assim não ser, o legislador teria permitido a eternização da cedência ocasional de trabalhador, o que implicaria a intemporalidade da cedência, em contradição com a própria natureza transitória do instituto jurídico. Tal interpretação vai contra a presunção que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, imposta pela previsão do art. 9.º, n.º 3, do CC, pelo que é inadmissível. (…) [O] facto de o recorrido ter assinado um segundo acordo de cedência ocasional não tem o poder de tornar lícita essa cedência, uma vez que tal assinatura, embora constitua um procedimento formal ad substantiam, tem sempre um valor relativo, quer porque o trabalhador se encontra sujeito a uma relação de poder desigual na vigência do contrato de trabalho, quer porque pode não possuir os conhecimentos necessários para a apreciação jurídica da validade desse contrato. Precisamente por isso, permite a lei que o direito ao trabalhador poder optar pela permanência ao serviço do cessionário em regime de contrato de trabalho sem termo, em caso de cedência ilícita, possa ser exercido até ao termo dessa cedência, de acordo com o disposto no art. 292.º do CT.”.


10. Alegam, por fim, as recorrentes que o A. agiu em abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”, uma vez que, ao celebrar o segundo contrato de cedência, deu o seu acordo à consolidação dessa situação (e da anterior) como válida.


Mais uma vez infundadamente, por isso que, como decidiu o Ac. de 06.12.2017 desta Secção Social (Proc. nº 1519/14.1TTLSB.L1.S1), “não age com abuso de direito quem atua no exercício de um direito legítimo e com respeito das finalidades de natureza económica e social subjacentes à conformação desse direito”, tanto mais que o direito em causa se encontra expressa e especificamente consagrado na lei.


IV.


11. Em face do exposto, acorda-se em negar a revista.


Custas pelas recorrentes.


Lisboa, 6 de março de 2024


Mário Belo Morgado (Relator)


Domingos Morais


Júlio Manuel Vieira Gomes








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1. O tribunal deve conhecer de todas as questões suscitadas nas conclusões das alegações apresentadas pelo recorrente, excetuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução entretanto dada a outra(s) [cfr. arts. 608.º, 663.º, n.º 2, e 679º, CPC], questões (a resolver) que, como é sabido, não se confundem nem compreendem o dever de responder a todos os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, os quais não vinculam o tribunal, como decorre do disposto no art. 5.º, n.º 3, do mesmo diploma.↩︎

2. Todos os sublinhados e destaques são nossos.↩︎